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Contos-->Contos do Navegador_O DESTRINÇADOR DO MAHEDA -- 29/01/2003 - 11:58 (John Dekowes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
By John Dekowes



Nascido sob a égide do Tirano de Lans-sor, o pequeno T’rarx não pode escolher o seu modo de vida, e cedo foi lançado num mundo de existência mundana. Durante a revolta de “Emphalux” viu a sua referência paterna ser diluída na “Redoma de Choque”, assim como a sua unidade processadora matriarcal, seguiu o mesmo destino tempos depois. A sua ligação com essas partes destruídas lhe ocasionou seqüelas profundas, em conseqüência da ruptura psíquica e dos traumas fixados na sua mente ainda infantil. Não fora devidamente preparado para o que estava por vir, e sua representatividade junto ao Tirano de Lans-sor, não passava de arremedo de um “Pied’angkich”, isto é, não significava nada. Sofreu penúrias e infindáveis sofrimentos, até adquirir maturidade. Jogado de um lugar para o outro dentro de um sistema social cruel, em sua primeira oportunidade, se escondeu junto às cargas que partiriam para Rattar; abandonou para sempre aquele planeta que só lhe trazia recordações dolorosas, principalmente as imagens da unidade paterna, perdendo aos poucos a sua elasticidade corporal e... Não, gostaria de apagar tudo da memória.
E durante um certo tempo da sua vida, T’rarx viveu fazendo biscates em Rattar, até que foi trabalhar nos porões do Frigorífico Maheda; um supertanque espacial que serviu de depósito nuclear e lixo tóxico durante a guerra de Tvolk, quando sucumbiram milhares de almas num conflito que até a presente data estava mal resolvido. Mas com o armistício, as peças de artilharias, os tanques de Usofor, ácidos fortes com cheiro adocicado e mortal, os barris de pó Tillium, usados como conservantes protéicos e veneno letal quando adicionado a qualquer líquido, as bombas de gás Tox, as partículas de I-satisory, utilizadas nas armas de raios desintegradores, as cargas de Trionlin, aplicados nos canhões Fasers, e mais uma grande quantidade de produtos químicos tóxicos desconhecidos, além de peças quebradas, ficaram abandonadas durante as conversações que duraram muito e muito tempo, até que um grupo de empresários, arrematou tudo: os 20 supertanques, os 10 destróieres, e mais uma grande quantidade de sucata por uma bagatela, e após uma limpeza geral, transformaram os supertanques em frigoríficos espaciais. Por seus gigantescos tamanhos comportavam as fábricas semiautomáticas para o abate e conservação das carnes de Stringa e Batirra, vendendo o produto para todo o cosmo. Apesar de toda as transformações e adaptações acontecidas, a contaminação radioativa permanecia em alguns compartimentos, e na parte central, mais isolada, onde se mantinham e preparavam os produtos banhados em gases criogênicos, é que trabalhava T’rarx. Bem poucos aceitavam aquele tipo de serviço, preferindo áreas mais arejadas e em andares mais acima. E havia também os detalhes escabrosos para a execução – principalmente do Stringa – que tinha de ser esfolado ainda vivo para manter a carne macia e comestível. Nem todos resistiam muito tempo a esse trabalho, trocando por outros. Somente T’rarx é que mantinha o seu apego ao serviço. Com o correr do tempo, se tornara um “expert” em destrinçar Stringa sem derramar uma única gota de sangue, e ainda deixar o animal vivo, enquanto congelava sua carne, para extirpar-lhe o cérebro com uma pinça eletrônica, num único golpe. Acreditava-se que a dor sentida pela criatura era tanta, que nem sofria quando a massa encefálica esverdeada soltava para o tonel armazenador. A vida de T’rarx se resumia ao espaço gigantesco e isolado do frigorífico no supertanque. Não se preocupava em ser muito social, nem em subir para a cobertura de lazer, onde todos os outros funcionários se encontravam nos dias de folgas. A sua vida era aquela; solitária, no meio dos quartos de Stringas e postas de Batirras, presas aos pinos suspensos em diversas carreiras diferentes. Quando precisava organizar o frigorífico ou atender aos pedidos, ele mesmo colocava as botas animagnéticas que o elevavam no ar, e separava as quantidades solicitadas nos tanques resfriadores. Toda carne que saía do frigorífico passava pelo resfriamento antes de sair para o consumo, caso contrário, ao contato direto com a temperatura externa, a carne entrava em estado de necrose térmica, apodrecendo quase que de imediato. Saber a temperatura ideal para as carnes que permaneciam no frigorífico, apesar das etiquetas estabilizantes, era uma arte conhecida por poucos, e T’rarx gabava-se de ser o único ali, a desfrutar dessa primazia. Apesar de haver outras repartições que faziam o mesmo que ele, se nominava o melhor, e em suas raras aparições na Cobertura de Lazer, muitas vezes fora desafiado a testar suas habilidades, contudo permanecera calado e reservado. Gabava-se, sim, todavia não para ficar fazendo demonstrações gratuitas de algo que considerava sagrado... Um dia ainda mostraria aqueles idiotas, a que ponto chegara a sua arte... No devido momento... E não seria com aqueles nobres e indefesos animais...
Domínio completo do esfolamento. Destrinçar com perícia, sabedoria e humildade um corpo, implicava conhecer em minúcia, os mínimos detalhes a tensura divina entre a carne e o couro. Até que ponto podia se erguer à textura da pele para dar o talhe certeiro, e o animal não sentir nenhuma dor, nem o cérebro ser desperto e traumatizar. A certeza da sua habilidade não se resumia simplesmente ao fato de fazer tudo isso com extrema cautela, com delicadeza, mais a sua inteira e total dedicação à profissão. Em resumo: a motivação principal da sua vida se tornara em aperfeiçoar-se cada vez mais no destrinçamento animal, levado a tal ponto de técnica, que indiscutivelmente não existia ninguém mais no supertanque frigorífico que conseguisse supera-lo.

