Artigo escrito por ARDAGA C. WIDOR - 2ª parte
Seu Pedro, porém, tem outra visão:
“Sou rico, sou pobre não. Não tenho dinheiro, mas nunca passei fome e tenho
meus filhos e netos e bisnetos e to aqui na terra que gosto.”
Uma das muitas aulas de humildade que os anciões sertanejos poderiam e
deveriam dar aos sempre insatisfeitos contaminados da doença-do-mais mundo
afora.
“Sempre foi analfabeta. Mas sou analfabeta civilizado. O que a gente sabe, a
gente passa. O que a gente não sabe, não passa”, segue o professor Pedro Sousa
Pinto com sua aula, esta vez nas matérias pé-no-chão e auto-reconhecimento.
Faculdades que tanto faltam nas altas esferas políticas e ditas intelectuais no
país.
Mas seu Pedro conhece, também, os contragostos da vida: “As festas
tradicionais..., acabou tudo. Tínhamos nossas danças, nossos cânticos, mas hoje
ninguém quer mais fazer. Acabou. Tudo tem seu tempo. E depois vem outro”,
conclui como genuíno fatalista.
E o tempo, o clima?, pergunto ao professor.
“Antigamente todo mundo sabia quando ia chover, plantava, colhia. Às vezes
tinha seca. Mas depois vinha ano de muita chuva. De fartura. Hoje não. Passa
um ano de seca e já vem outro pior. Ninguém sabe se vai chover e quando.
Mudou tudo. De uns anos atrás pra cá. Muitos dos mais novos já se foram,
outros mais estão seguindo.”
Os traços nítidos da desertificação do solo ainda são poucos aqui. É a lógica. Os
quilombolas sempre vivem nos cantos mais afastados, de mais difícil acesso.
Afinal, foi o imperativo de não ser descoberto e recapturado nos tempos da
escravidão sancionada.
Regime de chuvas incerto e sem acesso à água do subsolo a comunidade perde milho e sorgho
Os grandes destruidores e suas práticas devastadoras, portanto, só começam a
chegar. Mas o patriarca sábio acabou de tocar em outra desertificação. Mais
“esquecida” ainda do que aquela do solo: a desertificação sócio-cultural.
Fenômeno tão senão mais galopante Sertão afora.
Na reunião dos técnicos do CAA com os pequenos agricultores de Serra Grande,
o agrônomo Carisvan lembra aos presentes das mudanças agro-culturais que o
interior estava sofrendo. Citou, entre outras práticas esquecidas, o paiol. E os
mais velhos dos agricultores imediatamente afirmam: “Sim, quando era criança
ainda todo mudo fez. Hoje ninguém nem sabe o que é”.
Serra Grande não tem poço comunitário. Quando acabar a água depende dos
carros-pipa contratados pela prefeitura, ou, em outra palavra acertada: da
indústria de seca. Carros-pipa custam muito mais caro, de longo prazo, do que
furar uns poços. Mas nada que uma roubalheira-após-eleição de quatro anos
não recompensaria em múltiplo.
“Nós, os primeiros moradores daqui, não temos água, mas os grandes (de fora)
têm. Furam poços a vontade”, afirmam os mais eloqüentes da reunião. A água
que vem dos lençóis freáticos. Pra molhar suas monoculturas. Sobre tudo de
bananas. A boa qualidade da terra atrai firmas agro-capitalistas. Uns da
próxima cidade de Lapão. Onde já detonaram tudo. Essas empresas tiram a
água do subsolo até a última gota.
“Poucos anos atrás bastava furar ate 60 m. Hoje já são precisos 80 e não tem
garantia. O açude que tínhamos aqui perto secou. Drenaram toda água já pros
bananais.”
