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Ensaios-->Os Demônios - por Paul Johnson -- 03/09/2020 - 14:35 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

OS DEMÔNIOS

 

por Paul Johnson

 

Extraído do Capítulo 8 de Tempos Modernos – O mundo dos anos 20 aos 80, de Paul Johnson, pg. 219 a 233

Biblioteca do Exército e Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1994

Tradução de Gilda de Brito Mac-Dowell e Sérgio Maranhão da Matta

 

        No exato momento em que a intelligentsia americana se voltou para a Europa totalitária em busca de apoio e liderança espirituais em matéria de planejamento sistemático, os americanos estavam de fato iniciando duas décadas de devastação e desolação sem precedentes, caracterizadas por um relativismo moral que se apresentava como uma monstruosidade. Stálin havia celebrado seu quinquagésimo aniversário em 21 de dezembro de 1929, como senhor absoluto de uma autocracia, no que se refere à selvageria, sem paralelo em toda a história. Algumas semanas antes, enquanto a Bolsa de Nova Iorque entrava em colapso, ele obrigara os camponeses russos a entrarem num processo de coletivização forçada. Tal operação implicava perdas materiais muito grandes, bem maiores do que qualquer outra perda que pudesse acontecer no âmbito da ação de Wall Street. Era como uma carnificina humana, em proporções tais que nenhum governo tirano de que se tem notícia jamais conseguiu realizar. Na época em que John Strachey escreveu sobre como fugir da morte capitalista para encontrar a vida no mundo soviético, já tinha sido concluída a horripilante obra de engenharia social perpetrada pelos soviéticos. Cinco milhões de camponeses estavam mortos, e o dobro disso em campos de trabalhos forçados. Nessa época, também Stálin tinha conseguido, na figura de Hitler, um discípulo admirador e rival, que controlava uma autocracia semelhante e planejava como sacrificar seres humanos à ideologia, em proporções ainda maiores do que as adotadas por Stálin. Para os americanos, então, essa ideia de voltar-se para a Europa totalitária era como deixar uma Arcádia ferida e se mudar para o pandemônio. Os demônios haviam assumido o controle.

        Quando Lênin morreu, em 1924, a autocracia que ele criara havia sido completada e Stálin, na qualidade de secretário-geral do partido, já a havia herdado. Tudo o que restava fazer era eliminar os rivais em potencial para deter o poder exclusivo. E Stálin estava bem equipado para isso. Esse ex-seminarista e bandido revolucionário era meio gângster, meio burocrata. Não tinha ideais e nem posições ideológicas firmadas. Segundo o compositor Shostakovich, Stálin queria ser alto, com mãos vigorosas. Halbandian, o pintor da corte, satisfez esse desejo: fez-lhe um retrato de maneira a que o ângulo de visão fosse fixado de baixo para cima e fez com que o seu senhor aparecesse com as mãos cruzadas sobre o estômago; criou assim uma ilusão de ótica. Vários outros retratistas foram fuzilados. Stálin media 1,62 m, era magro, moreno e tinha o rosto cheio de marcas de varíola. Uma descrição da polícia czarista sobre ele, feita quando estava com 22 anos, registrou que os seus segundo e terceiro dedos do pé esquerdo eram grudados. Além disso, um acidente, quando ele era menino, deixou o seu ombro esquerdo sem mobilidade, causando-lhe ainda o encurtamento do braço. Sua mão esquerda era visivelmente mais volumosa do que a direita. Como disse Shostakovich, Stálin escondia todo o tempo a mão direita. Bukharin, dois anos antes de ser assassinado, externou sua opinião, dizendo que Stálin sofria amargamente por causa de suas deficiências físicas e de sua incapacidade intelectual, real ou imaginária. “Esse sofrimento é talvez o sentimento mais humano que ele possui”, mas o leva a se vingar de qualquer pessoa que mostre maior capacidade intelectual do que ele: “Há algo de diabólico e desumano em sua compulsão de se vingar de todo o mundo por esses mesmos sofrimentos... Trata-se de um homem pequeno e maléfico; não, não é um homem, mas um demônio”. Stálin não tinha a paixão ideológica de Lênin pela violência. Era, contudo, capaz de violência sem limites para atingir seus objetivos, ou então por nenhuma razão especial. Algumas vezes podia nutrir sentimentos de vingança contra indivíduos, anos antes de executá-los. Assim, passou o tempo de aprendizado da violência em grandes proporções como presidente do Distrito Militar do Norte do Cáucaso, em 1918, até ter decidido agir contra os “burgueses técnicos militares”, que ele suspeitava terem falta de entusiasmo para matar. O chefe do Estado-maior do distrito, coronel Nosovich, testemunhou: “A ordem de Stálin era breve: ‘Fuzile-os!’... Oficiais em grande número eram aprisionados pela Cheka e imediatamente fuzilados sem julgamento”. Na mesma época, Stálin também se queixava dos três comandantes do Exército Vermelho da região, enviados por Trotsky, fato que mais tarde veio a ser a causa do rancor que Stálin nutria por ele. Todos foram assassinados entre 1937 e 39.

        Entretanto, imediatamente após a incapacidade de Lênin, Stálin, cônscio das críticas feitas a Lênin, procurou o poder, fingindo-se de moderado e de homem de centro. Seu objetivo era o seguinte: controlar o secretariado, que se expandia rapidamente, para assumir o controle virtual da máquina do partido e preencher os cargos do Comitê Central com pessoas de sua confiança. No Politburo, entretanto, quatro figuras importantes se colocavam entre ele e seu espírito de autocrata: Trotsky, o mais famoso e feroz dos bolcheviques, que tinha o controle do Exército; Zinoviev, que dirigia o partido em Leningrado – e pelo qual Stálin alimentava um ódio particular -; Kamenev, que controlava o partido em Moscou, agora o mais importante; e Bukharin, o principal teórico do partido. Os três primeiros se inclinavam para a esquerda, o último para a direita, e a maneira como Stálin os dividiu e os usou para que se destruíssem mutuamente, apropriando-se depois de suas políticas quando necessário – parece que ele não teve nenhuma política própria -, é um clássico exercício em política de poder.

