ARTIGO ESCRITO POR ARDAGA C. WIDOR - 3ª E ÚLTIMA PARTE
Aí entrou em cena do povoado de Angico, já nos dias de hoje, o Instituto
Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) com sede na cidade de
Juazeiro com o projeto Recaatingamento como parceiro do governo e financiado
pelo Programa Ambiental Petrobras. Com a idéia de dedicar 2.500 hectares de
terras comunitárias ao recaatingamento como (futuro) fundo de pasto para as
cabras das 52 famílias de Angico.
Para deixar as mudas recrescer nessas terras devastadas devem ser excluídos,
durante o período de recuperação, os animais de criação dos agricultores. O
IRPAA decidiu-se para uma cerca elétrica – abastecida por energia solar – de
cinco fios. Os agricultores alertaram aos técnicos do instituto que isto não daria
certo. Já que as cabras, ao levar o choque não recuem, más fogem pra frente,
isto é, pra dentro da área de recaatingamento. Fizeram outras propostas. Sete
em vez de cinco fios. E de preferência sem energia, mas de arame farpado. Os
técnicos sentiam-se questionados e/ou desapreciados “por uns analfabetos” e
rejeitaram tudo. Alegavam, também, que os custos das mudanças propostas
seriam altos demais. Mesmo com os agricultores oferecendo toda mão de obra.
De graça.
Muitos encontros e nenhuma flexibilidade da parte dos técnicos urbanos. No
final o que saiu foi uma área de 26,2 hectares (em vez dos 2.500 da proposta
original) de recaatingamento cercado com a cerca coagida pelo instituto.
Resultado: O recaatingamento nunca se realizou. Porque tudo acontecia
conforme sabedoria prática dos agricultores. As cabras levaram choque, fugiram
área adentro e comeram as mudas.
Mas sem dúvida nenhuma se pode achar este projeto entre as estatísticas
gloriosas do governo. Da Petrobras. Do IRPAA. Dinheiro público (porque a
estatizada Petrobras e suas lambanças e patrocínios de milionários
futebolísticos quem paga, também, somos nós), jogado pelo vento. Ou, neste
caso, pro deserto.
E para onde se foi o “dinheiro da diferença”? Considerando que o projeto
original visou uma cerca para 2.500 hectares e não para 26,2. Um pouco a mais
que um só por cento a proposta original...
A cerca inútil e o que sobrou das mudas do recaatingamento do outro lado da cerca: nada
“Milagres” do Brasil. Que todos nós pagamos. E os agricultores in situ até com
sua existência. Cidadão que não fiscaliza não é cidadão. Ser humano que não
perde a cabeça diante certas coisas, não tem cabeça. E cidadão sem cidadania
nem cabeça é o alvo preferido “da ajuda” e “dos projetos” de corruptos. Aqui se
fecha o circulo vicioso.
Mas não é o caso dos moradores do Angico, nem da comunidade vizinha de
Barriguda.
Dona Ana Neves dos Santos é a presidente da Associação Agropastoril dos
Pequenos Agricultores de Barriguda. Ela doou, das poucas terras que tem, um
bom pedaço para a Associação. Onde através de mutirão se erguia uma cerca
exatamente no dia que fui pra lá.
Será uma área comunitária de plantio de palma. Segurança alimentar para os
animais. E quem sabe, também, pelos humanos, nos anos de seca extrema.
Dona Ana prolonga um espírito já incorporado culturalmente pelos seus
bisavôs.
“Minha bisavó Ana Paula e seu companheiro Chico Pinto morreram na luta”,
afirma com certo orgulho. Referindo-se a Guerra de Canudos. “Algumas das
crianças que sobreviveram a matança foram levadas pelos soldados. À Salvador,
à Rio de Janeiro. Algumas conseguiram voltar anos mais tarde. Outras pessoas
fugiram antes da caída do Conselheiro e voltaram quando os soldados já tinham
saído da área. Reconstruíram. Só em 1969 o governo acabou de vez com nossa
cidadezinha.” [O governo da ditadura, por medo e ódio diante o exemplo da
liberdade e autonomia exitosa dos pequenos, mandou a construção de uma
represa para inundar o Canudos histórico. A “nova” Canudos fica uns 13 km ao
leste da histórica e submersa.]
