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Contos-->O MAÇARICO -- 28/01/2003 - 05:06 (PAULO FONTENELLE DE ARAUJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

            Quando o jardineiro eliminou os cupins do abacateiro, mexer com fogo passou a ser uma brincadeira constante. E Tiago bem se recorda do dia, da árvore que nem mais gerava folhas. Estava morta, diziam. Poderia despencar.

            O jardineiro veio, cortou o tronco pelo meio, puxou a casca, escavou e desvendou a obra subterrânea, a cidadela dos vermes. Milhões.

            O homem expôs a descoberta ao relento, pediu jornais velhos e comprimiu os papéis no vão central da árvore. Depois, derramou querosene e acendeu. O tronco podre abriu-se em fogo, e essa foi a queima inicial na vida do menino. Lindo fogo.

            Assim que o tronco virou carvão, Tiago pegou gosto pelo negócio dos incêndios: armar fogueiras, ligar o forno, ver a brasa no churrasco, deslumbrar-se com o instantâneo da explosão das caixas de fósforos.

             Imaginava a cena em câmara lenta  cada palito transmite ao vizinho sua descarga. Mesmo cem palitos, todos se comprometem para o resultado e, no final, quando o fogo cessa, os palitos permanecem unidos, colados e torrados. Prontos para o enterro.

            Outro dia. Ele e mais dois incendiários encontraram um frasco de desodorante. Dos fechados sob pressão. Aerossol.

            O frasco indicava o perigo de furá-lo ou aproximá-lo de calor ou fogo. Fogo. Alguém sugeriu saber o que aconteceria. A pressão liberada desequilibraria o ambiente. Anularia a força da gravidade.

             Pensaram no terreno baldio onde jogavam bola. Criaram a fogueira. Enviaram o tubo na brasa, saíram de perto e esperaram.

            O desfecho foi satisfatório. O desodorante explodiu e subiu. Subiu muitos metros. Tornou-se um foguete. O foguete da Expoex, a exposição do Exército que vira na cidade.

            O frasco voltou aberto e deformado. Por dentro, o aerossol era meio dourado. Olharam o estrago. Transformara-se em uma escultura de cara de mulher. Parecia a Taça Jules Rimet, da Copa do Mundo. 

             –Olha como ficou! – comentou quando pegou a taça. Levou-a para casa. Bacana.

             O álcool também transmitia muitas possibilidades para bom fogo. Álcool Zulu tinha o maior nome inflamável. Graduação 92. 

            Tiago gostava de ler embalagens. Envolvia-se na graduação alcoólica de certos líquidos. A pinga variavelmente possuía 52% a 54% de álcool. A cerveja tinha 5%.  

              Resolveu usar o álcool para outros fins. Idealizou o maçarico portátil. A garrafa de plástico, comprimida pelo meio, expeliria um fino jato do líquido inflamável. Caso houvesse o acionamento, o jato de fogo permaneceria contínuo e seguro pela tampa da garrafa. Serviria como solda.

            Escondeu-se no banheiro para testar a invenção. Morava em um sobrado com quintal e garagem, mas o espaço do banheiro, a torneira, os ladrilhos, a banheira branca eram meio laboratório.

            Furou a tampa da garrafa com prego. Apertou. Saiu um jato fino. Perfeito. Depois, acendeu dois fósforos. Apertou a garrafa novamente. No primeiro jato, o fósforo apagou. Uma segunda vez. Sem efeito. Desistiu, abriu a porta, e o irmão menor brincava de carrinho no corredor. Não dorme nunca.

            Tiago deveria decorar a tabuada do sete, a do oito e a do nove para a escola. Foi para o quarto.

            Sete vezes nove é igual a sessenta e três. Nascera em 1963. Fácil. Matemática era a mais inflamável das matérias. Sete vezes dez é igual a setenta. Oito vezes dois é igual a dezesseis. Nove vezes seis, cinquenta e quatro. Cinquenta e quatro é graduação alcoólica da pinga.

            O soldador voltou ao banheiro e imaginou escrever o seu nome em álcool, nos ladrilhos do chão. Imaginou as letras inflamadas. Um luminoso em gás néon.  Também não deu muito certo, o álcool era muito evaporativo. Na última letra, a primeira já sumira do chão.

            Retornou a ideia do maçarico. Acendeu o fósforo, comprimiu o plástico, acertou o jato e funcionou. Explosivo. Direto no rosto do irmão.

            O fogo pegou na criança e também se fragmentou no banheiro como uma granada. O irmão berrava.  Tiago bateu na cabeça do pequeno para apagar a chama.

            Olhou ao redor. O fogo pulara na porta. A cortina do banheiro escorria pelos ladrilhos.

            O incendiário quis salvar a casa.  Correu até a cozinha, encheu a panela de água. Derrubou-a na escada. E o irmão pulava. Puxou a cortina. Jogou-a sobre a banheira, abriu a torneira. Apagou a cortina, mas não sabia como apagar o irmão.

            A mãe de Tiago, que estava na vizinha, escutou um choro, um cheiro... e correu. Não teve tempo para o grito. Puxou o menor, enrolou-o em uma toalha e saiu para o hospital. Não sem antes ameaçar o incendiário. Ela o esfolaria quando voltasse.

             –Você me paga, moleque!

             Tiago então temeu pela vida. Havia desfigurado uma criancinha. Tão pequena. Nunca dormia. Não precisava de solda o irmão. A mãe e o pai lhe surrariam para cozer a pele. Pior. Viriam para decepá-lo. Cortar o seu corpo bem no meio. Só encontrariam a cidadela dos cupins.

             Escondeu-se no quarto dos fundos, fechou as janelas, apagou as luzes. Fugir seria inútil. Precisaria almoçar e jantar. Dependia dos pais para viver. Dependia dos pais até para comer salsichas. Essa última constatação foi tão humilhante que a expectativa da surra alastrou-se definitivamente em sua pele. Era questão de tempo.

            Começou a chorar e chorou durante muito tempo. Imaginou o irmão sem o olho esquerdo, a pele derretida sobre o nariz. Seria o Corcunda de Notre Dame, do filme.

            Nove vezes seis é igual a sessenta e três ou cinquenta e quatro? Precisava decorar a maldita tabuada.

            A mãe chegou. O irmão tinha uma faixa branca na cabeça. A empregada perguntou sobre as queimaduras:  

             –Sorte eu ter sido ligeira. O neném poderia ficar deformado, meu Deus – disse a mãe.

             A mulher reclamou com a doméstica por deixar o álcool tão à vista. Perguntou pelo criminoso.  A doméstica apontou o quarto dos fundos.

             –Passou a tarde chorando. Quase teve um troço.

             A mãe foi atrás do rebento inconsequente e encontrou-o de cócoras, atrás da porta. Descascava a tinta da parede com a unha do polegar direito. Tiago se levantou choroso e solene:

             –Se a senhora quiser pode me bater. Eu mereço.

             A mãe apenas o abraçou.

             –Nunca mais faça isso, meu filho. Veja o estado do seu irmão... quase sem pele...

            Tiago olhou o menino – a cabeça enfaixada, o iodo sobre o nariz –e o abraçou também.  A mãe e os filhos estavam unidos. O pequeno bateu a testa na cintura de Tiago. 

             Naquele momento, o incendiário conectou-se a sua brincadeira favorita. Não pôde evitar. O três estavam unidos. Unidos e torrados como palitos  em uma caixa de fósforos detonada.

 

                             



E-mail do autor:phcfontenelle@gmail.com

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