        É importante compreender que, assim como Lênin foi o criador da nova autocracia e de seus instrumentos e da prática do terror em grande escala, também não havia inocentes entre seus herdeiros. Todos eram matadores perversos. Mesmo Bukharin, que Lênin dizia ser “mole como cera” e que tinha sido apresentado coo o iniciador do “socialismo com um rosto humano”, era um denunciador inveterado dos outros, “um carniceiro dos melhores comunistas”, como foi amargamente chamado. Zinoviev e Kamenev eram chefões completamente inescrupulosos. Trotsky – que depois de sua queda se mostrou um adepto da democracia partidária e foi glorificado pelo seu discípulo e hagiógrafo, Isaac Deutscher, como a síntese de tudo o que era mais nobre no movimento bolchevique – não passava de um gângster político sofisticado. Ele levou a cabo o putsch original de outubro de 1917 e daí em diante chacinou os oponentes do regime com a maior tranquilidade. Foi ele quem primeiro manteve como reféns as mulheres e os filhos dos oficiais czaristas, ameaçando fuzilá-los por não-submissão às ordens soviéticas, técnica logo absorvida pelo sistema Ele era igualmente cruel com os que estavam do seu lado, e fuzilava os comissários e comandantes do Exército Vermelho que “davam sinais de covardia” (isto é, recuavam), o que se tornou mais tarde uma outra prática universal stalinista; os soldados rasos eram dizimados. Trotsky sempre adotou a linha mais cruel. Defendeu a militarização do trabalho e destruiu os sindicados  independentes. Usou de brutalidade inenarrável para debelar o motim de Kronstadt, organizado por marinheiros comuns, e estava mesmo disposto a usar gás venenoso quando o levante foi apaziguado. Da mesma forma que Lênin, identificava-se co a história e argumentava que a história estava acima de toda e qualquer restrição moral.

        Trotsky permaneceu até o fim um relativista moral da mais perigosa espécie. “Problemas de moralidade revolucionária – escreveu ele em seu último e póstumo livro – estão entrelaçados com problemas de estratégia e tática revolucionária”. Não podem existir tais coisas como critério moral; somente o critério de eficácia política conta. Dizia ser correto assassinar os filhos do czar – como ele de fato o fez – porque era útil politicamente, e aqueles que o fizessem representavam o proletariado. Stálin, por sua vez, não representava o proletariado – ele tinha-se tornado um “exagero burocrático” – e, consequentemente, era errado da parte dele assassinar os filhos de Trotsky. Os seguidores de Trotsky são, é lógico, notórios pela sua ligação a esse código de ética subjetivamente definido e por seu desprezo pela moralidade objetiva.

        O termo “trotskista”, usado primeiramente por Zinoviev como um termo ofensivo, foi definido mais tarde, por Stálin, que inventou a distinção entre “revolução permanente” (Trotsky) e “revolução num só país” (Stálin). Para começar, todos eles acreditavam numa revolução mundial imediata e todos se voltaram para a consolidação do regime, uma vez que a revolução mundial não aconteceu. Trotsky queria avançar o processo de industrialização com mais urgência do que Stálin, mas ambos eram, do princípio ao fim, oportunistas. Formaram-se no mesmo abatedouro e suas querelas eram essencialmente sobre quem seria o novo sumo sacerdote. Se Trotsky tivesse saído vencedor, provavelmente teria sido mais sanguinário do que Stálin. Mas ele não duraria: faltava-lhe a habilidade para sobreviver.

        Para Stálin foi fácil destruí-lo. As lutas internas soviéticas, mais do que por razões políticas, foram sempre motivadas por ambição e medo. Embora Kamenev e Zinoviev estivessem de acordo com a linha de esquerda de Trotsky, Stálin formou com eles um triunvirato para impedir Trotsky de usar o Exército Vermelho com o objetivo de organizar um putsch pessoal. Ele usou os dois esquerdistas para abater Trotsky e depois os apresentou como violentamente impetuoso e a si próprio como o servidor da moderação. Todas essas artimanhas aconteceram em 1923, enquanto Lênin ainda estava em coma. Stálin começou a mostrar suas garras no verão, ao fazer a OGPU prender um certo número de membros do partido por “indisciplina” e ao persuadir seus dois aliados esquerdistas a endossar a prisão da primeira maior vítima bolchevique, Sultan-Galiyev (Stálin não o matou senão seis anos mais tarde). Por todo o tempo ele esteve formando equipes de seguidores de suas ideias nas organizações locais e no CC.

        Trotsky fez todos os erros possíveis. Durante uma visita à Rússia em 1920, Bertrand Russell notou perspicazmente o contraste entre a vaidade de Trotsky e a ausência de tal fraqueza em Lênin. Um relato de uma testemunha ocular, nas reuniões de 1923-24 do Politburo, diz que Trotsky nunca se incomodou de esconder seu desprezo pelos companheiros, muitas vezes retirando-se impetuosamente do recinto, outras, dando as costas ostensivamente para ler um livro. Desdenhava a ideia de intriga política e, mais ainda, a do aviltante rebaixamento a que essa intriga leva. Nunca tentou usar o Exército, uma vez que, para ele, o partido vinha na frente; mas, por outro lado, não preparou um grupo de seguidores no partido. Ele deve ter ficado assustado, quando, pela primeira vez, atacou Stálin e verificou quão bem entrincheirado este estava. Trotsky queria a vitória sem sujeira, erro fatal para um gângster que não podia apelar da máfia para o público. Ele estava sempre doente ou ausente, nunca no lugar certo, na hora certa. Perdeu até as exéquias de Lênin, um erro sério, porque Stálin aproveitou-se para reintroduzir na vida russa o culto da personalidade, o que vinha fazendo muita falta desde a destruição do trono e da Igreja. Em breve Stálin estaria ressuscitando a velha rixa Trotsky-Lênin. No XIII Congresso do Partido, em maio de 1924, ele estigmatizou Trotsky com o termo leninista de “fracionalista”. Trotsky se recusou a retirar suas críticas sobre o fato de Stálin estar se tornando poderoso demais. Mas não podia questionar a condenação de Lênin a qualquer oposição dentro do partido e, assim como um homem acusado de heresia pela Inquisição, ele foi desarmado pela sua própria crença religiosa. “Camaradas – admitiu ele – nenhum de nós deseja estar certo contra o partido... eu sei que ninguém pode estar certo contra o partido. Somente pode-se estar certo com o partido e através do partido, já que a história não criou outros caminhos para a realização do que é certo”. Uma vez Stálin instalado no controle do partido, as palavras de Trotsky moldaram o furador de gelo que esmigalhou seu crânio 16 anos mais tarde.