“Mas nós ainda carregamos o Canudos no nosso coração. E se Deus quiser
vamos ainda conseguir.”
Dona Ana e os homens em pleno mutirão – fazendo uma cerca por conta própria que presta
Gilberto não oculta sua indignação quando tratar de governos. Sobre tudo das
propagandas do governo na televisão.
“Dizem que criança é prioridade, que educação é prioridade. Belas palavras. Que
lá fora nas cidades acredita-se. Mas aqui a coisa é bem diferente. Aqui é a
criança que tem de correr atrás de escola e professor. É um absurdo!” Gilberto
se manifesta sobre um desenvolvimento cada vez mais agudo Bahia afora:
incontáveis escolas nos povoados e vilas são fechadas. Por não ter “número
suficiente” de alunos.
Mas o que é “suficiente”?
“Quantos seres humanos são ‘suficientes’ para serem considerados pelos
governantes arrogantes e prepotentes?”, desabafa Gilberto. “E ainda não pára
por aqui. Os professores nas cidades, para onde as crianças têm de ir todos os
dias, não tem noção nenhuma da vida na roça. Não ensinam nada que tem a ver
com a nossa realidade e nossas necessidades. Estranham os nossos filhos a sua
própria cultura raiz! E, em geral, hoje não vejo mais professor que ensina. Só
mostra. Mostra o que já está num livro e escreve no quadro o que já está num
livro. Mas ensinar não ensina!”
Dona Maria, sua esposa, afirma e acrescenta: “A questão política é terrível. Não
se tem respeito à dignidade das pessoas. Nas cidades tem energia elétrica nas
casas onde ninguém mora, e aqui onde moramos não tem. Nós compramos um
painel de energia solar. Mas ta muito caro. E os ônibus que buscam nossas
crianças pra levá-las pras creches e escolas na cidade, Deus me livre... É um
perigo enorme! As mães não deixem seus filhos de quatro, cinco anos serem
transportados sozinhos nesses veículos sem condição de segurança alguma e nas
mãos de motoristas irresponsáveis. Vão juntos e perdem o dia na cidade
esperando os seus filhos. Enquanto deveriam fazer tanta coisa em casa e na
roça. O governo pra nós traz muita dureza em cima daquelas que já estamos
sofrendo...”
Que sabedoria, cidadania e brio!, penso pra mim. Impressionado. Se tiver disto
um pingo nas prefeituras, no Congresso, provavelmente o país seria outro. E
não a nossa cleptocracia administrada por capazes só na mentira e no saque.
Os meus interlocutores mostram, também, consciência da desertificação.
Afirmam que o regime da seca é cada vez mais regular. E as chuvas cada vez
menos regulares na última década. Tem consciência, também, o que não deve
ser feito mais – sobre tudo as queimadas e o desmatamento. Afirmam que até
pouco tempo atrás nas épocas de chuvas os riachos fluíram até semanas. E que
hoje em dia, após chuva carregam água durante meia tal vez uma hora. Só. Que
no ano passado até Mandacaru morreu. Que cada vez mais áreas tornam terra
nua e dura que nem concreto. Onde até após as chuvas, que escorram, nasce
mais nada. Querem é fazer as coisas certas e corrigir os erros do passado. Mas
não tem a força econômica pra iniciar novos projetos.
Têm, porém, ainda muitos, sobre tudo ricos latifundiários que não dependem da
terra para sobreviver, que insistem nas práticas errôneas e destruidores que
aceleram a desertificação. A área de Monte Santo, Canudos, Jeremoabo tem,
segundo o IBAMA o mais alto índice de caça e captura de animais silvestres
ilícitas na Bahia. E quando este órgão realiza levantamentos in situ,
costumeiramente também, descobre desmatamentos de Caatinga dentro das
grandes fazendas para a produção de carvão vegetal. Prática irresponsável e
ilícita essa que infelizmente continua até hoje. Com multas de R$ 1,5 mil para
áreas desmatadas superiores à 4 hectares (veja:
http://www.ibama.gov.br/noticias-ambientais/ibama-realiza-operacao-araraazul-
no-nordeste-da-bahia) certamente não assusta o latifúndio fora da lei.
