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Contos-->Exílio -- 31/07/2000 - 10:53 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Fixou-se no andar descontraído da vítima. Respiração e pulso se apressaram. Disfarçava. Ninguém identificaria nela um criminoso a segundos do delito. Era cascavel experimentada, cujo bote a presa só descobria depois de morta.

A infeliz por assaltar não era exceção. Cantarolava distraída, rodava o guarda-chuva, parecia gravar uma cena de filme musical, posando para câmeras inexistentes.

Percebeu a ausência da bolsa quando Débora não podia mais ser alcançada. Seus gritos resultaram inúteis e desprezados pelos rostos anônimos presentes à cena.

Débora abandonou a bolsa em um beco deserto. Segurou com raiva a carteira de dinheiro extraída dela. Estava recheada com uma respeitável quantidade de notas, presas através de um elástico. Débora tirou o maço, guardou-o no bolso da calça, jogou o resto num bueiro próximo. Afastou-se com calma. Em poucos minutos seria mais uma desconhecida na multidão.

Ansiava por chegar em casa. Quanto mais cedo se livrasse daquele dinheiro repugnante, melhor.

Ranatapva, sua companheira, entre centenas de utilidades, tinha esta: servia-lhe de banco. Débora dava-lhe todo dinheiro que conseguisse e pouco se incomodava com seu uso. Era suficiente que lhe comprasse roupas e comida.

Mantinham um relacionamento esquisito. Sem trocar uma palavra no mesmo idioma, ainda assim se entendiam com absoluta justeza. Conheciam as necessidades mútuas por pura adivinhação. Criaram um dialeto originalíssimo, do qual qualquer dia se ouvirá falar em algum compêndio: o amor perfeito.

Não me critiquem. Não nego que era minha personagem quem monologava no parágrafo anterior. Nada do que ali se afirmou tem o menor cabimento. Débora e Ranatapva padeciam e muito da doença da incomunicabilidade. Desesperava a Raninha não se fazer entender em uma sílaba por Débora, não ouvir dela mais que carinhos mudos, maravilhosos, mas sem tradução.

Não tenho muita certeza sobre isso. Sei quase nada acerca de Raninha. Ranatapva pensa e fala na sua língua absurda, de grunhidos e resmungos, tão estranha a mim quanto a Débora. Eu e a protagonista temos essa característica em comum: nunca compreenderemos patavina do que se diz nesta terra amaldiçoada.

Deixem-me explicar o problema. Débora foi jogada por mim e pelo destino em um país onde seu vocabulário era usado e conhecido por uma única pessoa - ela própria. Aprisionou-se em um pesadelo no qual se encontrava cercada por pessoas que, em vez de falar, rugiam.

Jamais aderiria ao tenebroso idioma. Isso significaria aceitar o modo de vida daquela gente estúpida, e Débora, criatura obstinada, prometera a si própria não pronunciar um só termo da gutural língua por eles utilizada antes que conseguisse voltar pra casa.

Sonhava levar Ranatapva junto, ensiná-la a falar como gente. E dizer-lhe, de uma forma compreensível, o quanto a amava.

De modo algum isso aconteceria antes do momento certo. Enquanto ainda estivessem sob as leis daquele bando de cachorros, ensinar Raninha a se expressar de forma inteligível significaria, nem mais nem menos, jogar a amiga no tormento em que se metera.

Porque Débora não tinha qualquer dúvida de que toda a hostilidade que sofria resultava de seu modo de falar. Pegassem-na e a Raninha conversando de maneira diferente, o resto de suas vidas aconteceria por trás das grades.

Imprescindível preservar Ranatapva. Não lhe transmitir aquilo que, para Débora, era seu ideal, sua razão de vida, e, para o homem comum das ruas, enganado pelos noticiários da televisão, não passava de lepra, câncer, praga.

