Usina de Letras
Usina de Letras
16 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62283 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Júlia -- 13/01/2003 - 10:04 (Guimaraes Julia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

________________
Amor e Desejo




Júlia
Por Guimarães Júlia



A imagem de um caleidoscópio errante, indeciso, percorria a parede branca do dormitório do casal. Ao refletir a luz do abajur, o relógio de Herculano produzia uma intrigante forma colorida que se movimentava sem destino certo. Júlia, curiosa, acompanhava a dança das cores enquanto fazia amor com o marido.

Anos antes, Júlia e Herculano teriam feito amor de maneira ardente e arrebatada. Muito diferente do que acontecia naquela hora. A calma era tanta, que Júlia ouvia o silêncio que existia entre eles.

Ela cavalgava o marido, como sempre fazia ao se amarem pela manhã. Nessas horas, a iniciativa era sempre dela. Ele continuava no limiar do sono e ela buscava, antes do dia começar, o afeto e a paixão que julgava estarem ainda por perto, em algum lugar. Júlia sentia o marido pulsando dentro dela. Era uma sensação boa. Mas só isso. Boa como um bom vinho. Boa, mas não indispensável, não definitiva. Já não era mais uma questão de vida ou morte.

O curioso caleidoscópio percorreu um longo caminho na parede, chegando ao rosto de Herculano. Os olhos de Júlia se fuxaram no marido. Ele tinha os olhos fechados, como se estivesse concentrado no prazer que ela lhe proporcionava. Herculano pareceu para Júlia um menino indefeso. Quem o visse naquela hora jamais imaginaria que ele era um homem agitado, competitivo, concentrado no trabalho. Naquele momento, perguntando-se o que aquela face siginificava para ela, Júlia não sabia responder. O que lhe vinha à cabeça eram os versos de Maiakovski. O amor parecia ter naufragado ao encontrar os rochedos do cotidiano.

Júlia acelerou os movimentos do corpo, tentando encerrar mais cedo a sessão matinal de sexo. Estava difícil trazer de volta o que havia perdido. Ela sentiu então Herculano agitar-se, pronunciar seu nome e gozar. O orgasmo de Júlia continuaria perdido nas lembranças do passado.



Quando Júlia sentou-se à mesa do café, Herculano já estava de pé, apressado. Ele vestiu o paletó, pegou a pasta de documentos e dirigiu-se à porta de saída.

– Você vem jantar hoje? – perguntou Júlia.

– Acredito que sim. Por que pergunta? – Herculano era sempre companheiro inseparável dos detalhes e explicações.

– Talvez eu me atrase, – respondeu Júlia, ainda inquieta com seus pensamentos daquela manhã. – Vou para Ribeirão Preto, visitar um cliente.

– Quando você chegar, se eu estiver dormindo, não me acorde. Amanhã deverei ir cedo para o aeroporto. Você se lembra que estarei fora por uma semana, não? – Herculano nem esperou pela resposta para fechar a porta e sair.

Júlia não se lembrava da viagem. Mas não fazia muita diferença. Ela terminou seu café, tentando controlar a nostalgia que parecia rondá-la naquela manhã.

***

Embora soubesse que era uma mulher atraente, naquela manhã, Júlia chegou à editora onde trabalhava achando-se desinteressante e feia. Ela jamais havia se sentindo dessa maneira.

Por uns instantes ela parou à frente da porta de sua sala no edifício sede da Editora Belas Artes onde se lia: Júlia Shiyaki Roses – Diretora de Negócios. Ela havia trabalhado com muito afinco para chegar naquela sala aos 35 anos de idade, sem ajuda de Herculano nem de seu pai.

Quando menina, Júlia era alegre e extrovertida. Sempre rindo alto, sempre radiante. Os jovens disputavam sua atenção. Seu pai, Edward Roses, achava seu comportamento quase sempre inadequado. Ele desaprovava os muitos namorados, desaprovava as festas constantes, desaprovava o que ele chamava de estilo de vida liberal de Júlia. A adolescente achava um exagero a opinião de seu pai. Ele era muito mais velho que sua mãe, além disso, era inglês, conservador ao extremo, dizia a menina. A mãe de Júlia, ao contrário, a apoiava em tudo. Apoiava na intimidade das duas, porque ela jamais se atreveria a discordar do marido. Tomio Shyiaki conhecera Edward Roses no dia do seu casamento que havia sido arranjado por seu pai, amigo do inglês. Tomio, aos 19 anos, viera do Japão diretamente para o casamento na Inglaterra. Marido e mulher eram muito diferentes. Chegaram ao Brasil poucos dias antes do nascimento de Júlia.

Mr. Roses, importador de mercadorias inglesas, sempre ofereceu a Júlia uma vida de fartura, embora tentasse impor a ela uma moral calcada no rigor, no trabalho e no dever. Mesmo respeitando esses valores, Júlia enquanto jovem, era atraída por prazeres imediatos e inconseqüentes.