Mesmo se os multados de fato chegassem a pagar as multas. O que, na maioria
das vezes, não é o caso.
Outro imperativo aparentemente imutável no país: quem é pobre tem de
obedecer às leis sem ter direitos. Quem é rico pode burlar as leis e tem todo o
direito. Doenças endêmicas do país devido à compra e venda do voto. Que
segura os bandidos no poder.
4d) Povoados Mundo Novo e Serrotinho e sede do Município de
Ouro Branco, Alagoas
Bem vindo ao deserto de Ouro Branco
Os mesmos erros do passado e ainda de hoje. Que nem nos outros lugares
visitados antes. Mas o estágio da desertificação aqui é o mais avançado.
Desmatamento, queimadas, pecuária excessiva e monocultura tornaram Ouro
Branco em município de desertificação nitidamente visível. Logo na entrada na
sede do município parece o flanco sul do Atlas ao entrar no Saara na África do
Norte.
Luzinete Maria Espínola e Renata Kelly Silveira Ramos trabalham no Sindicato
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e da Agricultura Familiar que,
segundo elas, representa 21 associações da região.
“Nós já temos tudo aqui que faz parte da desertificação. Até salinização em
alguns lugares. A superfície da terra ficando tudo branca. Trabalhamos, há anos,
a conscientização dos agricultores, pra que deixem a prática das queimadas, pra
que plantem em vez de cortar árvores pra fazer estacas, mas ta difícil viu. Alguns
até recebem bem os conselhos e a informação. Procuram mudar. Mas têm
outros...
Parece até um reflexo cultural, de tão antiga que é a prática do fogo e de
derrubar. Mesmo se já não tem quase nada nas suas terras, onde ainda acham
um pé derrubam. Botam fogo. ‘Limpam’, como dizem, o terreno.
Antigamente, o que nós salvava foram as chuvas. Todos os anos choveu a partir
de março, abril até setembro. E em março já plantamos milho e feijão. Hoje
essas chuvas faltam. Não podemos mais plantar. Uns estão desistindo, vão
embora. Outros ficam. Mas perdem tudo. Não teve safra e não têm mais nem
sementes no caso da chuva voltar. Têm de ir ao sul [de Alagoas] pra cortar cana
pra não morrer de fome. Pra poder sustentar as famílias.”
Bom pros barões da cana. O latifúndio. Os produtores de etanol. Subsidiados
com dinheiro público ainda..., fico concluindo com voz baixa pra mim mesmo.
Cortar cana na infinidade da monocultura na zona de mata alagoana significa
um estado de semi-escravidão. Embora que hoje em dia quase todos os
cortadores têm carteira assinada, as condições de trabalho continuam
desumanas.
“Não há assistência médica, alimentação e alojamento são muito ruins. E o
preço pago pela labuta é de cinco R$ por tonelada cortada. E se alguém, os mais
fortes, conseguem cortar quatro toneladas por dia é muito. Esporadicamente
tem fiscalização de agentes do Ministério do Trabalho. Agentes, porém, que às
vezes são ‘comprados’“, afirma Luzinete.
Luzinete e Renata: “Ta difícil viu” – Como se pode ver! Há quem continua sem juízo e corta em
vez de plantar. Em plena desertificação progredida!
E que nem na Bahia existe também a prática fatal de colocar fogo na Caatinga
para “aproveitar” a Macambira. Esta bromélia é uma planta nativa e espinhosa
que evita a erosão e que vem sendo utilizada, também, pra alimentação dos
animais embora pobre em nutrientes. Por causa de seus espinhos é queimada
antes. Que nem os xiquexiques (cacto e planta dominante em vastas áreas semiáridas).
Com este tipo de queimada indiscriminada, porém, em intervalos cada
vez mais curtos devido ao clima cada vez mais seco se prepara o chão pra
desertificação com cada vez mais velocidade. É um circulo vicioso clássico.
E parece que a Natureza “ajuda” ao homem nos seus esforços de acabar de vez
com a flora. A palma, dita como indestrutível, e planta importantíssima em
tempos de seca pra sobrevivência tanto dos animas quanto do próprio homem,
foi atingida por uma praga, os cochonilhas do carmim, em todo município.