***

Como descrever T’rarx? Na infância era parecido com um Tagol, ou podia ser confundido com um, devido aos pelos negros e barbatanas ventrais muito expostas. Quando se tornou adulto, suas características foram se modificando, pois exigia maior esforço físico para a locomoção do corpo pesado, e seus membros inferiores romperam-se da membrana externa que os uniam, começando a se apoiar sobre os três dedos calosos. A ascendência materna lhe constituiu de fortes braços repartidos em quatro terminações ósseas que finalizavam em dois tendões extensores retráteis bastante sensíveis, que lhe davam a segurança e a firmeza necessária para a execução do seu trabalho. Da cabeça pelada e achatada nas têmporas, sobressaiam pequenos chifres que se perdiam nas costas. Possuía olhos estreitos com pupilas sextavadas que lhe proporcionava uma visão apuradíssima em qualquer ambiente de luz, bastando apenas contrair os músculos do rosto estriado, mostrando uma fileira de dentes grandes e pontiagudos. A sua respiração saía através das brânquias costais. Essa era a aparência de todos os machos da sua espécie. As fêmeas, entretanto, possuíam traços mais delicados e ao invés de barbatanas ventrais, dava lugar a bolsas onde guardavam suas crias, geralmente em números de cinco ou seis filhotes, que revezavam na placenta alimentícia, por meio de absorção branquial celular até se tornarem independentes, podendo prover seus próprios alimentos. T’rarx tinha suas origens vinculadas a uma raça pacata e dócil, cuja ocupação principal era o cultivo de plantas exóticas e a criação de batirra, um peixe coberto de escamas ósseas e carne esponjosa de cor azulada. A tirania de Lans-sor foi que acabou com toda a paz e sossego que viviam os da sua raça. Dominando o planeta, começou uma seqüência de execuções gratuitas, numa demonstração de poder e loucura; seu exército influenciado pelas sandices do Tirano cometeu toda espécie de selvageria, alem de deixar grande parte do povo enfraquecido, esfomeado e à morte.

Mas T’rarx não era mais aquela criatura inocente e dócil. Carregava dentro de si um passado amargo, que vivia encomodando-o; que só era apaziguado quando se entregava com afinco ao trabalho. Então, todo o seu tormento interno desaparecia, e sentia um imenso prazer ao descolar o couro do Stringa em suaves talhos, deixando uma sutil membrana resguardando a carne, e os órgãos viscerais inchados, prontos para explodirem. Para aliviar a dor atroz sentida pelo animal, junto ao instrumento de corte havia um pequeno tubo que aspergia um gás muito congelante que entorpecia o local da incisão por um longo tempo. Esse tipo de aparelho só não funcionava com a Batirra. A carne amarelava e liberava uma gosma ácida e bolorenta, que se espalhava rapidamente pelo ar, estragando o sabor das outras carnes expostas. A Batirra era jogada imediatamente nos tanques de congelamentos para depois serem devolvidas ao local de limpeza e seccionamento em postas. Para se retirar as escamas ósseas, era usado o esmerilhamento seqüencial mecânico. Os peixes eram levados por esteiras a bocas com rodas dentadas em altas rotatividades, que consumiam as escamas, que transformadas em pó, eram recicladas para consumo alimentício dos tripulantes, e misturados ao reforço protéico dado aos Stringas. Sensores termo-óticos controlavam a resistência, a elasticidade e a profundidade do processo nas escamas ósseas, afim de que a carne não sofresse danos ou perdas em demasia. T’rarx apenas dispunha as postas nos pinos suspensos com suas etiquetas estabilizantes.