Júlia tornou-se mais comedida depois de conhecer Herculano e com ele casar-se aos 26 anos de idade. Herculano, com dez anos mais que ela, tornou-se um fator de equilíbrio na vida de sua jovem mulher.

Até aquela manhã, Júlia sempre se sentira uma mulher feliz, resolvida e bem sucedida. Nada lhe faltava.



Mal sentara-se à sua mesa no escritório, o telefone tocou.

– Sim, – respondeu Júlia apressada. – Em dez minutos nos encontramos na garagem.

Era Sebastian, o jovem revisor que a acompanharia na visita a seu cliente. Embora, naquela manhã, Júlia quisesse ficar só, quieta em seu escritório, sem ver pessoa alguma, ela ponderou que o ar da estrada talvez lhe fizesse bem e afastasse a sensação de peso e o aperto no peito que sentia. Além do mais, ela gostava de guiar. Como herança da adolescência, Júlia não perdera o gosto por carros e velocidade.

Quando saiu da garagem, dirigindo seu Audi, Júlia sentia-se animada com a perspectiva da viagem.

– Você já esteve na sede da Sucos Brasil? – perguntou Júlia.

– Não. Esta é minha primeira vez. – A voz de Sebastian demonstrava nervosismo.

– Nosso objetivo lá é conseguir aprovação do projeto do Freitas. Você está familiarizado com os detalhes, não? – Júlia olhou para o jovem ao seu lado enquanto parava o carro num semáforo.

Ela sentiu que ele a observava de uma forma diferente. Não era desrespeitosa, mas existia algo ali que a perturbava.

– Sim, eu revisei toda a produção. Textos e fotos. – Sebastian respondeu, desviando os olhos da mulher.– São fotos maravilhosas.

– Faz muito tempo que você trabalha na editora? – perguntou Júlia, depois de algum tempo de silêncio.

Ela se dava conta de que o jovem revisor era de poucas palavras, do tipo observador. Essas são as pessoas mais perigosas, pensava a moça. Nunca se sabe o que estão pensando.

– Há 5 anos, – respondeu Sebastian. – Comecei a trabalhar na editora como estagiário. Fui efetivado há dois anos, quando me formei.

– Você gosta de ser revisor? – perguntou Júlia, dando-se conta de que Sebastian estava na empresa há mais tempo que ela.

– Creio que é um bom trabalho para quem quer ser escritor… Segundo meu professor do curso de criatividade, o trabalho de revisão desenvolve a técnica. – Sebastian arrependeu-se imediatamente do que dissera. Não queria parecer infantil.

Sebastian Lorenzo, em seus 25 anos de idade, era visto por todos na editora como um jovem talentoso. Seus pais eram imigrantes, tinham vindo da Espanha. Quando se aposentaram, eles voltaram para Barcelona. Adolescente ainda, Sebastian decidira ficar no Brasil, vivendo com sua tia e seu avô. Sua família não era rica, sua vida nunca fora fácil e isso fizera dele um homem persistente.

Quando menino, a companhia permanente de Sebastian era seu avô, de quem ouvia histórias e mais histórias sobre os tempos passados. O velho sonhava com a grande festa que faria ao completar 100 anos de idade. Ele repetia ao neto que iria convidar apenas as pessoas que tiveram importância em sua vida, descrevendo cada uma delas. Infelizmente, o avô morreu antes de completar 98 anos.

Depois de adulto, o que mais importava a Sebastian era sua carreira na editora.Talvez a única coisa que nublava sua obsessão pela carreira era Júlia. A primeira vez que ele a viu foi quando ela foi apresentada aos funcionários da editora, como a mais jovem diretora de negócios. Sebastian não mais dormira uma única noite sem pensar nela. Nunca mulher alguma lhe parecera tão fascinante, tão doce e, ao mesmo tempo, tão misteriosa. Ele a via e imaginava como seria receber dela um sorriso amoroso, como seria caminharem de mãos dadas na chuva, como seria conversarem até altas horas na cama, como seria fazer amor com Júlia.



Aquela era a terceira vez que saiam juntos para visitar clientes. Sebastian sentia-se muito feliz apesar de saber que ela nem o notaria. Não ignorava também que Júlia era casada e que adorava o marido, um influente diretor de um banco de investimento.

Sempre que recebia a notícia de que iriam sair juntos, Sebastian se desorganizava completamente. Ficava pensando e antevendo as horas que passaria ao lado de Júlia. Tudo nela o tirava do prumo. A maneira de falar, de sorrir, de se movimentar. Sebastian admirava nela especialmente a elegância e a sensualidade. Ele já escrevera a respeito, dizendo que elegância e sensualidade são qualidades indissociáveis uma da outra.

– Interessante… desejo-lhe sucesso em sua carreira … – mentiu Júlia, que especialmente naquela manhã não estava interessada no que o jovem revisor falava. Mudando de assunto, ela disse:– Não creio que o que nos espera seja difícil. Mas, mesmo assim, fique preparado.

