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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->OS DESDITOSOS -- 02/02/2004 - 14:23 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OS DESDITOSOS


Erotildes saiu da janela da sala exultante. Correu para perto do marido,
Edílson, um jornalista recém contratado pela Tribuna da Bahia, para contar o
que vira e que a deixou tão satisfeita.
- Dirce chegou agora. Desceu de um Simca bonitão. O sujeito que a trouxe é
bem vestido e parece educado. Até abriu a porta do carro pra ela.
Edílson era bem paciente com a cunhada, mas sabia que não daria nada que
prestasse.
Naquele final de 1960, seu comportamento era muito reprovável,
principalmente para os moradores do pacato bairro de Santo Agostinho.
Dirce era a irmã caçula de Erotildes. Viera do interior da Bahia para
estudar na capital, passando a morar na casa da irmã, que se casara a pouco
mais de um ano. Mas o que ela menos fazia neste tempo todo que estava em
Salvador, era estudar. Nunca parava em casa. Sempre havia uma festa para ir,
cada uma delas com um homem diferente. Independente e debochada, não se
prendia a namorado por muito tempo, preferindo uma vida livre e sem regras,
principalmente sexuais.
- Quem era esse Dircinha? Esse sim tem cara de ser um bom partido. Erotildes
cercara a irmã assim que ela entrou em casa.
- Esse aí é o Anacleto. É um sujeito bonzinho, mas não me enche os olhos.
Disse a irmã de Erotildes, fazendo pouco caso do entusiasmo dela. Olhe aqui
Eró, não fique procurando me casar de qualquer jeito, está bem? Tenho muito
que viver ainda. Agora mesmo vou me aprontar para o baile do Cruz Vermelha.
O Rômulo deve chegar a qualquer momento.
Mesmo o paciente Edílson não agüentava mais o comportamento da cunhada. Sem
se conter, levantou da poltrona onde lia o jornal e disparou:
- Chega de tanto homem Dirce! Você já não conhece o bastante? Pegue esse
trouxa e case-se logo.
Dirce, desaforada que era, dirigiu um olhar de desdém para Edílson e
respondeu:
- Olhe aqui, Edílson, essa boceta é minha e eu dou a quem quiser, quantas
vezes quiser. Não tem ninguém que vai controlar ela, porque eu não vou
deixar. Você está me entendendo?
Dirce falava muito alto, enquanto batia com a mão sobre o sexo, num gesto
por demais obsceno, o que exasperava o pobre do Edílson, que se preocupava
muito com a vizinhança. Erotildes, aos prantos, não sabia se fechava a
janela ou se interpunha entre o marido e a irmã, na vã tentativa de
apaziguar os dois.
Dirce trocou de roupa e saiu.
A situação naquela casa se agravaria mais ainda quando Erotildes ficasse
grávida, o que não tardou muito a acontecer.
A irmã de Dirce ainda tinha esperanças de vê-la casada com Anacleto, que era
filho de um rico comerciante da cidade, com uma grande loja localizada na central Rua Chile.
Anacleto bem que insistiu por mais tempo que os demais, mas por fim Dirce o
dispensou escandalosamente, na porta da casa de sua irmã.
Naquele dia o copo da paciência de Edílson transbordou de vez.
Ele e Dirce discutiram calorosamente, até que ela, meio bêbada, tomou uma
faca da cozinha e avançou contra ele, sendo dominada sem muito
esforço.
- Não quero mais você em minha casa.
Dirce mudou-se então para uma pensão na Saúde, que era de uma amiga de
Erotildes. Seu comportamento inadequado, para não dizer indecente, obrigou-a
a sair de lá rapidinho.
Ela trazia vários homens para seu quarto, escandalizando a dona daquela
pensão, que de fato era familiar, que não suportou mais que um mês aquela
bandalheira.
Mesmo sendo amiga de Erotildes e Edílson, Dona Chica não teve outra escolha
senão pedir à Dirce que deixasse sua pensão o quanto antes.