        No fim de 1924, Stálin, tendo Kamenev Zinoviev para fazer o trabalho sujo, criou a heresia do “trotskismo” e relacionou-se às primeiras disputas entre Trotsky e Lênin, que havia sido embalsamado e colocado numa tumba apoteótica cinco meses antes. Em janeiro de 1925, Stálin estava assim capacitado a tirar Trotsky do controle do Exército com o pleno consentimento do partido. Os figurões do partido foram então informados de que a atuação de Trotsky na Revolução foi menos importante do que ele pretendia, e sua imagem já estava sendo apagada das fotografias relevantes – o primeiro passo da revisão da história stalinista. O primeiro substituto de Trotsky como chefe do Exército, Frunze, mostrou-se desastrado; tanto que, pelo que parece, Stálin mandou assassiná-lo em outubro de 1925, durante uma intervenção cirúrgica a que os médicos tinham sido contrários. Seu sucessor, uma criatura mais tarde conhecida como marechal Voroshilov, mostrou-se inteiramente obediente e acetou que a OGPU, agora controlada por Stálin, se infiltrasse rapidamente no Exército.

        Com Trotsky destruído (ele foi expulso do Politburo em outubro de 1926, do partido, no mês seguinte, enviado em exílio interno em 1928 e exilado da Rússia em 1929, assassinado, sob as ordens de Stálin, no México, em 1940), Stálin se voltou então contra os seus outros aliados esquerdistas. No princípio de 1925, roubou de Kamenev, nas suas barbas, o partido de Moscou, subornando seu adjunto, Uglanov. Em setembro, chamou Bukharin e a direita para ajuda-lo num ataque frontal a Zinoviev-Camenev e os derrotou decisivamente no Congresso do Partido, em dezembro. Imediatamente depois, Stálin mandou Molotov, seu capanga mais confiável e cruel, para Leningrado, com um esquadrão poderoso de “brutamontes”, a fim de estraçalhar a máquina do partido de lá e assumir o controle – essencialmente os mesmos métodos, mas numa escala maior, nos moldes da que Al Capone estava usando para expandir seu território em Chicago e exatamente no mesmo momento. Assustado, Zinoviev juntou forças com Trotsky, o home que ele ajudar a derrubar. Mas era muito tarde: ambos foram imediatamente expulsos do partido e no XV Congresso do Partido, em dezembro de 1926, o protesto de Kamenev foi abafado pelos gritos das fileiras cerradas de stalinistas, cuidadosamente escolhidos, que agora enchiam o partido. Repetindo Lênin conscientemente, Stálin pôs as cartas na mesa contra seus antigos aliados: “Basta, camaradas, este jogo tem que ter um fim... O discurso de Kamenev é o mais mentiroso, farisaico, canalha e velhaco de todos os discursos da oposição que jamais foram feitos nessa tribuna”.

        No momento em que a esquerda foi vencida e desarmada, Stálin começou a adotar sua política de pressão sobre os camponeses, com o objetivo de apressar a industrialização, e preparar, assim, os meios para destruir Bukharin e a direita. O grande embate aconteceu a 10 de julho de 1928, durante uma reunião do Comitê Central, após o argumento de Bukharin de que, enquanto o kulak em si não apresentava qualquer ameaça – “nós podemos fuzilá-los com metralhadoras” -, a coletivização forçada uniria todos os camponeses contra o governo. Stálin interrompeu-o e num tom de piedade sinistra disse: “Um sonho assustador, mas Deus é misericordioso!”. Deus poderia sê-lo, mas não o secretário-geral. No dia seguinte, um Bukharin apavorado, falando em nome de seus aliados Rykov, o chefe nominal do governo, e Tomsky, o líder de aluguel dos “sindicatos”, teve uma reunião secreta com Kamenev e se ofereceu para formar uma frente unida para deter Stálin. Ele agora compreendia, segundo afirmou, que Stálin não estava primordialmente interessado em política, mas unicamente no poder. “Ele nos estrangulará. Ele é um intrigante sem princípios, que condiciona tudo ao apetite de poder. A qualquer momento, mudará suas teorias com a finalidade de se livrar de alguém... Ele é Genghis Khan!” Bukharin parecia haver pensado que Yagoda, da OGPU, se juntaria a eles e aos que se opunham a Stálin, mas estava mal informado. Nenhum desses homens nervosos tinha o apoio numérico para derrubar Stálin pelo voto; ou os meios, na forma de homens treinados em armas, para derrubá-lo pela força; ou a habilidade e a resolução – as quais Stálin mostrou ter em abundância – para destruí-lo pela intriga. Em 1929, o destino de todos já estava traçado: Rykov, destituído do cargo de primeiro-ministro; Tomsky, da liderança dos sindicatos e, ambos, mais Bukharin, foraçados a confessar publicamente seus erros (Kamenev e Zinoviev já o tinham feito). Eles poderiam ser agora julgados e assassinados com calma.

        Stálin já havia começado a aperfeiçoar a dramaturgia do terror. Com base em suas lembranças monacais, ele organizava reuniões do partido para um diálogo antifonário bem ensaiado entre ele e sua claque. Sugeria moderação ao lidar com os “inimigos” do partido e a claque insistia na severidade. Assim, ao pedir relutantemente a expulsão de Trotsky e Zinoviev, Stálin disse que se opusera anteriormente à ideia dessa expulsão e que tinha sido “amaldiçoado” pelos “bolcheviques honestos”, por ser muito indulgente. A claque: “Sim – e nós ainda o amaldiçoamos por isso”. Em maio-julho de 1929, Stálin encerrou o primeiro de seus julgamentos-farsas contra um grupo de engenheiros das minas de Donbass, acusados de “sabotagem”. O texto da farsa foi escrito pelo funcionário Y. G. Yevdokimov, da OGPU, um dos monstros de Stálin; no julgamento, apresentava-se o filho de 12 anos de idade de um dos acusados, denunciando seu pai e pedindo a sua execução. O verdadeiro chefe da OGPU, Menzhinky, se opôs a esse julgamento como o fizeram alguns membros do Politburo. Mas essa foi a última vez que Stálin enfrentou uma oposição genuína por parte da polícia secreta ou do aparato de segurança. Mais para o fim do ano, ordenou o fuzilamento do funcionário graduado da OGPU, Yakov Blyumkin, o primeiro membro do partido a ser executado por um crime intrapartidário.

        Daí por diante, os julgamentos aconteciam exatamente como Stálin os planejava, até a última cena, com a multidão indignada, nos moldes de uma gigantesca produção do cineasta soviético Sergei Eisenstein. Assim, por ocasião do julgamento do “Partido Industrial”, no ano seguinte, o corpo do tribunal gritava, em intervalos cuidadosamente marcados: “Morte aos destruidores!” E, do lado de fora, nas ruas, milhares de trabalhadores passavam marchando e gritando: “Morte, morte, morte!”. Em 1929, Stálin se apropriou do termo de conotações múltiplas Stakhtyites (destruidores) para usá-lo contra qualquer pessoa que ele quisesse destruir. Como ele colocou, “Stakhyites estão agora ocultos em todos os ramos da nossa indústria. Muitos, mas nem todos, têm sido apanhados... Destruir é tudo o que há de mais perigoso, porque está ligado ao capital internacional. A destruição burguesa é um sinal indubitável de que elementos capitalistas... estão unindo forças para novos ataques à União Soviética”. Ele estava rapidamente chegando ao ponto em que lhe bastava mencionar uma lista de nomes ao Comitê Central e receberia instruções instantâneas: “Prenda, julgue, fuzile!”.