Absorta nesses pensamentos, Débora chegou ao esconderijo. Não modificou a cautela habitual. Como sempre, verificou se a lingüeta fôra esticada ao máximo. Enquanto segurava a chave, protegia o corpo escondendo-se atrás da parede do corredor.

Enfurecia-se com essa sua paranóia necessária. Sabia que era preciso agir dessa forma, mesmo que isso representasse um caminho seguro para uma lenta autodestruição. Perdeu a conta do número de pesadelos em que, ao abrir a porta, dera de encontro com duas dúzias de canalhas, armados, sanguinários, ávidos por sua pele.

Nada de anormal transparecia do esconderijo. Débora, sem sair do lugar, girou a chave um décimo de milímetro. Nenhuma respiração vinda do apartamento se alterou. Pôde virar a chave por completo. Com um pedaço de madeira guardado sob o capacho, empurrou a porta de seu minúsculo, frio, feio, paupérrimo lar.

Um desses quarto e sala planejados por um bando de sádicos que se autoproclamam engenheiros, onde os moradores entram com extrema dificuldade. Havia espaço para uma cama, um sofá, uma pequena mesa, um fogão, uma geladeira, uma pia insignificante, um tanque mirrado, um armário modesto, um banheiro microscópico, um amor imenso.

Débora adora arrolações como a anterior. Vem-lhe uma gostosa sensação de poder, de força, de altivez. É desse amor inquantificável que se alimenta sua certeza: um dia elas vencerão a todos e a tudo, alcançarão a paz e a tranqüilidade há tanto tempo inexplicavelmente adiadas.

De qualquer forma, chega de palavrório inútil e voltemos aos olhos da protagonista. Depois que Débora depositou a féria do dia na bolsa da companheira, os dois malcriados círculos se fixaram na cama, onde uma tranqüila Ranatapva desfrutava um sono mais do que merecido.

Os olhos de Débora, do ângulo em que eu os via, eram uma mistura de embevecimento e embevecimento. A paixão ocupava-lhes cada espaço. A impressão que causavam sintetiza-se em apenas uma palavra: amor.

Não havia, naquele momento, ser humano algum mais apaixonado que a protagonista. Existiam milhões mais ricos, felizes, satisfeitos. Mais apaixonado não se encontraria nenhum.

E estaria ainda mais enamorada, não fosse a fome influir em seus sentimentos. Antes de beijar Raninha, sentiu-se forçada a procurar por comida.

Na cozinha, nenhum prato ou panela cheia restavam. Abriu a geladeira, onde não encontrou nada que fosse imediatamente comestível. A paixão em seus olhos evaporou-se como água.

Voltou ao quarto e sacudiu Ranatapva:

- Rana! Rana! - mãos apertando o braço de Raninha.

Sono pesado, Ranatapva acordou apenas no segundo chamado. Olhou para Débora com expressão de espanto, erguendo duas pálpebras capazes de matar a protagonista de desejos.

Débora se arrependeu. Soltou Raninha e foi apoiar-se no parapeito da janela. Nervosa como sempre, isso não lhe dava o direito de tratar Ranatapva daquela forma. Agira como um monstro.

Sentiu a mágoa da companheira atravessando a janela, passando por cima de seu ombro. Engraçado. Era mágoa de vapor, não um sentimento abstrato. Débora se fascinou com aquele gás visível fazendo acrobacias no ar.

Estava feliz. Com vontade de chamar a todos para mostrar a fumaça, mesmo aquele povo cretino, merecedor de nenhuma consideração. Gritaria, gritaria na sua própria língua, livre como um passarinho: "Olhem! Olhem! É a mágoa de Raninha quem vai lá! Não é lindo? A mágoa do amor da minha vida! A mais bela fumaça já vista!"

Diante de felicidade tão grande, o parapeito da janela não fazia mais nenhum sentido. Virou-se para Rana. O beijo adiado sairia.