Dirce estava por conta própria agora. O dinheiro que sua família mandava do
interior não era suficiente, mas sua irmã e seu cunhado, apesar de tudo,
penalizados, davam-lhe uma ajuda que permitiram a ela alugar um quarto em
outra pensão, desta vez no Sodré, bem perto da zona da cidade.
A proximidade da zona de prostituição fez com que Dirce se aproximasse das
putas da região, fazendo até amizades. A similaridade de gostos, a vida
dissoluta que levava, era como um imã para os marginais que habitavam aquele
meio.
Rapidamente ela aprendeu tudo que pode sobre sua nova profissão, pois de
imediato percebeu que era aquele o seu destino. Jovem e bonita, Dirce fez de
cara uma boa clientela. O dinheiro fácil, oriundo daquela atividade que lhe
proporcionava muito prazer, a fez permanecer na zona, como uma profissional
do entretenimento sexual.
Um certo dia, enquanto fazia vida na Rua da Ajuda, ela foi abordada por um
homem que muito a perturbou. Era Anacleto, que não podia acreditar que
aquela piranha era sua ex-namorada.
- Quero pagar para ter o que você não me deu de graça.
Anacleto levou Dirce para sua garçoniere na Rua da Independência, onde
tiveram uma noite das mais agradáveis para ambos. Ele por concluir algo que
havia iniciado e ela por sair um pouco da impessoalidade que seu trabalho
lhe impunha.
Lá pelas tantas Anacleto lhe fez uma proposta:
- Você quer ser minha amante? Eu dou este apartamento para você morar. Mas
tem que deixar esta vida.
De fato, era uma proposta irrecusável. Dirce já começara a experimentar as
dificuldades naturais que seu trabalho lhe trazia.
As disputas por pontos, as perseguições da polícia, a convivência com
criminosos de toda espécie, era a parte podre do seu negócio, e que parte.
Mas Dirce não aceitou a oferta generosa de Anacleto, vindo a desaparecer da
vida dele por completo. Ela até mudou de ponto, para não ficar perto da loja
de seu pai, que logo seria administrada por ele.
Mas aquela noite diferente lhe traria outra surpresa: Dirce estava grávida.
Não era a primeira vez que isto acontecia, mas agora havia algo diferente.
Ela estava decidida a ter a criança. Não faria aborto como tantas vezes já
havia feito.
Ela acreditava que a criança era filho de Anacleto, mas podia ser de
qualquer um. Entretanto, filho de puta sempre nasce com a cara do pai, e
quando a criança nasceu, era mesmo a cara de Anacleto. Dirce o batizou de
Nelson, e não disse nada para ninguém. Contou apenas com a ajuda de suas
amigas de profissão e com a cafetina conhecida como Cira Navalhada, dona do
bar Batana, que ficava na Ladeira da Montanha, e que era para suas putas
como uma segunda mãe. Cira, que já estava na profissão há muito tempo, agora ajudava as novatas a se adaptar à vida fácil. Ao se conhecerem tornaram-se amigas, e Cira não
parava de falar que Dirce seria sua herdeira no bar Batana.
Criar um filho no brega era coisa complicada. Se fosse menina, já se sabia o
seu destino: Seria puta.
Mas um menino tinha mais opções: Podia escolher entre ser ladrão, gigolô ou
travesti.
Estes pensamentos inquietavam a jovem mãe bregueira. Mais de uma vez ela foi
até Santo Agostinho, com o filho enrolado em panos, para deixar na porta da
irmã, agora mãe de duas meninas. Mas não teve coragem de abandonar o garoto.
- Nelsinho, seja o que Deus quiser.
Criar o filho no mesmo quarto em que trabalhava era mesmo indecente. Desde
cedo o menino se acostumou a ver sua mãe recebendo seus clientes, que
algumas vezes eram um pouco carinhosos, outras vezes a espancavam. O tempo
foi passando e o garoto foi crescendo. Algumas vezes os fregueses de Dirce
ficavam inibidos pela presença do menino, sempre observando tudo o que se
passava. Ela dizia que não ligassem e terminassem o assunto que os havia
trazido ali. Outras vezes porém, clientes exibicionistas ficavam até
satisfeitos com a infeliz platéia, fazendo questão de demonstrar coisas
imorais para o garoto apreciar. Nelsinho de fato odiava aqueles que
maltratavam sua mãe, mas sentia até mesmo alguma simpatia pelos que eram
mais carinhosos com a puta que se desgastava com o passar dos anos.