Quanto mais se dedicasse aos seus afazeres, menos tempo teria para ficar pensando. E com esse estilo de vida, esse modo de proceder, distanciando-se de toda a tripulação ia criando rixas, provocações e piadas a seu respeito. As brincadeiras foram evitas por ele enquanto pode, achava que todos precisavam descontrair, e nem se importava com elas, mas quando começaram as afrontações, percebeu que havia algo de errado. Rareou mais ainda a sua ida a Cobertura de Lazer, entretanto, coisas estranhas principiaram acontecer. Como se alguém estivesse sabotando o seu local de trabalho. Passou a ter mais cuidado, evitando determinadas mazelas típicas da profissão, mas que não representavam perigos aos desavisados e distraídos. Bloqueou as portas estanques com novo código de acesso, entretanto, não podia mante-lo para sempre, pois quando precisasse fazer descarregamento de carne, o comando central de computação anularia aquela senha, generalizando como as demais existentes. Redirecionou as aletas e esteiras para a célula de segurança; isso atrasaria um pouco o esmerilhamento das batirras, mas era um procedimento padrão que muitos evitavam, para ganhar tempo e produção. Fez uma conexão direta da corrente de energia dos instrumentos cortantes e do gás, controlando ele mesmo a quantidade e o nível de entrada do “crio” nas incisões, e como assim, outras mudanças que não eram muito indicadas, mais que o mantinha seguro, com inteiro controle da situação.
Com os dutos lacrados, as portas estanques vedadas, a ventilação tornou-se precária, misturando se ao ar contaminado dos antigos produtos químicos tóxicos ainda encruado nas paredes do porão. Essa combinação mortal foi penetrando pelo corpo de T’rarx e transformando-o. Tornou-se mais arisco e desconfiado e com os sentidos mais apurados. Procurava se controlar reagindo com vontade às estranhas sensações e tiques nervosos. Algo de ruim e destruidor nascia dentro dele. Um dia, completamente esgotado, após atender a vários pedidos, pressionou a sua bota animagnética e se encontrou dentro do reservado de peles, no último andar do frigorífico, agora o seu abrigo de descanso. Era desconfortável, mas considerava o local mais seguro do depósito.
Quando recebeu o choque elétrico nas brânquias costais foi como se o mundo tivesse desabado sob os seus pés. Seu corpo despencou sobre as peles num baque seco. Em seguida, amarraram suas pernas e braços com as fitas seladoras e o arrastaram para fora do porão. Foi uma ação tão rápida e silenciosa que ele não teve nem teve tempo para se defender.
E uma multidão de criaturas com trajes iguais a dele, faziam uma tremenda algazarra ao seu redor, comemorando a vitória por tê-lo preso. Mas T’rarx era muito forte, e conseguiu soltar-se das amarras e agarrou o mais próximo, jogando-o violentamente contra os outros. O seguinte não teve tanta sorte, pois bateu contra os pinos suspensos e ficou estrebuchando com o corpo trespassado. Isso atiçou a ira dos outros que partiram em massa para a vingança. T’rarx não era mais o mesmo. Uma fúria insana e incontrolável tomava conta do seu ser, com tamanha ferocidade e violência, que todos perceberam e recuaram apavorados. Mudaram a estratégia de ataque... Ao invés de um confronto direto, cada um pegou alguma coisa que servisse de porrete e rodearam-no, procurando acerta-lo nos pontos mais vulneráveis e sensíveis do seu corpo, principalmente nas brânquias costais. T’rarx não entendia porque estavam fazendo aquilo com ele, mas procurava se defender também. Sem que percebesse ativaram as cintas adesivas onde prendiam os stringas e soltaram sobre ele, aprisionando-o fortemente. Depois abriram o tanque de congelamento. Um tomou do instrumento cortante.
- Vamos mostrar a ele como fazemos com o stringa! – disse um com o aparelho de corte na mão. – Aposto que não vai nem gritar...
E suspenso pelo pelas cintas, viu quando iniciaram o seu esfolamento pelas pernas, e chegaram até a membrana externa. Depois vieram subindo pelos braços, tosando um dos tendões da mão esquerda.
- Que pena! – escarneou um outro. – Acho que esse braço ele não vai mais usar...
Quando iam começar a soltar a pele da cabeça, o alarme central soou, avisando que chegava novo carregamento de Stringas. Então, jogaram o corpo dentro do tanque de congelamento e saíram.
T’rarx não sentia dor. Estava anestesiado. Todavia a sua mente não parava de funcionar. Era com se estivesse desligada do corpo. Sua carne se congelaria em pouco tempo e com muito esforço conseguiu acionar a célula de suspensão das cintas adesivas, através do cinturão preso ao estômago. Todos que trabalhavam naquele tipo de serviço portavam um como medida de segurança. Através deles, podia trancar portas, ativar as esteiras, controlar o nível de congelamento. Foi se erguendo lentamente, pois era muito mais pesado do que os stringas. Como num estalo, começou a sentir uma dor violenta que lhe atingia as articulações das pernas, dos braços e parte da cabeça. Precisava manter-se de olhos bem abertos... Soltou-se das cintas e com muito esforço subiu para o reservatório de peles. Trancou-se por dentro e desmaiou. A luz mínima do compartimento não era maior do que a escuridão interna, e o fedor de pele estragada e a umidade radioativa seriam o seu túmulo.