Ranatapva fumava sentada na cama. Débora, furiosa, arrancou-lhe o cigarro das mãos, arremessou-o com violência pela janela. Sua voz jorrava áspera e aguda:

- Não, Rana, não! Nunca mais, nunca mais!

Ranatapva respondeu trincando os dentes. Ergueu-se, caminhou até a cozinha, abriu o forno, tirou um prato de comida, levou-o a Débora ranhetando qualquer besteira intraduzível.

O remorso se alojou mais uma vez no coração preto dos olhos de Débora. "Ah", ela pensou, "afinal, por que que não disse? Não avisa! Também..."

Totalmente esfomeada, pegou no prato e trouxe-o de volta ao forno para aquecê-lo. Pouco depois, já não restava da refeição mais que um prato vazio e uma lembrança agradável.

Venerava a comida feita por Raninha. Permaneceria anos se deliciando com as invenções culinárias da amiga. Cada prato preparado por ela lembrava-lhe um gesto, um olhar ou um sorriso da companheira. Débora manobrava com teimosia para transformar o encargo de cozinhar em atividade exclusiva de Raninha.

Claro que isso não seria obtido contra a vontade da outra. No refúgio das duas, ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer o que quer que fosse. Era um código de honra, uma declaração muda de direitos invioláveis. Não se atreveria a transgredir regra tão definitiva.

Exceto na hora de conter a raiva dos cigarros de Raninha. Quando a companheira tentou acender mais um, Débora tirou o maço de suas mãos, pisou-o com ódio e o jogou no lixo.

Ranatapva assistiu a tudo calada, os olhos enchendo-se de lágrimas. Foi até a mesa, ajeitou-se em uma das cadeiras, recostou a cabeça e cobriu-a com os braços para chorar.

Débora aproximou-se dela. Apoiou nos ombros da companheira um cotovelo sumariamente repelido por um empurrão. A protagonista se esfrangalhou. Saiu do apartamento batendo a porta e praguejando contra a vida.

- Merda, merda! - perdigotava.

Desceu pela escada com a indisfarçável intenção de demolir o prédio. Em cada degrau pisado, comprometia-se a envelhecida estrutura do edifício. Quando alcançou o último, não pensou duas vezes antes de socar com violência a parede.

Não estava só. Sua consciência esquecera-se de ficar em casa e desceu a seu lado. Repetia bobagens que apenas serviam para cansar os ouvidos de Débora. Não trariam qualquer outro resultado.

- Vagabunda, moleca, ditadorazinha de cabaré! Eu, se fosse você, enfiava a cabeça no vaso e dava descarga. Idiota!

Retardada! Adianta vir com essa ladainha? Vai alterar alguma coisa?

Débora, em momentos como esse, conclui pela inutilidade de sua consciência. Na sua amalucada teoria, consciência não é freio para impedir sandices. É chuveiro tolo: liga-se em nossas mentes no momento em que as besteiras já estão feitas e começa a aborrecer nossa paciência curta e nosso sangue quente.

A rua, por outro lado, é o último lugar onde uma pessoa atormentada deve procurar consolo. Por ela só passam autômatos, privados de qualquer capacidade de sentir, pensar, viver. Vê-se de imediato, na expressão vazia desses boçais, quão dispensáveis se tornaram à aventura humana. Fizéssemos, eu e Débora, picadinho de suas carnes podres, o planeta respiraria aliviado, livre de tantos entulhos pisando em seu solo.

Débora, entretanto, ao invés de buscar um bálsamo, estava mesmo era à cata de autopunição. Por isso continuava misturada àquela ralé imunda, por isso permanecia perdida no meio daquele povo asqueroso. Maltratara Raninha, era a vez de maltratar a si mesma.

Demorou cerca de duas horas desorientada nas ruas próximas ao esconderijo. Exausta, decidiu voltar.

Antes de começar seu ritual de cautela, viu Ranhinha puxar a porta com angústia. Os olhos inchados de Rana encontraram-se com seu olhar envergonhado. Durante instantes permaneceram imóveis. Depois se atiraram nos braços uma da outra e fizeram o amor mais fervoroso de suas vidas.

