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Contos-->Um Convidado para Jantar -- 30/01/2003 - 20:29 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Um Convidado para Jantar


Noite de pássaros soltos pelas encruzilhadas dos caminhos. E eu com um convidado para jantar. O vinho é simplesmente o melhor que a generosidade da minha terra agreste produz, daqueles cujas raízes souberam em terra árida captar essências raras de rosmaninho, alecrim, giestas e papoilas. Odor persistente, trago frutado e “bouquet” aveludado, conforme se lê no rótulo. Arrasto para o lado da serra a mesa onde vou jantar e ocupo-me em devolver um pouco de requinte à minha vida, convencendo-me que na raridade dos momentos se encontra a sua essência. Comer por uma vez com rigor e solenidade, perpetuando rituais nunca havidos... Por isso, abro a garrafa um pouco antes e ponho-a a respirar imaginando-a ansiosa de ar, captando a brisa da serra e impregnando-se da doce espiritualidade com que me movimento. Fico-me a contemplá-la. No forno uma carne sonhadoramente assada com ervas da longínqua Provença. Estando tudo pronto, podia começar já o meu jantar. Mas o meu convidado ainda não chegou, por isso estou naquela prega de tempo entre o porvir e o depois, agora que ainda não aconteceu o que saboreio como desconhecido e que amanhã o deixará de ser, passando à categoria de já vivido. Será melhor imaginar do que viver, interrogo-me? Ah, sim, agora ainda posso imaginar caprichosamente o meu convidado, depois a sua imagem já ficará preenchida com um nariz, uns olhos, boca e orelhas, quiçá algo desarmónico no conjunto...? Imagino-o a chegar olhar expectante e ansioso, aguardando aprovação. Ou não. Olha sereno e seguro de agradar. Talvez nem isso. Olhar trocista, que acaricia. Sim, prefiro-o assim. Despirá a gabardina e eu tropeçarei com o bengaleiro na ânsia e atrapalhação de lho guardar. No limiar da aventura, não resisto ao apelo da garrafa e encho o copo com um dedal minúsculo do vinho para fazer a prova. Como ele a faria porventura. Olhos fechados, desafiando a imaginação, um trago solene e os olhos que se entreabrem em mística diletância que lhe revele os segredos da minha terra e me liberte a alma prisioneira, sem respirar como o vinho nesta garrafa. Tem de ter um extraordinário travo florido. E tem. Faço a prova e degusto também com subtileza. No final a alma sente-se assim, aquecida e vulnerável. Talvez seja o olhar dele que me põe rubra, contemplando-me como quem me rasga e eu que não desvio por um segundo os olhos daqueles em que ancorei. Enche-me o copo com cortesia e eu irremediavelmente ausente, ruborizo. Agradeço, provo e falo com suavidade. Talvez faça o elogio do vinho ou lembre a peça de carne assada que continua no forno. Depois ouço-o falar também, como num sonho. “Então?” E tudo ficou suspenso naquele Então? Então, fala-me agora dos teus sonhos. Ou, então, quando vem o resto da comida? Não sei, e por isso rio-me com garridice. Um riso fértil e gaiato que não quer parar e é nessa altura que ele diz “Ah, Poder rir, rir, rir, despejadamente, rir como um copo entornado!” E eu fico a olhar o meu convidado que não sabe rir e as suas palavras são-me familiares, como se aquele momento já tivesse ocorrido em outros tempos.
Os copos entrechocam-se sem querer e um leve roçar de pele ancorou de novo os olhares e eu rio de novo e agora os nosso risos brincam genuínos no eco da casa, parca de mobília, e a serra espreita-nos curiosa e cúmplice. Mas ele cala-se inesperadamente firmando os olhos na garrafa e o meu riso suspendeu-se a meio da cascata. Que tens? Nada. Em que pensas? Em nada. “Pensar em nada é ter a alma própria e inteira”. Ah, digo eu. Enchemos os copos, agora melancólicos. “Estou só, diz-me, só como ninguém ainda esteve, oco dentro de mim, sem depois nem antes”. E eu? Antes de ti estava só, como tu estiveste antes de mim, oca por dentro, sem depois nem antes.
E agora, diz-me ele, que tens mais? Tenho apenas o agora que amanhã já será o depois e embrulharei em papel de lustro. Como te chamas, perguntei-lhe. Conforme. Sou Álvaro aqui e agora. Mas vivem outros dentro de mim. Curioso, exclamo eu. Por que será que isso faz muito sentido em ti? “Não procures um sentido oculto nas coisas. O único sentido das coisas é elas não terem sentido nenhum”. Por exemplo, tem algum sentido o facto de eu estar aqui? Tem, respondo-lhe indignada. Invoquei-te, chamei-te à minha solidão. Ah, mas eu não pertenço a nenhum lugar. Só tu e este vinho são reais. Mas tu és real, ou fui eu que te inventei? Invocaste-me, o que é igual. “Os antigos invocavam as Musas. Nós invocamo-nos a nós próprios”. Curioso, disse eu, dir-se-ia que essas tuas palavras já antes estiveram dentro de mim... Sorriu com suavidade. “E que é o presente? É uma coisa relativa ao passado e ao futuro...” Álvaro, digo eu... Alberto. Foi Alberto, o materialista que falou. O poeta, digo eu. “Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha, é a minha maneira de estar sozinho”. Mas agora estamos juntos. Sim. Vamos dar um passeio pela noite? Propus. A serra é um mar de axiomas que nos acenam das árvores milenares. Fomos. De mãos serenamente entrelaçadas à procura do último sortilégio no odor raro do arvoredo, agora embriagado de névoa. “Amar, sopra-me ele ao ouvido, é a eterna inocência. E a única inocência é não pensar”. E a sua voz afagou as copas voluptuosas das árvores e o vento começou a levá-la para longe de mim...
Quando amanheceu e se desvaneceu o improfícuo esplendor da noite, acordo no sofá, generosamente acariciada pelos primeiros raios da manhã. Olho a serra em espanto e a primeira coisa que vejo é a minha garrafa que abri para respirar. Respirando passou a noite toda e da mesa face à serra me fita intacta, intocada também a comida, mas, nota dissonante... uns óculos de aros redondos à sua beira, relíquia de uma noite que não aconteceu...
Desde então fiquei menos só. O poeta vem sempre que o invoco. Os óculos? Guardei-os em memória do tempo em que um inesperado convidado me veio encher a noite de poesia, de vinho e de paixão. A garrafa? Deixei-a envelhecer e azedar, como eu, mas respirando liberta os ares da serra. É este o meu presente. E o que é o presente? Aprendi que é uma coisa relativa ao passado e ao futuro.



Nota:
Assinalaram-se com aspas as citações.

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