***

A primeira morte no frigorífico Maheda mereceu apenas uma observação no livro de ocorrências do Computador Secundário, como acidental. Não queriam muito alarde, eles mesmos resolveriam o problema.
A segunda morte no frigorífico Maheda também foi relatada no livro de ocorrências do Computador Secundário da Unidade Central. Começavam a se inquietar, contudo, consideravam que podiam resolver aquela situação entre eles.
A terceira morte no frigorífico Maheda já deixou alguns mais preocupados, e prontos para comunicarem o fato diretamente ao Computador Central. Formaram um grupo para investigar as mortes. O primeiro local verificado foi o tanque de congelamento, e confirmaram o que todos já haviam pressentido. Todas as mortes tinham ligações com um fato acontecido ali há algum tempo. Era uma vingança planejada quem ninguém sabia quando terminaria. E agora sabiam porque os corpos haviam sido destrinçados com exímia perícia, e seus cérebros extirpados como faziam com os stringas. Só que havia uma grande diferença: a pele do animal era muito mais grossa do que a dos mortos. Realmente, o destrinçador deveria possuir uma técnica perfeita para executar com tamanha minúcia aqueles cortes sem mutilar a carne. Agora estavam cientes do perigo que corriam. Uma mente doentia e vingativa exterminaria com todos no supertanque, como se fossem animais. Um alarme geral foi expedido para que ninguém mais andasse ou permanecesse sozinho, pois havia um homicida à solta. Talvez devessem chamar os investigadores.
Num lugar onde trabalhavam 120 criaturas de espécies diferentes, nas mais variadas funções, essa era uma recomendação um tanto quanto peculiar, e uma sugestão embaraçosa, pois grande parte dos que se encontravam ali, tinham implicações sérias com a Lei. Preferiam enfrentar o assassino do que ir para a penitenciária de Alkran, da qual sabiam com certeza jamais sairiam com vida. Por outro lado, era impossível largarem seus afazeres para correrem atrás de um fantasma. O frigorífico não parava, e os pedidos chegavam continuamente, e juntos com eles, centenas de stringas e toneladas de batirras vivas. A esperança daqueles que trabalhavam completamente isolados, na manutenção dos equipamentos ou nas antecâmaras frigoríficas, era de que o criminoso entrasse numa daquelas naves aportadas, aguardando carregamento, e fugisse para outro lugar.
Mas esse não era o pensamento de T’rarx, que moído pelo ódio vingativo, com o cérebro corrido pela contaminação tóxica e por constantes pesadelos do passado, só queria fazer o seu trabalho com perfeição e requinte.
As mortes continuavam se sucedendo, e dentro do mesmo padrão; muito esmero e habilidade fantástica! Parecia que tudo o que acontecera com ele, avivara certas particularidades mentais, aguçando mais seus dotes profissionais.
Os 120 tripulantes do Frigorífico Maheda, agora se resumiam a 73 criaturas amedrontadas e consumidas por um terror angustiante. O medo estampado em suas feições, os olhares inquietos, os faziam reagir nervosamente a qualquer movimento suspeito; temiam até a própria sombra, pois de repente, o destrinçador poderia se ocultar nela. O encontro de mais 8 cadáveres nos tanques de congelamento, em pontos diversos, misturados aos stringas e batirras, foi o suficiente para que todos tomassem uma decisão. Estavam dispostos a abandonarem seus postos e fugirem no Cargueiro Depósito que aguardava carregamento; mas não era tão fácil assim como pensavam. Não poderiam largar um supertanque com mais de 40 quilômetros de extensão, com mais de 20 andares, abarrotados de carnes e animais para o abate, tudo em plena produção por conta de um maníaco homicida!
As mortes arrefeciam seus ânimos. Salvar suas vidas era mais importante. Mesmo que a empresa não pensasse assim, preferiam se arriscar. E o supertanque frigorífico foi colocado no automático, em direção a uma estrela qualquer e largado à deriva. E acreditavam, junto com ele, o assassino à espreita de mais uma vítima... O Destrinçador do Maheda!