A tranqüilidade que veio em seguida teve duração curta. Sentadas, despidas, abraçadas, as duas ouviram um ruído de par de botas se aproximando do apartamento. Ranatapva espreitou pelo olho mágico e confirmou o que ambas temiam: as botas pertenciam a um policial. Imediatamente, Raninha sinalizou o perigo para Débora. A protagonista se escondeu em baixo do sofá, enquanto sua companheira apoiava as costas na parede.

As pisadas eram sádicas com a tensa espera das duas: largas, ritmadas, sem qualquer resquício de pressa. O medo lhes aguçara tanto a sensibilidade que Ranatapva percebeu a passagem do policial pela porta do esconderijo valendo-se apenas das minúsculas vibrações provocadas na parede.

Terminado o perigo, Raninha meteu-se a gesticular de modo obsessivo, ora portando uma arma imaginária, ora marchando sem sair do lugar. Débora segurou-a. Dedo entre os lábios, aquietou a amiga com mostras de ter compreendido a mensagem. Depois desabou sobre o sofá, visivelmente preocupada.

Não importava saber se o policial morava ao lado ou se aquela não passava de uma visita ocasional. Ambas eram alternativas catastróficas. Jamais tinha aparecido policial nenhum naquele bairro abandonado pela Criação.

Com a chegada desse infeliz, outros seguiriam sua trilha. Débora seria localizada e presa em questão de dias.

Não. Não mesmo. Agiria antes. Vestiu-se com enorme rapidez, tomou nas mãos o revólver escondido no armário, abriu a porta.

Olhou para Ranatapva. Nua, linda, provocante. E assustada. A dor que transparecia de seu rosto previa os acontecimentos posteriores.

Débora não deu atenção ao apelo mudo de Raninha. Saiu de casa dirigindo-se ao único apartamento vizinho onde o inimigo poderia ter se enfiado. Somente ele se aprofundava mais que o seu no corredor.

Foi o próprio policial que atendeu ao chamado da campainha, abrindo-lhe a porta. Uma bala perfurou o coração do pobre coitado antes que pronunciasse ai.

Uma mulher que correu para ajudá-lo, chorando em bicas, foi silenciada à altura da testa. Débora correu de volta para o esconderijo a tempo de não ter sido vista pelo primeiro herói que se prontificou a testemunhar o resultado da chacina.

Não imaginava de onde lhe tinham vindo forças para regressar. Seus olhos se perdiam em Ranatapva, passeavam através dela, gemiam num distante lugar nenhum.

A amiga era uma alma do outro mundo, de todo invisível. Estirada no chão, apoiada no armário, talvez em estado de choque, talvez morta, talvez nem uma coisa nem outra, e daí? Imersa em um oceano de pensamentos angustiantes, não lhe sobrava espaço para que se lembrasse de Ranatapva.

Em menos de um minuto, conseguira produzir mais desastre e loucura que em sua vida inteira. Caminhões de pólvora. Que idéia desatinada foi essa, que diacho de bicho lhe mordera?

Bicho nenhum. Puro instinto de sobrevivência. Por ele, já havia sido levada a roubar, marginalizar-se, fugir.

Mas matar? Ora bolas, que porcaria de "instinto de sobrevivência"! E não virão policiais de tudo quanto é lado, não vão torná-la ainda mais renegada, mais bandida?

Sim, sim, sei, foi culpa da própria polícia. Anda de botas pra cá e pra lá, aponta-lhe fuzis, prende, esfola. Criou esse terror insuportável, pegou a arma das mãos de Débora, transformou-a numa assassina.

De fato, o ódio. O ódio foi ao apartamento vizinho, apontou a arma, fuzilou quem estivesse na frente. Não Débora. Aquilo tudo era a conseqüência lógica de anos de sofrimento injusto, séculos em cadeias imundas, milênios de humilhações.