        Enquanto iniciava a caça às bruxas e criava a paranoia e a histeria, Stálin planejava sua própria apoteose como herdeiro do deificado Lênin. Já em 1924-25, as cidades de Yuzovka, Yusovo e Tsaritsyn tornaram-se Stalino, Stalinksky e Stalingrad; mas foi a celebração de seu quinquagésimo aniversário, no fim de 1929, que marcou o verdadeiro começo não só do livre domínio pessoal de Stálin, mas também do culto a Stálin na sua plenitude horripilante; nomes como Stalinabad, Stalin-Aul, Staliniri, Stalinissi, Stalino, Stalinogrsk, Stalinsk, monte Stálin brotavam em todo o Império Soviético; apareceram as primeiras litanias stalinistas: o Homem de Aço, o Gênio Universal, uma forma de adoração ao governante que remontava aos faraós do Egito. Enquanto o governo soviético se tornava mais hierático e litúrgico na sua forma externa e mais terrorista na sua essência, a “ciência” soviética chegava ao irracional, com grupos quase religiosos de “principais pensadores”, conhecidos variadamente como geneticistas, teologistas, mecanicistas e dialéticos – havia muitos outros – lutando para obter a aprovação de Stálin para as suas teorias as mais abrangentes e progresso no campo da física. Alguns dos especialistas da corte de Stálin estavam prontos para argumentar que, com o “Homem de Aço” à frente, a vontade humana poderia superar qualquer coisa e o que até então tinha sido visto como as leis da natureza ou da economia poderia ser suspenso. S. G. Shumilin, um  de seus economistas, colocou: “Nossa tarefa não é estudar economia, porém mudá-la. Nós não estamos atados a nenhuma lei”.

        Foi contra esse fundo de irracionalidade, e portanto emancipado de qualquer sistema de economia ou moralidade, que Stálin conduziu seu colossal exercício de engenharia social: a destruição do campesinato independente russo. Como já vimos, foram os camponeses que tornaram possível o putsch de Lênin; e que depois, desafiando-o, impuseram-lhe uma capitulação que ele escondeu pelo eufemismo Novo Planejamento Econômico (NEP). Foi em nome da continuidade do leninismo e do NEP que Stálin destruiu a Esquerda nos anos 1924-28. Mas havia chegado a hora de clamar vingança contra as multidões rurais que humilharam o poder soviético.

        Não havia nenhuma base teórica do marxismo, ou em qualquer outra coisa, que permitisse a Stálin fazer o que fez... Mas havia nisso certa lógica monstruosa. Não há estabilidade num Estado que está no processo de socialização e que deve ou ir adiante ou retroceder. Se não for adiante, o poder do sistema de mercado – que se expresse em certos instintos humanos básicos de permuta e acumulação – é tal, que sempre se reafirmará, a ponto de o capitalismo ressurgir. Então, o Estado embrionário socialista entrará em colapso. Se for adiante, deverá promover a industrialização em larga escala. Isso significa produtos alimentícios excedentes para os trabalhadores e para a exportação, visando a levantar capital para investimentos. Resumindo, os camponeses devem pagar o preço do progresso socialista. E caso relutem em pagar esse preço voluntariamente, a força deverá ser usada em intensidade crescente, até dobrar a vontade de todos e fazê-los entregar o que lhes é exigido. Essa é a amarga lógica do poder socialista que Stálin compreendeu nos anos 20: não havia um ponto de equilíbrio estável entre uma volta ao capitalismo e o uso ilimitado da força.

        Essa lógica formava um contraponto sinistro com os estágios sucessivos da destruição de seus opositores da direita e da esquerda, levada avante por Stálin. Trotsky, Zinoviev e Kamenev tinham sempre argumentado que os camponeses jamais entregariam alimentos em quantidades suficientes voluntariamente; para isso, deveriam ser coagidos ou, se necessário, esmagados. Stálin eliminou os três usando o argumento de que eles planejavam “espoliar o campesinato”, que era “o aliado da classe operária” e que não deveria ser sujeito a “pressões crescentes”. Mas a colheita de 1927 foi escassa, e a lógica do socialismo encontrou nisso campo para começar a operar. Os camponeses esconderam todo o alimento de que dispunham; não queriam receber papel-moeda do governo, pois, de tão desvalorizado não comprava nada do que necessitavam. Assim, foi derrubado o acordo de Lênin, baseado na teoria de apoio aos 76,6 milhões de “médios camponeses” e aos 22,4 milhões de “pequenos camponeses” contra os cinco milhões de kulaks ou camponeses ricos (na verdade era impossível fazer essas distinções, exceto no papel: todos os camponeses odiavam o governo).

        Em janeiro de 1928, sem gêneros alimentícios nas cidades, sem qualquer exportação de grãos e desprovido de moeda estrangeira, Stálin desencadeou seu primeiro ataque aos camponeses, enviando trinta mil trabalhadores do partido armados ao campo, uma repetição do processo de extorsão usado em 1918. Logo chegaram relatos de atrocidades disfarçados em frases como “competição entre organizações coletivas de grãos”, “um esquecimento lamentável das leis soviéticas”, “um descuido nos métodos do Comunismo de Guerra”, “erros administrativos” e assim por diante. Mais sinistra era a tendência crescente dos porta-vozes de Stálin em misturar indiscriminadamente todos os camponeses. Molotov falava em forçar “o camponês médio a submeter-se aos regulamentos”; Mikoyan acusava os “pequenos camponeses” de estar “sob a influência dos kulaks”. Foram registrados, em 1928, 1.400 “atos terroristas” cometidos pelos camponeses (isto é, resistência ao confisco de alimentos pela força armada). Um kulak, apanhado portando um fuzil, zombou: “Isto é o que é a guerra de classe”. Os arquivos da região de Smolensk, capturados pelos nazistas e mais tarde publicados, nos dão a única luz, através de documentos oficiais não censurados, desse caldeirão fervente da agonia campesina. Pela primeira vez, Stálin usou a palavra “liquidar”, referindo-se “à primeira campanha séria de elementos capitalistas no campo... contra o poder soviético”. Qualquer pessoa, observou ele cinicamente, que pensa que a política pode ser levada adiante sem dissabores “não é um marxista e sim um idiota”.