Os Cargueiros Depósitos são tipos de naves de médio porte, preparados para receberem apenas carnes congeladas, no caso: stringas, batirras e não criaturas vivas, pois não existiam lugares para mantimentos. Todas as suas instalações eram compostas de grandes tanques de reservas frigoríficas, subdivididas em reservatórios automáticos termo-refrigerados, onde deveriam permanecer as carnes para o primeiro descarregamento programado, tão logo se chegasse ao destino. As rotas de embarques e desembarques de mercadorias, assim como o tempo disponibilizado para movimentação e viagem; já estavam cronometrados dentro do computador de bordo, de maneira que fosse impossível estragar as carnes em estoques. Dentro do cargueiro depósito estacionado era tudo automatizado. Mesmo com a mudança de rota manual, os códigos de segurança retornariam a direção para o destino traçado anteriormente, pois tal mudança exigia novos cálculos de distância, prazo de conservação do produto perecível, e viabilidade de consumo máximo. Não havendo o controle rígido, e a carne começasse a mostrar sinais de deteriorização, todo o estoque era imediatamente destruído. Assim constava no quadro de aviso na entrada do cargueiro, e ninguém notou o aviso, nem as observações contidas, só queriam fugir para bem longe.
Com o supertanque frigorífico no automático, o computador de bordo do cargueiro depósito registrou a alteração da rota e acionou o desengate de toda a nave, soltando-se. As portas foram fechadas, os pinos das traves romperam os lacres de segurança, mantendo assim a inviolabilidade das cargas até o destino final de cada um. Os Frigoríficos Maheda possuíam a tradição e a credibilidade da entrega dos seus produtos pelas galáxias, dentro dos prazos combinados.
Os novos tripulantes do cargueiro não se incomodavam muito com o conforto. Cada um se virava como podia dentro dos reservatórios automáticos que não foram completados com cargas. Alguns resolveram andar pelas outras repartições frigoríficas em busca de um lugar melhor, ou apenas observando as maquinas e os procedimentos autômatos. Não tinham o que fazer ali mesmo, e muito menos sabiam para onde estavam sendo levados. O computador só fazia leitura de números e triangulações esféricas de cartas estelares, e ninguém possuía conhecimentos sobre aquilo.
No segundo andar, onde ficavam os tanques maiores com equipamentos termo-refrigerados, e as carnes de stringas, existiam abaixo dos mesmos, pequenos compartimentos com cones de vidros, onde se viam pedaços de carnes em conservas, boiando dentro de líquidos amarelados. O que despertou a curiosidade de um dos tripulantes, que distraidamente imaginava qual a serventia daquilo tudo, ao olhar através, por uma janela de vidro. Existiam centenas de portas com janelas iluminadas. Em cada uma, os cones de vidros mostravam carnes com tonalidades diferentes ou idênticas. De repente, seus olhos se fixaram numa janela mais a frente, mas a sua mente continuava presa ao desvendo das funções das máquinas. Nunca estivera dentro de um cargueiro depósito e tudo aquilo era novidade para ele. A sua aproximação se deu normalmente, e apenas observou que havia algo incomum preso ao vidro, na parte interna da janela. Aproximou o rosto para apenas por abelhudice. Queria saber porque colocaram aquela pele tapando a janela... O que escondiam? Ele nem percebeu direito, pois sua mente se encontrava divagando, mas depois ao prestar atenção, o que viu o deixou momentaneamente catatônico. Uma simples piscada de olhos revelou para ele que os piores momentos da sua vida ainda não haviam começado. Antes que a porta se abrisse por completo, e não tivesse chance de fugir, seu instinto de sobrevivência lhe impulsionou para frente, e suas pernas corriam sozinhas, levando o seu corpo e a sua mente perturbas pela visão. Só conseguiu parar quando viu o restante do grupo mais à frente, mas em outro andar.
- E... E... Ele... Ele... Ele está aqui! – conseguiu balbuciar.
- Ele quem?
- O Destrinçador do Maheda! – disse completamente transtornado, como se dissesse: Estamos todos mortos!
- Aonde você o viu? – perguntou outro.
- Num dos compartimentos do segundo andar...
- Tem certeza? Como você sabe que era ele?
- Quem mais poderia ter as pupilas sextavadas?