Aqueles exploradores selvagens que tanto falam de “progresso” e
“modernização”, porém, têm, também, entre os moradores. A família Lelis que
domina a situação política em Ibipeba tem (mais) uma fazenda entre Serra
Grande e o povoado de Lagoa Grande. É um só bananal de umas 160 tarefas. Do
qual consegue tirar um lucro mensal de mais ou menos 30.000 R$. Sob maciça
irrigação. Com exatamente essa água que está faltando nas comunidades, que
dependem do mesmo lençol freático.
Os próprios poços de 80m na fazenda bananeira já secaram. Mas,
contrariamente aos moradores “comuns” da região, pequenos agricultores
familiares e quilombolas, a família de detentores, típico exemplo do
coronelismo, flagelo político secular do Nordeste, tem sim recursos econômicos
para furar cada vez mais profundo. Ate o lençol secar. Quando isto acontecer a
família tão bem abastecida (literalmente) estará segura. Com todo lucro nas
contas bancárias das bananas colhidas com a água que falta em redor, e ainda
tantos outros negócios (como clínicas) e ainda “o negócio político” nas mãos (o
chefe do clã, Beto Lelis, pai do atual prefeito Israel Lelis, inclusive condenado
pelo TER e TSE por crimes de corrupção eleitoral) nada lhes faltará. Nem pra
continuar ganhar as eleições e as corridas de cavalos da região.
Diferentemente dos pobres e burlados. Que terão que permanecer e virar-se no
deserto feito pelos empresários inescrupulosos. Ou pegar a estrada rumo a uma
cidade grande onde ingressarão nas favelas com todas suas implicâncias
sociais...
Fartura as custas dos pobres - Sinônimo da sempre mesma política escravocrata no país
E quem vai lembrar-se do seu Pedro Sousa Pinto e do quilombo? Sem nenhum
Euclides da Cunha ou Graciliano Ramos por perto, escrevendo sobre eles?
O Estado agro-capitalista da repressão e eliminação de pequenos e do
favorecimento dos grandes destruidores aprendeu suas lições (de Canudos, da
Cabanagem...). Hoje tudo vem sendo feito com mais sutileza.
Extração de argila pra fabricação de blocos perto de Ibititá (BA)
4b) Povoado Rodagem de Lapão, Município de Lapão, Bahia
Bem vindo no que o agrocapitalismo deixou do município de Lapão
Comparado com Serra Grande, o primeiro foco de nosso levantamento, o
processo de desertificação aqui já está progredido. As mesmas empresas agrocapitalistas
(firmas que apenas se preocupam com o lucro próprio e imediato,
sem dar atenção à sustentabilidade biológica ou as conseqüências sócias para as
populações locais) que estão entrando em Serra Grande (e tantas outras áreas
ainda não devastadas Bahia e Nordeste sertanejos afora) já deixaram suas
marcas inconfundíveis.
Num lugarzinho chamado Queimada de Joaquinzinho onde até seis anos atrás
uma empresa agro-capitalista com sede na cidade de Lapão (de nome “Seixas”,
segundo os nativos do lugar que trabalhavam por ela) teve instalado um “pólo
de cenoura”, hoje se vê é o deserto que este tipo de empresas em busca do lucro
imediato sem preocupação com “o depois” sempre deixa pra atrás. Poços de
120m de profundidade..., e secos. A água do lençol freático só alcança hoje quem
tem o poder econômico de furar até 150m ou mais. Certamente não os pequenos
agricultores familiares.
As empresas vêm, prometem milagres aos nativos e os confundem com orações
de eloqüentes “técnicos”, compram ou arrendam as terras, furam uma
multiplicidade de poços e instalam suas monoculturas com maciça aplicação de
agrotóxicos. Deste modo de exploração capitalista selvagem sem nenhuma
preocupação com o futuro do lugar e dos seus habitantes, e aproveitando a
bondade e o nível baixo de informação da parte dos agricultores familiares
locais, conseguem tirar umas três safras de cenoura num ano. Depois a terra já
fica tão enfraquecida que tem de trocar pro milho. Que renderá, também, três
safras (embora que com mais aplicativos de agrotóxicos ainda) conseguem até
seis safras. Depois a área já é transformada em deserto. Improdutivo. Para
(ninguém sabe quantas) gerações a fio...