Certo dia porém, um homem libertino fez com que o garoto segurasse em seu
falo, causando grande revolta em Dirce que o atacou com uma gilete e o pôs
para fora do quarto, ensangüentado.
Nelsinho tinha então cinco anos, e sua mãe abraçou-o, angustiada, como a
querer protege-lo, chorando e murmurando:
- Meu viadinho, meu filhinho viadinho, Deus que te proteja.
O garoto crescia, perfeitamente adaptado àquele ambiente de dor e
degeneração.
Uma tarde, na Ladeira da Preguiça, Nelsinho jogava bola com outros meninos
enquanto sua mãe e outras mulheres bebiam num boteco próximo.
- Bem se vê que o filho da Dirce não sabe jogar nada. Disse uma mulher
sentada em outra mesa, bebendo aguardente com um marinheiro.
- É mesmo. Ele só tem familiaridade com as bolas dos clientes da mãe.
Ajuntou outra, debochada.
No mesmo instante, Dirce pegou a mesa e jogou sobre as duas mulheres,
causando uma confusão na rua. Armada com uma peixeira, ela investiu contra a
rival, chamando-a de vagabunda, e conseguindo desferir um profundo corte em seu ombro.
Nelsinho arrastou a mãe dali, antes que a polícia viesse restaurar a ordem,
sempre com muita porrada e prisões.
O garoto tinha então quinze anos, e sua efeminação era evidente.
Foi por essa época que Dirce o flagrou com outro garoto da rua. Ela deu
tantas bofetadas, que o rosto de Nelsinho ficou inchado. Dirce o arrastou
até o espelho do quarto e mandou que parasse de chorar.
- Está vendo você no espelho? É isso que você quer ser? Gritava ela.
Dirce estava transtornada, e enquanto gritava pintava o rosto de Nelsinho
com sua maquiagem, pondo-lhe em seguida uma peruca loura e brincos. Depois mandou que vestisse um chamativo vestido de profissional e calçasse uma sandália de
salto alto.
- Pronto! É isto que você quer ser? Um travesti? Disse ela para o filho.
- Muitas vezes eu fiz isso, mãe. Falou Nelsinho meio envergonhado.
- Pois então está na hora de você trabalhar. Travesti começa cedo porque
morre cedo.
Dirce ia explicando como proceder para conseguir clientes, como se proteger
da polícia e dos outros travestis, que eram muito mais violentos que as
putas, na disputa por fregueses.
- Precisamos de um nome bem bonito, que chame a atenção na rua. Já sei,
Sheila. Você vai se chamar Sheila.
Dirce pegou um copo e encheu de pinga. Despejou na cabeça de Nelsinho
enquanto dizia que naquele momento nascia Sheila, para fazer companhia a ela
e ao filho.
- Ganhei uma filha. Agora vou te ensinar como guardar uma gilete no céu da
boca, sem se machucar. Numa briga é sempre útil.
Dirce e Sheila dividiram o quarto com uma cortina, para receber seus
clientes com privacidade. O orçamento familiar logo ganhou um acréscimo
considerável, o que permitiu que mãe e filho se mudassem para uma quitinete
no edifício Saga, na central Avenida Carlos Gomes.
Nelsinho era cada vez mais Sheila, aprendia rápido o ofício. Mas tinha
sempre algumas perguntas que ficavam sem respostas esses anos todos. Quando
Dirce não estava bêbada,
Ficava amarga e se irritava com as perguntas do filho, sempre sobre seu pai
e seus parentes. Um dia que estavam passeando na rua Chile, Dirce mostrou
para o filho quem era seu pai, e depois contou toda a história. Contou que
decidiu ter o filho daquele homem, porque sua relação com ele era a
lembrança mais doce que guardava do passado. Sheila, sempre emotiva, se
derramou em lágrimas, borrando toda a maquiagem.