Plantas atingidas não têm salvação se não foram tratadas imediatamente. Tem
de ser eliminadas. O que aconteceu no ano 2012, junto com a pior seca que o
pessoal mais velho consegue lembrar.
A desertificação cultural, também, aumentou o sofrimento. Nos tempos antigos
houve a compreensão da parte dos agricultores de guardar de tudo (para
possíveis tempos ruins). Guardava-se palma, casca de feijão, palha de milho que
hoje se joga fora. Se guardar algo é apenas milho. E só quem tiver um silo pra
tal. Seguramente não os mais necessitados.
“De imediato o que mais precisa o pequeno agricultor é água. Barragens de
captação de chuva acessíveis para todas as famílias”, concluem Luzinete e
Renata.
No assentamento Vila Nova, uns 8 km da sede do município, rege é desolação.
A maioria das 17 famílias perdeu tudo. E ganhou gordas dívidas no banco.
Combinação essa que quase garante o abandono em breve.
José Leonor dos Santos, 60, lembra dos anos 1970 com saudades. “Moço, foi
fartura. Milho, feijão, cada safra farta. E vendemos de bom preço. Mas desde os
anos 2000 ta cada vez pior. E agora este ano passado [2012] não choveu nada.
Nada. Fora uma ou outra garoazinha que nem molhou a terra. “
Seu José e a situação no Assentamento Vida Nova
José, nativo de Ouro Branco, que está neste assentamento há poucos anos ainda
tem de pagar pela terra após acordo com o dono. Todos os anos uma parcela.
Mas devido a seca não vai conseguir este ano.
Pra piorar adquiriu quatro vacas de leite com credito do banco (pros bancos é
sempre lucrativo induzir o pequeno agricultor no risco e no erro...). Pagou 1500
R$ pela cabeça. E tive que vender às pressas durante a seca, antes que
morreriam, por 2500 R$, as quatro vacas juntas... E mais uma dívida no banco
sem saber como pagar. Sem nem sequer sementes pra plantar. Caso a chuva vier
neste ano novo de 2013.
“Mas a gente ainda consegui vender por 2500! Lá meu vizinho perdeu todas as
cabeças. Não achou comprador. E teve outros que pediram pra alguém levar as
vacas. De graça! De tão ruim tava e continua a situação. Que não queriam ver
morrer uma atrás de outra.”
“Desistir? Mas pra onde a gente vai? Minha esposa e eu, já com 60 anos?”
José que, também, experimentou a invasão da praga da cochonilha do carmim
plantou agora outra espécie menor da palma. Que segundo os técnicos agrícolas
é resistente à praga.
Olhando as terras do assentamento Vida Nova parece evidente o por que da
praga. Tudo desmatado, devastado. E onde ainda houver algo de verde é uma
plantação de palma. Monocultura e nenhuma barreira natural de Caatinga entre
as plantações. Convite de graça irresistível e total facilitação pras pragas...
Antônio Avelino, 55, é filho e morador do povoado Serrotinho. É mais um
pequeno agricultor, más já foi uma vez secretário de agricultura do município
num governo anterior e faz 28 anos ensina geografia na escola municipal de
Ouro Branco. Não depende, portanto, das suas safras pra sobreviver, o que
significa uma situação muito privilegiada no contexto do interior sertanejo.
O pai dele, nascido em 1910 em Mata Grande, uns 40 km ao oeste, foi a
incorporação do espírito trabalhador e desbravador daqueles tempos.
“Quando chegou aqui derrubou umas 300 hectares de mata virgem”, conta
Antônio, “foi um dos pioneiros”. Era o padrão, naqueles tempos, de desmatar o
máximo possível pro plantio e a posterior monocultura do algodão. Que deu o
nome ao município – Ouro Branco.
Hoje, ao menos no Antônio, já cresceu outra consciência.
Seu Antônio (camisa preta)
“Vemos é uma mudança climática muito grande nos últimos dez anos. Já
aconteceu duas vezes neste período que nem conseguimos plantar nada. Por
falta de chuva. Lembro dos anos 1960 até os anos 1990, foi um clima estável.