O que sobrou do pólo de cenouras: Ruínas e desertificação onde outrora ocorreu lavagem das
raízes com milhões de litros de água que hoje falta pra sobrevivência das famílias
No lado oposta, seu Wilson Dourado do povoado Tinguí é um exemplo de como
sim se pode conviver e trabalhar sustentavelmente no Sertão com (e não contra)
a Natureza. Ele planta de tudo um pouquinho. Pequena agricultura familiar
mista. Exatamente o contrário das devastadoras monoculturas. Mas por causa
da exploração inescrupulosa das firmas agro-capitalistas e da mudança
climática, idem de responsabilidade de homens inescrupulosos, porém, no nível
global, as coisas, também, pra ele que não faz nada de errado, começam a
endurecer. Seu poço já não alcança mais o lençol freático. Isto em combinação
com o regime de chuva cada vez mais inseguro faz com que não sabe se sua
filha, hoje de 17 anos, ainda vai poder permanecer e se sustentar na roça.
“Até uns oito, dez anos atrás as chuvas sempre vinha. Podia confiar. Plantar.
Hoje não é mais assim. Chove pouco quando antigamente não chovia. E não
chove quando devia chover. E até tem ano ou mais sem nenhum pingo de chuva.
E a gente que não tem força pra pegar a água do fundo... A gente quer deixar
pros filhos uma coisa sustentável que dá segurança alimentar. Mas como as
coisas está desenvolvendo, não sei não.”
Seu Wilson
As paisagens que vi e fotografei durante estes trabalhos de campo me
lembravam à região africana de transição entre o Magreb e o Saara. Mesmo após
as boas chuvas que tinham caídas na região até apenas dois dias antes de minha
chegada. É expressão nítida que a situação é mesmo uma de desertificação
porque nem chuvas fazem plantas nascer onde o chão foi degradado em excesso.
Isto em grave contraste às minúsculas ilhas de Caatinga ainda em pé. Que
imediatamente reagiram às chuvas e estão vestidos de verde intenso e com o
chão úmido e são.
Uma das últimas ilhas de Caatinga, verde e úmida – Ao lado a impressionante gestão ambiental
da administração política de Lapão
Na cidade de Lapão, poucos quilômetros ao norte do povoada Rodagem de
Lapão a drenagem excessiva das águas subterrâneas surta outros efeitos
preocupantes. Parte da cidade está “afundando”. O chão desce sob o peso das
construções e sem a contrapressão da água drenada pela prolongada atividade
agro-capitalista. Umas casas até caíram. Outras ficam interditadas e estão à
venda por preço de banana. Literalmente.
Casas rachando e caindo no centro da cidade de Lapão – Mas o agronegócio continua furando
4c) Povoados Angico e Barriguda, Município de Canudos, Bahia
Bem vindo ao deserto de Canudos
Nesta terceira estação de nosso levantamento encontram-se flagelos
contemporâneos e flagelos históricos da parte do Estado contra os
marginalizados e excluídos.
Memorial ao Antônio Conselheiro - Primeiro os matamos, depois os reverenciamos e faturamos
- Cinismo histórico dos que dominam no Brasil
O Vale da Morte, hoje incluída no PEC (Parque Estadual de Canudos), é um dos
sinistros lugares históricos que fazem o visitante recordar as várias expedições
militares por ordem do poderio (econômico-político-eclesiástico) em fins de
século XIX contra o bem-sucedido experimento libertário de molde
protosocialista-cristão de milhares de pequenos sem-nada transformados em
pequenos e livres agricultores.