***

Algumas vezes, nas noites estreladas, quando o céu está claro, límpido, observam-se pequenos riscos esbranquiçados cortando o firmamento e se perdendo atrás da lua, numa rota à esmo. Mas, as vezes o olhar humano não concebe o que significa aquela linha tênue, que simplesmente considera apenas como uma estrela cadente, entretanto, com um possante telescópio que atravessa camada da atmosfera, eliminando toda a claridade refletida que atrapalha a visão, um curioso poderá ver o que realmente é o risco vívido, traçando o infinito. Muitas coisas acontecem no espaço, e até bem próximo do planeta Terra, que muitos desconhecem. O próprio satélite lunar ainda permanece uma incógnita para a ciência terráquea, e capitulam diante da possibilidade de um dia conhecerem mais profundamente o seu solo, e, no entanto, enquanto observam constantemente o lado luminoso, aquela face oculta aos olhares do conhecimento, serve como campo de pouso de emergência as naves em pane ou parada obrigatória às espaçonaves em viagens intergalácticas. Independente de qualquer pensar em despertar a curiosidade do mundo científico do planeta Terra, a predileção por aquele lado também é favorecida pela pouca interferência das tempestades das manchas solares e tempestades magnéticas que prejudicam a navegação e causam avarias quase irreparáveis aos equipamentos mais sensíveis. Muitas carcaças de naves são sucatadas para dentro das imensas crateras existentes, e com o tempo são cobertas pela poeira lunar, se transformando formação natural aos olhares obtusos.
Da superfície da lua, um observador pode subir no pico mais alto e vislumbrar um lugar na penumbra, ao longe, uma planície silenciosa e desconcertante. Só de escutar a própria voz gritante dentro de si, clamando e exigindo coisas esdrúxulas, dá vontade de embarcar na primeira nave e fugir dali, para qualquer outro canto do Universo.
Mas, aquele ponto eqüidistante cortando o firmamento, fez uma volta de quarenta e cinco graus e adentrou na órbita do satélite. Pela sua aproximação desembalada, parecia ter perdido os controles. O Cargueiro Depósito na velocidade em que vinha, permaneceu constante, e pousou... Pousar propriamente não seria o termo exato para aquele tipo de alunissagem, pois trombou com a superfície criando sucos profundos enquanto ia ricocheteando até finalmente ser contido por uma montanha, enterrando parte da frente e mais da metade da estrutura. E assim, a nave ficou estancada por um determinado tempo; quando as portas laterais livres se abriram e vários trilhos surgiram, ligando uma abertura à outra, automaticamente, em seguida, algo muito estranho aconteceu. Enormes tanques surgiram e começaram a despejar seus conteúdos no solo lunar. Toneladas e mais toneladas de carnes de stringas, postas de batirras se misturavam à poeira... E juntos, corpos esfolados de outras criaturas com olhares de expressivo pavor... Esbugalhados! Enquanto o descarregamento macabro continuava, uma plataforma de lançamento se abriu na traseira do cargueiro, e dela saiu uma pequena espaçonave de reparos. Deu duas voltas por toda a extensão do cargueiro e distanciou-se, partindo em direção ao planeta azulado à frente.
O que se podia entender daquela situação era que o cargueiro fora desviado forçadamente da sua rota, e que o satélite lunar correspondia justamente a mesma distância do destino para o descarregamento. O computador de bordo fez a telemetria, triangulou o novo traçado, e iniciou a entrega automática da mercadoria. Se havia coincidência ou não, os dados conferiam.