Balela. Psicologismos pro diabo. O fato é que era uma assassina fria e sanguinária. Matara. Essa é que era a única certeza.

Acaso sabia quem era o desafortunado policial? Acaso ele havia sido algum carrasco seu? Que nada. Não passava de um guardinha qualquer, atrás do carinho de uma desconhecida.

Exato. Uma desconhecida. Entendem? Não lhe melhoraria a situação se descobrisse que havia morto o policial mais facínora e culpado do mundo. Uma mulher desconhecida, que não podia ser condenada por crimes que não cometera, foi liquidada junto, de carona, inutilmente.

Bananas. Deu de ombros. Que podia fazer? Suicidar-se por dois estranhos? Nunca os vira mais gordos ou magros. Devia mesmo era seguir o exemplo de Ranatapva, tomar partido nenhum.

E por falar em Raninha, diga-se, a bem da verdade, que, enquanto a protagonista se torturava, a reação de sua companheira foi deixar o chão. Em completo silêncio, vestiu-se e colocou uma mala vazia sobre a cama, que ficou pronta em menos de vinte minutos. Débora tentou prender-lhe as mãos.

Ranatapva livrou-se sem esforço. Levantou a mala e segurou o trinco da porta. Estava prestes a ser mais um passado sofrido na biografia da protagonista.

Não teve coragem. Abrir e fechar a maçaneta formaram um movimento único, sem intervalo. Ranatapva jogou a bagagem no sofá, sentou-se à mesa e caiu em uma imobilidade mortal.

Esse curto episódio ampliou o abismo na mente de Débora. Em meio a vários pensamentos obtusos, a heroína aborrecia-se com Raninha. Queria deixá-la só, logo no pior momento de sua vida. Que fosse embora! Não precisava dela, não precisava de ninguém.

Fosse! De preferência, para denunciá-la à polícia. Traidora!

Desolada e sem saída, de olhos fechados, Débora sonhava com seus pais, seu país, sua pátria, sua gente.

Sonhava uma pinóia. Os olhos fechados somente lhe escureciam mais as vistas, traziam-lhe o vazio e o breu. Tinha mais imagem nenhuma de seus conterrâneos. Família, vizinhos, parentes, prefeitos, donos de sorveteria, lembrava de mais nada. Perderam-se todos no emaranhado confuso de sua memória.

Talvez nunca houvessem existido. Seria uma louca num mundo hostil? Haveria mesmo outra realidade, outro porto, esperança?

Como fugir, meu Deus, para um oásis invisível? Visariam seu passaporte para Lugar Nenhum? Atravessaria as fronteiras para atingir o Nada?

Perguntas, perguntas... Gostaríamos mesmo, eu e Débora, era de respostas. Nem mesmo no plural. Um alívio solitário bastaria.

Um milagre que a afastasse do morticínio que não quisera cometer, do país que não escolhera para habitar, da cruz que não suportava mais carregar. Não precisava ter grande estilo. Não tinha de vir iluminado em luzes de neon, envolto em cortinas de fumaça, vestido em roupas milionárias.

Era mais que suficiente uma coisinha simples e vulgar: a morte, talvez, quem sabe? Não. Morta, iria parar no inferno. Convencera-se disso. Líquido e certo. Era só morrer e batata, teria uma conversa prolongada e nada amistosa com Satanás.

Ora, temer o inferno... Qual a diferença? Estava no inferno mesmo, só mudaria de posição geográfica.

Se bem que tinham lá sua importância essas questões geográficas. No fundo, a geografia era seu único problema. Julgando a si mesma com imparcialidade, considerava-se a pessoa certa, o corpo exato, os pensamentos bem ajustados. Errara apenas de endereço.

Então, por que não tentar? No inferno, encontraria outra cultura, outra civilização, um horizonte perdido. Mudar de ares certamente lhe faria bem.