        Roubar, porém, alimentos aos camponeses teve uma consequência: fez com que eles plantassem menos; assim, a colheita de 1928 foi ainda pior. No outono de 1928, Stálin necessitava desesperadamente conseguir moeda estrangeira; testemunha tal fato um acontecimento bastante isolado: as vendas secretas, em grandes proporções, de obras de arte russa para o Ocidente. Foi em novembro de 1928, segundo um dos curadores do museu Hermitage, em Leningrado, Tatiano Chernavin, que “recebemos ordens para reorganizar, no menor espaço de tempo possível, a coleção inteira do Hermitage ‘de acordo com princípios ditados por disposições sociológicas’... e para desmembrar uma coleção que levou mais de cem anos para se juntar”. Os quadros foram adquiridos por milionários do mundo inteiro. O maior foi Andrew Mellon que, em 1930-31, obteve, por US$ 6.654.053, 21 quadros, incluindo cinco Rembrandt, um Van Eyck, dois Franz Hals, um Rubens, quatro Van Dyck, dois Rafael, um Velásquez, um Botticelli, um Veronese, um Chardin, um Ticiano e um Perugino – provavelmente o tesouro da melhor qualidade jamais transferido numa única tacada e tão barato. Todas essas obras foram para a Washington National Gallery, criada virtualmente por Mellon. Essa foi uma das muitas ironias desse período. Assim, é espantoso que Mellon estivesse secretamente explorando as necessidades frenéticas dos líderes soviéticos com o objetivo de formar a base de uma das mais brilhantes coleções de arte pública da América. E tudo isso se passava no momento em que Mellon estava sendo violentamente denunciado pela intelligentsia por sonegação de impostos e que o colapso da economia americana estava sendo contrastado com a boa desenvoltura da planejada economia soviética. Somente nessas aquisições o valor do dólar chegou a um terço de todas as exportações soviéticas para a América oficialmente registradas em 1930.

        Outra ironia, que se pode qualificar de espantosa, foi o exemplo dado a Stálin por um empreendimento bem-sucedido na América. Com base nesse exemplo, ele decidiu abandonar sua debilitada política de extorsão de grãos aos camponeses independentes e passou a usar métodos que utilizavam a força para arrancar esses grãos de organizações coletivistas. Até então, Stálin havia sempre negado a ideia de que cooperativas e organizações coletivistas fossem diferentes; ele achava que uma fazenda Campbell, em Montana, que se estendia por trinta mil hectares, a maior produtora individual de grãos no mundo. Ele decidiu montar tais “fábricas de grão” na Rússia, numa escala gigantesca. Uma de 150.000 hectares foi montada nesses mesmo ano no Cáucaso. Essa unidade estava equipada com trezentos tratores, e o trator (em oposição ao arado de madeira) tornou-se para Stálin um símbolo do futuro, coo a eletricidade o foi para Lênin. Stálin fez seus homens acusarem os kulaks de estarem organizando uma campanha contra os tratores; ele dizia que os kulaks espalhavam boatos de que o “anti-cristo estava chegando à terra num cavalo de aço”, que os vapores da gasolina emanados dos tratores estavam “envenenando” o solo; além disso, era voz corrente no Volga que “o trator escava fundo e o solo então seca completamente”. Na verdade, eram os camponeses mais ricos que estavam comprando tratores, tão rapidamente quanto podiam pagar. Ao trazer a força para as organizações coletivistas, o que ele chamava de “colunas de tratores” e ”estações de tratores”, Stálin provocou o que um dos poucos observadores independentes descreveu como “a utilização irresponsável da maquinaria em todas as terras socializadas” e como “frotas de tratores inutilizados pontilhando o cenário russo”. Mas isso era consequência da ignorância de Stálin sobre o que realmente acontecia no campo russo – uma ignorância, é evidente, da qual Lênin havia compartilhado. Segundo Khruchtchev, “Stálin se alienou do povo e não foi a lugar algum... A última vez que visitou uma aldeia foi em janeiro de 1928”. Toda a gigantesca operação de coletivização dos camponeses, envolvendo mais ou menos 105 milhões de pessoas, foi conduzida de seu gabinete, no Kremlin.

        Não que tivesse havido um planejamento racional e deliberativo. Muito pelo contrário. A ideia de não se usar a força para trazer os camponeses para as fazendas estatais foi sempre vista como incontestável. Foi baseado na máxima de Engels, no seu The Peasant Question in France and Germany (1894): “Quando nós adquirirmos o poder do Estado, não pensaremos em nos apoderar dos pequenos camponeses pela força”. Muitas vezes, Lênin citava essa passagem. Mesmo Trotsky havia falado de “acordo”, “conciliação” e “transição gradual”. Mesmo em 2 de junho de 1929, o Pravda ainda insistia: “Nem terror nem ‘deskulakização’, mas uma ofensiva socialista nos caminhos do NEP”. A decisão de coletivizar pela força foi tomada repentinamente, sem nenhuma espécie de debate público, nas últimas semanas de 1929. Era típico da maneira como a busca da Utopia leva um pequeno punhado de homens no poder a atacar abruptamente uma sociedade de séculos, a tratar os homens como formigas e pisotear no seu ninho. Sem aviso, Stálin clamou por uma “ofensiva exaustiva contra os kulaks... Nós temos que destruir os kulaks, eliminá-los enquanto classe. Nós temos que golpear forte os kulaks para impedi-los de se pôr em pé outra vez... Nós temos que quebrar a resistência dessa classe em batalha aberta”. Em 27 de dezembro de 1929, festa de São João Apóstolo, ele declarou guerra com o slogan “Liquidar os kulaks como classe!” Foi o sinal verde para a política de extermínio, mais de três anos antes de Hitler chegar ao poder, 12 anos antes da “Solução Final”.

        A coletivização foi uma calamidade não conhecida por qualquer habitante do campo desde a Guerra dos Trinta Anos na Alemanha. A agência organizadora dessa coletivização foi a OGPU, mas qualquer instrumento que estivesse à mão foi usado. Os camponeses mais pobres foram encorajados a saquear as casas dos kulaks espoliados e a persegui-los pelos campos. E logo kulak passou a significar qualquer camponês que se opusesse ativamente ao sistema de ordens. Elas foram cercadas por unidades militares e policiais, que usavam métodos que Hitler imitou com todos os detalhes quando recolheu os judeus; essas unidades militares ou fuzilaram os camponeses ou os deportaram à força em caminhões. Deutscher, viajando pela Rússia, encontrou um coronel da OGPU que soluçava, dizendo: “Eu sou um velho bolchevique. Trabalhei na clandestinidade contra o czar e depois lutei na guerra civil. Será que fiz tudo isso para agora cercar aldeias com metralhadoras e ordenar aos meus homens que atirem indiscriminadamente sobre multidões de camponeses? Ah, não, não, não!” A violência em grande escala começou no fim de 1929 e continuou até o fim de fevereiro de 1930, quando o número de famílias coletivizadas aumentou para mais ou menos 30% do total já alcançado. Perturbado pelo nível de resistência, Stálin subitamente inverteu sua política, expondo-a num artigo no Pravda, em 2 de março de 1930: “Não se podem implantar fazendas coletivas pela violência – isso seria estúpido e reacionário”. Mas, em poucas semanas, metade das organizações coletivas votaram pela desnacionalização; então, no início do verão, Stálin retomou sua política de força “imbecil e reacionária”, e dessa vez levou-a até o seu amargo fim.