***

A entrada na atmosfera terrestre foi algo de assustador. Como uma bola de fogo a pequena espaçonave se arrojou através da camada de ar até cair diretamente no oceano. O impacto direto ocasionou ondas de quase 10 metros de altura, e o estrondo reboou no espaço como de um grande trovão, estremecendo tudo. Esse evento não passou desapercebido dos observatórios astronômicos que registraram toda a rota do objeto não identificado, nem das autoridades, que imediatamente enviaram para o local indicado navios de guerras, submarinos e aviões. E durante algumas semanas, em diversos pontos do oceano fizeram-se buscas e investigações e nada foi encontrado. Mas enquanto todos se ocupavam de supostos locais onde o objeto poderia ter caído, muito distante dali, em outras águas, num lugar bastante afastado, completamente isolado no meio do mar, uma pequena nave enegrecida, com 5 metros de diâmetros por 2 de altura veio a tona. Ao seu redor, a água borbulhava, parecendo ferver. De algumas partes da sua estranha fuselagem saiam grossas fumaças azuladas, e parecia que ela mesma reparava os danos, pois minúsculos pontos luminosos percorriam a estrutura fazendo emendas.
Num chiado de pressão e ar comprimido, uma porta se abriu na parte superior, e de dentro a nave, emergiu um ser, que pelos padrões estéticos do planeta Terra, parecia ter saído de um filme de terror de terceira categoria, com efeitos especiais absurdos e amadores. Mas, mal colocou os pés descarnados para fora e depois todo o corpo, sua pele roxo esverdeada começou a empolar, a aparecer bolhas esbranquiçadas que cresciam e estouravam, causando dor e ebulição do seu sangue. O ser retornou apressadamente para o interior da nave fechando a porta pressurizada.
T’rarx sabia que o ar daquele mundo lhe era mortal. Uma fúria descontrolada e incontida pareceu tomar conta dele, mas controlou-se. Seus olhos sextavados se abriram desmesuradamente quando vislumbrou pequenas criaturas se aproximando, dentro de um barco, quase se encostando à sua nave. Sua atenção foi despertada para a pele desnuda e a textura fina que protegiam seus corpos. Sentiu um imenso desejo de ir ao encontro deles. Sua mente febril se agitava com imagens desconexas e perturbadoras. Seu braço caiu pesadamente sobre o painel de controle, e os terráqueos viram quando o estranho objeto voador não identificado, ficou girando no ar sobre suas cabeças, depois despejou um liquido viscoso e bolorento dentro da água, e subiu vertiginosamente para o céu, silenciosamente, se perdendo em direção ao infinito.

***

O Cargueiro Depósito mantinha-se estacionado no mesmo lugar com as portas agora fechadas, e no seu interior, havia apenas a movimentação mecânica de tanques sendo reciclados e reservatórios automáticos termo-refrigerados completados com carnes de stringas, postas de batirras... e corpos destrinçados para a próxima entrega. A nave de reparos sobrevoou o local e desceu na rampa ainda exposta. Tão logo a porta de fechou sobre ela, o cargueiro estremeceu e começou a retroceder forçosamente, até ficar livre. Depois, foi planando bem devagar se distanciando do satélite lunar, e avançou em velocidade hipersônica rompendo a barreira da luz, em direção ao destino traçado... E levava um passageiro muito especial, que aguardava ansioso a próxima... Precisava acabar com aqueles dolorosos pesadelos...


Nota do Navegador: Fico imaginando como deve sofrer uma criatura como T’rarx depois de tudo o que passou. O que será que permaneceu de ser dentro dele? Será que um dia irá perceber o que está fazendo? Até quando terá aqueles pesadelos? É, mas acredito que somente alguém poderá responder as minhas perguntas... E não estou muito disposto em sabe-las...


FIM


John Dekowes
26/01/003
00h35


OBS: Caro leitor, se você chegou até aqui, gostaria do seu comentário a respeito do conto O DISTRINÇADOR DO MAHEDA. O meu e-mail é johndekowes@yahoo.com

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Grato

John Dekowes
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