Mas quê. Na visão de Ranatapva, a recordação de que não conseguiria deixá-la só. Em qual buraco das profundezas a amiga caberia? Ninguém é tão puro, tão incapaz de mal algum. Pro inferno Ranatapva não iria. Débora haveria de ficar só durante toda a eternidade.

Eternidade. Que tamanho de tempo vem a ser isso? Dois meses, quinze dias?

Exausta e sufocada, Débora se deitou no sofá de barriga pra cima. Olhava o teto sujo, esperando que desabasse, quando dormiu.

No dia seguinte, inerte no colo de Ranatapva, foi acordada por uma fumaça de cigarro. Sem ânimo para arrancá-lo dos lábios da amiga, Débora se levantou, tomou café, enfiou um vestido no corpo e desceu para passear, cumprindo um hábito que mantinha há anos.

A idéia era alterar o mínimo possível o roteiro que normalmente seguia nessas caminhadas. Com esse objetivo na cabeça, atingiu a rua sem afobamento.

Na primeira banca de jornal, fotos ocupando metade da primeira página de um tablóide estampavam o rosto do policial assassinado. Débora reviu os olhos abismados do infeliz, tão nitidamente que pareciam ainda estar se fechando à sua frente.

Não mostrando sinais de perturbação, a protagonista seguiu em frente, sem se deter para examinar o conteúdo da manchete. Na segunda esquina, contudo, o pânico penetrou em seu sangue. Voltou correndo para o esconderijo e entrou nele sem o menor cuidado.

Não era mesmo necessária cautela alguma. Ranatapva estava no sofá, costurando. A janela aberta deixava passar um vento suave. Tudo compunha um cenário calmo, que não solucionava a violenta tensão de Débora.

A companheira de Ranatapva não parava de tremer. Esticou-se sobre as pernas da amiga, beijou-as, agarrou-se à sua barriga, buscava desesperadamente refugiar-se de seu próprio descontrole.

Em vão. Não por culpa da outra. Ranatapva acariciava Débora, retribuía seus beijos com vigor. Sem nenhum resultado. Débora continuava como uma usina nuclear a instantes de uma descarga de bilhões de volts.

Afastou-se de Raninha, arrancou uma laranja da fruteira, tentou descascá-la. Na segunda vez em que cortou o polegar esquerdo, desistiu e jogou a laranja no lixo.

Quando as feridas secaram, voltou ao sofá, longe de Ranatapva. Distraiu-se batucando alucinadamente nas almofadas. A campainha tocou.

Foi o bastante para provocar um tremor de terra no apartamento. A protagonista, atônita, correu para o quarto e se jogou embaixo da cama.

Ranatapva não se desesperou tanto quanto a amiga. Antes de atender a chamada, ainda foi capaz de ajeitar o penteado.

O incômodo visitante era outro dos monstruosos homens da polícia local. Pareciam produzidos em série - eram todos carrancudos e ameaçadores.

Quando o policial entrou no esconderijo, Débora, no quarto, percebeu que sua intenção era promover um interrogatório nem um pouco amistoso, tal a avidez com que o canalha agredia, constrangia e atormentava Ranatapva. Em menos de meia hora, Rana não resistiu, começou a chorar convulsivamente.

Nesse momento, Débora gelou. Ranatapva daria com a língua entre os dentes, seriam presas, adeus sonhos, planos, presságios.

Para seu alívio, apesar das lágrimas e de toda a pressão, Raninha conseguiu livrar-se do policial sem comprometer Débora. E, tão logo fechou a porta, foi ao encontro da companheira. Encontrou-a desmaiada.

Ranatapva colocou a amiga sobre a cama com nítido desagrado. Ao despertar Débora do desmaio, essa insatisfação seria integralmente transmitida à amiga. A protagonista chegou a se assustar com a intensidade da raiva que transpirava de Raninha.

