Partimos em lufadas de homens, ébrios de excitação, montados em carrinhas de caixa aberta e nas roulottes da lavoura. Eu sou um deles e vou cá atrás contemplando o rosto gelado da noite. Limpo, imenso, vejo o céu em corola aberta para as estrelas que nascem cada vez mais intensas, à medida que abandonamos a aldeia e nos embrenhamos nos baldios, imersos em escuridão. À passagem dos veículos, a bicharada oculta começa a revelar-se e eu sei que levo comigo uma ternura enorme por esses seres que vamos perturbar no seu descanso, a despeito da caçadeira a que me abraço e dos carregamento de chumbeiras à minha cintura. Mas sei também que antecipo já o prazer imenso e primórdio de fixar no ar um bicho em fuga, vê-lo deter-se, interdito e espantado, reflectindo nesse seu gesto imóvel, para meu prazer, a certeza da morte chegada, antes de tombar sem vida à minha frente.
Os homens sempre gostaram de caçar, penso eu, degustando o prazer das coisas ancestrais. E é claro, o imenso paraíso que Eva revelou, trouxe a Adão e aos seus descendentes o gosto da carne, variação bem-vinda aos frutos das árvores permitidas... Caçar é um impulso primevo e ponto final. Por isso aqui vou eu. Suspiro aliviado.
Mas, longe estão os tempos das caçadas por sobrevivência, diz-me o meu sentido crítico, que insistiu em acompanhar-me à caçada, (onde já se viu tanta pretensão?). Por que vai esta gente toda tão excitada aos solavancos, numa noite fria de geada intensa, quando é certo que todos já jantaram e levam a barriguinha aconchegada? Para congelar e comer mais tarde, ora, digo eu. Isto é gente que tem as arcas e frigoríficos a abarrotar de comida!! Cala-te. Vamos aqui e pronto, remato eu. Vão divertir-se... Claro, vamos divertir-nos. E tu se não gostas, porque vieste? Porque faço parte de ti. E ele não veio o cão tinhoso? Quem? Esse, o teu sujeito poético. Ah, digo eu, também veio? E era verdade. Lá estava ele, esticado no chão, olhando sonhadoramente para a copa das azinheiras. Bem, que bela caçada vou eu ter com vocês dois!!! Mas olha que caçar...
Cala-te! Calou-se.
Quando nos lançámos, febris e sanguinários pelo baldio adentro, deixei de me interessar pelas sombras caprichosas que uma distinta meia-lua iluminava, tão pouco me deixei inebriar pelo aromático efulvo das estevas agora floridas. Pisei cogumelos e almíscares e bolotas e estevas e giestas, tropecei nos outros e vi-me de repente deles apartado. Levava no bolso um cantil de espessa aguardente de medronho, variante da bagaceira do resto da malta e embuchadas que já iam algumas cervejas, a coragem se fez fúria destemida e eu alheio a tudo o mais que não fosse a tensão forte no gatilho. Passam uns olhos que a traiçoeira lua logrou incendiar e eu não resisto. Não é javali por certo, só pode ser raposa ou furão, coelho ou bicho de toca. Desfiro o tiro que foi certeiro. Morre o bicho sem estertor. Atrás dele, (o que dirá o meu sentido crítico quando souber?)
vem um raposinho afoito, cheirar a medo a mãe morta...
Desperto enfim do torpor, rasga-se em mim um clarão, sinto-me torpe e vil e só quero fugir dali. Corro pelos baldios desertos, vestidas agora as sombras vagas de medos diversos e fugindo de mim, com medo da minha sombra, desesperadamente busco o meu fiel sujeito poético, ou mesmo o sentido crítico que me devolvam a esperança. Mas também eles de mim fugiram. Quedo-me junto a uma cerca em arame farpado. Salto-a sem hesitar e confronto, enfim, em espinal frieza, um touro forte e possante, sombra de negro na noite de chumbo, da manada certamente tresmalhado, fera que não conheceu recolher e me estuda agora a medo, aparição que sou e insólita. Já os dois nos fitamos em suspenso, eu ofegante e ele tenso, tenso, a dura massa muscular já
em balanço para me cornear no espaço e ele que avança sobre mim em homérica defesa, em uma e outra volta e outra mais, a cabeça numa pedra, a perna dilacerada, o meu corpo feito um farrapo, outra, outra e outra cornada. Desfaleço. Não sei mais nada.
Ufa! Ainda bem que sou mulher e nunca fui a uma caçada.
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