        O resultado foi o que o grande erudito marxista Leszek Kolakowski chamou de “provavelmente a mais maciça operação militar jamais conduzida por um Estado contra seus próprios cidadãos”. O número de camponeses fuzilados pelo regime não é ainda conhecido e pode nunca ser descoberto, mesmo quando e se estudiosos tiverem acesso aos arquivos soviéticos. Churchill disse que, em Moscou, em agosto de 1942, Stálin contou-lhe friamente que “dez milhões” de camponeses tinham sido “despachados”. Segundo uma estimativa de estudiosos, além daqueles camponeses executados pela OGPU ou mortos em batalha, um número entre dez e onze milhões foi transportado para o norte da Rússia europeia, para a Sibéria e para a Ásia Central; desses, um terço foi para os campos de concentração, um terço para o exílio interno e outro terço foi executado ou morreu em trânsito.

        Os camponeses que permaneceram foram arrancados de suas propriedades, mesmo que pequenas, e conduzidos para as “fábricas de grãos”. Para impedi-los de fugir para as cidades, um sistema de passaportes internos foi introduzido e qualquer mudança de domicílio sem permissão oficial era punida com encarceramento. Aos camponeses não era permitido em hipótese nenhuma o porte desse documento. Assim, eles estavam amarrados ao solo, glebae adscripti, como nas fases finais do Império Romano ou durante a era da servidão feudal. O sistema era mais rígido do que nos períodos mais negros da autocracia czarista e não foi afrouxado até os anos 70.

        O resultado era previsível e corresponde ao que se pode chamar de “talvez o único caso na história de fome criada exclusivamente pelo homem”. Em vez de entregar seus grãos, os camponeses preferiram queimá-los. Destruíram seus implementos agrícolas. Abateram 18 milhões de cavalos, 30 milhões de cabeças de gado (45% do total existente no país), 100 milhões de carneiros e cabritos (2/3 do total). Mesmo segundo esses números da história oficial soviética, a criação de gado, em 1933, era de apenas 65% do nível atingido em 1913, a quantidade de animais tendo caído de mais de 50% e a quantidade total de energia, incluindo tratores, não ultrapassando os níveis de 1928-1935. Apesar da penúria de 1932-33, Stálin conseguiu exportar certa quantidade de cereais para pagar a maquinaria importada, incluindo os instrumentos para as suas novas fábricas de guerra. O custo, em vidas russas, foi atordoador. O estudo demográfico de Iosif Dyadkin, “Avaliação de mortes antinaturais da população da URSS em 1927-58”, que circulou sob a forma de samizdat (boletim informativo clandestino) no fim dos anos 70, calcula que durante o período de coletivização e “eliminação de classes”, 1929-1936, dez milhões de homens, mulheres e crianças tiveram morte antinatural.

        A refeudalização do campesinato soviético, que então compunha três quartos da população, teve um efeito calamitoso no moral do soldado raso comunista que a efetuou. Como afirmou Kolakowski: “O partido inteiro se tornou uma organização de torturadores e opressores. Ninguém era inocente, e todos os comunistas eram cúmplices na coação da sociedade. Assim, o partido adquiriu um nova espécie de unidade moral e embarcou num caminho sem volta”. Exatamente a mesma coisa aconteceria aos nacional-socialistas da Alemanha alguns anos depois: foi Stálin quem mostrou o caminho a Hitler. Todas as pessoas do partido sabiam o que estava acontecendo. Bukharin resmungava em particular que a “aniquilação em massa de homens, mulheres e crianças completamente indefesos” estava aclimatando os membros do partido na violência e obediência cruel, transformando-os “em peças da engrenagem de uma máquina infernal”. Apenas uma única pessoa protestou frente a Stálin. Sua segunda mulher, Nadezhda, o havia deixado em 1926, com seus dois filhos ainda pequenos, Vasily e Svetlana. Stálin persuadiu-a a voltar, mas a mantinha sob vigilância da OGPU. Quando ela se queixou, ele localizou os informantes dela e os mandou prender. A 7 de novembro de 1932, diante de testemunhas, ela protestou violentamente contra o tratamento que ele dispensava aos camponeses, foi para casa e se suicidou com um tiro. Esse foi o segundo drama familiar – seu primeiro filho, Yakov, tentou suicídio por desespero em 1928 – e Svetlana escreveu mais tarde: “Acredito que a morte de minha mãe, que ele tomou como uma traição pessoal, despojou a sua alma dos últimos vestígios de calor humano”.

        A resposta de Stálin foi fazer com que a OGPU assumisse o controle de sua casa. Ela contratava e treinava os empregados, supervisionava sua comida e fiscalizava o acesso a sua pessoa. Stálin governava agora através de seu secretariado pessoal e não mais através dos canais de governo normais ou dos órgãos do partido. Através de seu secretariado pessoal criou uma polícia secreta própria dentro da polícia oficial, chamada Departamento Político Secreto Especial de Segurança do Estado. Encasulado dessa maneira, ele se sentia invulnerável; certamente, os outros o percebiam como tal. Apesar de o estado da Rússia ser tão desesperador em 1932, a pondo de o regime de Stálin ter chegado à beira do naufrágio, como aconteceu com Lênin no início de 1921, ninguém chegou perto para matar Stálin.

Quanto ao planejamento, tido como modelo para o mundo, era, em sua essência, um exercício escrito. Nenhum de seus números jamais foi verificado independentemente, de 1928 até os nossos dias. Os controles de auditoria não-governamentais, que são parte indispensável a cada Estado constitucional sob o império da lei, não existem na União Soviética. Havia, desde o princípio, qualquer coisa suspeita sobre o seu primeiro plano quinquenal. Foi aprovado pelo Comitê Central em novembro de 1928, adotado formalmente em maio de 1929 e depois declarado em vigor retroativamente, desde outubro de 1928! Desde o final de 1929 o país inteiro estava revirado de cabeça para baixo em função da decisão repentina de coletivizar a agricultura; o Plano de 1928, então (presumindo que ele tenha de fato existido), tornou-se totalmente irrelevante. Contudo, em janeiro de 1933, o mês em que Hitler assumiu o poder, Stálin subitamente anunciou que o plano havia sido completado em quatro anos e com “a máxima satisfação” em vários aspectos.