No Memorial Antônio Conselheiro (“primeiro os matamos, depois os veneramos
e lucramos”, parece um lema transsecular no Brasil quando tratar-se de pessoas
que visam e constroem um país diferente, desde Zumbi à Chico Mendes e o
monumento pra irmã Dorothy Stang para ser explorado turisticamente, é só
uma questão de tempo!) encontro o Lúcio Conceição Santos, um dos
articuladores principais do Fórum de Desenvolvimento Sustentável de Canudos.
Hoje até conhecido nacionalmente através do programa “Guerra de Canudos e
Projeto Canudos” na série “Ação” da Rede Globo.
Lúcio é um sonhador. E um praticante. Sonha que é sim possível a convivência
humana sem penúria e ecologicamente correta do homem sertanejo com o
meio-ambiente. E o comprova através de suas próprias iniciativas na sua roça
em Angico, uma das áreas mais devastadas e desertificadas. Própria produção
de adubo orgânico, sistema de cisternas onde capta as águas das chuvas,
deixando a Caatinga em pé e deixando áreas já agredidas tornar Caatinga
novamente, como “fundo de pasto”, viveiro, horta econômica, apicultura, etc. Só
que não contava com um ano sem chuva alguma. Como foi em 2012. Fenômeno
regional da mudança climática global este, certamente não causado pelos
pequenos agricultores sertanejos. Fenômeno, alias, amplamente prognosticado,
também, pro ano corrente.
Iniciativas próprias da parte de Lúcio - Se houver apoio a convivência agroecológico daria certo
Na região de Canudos chovia em outubro de 2011. Depois, durante nem meia
hora, só no dia 24 de janeiro de 2013...
Tem ainda “os projetos”. Projetos do governo. Projetos de parcerias do governo
com NGOs. Projetos que, vamos supor, são desenhados com o genuíno intuito
de ajudar ao pequeno agricultor. Mas que são executados de uma maneira que
só podem dar errado.
Técnicos, seguros de sua “superioridade” estabelecem um projeto e querem
instalá-lo in loco goela abaixo dos (supostamente) beneficiados. Sem sequer
presentear suas idéias antes nem ouvir as opiniões daqueles que convivem
diariamente a realidade do lugar. Assim foram instaladas muitas cisternas
familiares de 16mil litros de volume.
Agora, por quanto tempo uma família de quatro pode usufruir desta água após
chuva única num ano?
As cisternas tornaram, portanto, reservas de água estritamente pra matar a sede
dos humanos. E as roças? E os animais? E a higiene?
Bem mais inteligente e prático e útil seriam grandes reservatórios cavados nos
fundos naturais da topografia local, onde cabem centenas de milhares de litros.
Que poderiam ser usados comunitariamente para todos os fins necessários dos
agricultores familiares.
Mas ninguém quer ouvir as objeções e propostas deles. Para instituições como
governos e ONGs o importante é mostrar serviço e fluxos de recursos no papel.
Nas estatísticas. Que o Brasil e o mundo depois leiam como realizações positivas
da parte deles. Enquanto no chão da realidade...
Em alguns poucos lugares Nordeste afora está se impondo a aceitação da suma
importância da conservação e do reflorestamento da Caatinga. Como na região
de Canudos graças aos esforços de agricultores como o próprio Lúcio e o
Gilberto Nascimento Guimarães.
Seu Gilberto
As “raízes” da desertificação já foram implantadas no início do século passado.
Os “coronéis”, os grandes latifundiários e dominadores da política local e
regional, mandaram seus rebanhos de gado pra Caatinga de Canudos todos os
anos. E o que era aquela Caatinga “infernal” e impenetrável descrito pelos
jornalistas que acompanhavam as Guerras de Canudos aos poucos virou uma
Caatinga com inumeráveis estradas. “Pavimentos” pisoteados pelos milhares de
bois na sua incessante busca de algo comestível já que os bois contrariamente às
cabras quase não podem aproveitar nada da flora autóctone. Grande primeiro
passo rumo a desertificação feito: o boi e a Caatinga não combinam.
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