Pelo fato de estarem se dando bem na profissão, Dirce e seu filho Sheila não
esqueciam seus amigos dos tempos difíceis, principalmente Cira Navalhada e
suas meninas do bar Batana.
À noite, o bar ficava lotado de fregueses, tanto para as meninas da Cira
quanto para os travestis e putas da área. A única restrição que Cira fazia
era que primeiro as meninas da casa tinham que se arranjar, depois, o que
sobrasse, podia ser disputado por quem quisesse.
Havia também um rapaz, simplório, mas prestativo, chamado Zito, que tinha
vindo de Santo Amaro sem eira nem beira, e que terminou sendo acolhido pela generosa Cira, que de fato tinha um grande coração.
Zito era o faz tudo do bar, e as meninas, que faziam dele quase um escravo,
pagavam seus serviços com sexo. Para elas era diversão transar com o rapaz,
por ser tão simples e ingênuo.
Zito se tornou amigo de Sheila, mais até que os outros travestis com que
convivia. Sheila na verdade fizera de Zito seu confidente. O rapaz achava um
mistério, aquela mulher que tinha todos os apetrechos de um homem. Achava
engraçado que às vezes ele falava grosso e outras, falava fino, de uma
forma engraçada.
Sheila se saiu muito bem em sua profissão, conseguia clientes que pagavam
bem, para fazer de tudo. Enturmara-se com os travestis da Rua Chile,
chamando a atenção dos passantes com seus trejeitos exagerados. Logo fez
amizade com outros dois colegas de nome Vanuza e Drica, o que conferia maior
segurança na lida do dia-a-dia.
Uma noite eles estavam na calçada em frente ao Palace Hotel, quando um
senhor bem vestido saiu do hotel, atravessou a rua e foi ter com o trio.
Queria contratar os serviços sexuais deles.
Sheila xingou o homem e foi embora, quase correndo, na direção da Praça
Castro Alves. Vanuza e Drica não entenderam nada, largaram o homem falando
sozinho e foram alcançar Sheila na esquina da Ladeira da Montanha.
- O que deu em você, menina, o homem tem dinheiro, queria nós três.
- Eu não vou foder com meu pai. Disse Sheila, em prantos.
Dirce e Sheila trabalhavam à noite, e durante o dia, após dormir muito,
vagavam pelas ruas do centro, para comprar algumas coisinhas ou roubar os
incautos. Sempre percorriam a Baixa dos Sapateiros até a Barroquinha. Dali
subiam a Rua do Paraíso até a Avenida Sete de Setembro, para ficar olhando a
vitrine da Mesbla. Foi numa dessas tardes que Dirce reencontrou sua irmã
Erotildes, que estava acompanhada de sua filha mais velha, Dalila.
Visivelmente nervosa e constrangida com o encontro, Erotildes não queria
perguntar o que a irmã estava fazendo, para não chocar a filha. Seu desejo
naquele momento era um só: desaparecer.
As coisas ficaram piores quando Sheila se aproximou do pequeno grupo.
Erotildes e Dalila ficaram assustadas com a abordagem do travesti, julgando
se tratar de um assalto. Foram então tranqüilizadas por Dirce que
apresentou seu filho aos parentes.
Quando Erotildes e a filha foram embora, Dirce e Sheila riram muito com o
encontro constrangedor. Os risos, no entanto, não escondiam a decepção que
sentiam com o desprezo que sabiam habitar nos corações dos parentes.
Quando os negócios começaram a declinar, ficou difícil pagar o aluguel da
quitinete, o que obrigou a Dirce e Sheila a se mudar para o pardieiro de
Cira Navalhada. O bar Batana ficava quase sob o Elevador Lacerda. O prédio
tinha somente um pavimento no nível da rua, os demais pavimentos ficavam no
subsolo. Construção antiga, estava quase em ruínas. Péssimas condições
sanitárias e segurança precária. A única coisa que ajudava a viver naquela
miséria toda era a bela vista da Baía de Todos os Santos, principalmente ao
pôr do sol.