Nunca a vira tão aborrecida. Desde o dia em que Rana se tornou o ponto de apoio de sua desmiolada vida, Débora suportara, no máximo, caretas rápídas, amuamentos passageiros, irritações que não custavam a passar. Sisuda, seca e gelada daquele jeito, Ranatapva não era assim nem nos piores momentos de briga.

Débora abraçou a amiga e beijou-lhe o pescoço. Ranatapva desvencilhou-se e foi para a cozinha.

A heroína suportaria chutes, esfolamentos, socos, desaforos, o diabo. Desprezo nunca. Aproximou-se de Raninha. Segurou com raiva um de seus braços, fitou-a com ar crispado, machucando-a em ambos os gestos.

Ranatapva não ficou sem ação. Com a mão direita, ainda livre, pegou uma faca e entregou-a a Débora.

A protagonista compreendeu o recado. Largou Ranatapva, jogou a faca para o alto, iniciou uma vergonhosa crise de nervos.

Batia no que estivesse à sua frente. Armário, geladeira, sofá, cama, parede, foram todos vítimas dos murros de Débora.

Ranatapva não se preocupou em contê-la. Resgatou a mala, que escondera sem desfazer, abriu a porta e saiu.

Só então cessou o vexame de sua companheira. Débora, rosto e olhos vermelhos, parou de maltratar a mesa e correu em direção a Raninha. Ao alcançá-la, misturava desespero e súplica. Talvez até comovesse a amiga, não tivesse a protagonista um histórico tão comprometedor e desmoralizante.

Ranatapva sequer alterou os passos. Venceu a escadaria sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

Débora permaneceu estática. Não perseguiu Raninha. Estava aturdida, desorientada, sem noção de como agir.

Não lhe passara pela cabeça separar-se de Ranatapva. Sua fé na lealdade da amiga não se abalou nem pela ameaça de abandono depois dos assassinatos. Não podia levar a pretensão da amiga a sério, nem esperar que no dia seguinte ela a concretizasse.

Ranatapva era uma peste, não prestava nem um milímetro. Inviabilizara o futuro da protagonista. Débora dependia tanto dela que não seria capaz de passar um minuto afastada da companheira. Desgraçada. Haveria de pagar por isso.

- Quero que você tenha lepra, apodreça, morra! - praguejava, contra seus próprios desejos.

Ansiava mesmo era pela volta de Raninha. Tê-la a seu lado, afogar de beijos seu corpo, seus lábios, seu rosto.

Moveu-se da beira da escada. Pisou no esconderijo sem ânimo, sem vontade, sem motivação alguma. Pior que morta. Os mortos, esses pelo menos não têm sentimentos nem sofrem dor tão aguda.

Mas não morrera ainda. Faltava-lhe, antes disso, uma atitude por tomar. Não terminaria sua vida como uma assassina simplória e burra. Se era inevitável morrer culpada, não morreria por uma culpa medíocre.

Retirou o revólver de cima da geladeira, onde o abandonara após o massacre. Alisava-o como a um velho amigo. Decidira. Cometeria um disparate espetacular, um desatino de proporções bem maiores que a carnificina da véspera.

Não se importava. Não tinha mais nada a perder. Tudo lhe havia sido tirado, nunca possuíra nada.

Dona de seus atos e de si mesma, não estava embarcando em uma canoa furada ou tomando uma atitude impensada. A coisa toda fazia sentido. Ainda que se tratasse de uma grande bobagem, seus resultados seriam positivos, engrandecedores, concretos.

Completou os espaços vazios no tambor. Ajeitou a arma junto ao resto do cartucho, que levaria para a eventualidade de conseguir disparar as seis primeiras balas.

Bolsa a tiracolo, pernas trêmulas, atingiu a rua. Tomou um coletivo e saltou numa praça repleta de gente. Empunhou a pistola e se pôs a atirar para todo canto. Apenas uma freira distraída se cortou sem gravidade no ombro, antes que abatessem Débora com um tiro certeiro na nuca.
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