Com estação de chuva bem definida e confiável. Desde 2005 vemos aqui é muito
vento do Norte, às vezes gelado, outras vezes muito quente. Experimentamos,
também, enorme aumento de trovões e raios. Mas com todo este barulho não
vem chuva. Ou muito pouco.”
Que a paisagem ainda apresenta algo de verde é por causa da chuvinha que caia
duas semanas antes de minha visita.
“Quem não tem emprego como eu, sobrevive pelas bolsas do governo. Como
Bolsa Família ou Garantia Safra que alguns recebem quando conseguem
comprovar que perderam mais do 50% da sua safra. Aí recebem é 135 R$ ao
mês. Quem recebe uma bolsa, porém, não pode receber a outra.”
Mais um projeto pinóquio que nunca saiu da placa propagandística
Famílias que perderam tudo tentando a sobreviver com 135 R$ ao mês. Bem
vindo à realidade na sexta maior economia do mundo. País de extrema riqueza
pra alguns. E extrema pobreza (bem maquilada e até negada nas estatísticas
oficiais dos Pinóquios governamentais, veja:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/109631-indicador-defasado-esconde-
22-milhoes-de-miseraveis-do-pais.shtml) de muitos.
Antônio, quando perguntado pelas necessárias medidas de mais urgência, cita
três pontos:
“1. Conscientização. Mesmo sendo uma tarefa bastante difícil com o ser humano
daqui. Temos que aprender todos juntos, e não por ordem de alguém [do
governo], que não podemos mais derrubar nada. Que devemos é de preservar o
que Deus plantou.
2. Recaatingamento e agricultura manual. Temos que reflorestar, sobre tudo as
matas ciliares. E temos que voltar às práticas menos prejudiciais. Antigamente
roçamos e aramos manualmente. Hoje se usa trator, uma intervenção muito
agressiva. Esgota rapidamente a terra. A fina camada fértil vai embora.
3. Temos que reaprender a cultura antiga. Quando era criança todo mundo fez
paiol. Hoje não conheço ninguém que ainda faz. E quem matou essa cultura do
paiol foram técnicos agrícolas que entraram aqui incentivando o uso de veneno
iludindo a gente com fartura para sempre, sem precisão de fazer depósito de
gêneros. “
Afirmações periciais, mais uma vez, da parte dos próprios Sertanejos que
concluem meu trabalho de campo de Serra Grande, na Bahia até Serrotinho,
Alagoas.
A gritante falta de água e a não menos preocupante redução das reservas de
água no subsolo devido a exploração predatória (sobre tudo pra grandes
lavouras agro-capitalistas), porém, não bastam pra fazer o recado chegar a todo
mundo. Muitos agricultores desejam acesso à água ainda pra atender sua
doença-do-mais através de irrigação não-interrompida. Mais monocultura pra
vender, mais gado (pro sensação de poder) e, também, pra vender etc.
E há até morador numa cidadezinha como Ouro Branco em cujas portas bate
forte o pleno deserto que cava fundo no seu quintal pra construir uma piscina
olímpica. “A gente tem de crescer, ne!” Como disse Simon Bolívar? "Um povo
ignorante é um instrumento cego da sua própria destruição."
No outro lado tem, na mesma cidade, quem afirma que o quadro aos poucos
estaria mudando pro melhor. Não o quadro do clima. Mas da consciência. Joeci
Severino Silva é da terra e trabalha na FACOB – Federação das Associações
Comunitárias de Ouro Branco, cujo objetivo principal é desenvolver ações em
defesa dos direitos da população que se encontra em situação de exclusão social
no estado de Alagoas e, mais especificamente, a Assistência Técnica (com
enfoque na agroecologia) para agricultoras familiares visando à melhoria de
renda das famílias.
“Se você tiver chegado dez anos atrás, não teria visto mata alguma. Hoje já tem
agricultor que planta pés nativos da Caatinga na sua terra. Em vez de derrubálas.
Temos algumas matas em recuperação. Falta muito ainda, más creio que já
conseguimos uma mudança de hábitos. Antes tarde do que nunca.”
Não estive aqui há dez anos. Portanto, não sei. Nem posso afirmar. Mas o que
tive visto até aqui foi mais do que sinistro. Um quadro de extrema urgência.