Bebida e cigarro eram os vícios que mãe e filho compartilhavam. Algumas
visitas às cadeias da cidade quebravam a rotina infeliz daquelas criaturas.
No fundo queriam viver, como qualquer um, mas a degradação em que existiam
criava pensamentos de autodestruição. Muitas manhãs encontravam sinceros
desejos de suicídio em seus corações.
Como havia prometido, Cira Navalhada fez de Dirce sua herdeira. Pouco antes
de morrer, deixou o bar Batana para a amiga de profissão. Agora sem muitos
clientes, ressentindo-se do tempo que levou seus encantos, Dirce
administrava o bar e uma dúzia de meninas vindas do interior para se
prostituir na capital.
O bar era freqüentado por marinheiros e ladrões. A polícia também se fazia
presente, algumas vezes como clientes, outras como repressores, mas sempre
saiam ganhando alguma coisa.
Foi numa dessas investidas policiais que Sheila conheceu o sargento Anízio.
Do tipo machão, Anízio ficou encantado com o travesti e não deixou mais de
freqüentar o lugar.
Dirce percebeu o que estava acontecendo e chamou o filho para uma conversa.
- Você ficou burro de repente? Ficou maluco?
- Não sei do que você está falando, mainha. Esquivou-se Sheila.
- Ta se apaixonando pelo sargentão é? Eu saquei tudo. Sai dessa barca que é
furada.
De fato, sem nenhuma declaração, havia um clima alimentado tanto por Sheila
quanto por Anízio. Mas nada foi dito por nenhum dos dois, nunca.
Uma tarde, enquanto se arrumava para o trabalho, Sheila percebeu uma mancha
escura em sua testa. Já havia uma semana que não se sentia muito bem.
Na manhã seguinte procurou a Caasa e fez alguns exames, temendo o pior.
Quando soube o resultado, cortou os pulsos. Estava com aids.
Socorrida por sua mãe e colegas, Sheila sobreviveu, mas começou a definhar.
Foi quando resolveu que tinha que contar para Anízio. Talvez não o tivesse
contaminado ainda.
Suas amigas estavam preocupadas, pois Anízio era violento. Mas Sheila estava
determinada.
Sheila estava há meia hora na esquina da Rua Chile com a Rua do Pau da
Bandeira, onde ficava a Radiocity, esperando o sargento Anízio para o
encontro das sextas-feiras.
Suas colegas mais chegadas, Vanuza e Drica estavam por perto, e de vez em
quando, ao cruzar com ela, aconselhavam para que fosse embora.
- Vá embora daqui Sheila! Pediu Vanuza. Porque você tem que dizer para o
bofe que está com aids? Deixe que ele se foda. É muito perigoso dizer uma
coisa dessas para um cara como ele, policial e violento.
- Sai dessa menina. Tranqüilizou Sheila. O Anízio não vai me fazer mal, ele
tem outra cabeça. Fique tranqüila e vai à luta que tem muita carne nova no
pedaço.
Passou-se mais meia hora e nada do Anízio chegar. O movimento de travestis
na Rua Chile agora era bem menor, quase todos já estavam ocupados com seus
clientes, e as amigas de Sheila não estavam mais por perto.
De repente um homem segurou o braço direito de Sheila, com muita força. Ela
se virou, preparando-se para se defender, quando viu que se tratava de
Anízio.
- Ai bofe, você quer levar uma giletada?
- Não tenho muito tempo hoje, vamos descer aqui mesmo. Disse Anízio
apontando para a ladeira atrás deles.
- Você está fardado, pensei que estaria de folga hoje? Sheila achou aquilo
estranho, e não sentiu na explicação de Anízio, que disse estar substituindo
um colega doente. Olha Anízio, preciso falar sério com você. Hoje não vamos
poder transar.
- Não vem com essa não, ou te dou um soco. Falando assim, arrastou Sheila
ladeira abaixo, alojando-se num vão da base de um prédio que dava de fundos
para a rua deserta.
Sheila ainda tentou resistir, mas Anízio lhe aplicou umas bofetadas,
exigindo que começasse.