        O plano, tido pela sofisticada sociedade ocidental coo modelo de processo civilizado, foi na verdade uma fantasia bárbara. A Rússia é u país rico, com uma opulência e uma variedade de matérias-primas sem paralelo em qualquer outro lugar do mundo. O regime soviético herdou uma população em expansão e uma base industrial em rápido crescimento. Como a Alemanha dos Guilhermes havia pressuposto, nada poderia impedir a Rússia de se tornar uma das grandes potências, em breve tempo talvez a maior potência industrial sobre a terra. A política de Lênin e, mais ainda, a de Stálin – ou melhor, a série de expedientes apressados que passavam por política – teve o efeito preciso de diminuir a velocidade dessa inevitável expansão, assim como danificou enormemente, e nesse caso para sempre, a agricultura florescente da Rússia. Entretanto, houve progresso. Grandes projetos foram completados, como a represa do Dnieper em 1932, a fábrica de tratores de Stalingrado, a usina de aço de Magnitogorsk, nos Urais, as minas da bacia de Kuznetsk, na Sibéria, o canal que une o Báltico ao mar Branco e muitos outros projetos. Algumas construções, tais como a do canal, utilizaram inteiramente, ou em parte, o trabalho escravo. Como já vimos, o uso de escravos políticos fizera parte do regime de Lênin desde o início, mas, inicialmente, só um pequeno contingente dessa mão-de-obra fora utilizado. O sistema expandiu-se sob Stálin, a princípio lentamente, depois com terrível velocidade. Uma vez iniciada a coletivização forçada, em 1930-33, a população dos campos de concentração subiu para dez milhões e, depois do começo de 1933, ela nunca caiu abaixo desse número, até bastante tempo depois da morte de Stálin. Entre as indústrias que empregavam regularmente o trabalho escravo em grande escala estavam as minas de ouro, a silvicultura, o carvão, a agro-indústria e o transporte – especialmente a construção de canais, estradas de ferro, aeroportos e estradas de rodagem. A OGPU fazia as transações de trabalho escravo para várias agências do governo, exatamente da mesma maneira que os S.S. nazistas alugariam mais tarde esse tipo de trabalhadores para os Krupps, a I.G. Farben e outras firmas alemãs. Para o imenso canal Báltico-Mar Branco, uma das obras que Stálin exibia, foram usados trezentos mil escravos. O trabalho escravo deixou de ser marginal, como no tempo de Lênin, e se tornou uma parte integrante e importante da economia stalinista, com a OGPU administrando imensas áreas da Sibéria e da Ásia Central.

        No caso alemão, a taxa de mortalidade nos campos totalitários do trabalho escravo parece ter sido de 10% ao ano. Na Rússia, pode ter sido mais alta porque muitos dos campos estavam localizados dentro das regiões árticas e subárticas. De qualquer maneira, a necessidade de manter o suprimento de víveres para a força de trabalho escravo era, indubitavelmente, uma das principais razões das inúmeras prisões de trabalhadores não pertencentes ao partido durante os anos 1929-33. Periodicamente eram feitos julgamentos com grande encenação teatral, tais como o de Menshevik, em março de 1931, ou o dos engenheiros da Metro-Vickers, em abril de 1933. Esses acontecimentos, altamente divulgados, revelavam nos mínimos detalhes a existência de uma série de conspirações diabólicas, que supostamente fariam parte de uma gigantesca conspiração contra o regime e o povo da Rússia. Sem tais encenações não se podia criar o clima de xenofobia e histeria necessário à manutenção da união do Estado stalinista. Mas, obviamente, esses eventos constituíam uma fração mínima do processo, a explicação pública das prisões e desaparecimentos que aconteciam em todo o país, numa escala sem precedentes.

        A maioria dos “julgamentos” não era registrada, apesar de muitas vezes grandes grupos de pessoas estarem envolvidos, classificados de acordo com a profissão. Muitos nem foram julgados. A natureza arbitrária das detenções era primordial para criar o clima de medo que, ao lado da necessidade de mão-de-obra, era o principal motivo do terror dos não-pertencentes ao partido. Um membro da OGPU admitiu ao correspondente do Manchester Guardian em Moscou que pessoas inocentes eram aprisionadas naturalmente – caso contrário ninguém teria medo. Se as pessoas, disse ele, fossem presas apenas por contravenções específicas, todas as outras se sentiriam seguras e, assim, estariam prontas para a traição. Este argumento parecia carecer de qualquer padrão de lógica ou de sentido em várias circunstâncias. Um velho bolchevique relatou o caso de um técnico em energia que, no período de 18 meses, foi preso, condenado à morte, perdoado, enviado a um campo, posto em liberdade, reabilitado e finalmente condecorado, tudo sem razão aparente. Mas a maioria esmagadora dos prisioneiros passou o resto de suas vidas nos campos.

        No mundo exterior, a magnitude da tirania de Stálin – ou a sua própria existência – era absolutamente mal compreendida. A maioria dos que viajavam para a Rússia era ou de homens de negócio, ansiosos para fazer comércio e sem a menor vontade de investigar ou criticar o que não lhes dizia respeito, ou de intelectuais que iam para admirar e, mais tarde, para acreditar. Se o declínio do cristianismo criou o político moderno fanático e seus crimes, também a volatilização da fé religiosa entre as pessoas cultas deixou um vácuo no espírito dos intelectuais ocidentais, facilmente preenchido pela superstição secular. Não há outra explicação para a credulidade com que cientistas, acostumados a avaliar as evidências, e escritores, cuja única função era estudar e criticar a sociedade, aceitaram, sem espírito crítico, a mais grosseira propaganda stalinista. Eles precisavam acreditar, eles queriam ser enganados. Amabel Williams-Ellis, por exemplo, escreveu uma introdução a um livro sobre a construção do canal do Mar Branco, mais tarde descrito com tanta angústia por Alexander Solzhenitsyn, contendo a seguinte frase: “Essa estória sobre a construção de uma obra arriscada, no meio de florestas antigas, levada a efeito por dezenas de milhares de inimigos do Estado, ajudados – ou seria vigiados? – por apenas 37 oficiais da OGPU, é uma das mais excitantes que já se publicaram”. Sidney e Beatrice Webb disseram do mesmo projeto: “É agradável pensar que manifestações de apreço calorosas foram expressas oficialmente sobre o sucesso do feito da OGPU, não apenas pelo desempenho de um grande feito de engenharia, mas pela conquista de um triunfo da regeneração humana”. Harold Laski elogiava as prisões soviéticas por darem oportunidade aos condenados de levar “uma vida plena e com dignidade”; Anna Louise Strong registrou: “Os campos de trabalho na União Soviética angariaram a grande reputação de locais onde dezenas de milhares de homens foram recuperados”. “Os métodos soviéticos de recuperar os seres humanos são tão conhecidos e eficientes – acrescentou ela – que os criminosos, ocasionalmente, pedem para ser admitidos nos campos de trabalho”. Enquanto que na Grã-Bretanha, segundo George Bernard Shaw, um homem entra na prisão como um ser humano e sai como criminoso, na Rússia ele entrava “como um tipo criminoso e sairia como um ser humano, não fosse a grande dificuldade de convencê-lo a sair da prisão. Pelo que eu depreendi, os criminosos poderiam permanecer na prisão tanto tempo quanto desejassem”.