Preocupante. Alarmante. O que não parece ser o caso pros governos. Que de ano
em ano organizam reuniões pra discutir a desertificação. E deixam por ali
mesmo. No papo...
Afinal, o voto dos Sertanejos consegue-se, também, no semi-árido tornado
árido. Enquanto tiver bolsa tal e bolsa qual chegando e o pessoal, sempre
apelidado de voto-do-cabresto, não morrer de fome...
Até aqui já tive percorrido mais que mil quilômetros. Pra realizar este
levantamento de campo. E não cheguei ainda naquelas áreas caatingeiras mais
atingidas pela desertificação e mais progredidas rumo ao deserto pleno. Como a
região entre a Chapada do Araripe (terra do saudoso Patativa do Assaré) e
Juazeiro do Norte, no sul de Ceará, ou, outro exemplo extremamente grave, a
região do Seridó, no Rio Grande do Norte. Porém, pra não correr risco de acabar
na estrada sem água e nem gasolina, tive que iniciar minha volta a casa. Os
recursos próprios de pesquisadores comunitários e voluntários são mesmo bem
limitados...
Mas fiz questão de, na volta a casa, fazer um pequeno desvio e atravessar mais
uma área susceptível a desertificação: o oeste sergipano. E incluo algumas fotos.
Que falam, que nem as outras, por si mesmas.
Perto de Nossa Senhora Aparecida (esquerda) e entre Ribeirópolis e Itabaiana (direita)
Rio Vaza Barris perto de São Domingos (esquerda) e queimada perto de Lagarto (direita)
5) Colocações finais
Camponeses meus irmãos
E operários da cidade,
É preciso dar as mãos
Cheios de fraternidade,
Em favor de cada um
Fomar um corpo comum
Praciano e camponês
Pois só com esta aliança
A estrela da bonança
Brilhará para vocês.
(De: “O agregado e o operário”, Patativa do Assaré)
Meus agradecimentos a todos os agricultores interlocutores. Não apenas àqueles
que citamos no artigo, más também estes cujos ensinamentos valiosos não
foram incluídos neste trabalho escrito por questões de espaço e volume.
Agradecemos, também, aos companheiros do CAA em Irecê pelo seu apoio
solidário.
Outras ONGs que supostamente atuam em regiões de desertificação e ostentam
páginas brilhantes na internet e que contatamos insistentemente durante meses
antes da nossa pesquisa de campo nunca deram sequer resposta: o que foi o
triste e enraivecedor caso da Fundação Araripe e da Articulação no Semi-Árido
Brasileiro (ASA), da qual, surpreendentemente (pra mim), tanto a CAA quanto a
FACOB fazem parte.
E antes de concluir este trabalho em prol da informação independente das
próprias famílias sertanejas e dos trabalhadores educativos do campo e do
público geral interessado não posso deixar de indicar mais duas coisas de
absoluta importância.
A) Outra frente de desertificação que aumenta sua ameaça ao futuro do país
cada vez mais. Aquela do chamado “Deserto Verde”. Que nem menos
assustadoramente (e nem menos apoiado e subsidiado com nosso dinheiro por
governos corruptos e irresponsáveis!) que a desertificação da Caatinga destrói
terras férteis e a vida de inúmeras famílias em prol do lucro de agro-capitalistas.
Neste caso das grandes empresas (transnacionais) de eucalipto.
Vejam, entre outros, as publicações “O Dia do Meio Ambiente em 2025: Não
comemoremos!” (http://www.bancarioses.
org.br/paginas/noticias_template.aspx?cd_notic=3216) e “Eucalipto: A
danosa Monocultura no Campo e no Campus”
(http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2012/06/508806.shtml) e
“MULHERES E EUCALIPTO - Historias de vida e resistência”
(http://www.wrm.org.uy/paises/Brasil/Libro_Mulheres.html).
Que derrubam florestas e as “substituem” por monoculturas da morte e
destroem quilombos, pequenos povoados, aldeias indígenas e terras de
dimensões de vários países europeus juntos. No sul da Bahia, em Espírito Santo,
nas Minas Gerais, no Paraná...
