Em primeiro-terço de Outubro quentíssimo, Ã cabeça dum Outono que mais se sente Verão, chove, chove a càntaros. Quem ouse atravessar dum passeio ao outro terá de mudar de roupa. Inesperadamente a natureza surpreende tudo e todos, cada vez que se pavoneia e nos quer lembrar que de facto existe, quiçá a avisar-nos, ainda benigna, sobre algo muito mau que poderá fazer se continuarmos, néscios e indiferentes, a molestá-la.
Acordei sóbriamente, Ã s onze da manhã, bem disposto, aprazível comigo mesmo, entre derradeiros indícios duma estranha gripe que há quatro dias me tomou e vai airosamente deixar-me. Cheguei a temer que fosse o efectivo princípio do meu inexorável Outono a possuir-me, mas não, não é por enquanto a absoluta queda da minha folhagem a produzir-se. Antes um pouco da terceira estação da vida, sinto-me em pleno fim de Verão, aproveitando quanto posso a amena caída da noite esplendorosa.
Ela está ali, de costas para mim, esplêndidamente nua ao espelho, a depilar um sobrolho. Ambos estamos em descontraída paz, como se nada quiséssemos da opressora existência que desabafamos dos corpos. Gostávamos de ficar sempre assim, sem mais, sem pressa alguma de retomarmos o trem do destino.
É brasileira, nada em Pernambuco, maviosa, toda papinho de feiticeira radiante. Confessou-me que aspira a deitar fora toda a areia com que o passado lhe encheu a cabeça. Vamos almoçar os dois como se fossemos um casal legalizado. Vamos fingir que somos o que já fomos... E continua a chover!
Torre da Guia
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