        A fome de 1932, a pior da história russa, não foi praticamente divulgada. No seu auge, Julian Huxley, biólogo que visitava o país, achou a população “num nível de saúde geral muito acima daquele que se podia encontrar na Inglaterra”. Shaw atirou duas reservas de alimentos para fora da janela do trem, justamente antes de cruzar a fronteira russa, “convencido de que não havia escassez na Rússia”. “Onde você vê escassez de comida?”, perguntou ele lançando o olhar sobre os pratos existentes no restaurante reservado a estrangeiros na metrópole de Moscou. Em um de seus artigos, Shaw diz o seguinte: “Stálin vem distribuindo bens numa quantidade que parecia impossível há dez anos atrás, e eu tiro o meu chapéu para ele”. Mas Shaw e sua companheira de viagem, lady Astor, tinham conhecimento da existência de prisioneiros políticos, já que lady Astor havia pedido clemência a Stálin em nome de uma mulher que queria juntar-se ao marido na América (Stálin prontamente entregou-a à OGPU). E lady Astor perguntou a Stálin: “Por quanto tempo o senhor continuará matando pessoas?” Diante da resposta de Stálin – “Enquanto for necessário” – ela mudou de assunto e pediu-lhe para arranjar uma babá russa para seus filhos.

        As apreciações sobre Stálin escritas nos anos 1929-34 são leituras curiosas. H.G. Wells disse que “nunca havia encontrado homem mais cândido, justo e honesto... ninguém tinha medo dele e todos confiam nele”. Os Webbs argumentavam que ele tinha menor poder do que um presidente americano e estava apenas agindo sob as ordens do Comitê Central e o Presidium. Hewlett Johnson, o deão de Canterbury, descreveu-o como aquele que conduz “seu povo por novas e desconhecidas avenidas da democracia”. O embaixador americano, Joseph E. Davies, por sua vez, referia-se a Stálin dizendo que ele havia “insistido na liberalização da Constituição” e “elaborado o projeto do verdadeiro sufrágio secreto universal”; disse ainda que “seus olhos castanhos são extraordinariamente criteriosos e suaves” e “uma criança gostaria de sentar-se no seu colo e um cachorro caminharia a seu lado”. Emil Ludwig, o famoso biógrafo, achou-o um homem “aos cuidados de quem eu confiaria, sem hesitação, a educação de meus filhos”. Ele era, disse o escritor chileno Pablo Neruda, “um homem de princípios e de boa índole”; “um homem de bondosa afabilidade”, ecoou o deão.

        Alguns desses elogios podem ser explicados de várias formas: corrupção, vaidade ou pura loucura. Davies, por exemplo, deturpou de forma bem consistente a natureza da Rússia de Stálin nas informações para o governo de seu país; para isso era subornado pelo regime soviético, que lhe permitia comprar ícones e cálices para a sua coleção particular a preços abaixo do mercado. Quanto a Anna Louise Strong, Malcolm Muggeridge a descreve como “uma mulher enorme, com um rosto muito vermelho, muitos cabelos brancos, uma expressão de imbecilidade tão assustadora que equivalia a uma beleza estranha”. A ilusão era obviamente o fator maior que existia na apresentação de um despotismo mal sucedido como uma Utopia em desenvolvimento. Mas havia também, por outro lado, a fraude consciente por parte de homens e mulheres que se diziam idealistas. Acreditavam honestamente, na época, que, ao deturpar e mentir sistematicamente, estavam a serviço de um objetivo humano mais alto. Se a Grande Guerra, com sua violência sem precedentes, brutalizou o mundo, a Grande Depressão o corrompeu, limitando as opções que se ofereciam à humanidade e apresentando-as em termos ostentosamente contrastantes. Os ativistas políticos achavam que deveriam fazer escolhas terríveis e, uma vez feitas, ater-se a elas desesperadamente. Os anos 30 foram uma época de mentiras heroicas. A mentira santa era a virtude mais apreciada. A Rússia torturada de Stálin era a principal beneficiária dessa falsificação santificada. A competição para enganar tornou-se mais acirrada quando o stalinismo adquiriu um rival mortal na Alemanha de Hitler.

        Havia um elemento de ilusão no centro da rivalidade, entre as formas comunistas e fascistas de totalitarismo. Elas se ligavam organicamente ao processo de evolução histórica. Então, assim como a guerra havia tornado possível a violenta tomada de poder por parte de Lênin, e o “Socialismo de Guerra” alemão lhe havia inspirado uma política econômica, da mesma forma a própria existência do Estado leninista, com seu controle unipartidário sobre todos os aspectos da vida pública e seu relativismo moral sistemático, servia de modelo para todos aqueles que odiavam a sociedade liberal, a democracia parlamentar e o Estado de direito. Ele inspirou a imitação e gerou o medo; aqueles que mais o temiam eram os que mais propendiam a imitar seus métodos ao tentarem construir contramodelos defensivos próprios. O totalitarismo da esquerda criou o totalitarismo da direita, o comunismo e o fascismo eram o martelo e a bigorna pelos quais o liberalismo foi despedaçado. O aparecimento da autocracia de Stálin mudou a dinâmica da corrupção, não em forma, mas em nível. Isto se deu porque Stálin “encarnava o pensamento do velho Lênin, proém numa dimensão muito maior”. As prisões, os campos de concentração, o alcance, a brutalidade e a violência da engenharia social – nada disto tinha sido visto antes, nem mesmo imaginado até então. O contramodelo se tornou, assim, mais monstruosamente ambicioso, e o medo, que ativou sua construção, foi mais intenso. Se o leninismo gerou o fascismo de Mussolini, foi o stalinismo que tornou possível o leviatã nazista.

 

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