“Só quando a última árvore for cortada, o último rio for poluído, o último
peixe for pescado, aí sim eles verão que dinheiro não se come...”
Ao norte de Morro de Chapéu (BA) - típica gestão destruidora da parte do latifúndio pecuarista
Mas só se a gente deixá-los!
E este apelo à resistência diante práticas e negociatas que põem a vida das
futuras gerações do Brasil e do planeta em risco chegamos ao segundo ponto:
B) Às fontes positivas de inspiração na luta e nos esforços diários em prol de
uma economia sustentável e socialmente justa.
Quero, portanto, recomendar a todos vocês, e sobre tudo aos que trabalham na
educação, a leitura da e discussão ampla e profunda sobre a "Pedagogia da
Terra e Cultura da Sustentabilidade", escrito por Moacir Gadotti.
1. Educar para pensar globalmente: na era da informação, diante da velocidade com que o
conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular informações. É preciso saber pensar. E
pensar a realidade, não pensamentos já pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o tema do
conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organização do trabalho na
escola.
2. Educar os sentimentos: o ser humano é o único ser vivente que se pergunta sobre o sentido da vida.
É necessário educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com sentido em cada
instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos, e não apenas porque pensamos. Somos parte
de um todo em construção.
3. Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial: nosso destino comum é
compartilhar com todos nossa vida no planeta. Nossa identidade é ao mesmo tempo individual e cósmica.
É preciso educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.
4. Formar para a consciência planetária: é preciso compreender que somos interdependentes. A
Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisamos de passaportes. Em
nenhum lugar deveríamos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundo significa dividir
o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão globalista entre globalizadores e
globalizados, o contrário do processo de planetarização.
5. Formar para a compreensão: é necessário formar para a ética do gênero humano, não para a ética
instrumental e utilitária do mercado. No mesmo sentido, é necessário educar para se comunicar, não
comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da
Terra funda-se nesse novo paradigma ético e em uma nova inteligência do mundo. Inteligente não é
aquele que sabe resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida
solidário, porque a solidariedade não é hoje apenas um valor, e sim uma condição de sobrevivência de
todos.
6. Educar para a simplicidade e para a quietude: nossas vidas precisam ser guiadas por novos
valores, como simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos, compartilhar,
descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsável frente à cultura
dominante, que é uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade, e passar de uma
responsabilidade diluída a uma ação concreta, praticando a sustentabilidade na vida diária, na família, no
trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a simploriedade e a quietude não se
confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade deve ser voluntária, como a mudança de nossos
hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude é uma virtude conquistada com a paz
interior e não com o silêncio imposto.
(Para mais informações sobre a Pedagogia da Terra e Cultura da
Sustentabilidade:
http://miriamsalles.info/wp/archives/category/educadores/moacir-gadotti
e/ou http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/842)
E aconselho com muito carinho, também, a todos os trabalhadores educativos
as obras iluminadoras de Vandana Shiva, física, ecofeminista e ganhadora do
prêmio Nobel alternativo.
Vandana já pregava a Sustentabilidade num tempo que o mundo nem sabia
ainda o que era isto.
Ela é a grande defensora de pequenos agricultores e primeira dama da luta
global contra o agro-capitalismo. Incansavelmente revela as mentiras dissipadas
e suas práticas letais por ele mundo afora. E mostra, também, como podemos
trabalhar a terra justa e inteligentemente sem acabar com ela.
Em nenhuma biblioteca do campo deveriam faltar seus livros
Guerras por água: contaminação, privatização e negocio;
Biopirataria: A pilhagem da Natureza e do Conhecimento;
Monoculturas da Mente;
Ecofeminismo;
Conheçam-na melhor num brilhante vídeo: http://vimeo.com/45069821 e,
também, numa entrevista abarcadora:
http://www.radicallivros.com.br/livros/monoculturas-da-mente-umaentrevista-
com-vandana-shiva/
A Terra não é de algumas empresas, nem de governos. A Terra é a casa de toda
vida terrestre. E as futuras gerações dependem de nosso trato da única casa que
temos: a Mãe Terra. TERRA LIVRE!
Escrito entre Abril e Junho de 2013
Ardaga C. Widor, Chapada Diamantina, Bahia
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