Fizeram como de costume, primeiro Sheila abaixou-se e executou sua
especialidade: a felação. Depois foi a vez de Anízio servir de passivo na
sodomia que se seguiu.
Sheila já havia recebido seu dinheiro pelo serviço prestado ao policial,
quando deteve Anízio que a convidara para beber no bar Batana.
- O que há de errado Sheila? Você está esquisita hoje.
- É que eu quero te contar uma coisa, uma coisa ruim. Sheila estava
preocupada.
- Ruim? O que é? A voz de Anízio estava trêmula. Sua mão direita logo
repousou sobre a coronha do revolver.
Sheila tornou-se séria. De repente Nelsinho assumiu o comando da situação,
deixando Anízio visivelmente constrangido.
- Olha Anízio, você sabe que eu sempre quis transar com camisinha, e você
nunca gostou disso. Pois bem, o caso é que eu descobri que estou com aids.
Você deve fazer alguns exames para ver se está contaminado também.
Anízio ficou transtornado, deu um soco em Sheila, que se segurou no paredão
para não cair.
- Desgraçado. Mesmo sabendo que está com aids, você vem e me enraba? Porque
não me disse antes, seu sacana? Desabafou Anízio, tremendo de ódio e medo.
- Eu não peguei essa doença ontem não. Uso camisinha com todos os meus
clientes, desde que surgiu essa história de aids.
- Eu sou casado, pai de família e você me contamina com essa maldição, seu
escroto?
- Olha aqui cara, eu também estou fodido, entendeu. Estamos no mesmo barco.
Mil coisas passavam pela cabeça dos dois. Queriam fugir, nunca ter entrado
nessa situação, talvez até mesmo nunca terem existido, mas, sob as estrelas
do hemisfério sul, seus dramas gigantescos não passavam de um mambembe
teatro de marionetes.
- Seu filho da puta! Gritou Anízio, já perdendo o controle.
Sheila pôs as mãos na cintura e falou afetado, provocando:
- Sim, sou filho da puta mesmo, aliás, filha da puta.
Anízio, em poucos segundos, apontou e detonou seu revolver na testa de
Sheila, que não teve tempo de reagir, nem mesmo se esquivar do tiro fatal.
Seu corpo desabou sobre a calçada suja.
Anízio guardou a arma e foi embora, sem fazer maior alarde, e sem demonstrar
qualquer sinal de piedade ou arrependimento pelo travesti assassinado.
A manhã chegava radiante, mais uma manhã de verão na Bahia. Como de costume
Dirce levantou e bebeu um copo de cachaça, pegou um cigarro feito com as
bagas que recolhia à noite no bar e tragou profundamente, debruçando-se na
janela que dava para a baía.
Enquanto Dirce pensava nas águas da baía, querendo afogar nelas suas mágoas,
Zito entrou esbaforido e gaguejando.
A mulher deu uma sacudidela nele, e pediu que falasse com calma.
- Mataram Sheila! Vem comigo antes que o rabecão chegue.
Os dois saíram correndo na direção da rua que subia da Ladeira da Montanha
até a Rua Chile. Uma pequena aglomeração se formara em torno do corpo de
Sheila. Dirce, em prantos, vinha gritando por seu filho. Ao ver seu corpo
estendido na rua, abraçou-o, suspendendo-o até a altura do peito, como a
querer acalenta-lo, uma última vez. Estava tudo acabado. Os anos que lhe
restavam seriam apenas de amargas lembranças. Tentava conter as lágrimas,
enquanto falava aos presentes sobre o ótimo filho que estava em seus braços,
morto.
O rabecão chegou e carregou o corpo para o Instituto Médico Legal. Depois
seria liberado para o sepultamento, como indigente.
Dirce voltou ao bar, amparada por Zito. Descendo a ladeira, olhou mais uma
vez para a baía, enquanto o sol derramava com vigor e generosidade seus
raios sobre as águas da Baía de Todos os Santos. Sua luz imparcial ilumina
os ditosos e os desditosos dessa terra, que se apartam por mil preconceitos,
mas se aproximam por amor ou por ódio.
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