Júlia, ligou o rádio, encerrando a conversa entre eles. Já estavam na rodovia. Em três horas chegariam a seu destino. Sebastian pretendia desfrutar cada minuto ao lado de Júlia.

Júlia procurava se concentrar na música, tentando apagar de sua mente as lembranças do caleidoscópio colorido e apagar as imagens de Herculano, semi-adormecido, fazendo amor com ela… Poderia ser qualquer mulher ali, trepando com ele, pensou Júlia, magoada. Se fosse outra, ele nem perceberia! Aquelas lembranças fizeram voltar a tristeza e o sentimento de abandono.



A reunião com os diretores da Sucos Brasil foi um sucesso. Júlia era realmente boa no que fazia, concluira Sebastian. O projeto foi aprovado.

Júlia decidiu almoçar num restaurante de beira de estrada. Era um restaurante decorado como uma hospedaria do século passado. Tinha mesas redondas, rústicas, e paredes de pedra, iluminadas por lâmpadas em formato de tochas. Os garçons com bombachas gaúchas destoavam do ambiente. O restaurante se chamava A Távola Redonda. Mesmo pobre, o lugar caracterizado daquela maneira ingênua fez o apaixonado Sebastian sentir-se o cavaleiro Lancelote ao lado se sua Lady Guinevere. Seria ela capaz de trocar seu marido por uma paixão? Sebastian, tentando esconder seus pensamentos, desviou o olhar de Júlia, embaraçado com suas próprias divagações. Júlia não se deu conta dos devaneios de seu companheiro de mesa.

Depois do almoço Júlia convidou Sebastian para um passeio no bosque que existia atrás do restaurante. Uma placa de madeira indicava o nome do bucólico lugar: Parque de Avalon. Era repleto de árvores, com uma trilha que subia por uma pequena encosta.

– É uma caminhada gostosa. Eu já estive aqui. Servirá para esticarmos as pernas, – disse Júlia sorrindo, mais leve, feliz pelo resultado da reunião.

Eles caminharam lado a lado. Júlia admirava a natureza, o sol entre as árvores, o cheiro de mato. Ela recuperava-se depois de uma pesarosa manhã. Sebastian vivia a magia, andando ao lado da mulher amada. Naquele instante, para ele, o mundo era perfeito. Ele sentia Júlia feliz, o sol brilhava em seu sorriso. Ele notou que ela sorria, perdida em pensamentos distantes. Era um sorriso leve, quase imperceptível.

Naquele instante, Júlia recordava-se das caminhadas que fazia quando adolescente pelo bosque do Morumbi, um lindo parque repleto de árvores, de terreno irregular, no meio da cidade de São Paulo. Numa dessas vezes, ela fora convidada por um garoto muito tímido, que acabara de revelar seu amor por ela. Delinqüente, ao se preparar para o encontro, Júlia decidiu não vestir suas roupas íntimas. Colocara apenas uma blusa, uma saia rodada e sapatos confortáveis. Durante todo o passeio a menina torturou seu parceiro, deixando seu corpo revelar-se, aos poucos, sempre acidentalmente, sempre inadvertidamente. O garoto jamais acreditaria que Júlia estivesse sem suas roupas íntimas. A caminhada do pobre menino foi repleta de sobressaltos e de surpresas. Ele saiu muitas vezes da trilha, tropeçou em raízes, topou com galhos mais baixos, enrolou-se em cipós.Ela divertiu-se por horas. Aquilo serviu para Júlia provar mais uma vez que os homens eram tolos e vulneráveis. Depois desse dia, nunca mais deu atenção ao pobre infeliz. Apesar de ainda rir com as traquinagens da adolescência, Júlia se censurava pela delinqüência e crueldade.

Na caminhada ao lado de Sebastian, Júlia certamente estava apropriadamente vestida. Ela vestia uma blusa creme, de seda, sobre uma camiseta justa, que realçava seu corpo, e uma saia verde musgo bem talhada que ia até abaixo dos joelhos. Estava muito elegante, mas ao mesmo tempo vestia-se de maneira confortável. Sebastian, discretamente, se encantava com seus olhos negros, que aos poucos, recuperavam o brilho de sempre. Nada falaram durante a caminhada. Já estavam bem distantes do portão de entrada, numa espécie de clareira de Ipês, quando se deram conta de que o tempo ameaçava chuva. Voltaram ao carro a passos rápidos.



No caminho para São Paulo, eles pouco conversaram. Sebastian olhava para frente, mas todos os seus sentidos estavam voltados para a mulher à sua esquerda. Júlia, novamente, ficara pensativa.

– Pretendo ir direto ao escritório, – disse Júlia, quebrando o silêncio. – Onde você quer ficar?

– Em qualquer ponto de táxi. Tenho aula à noite.

As luzes do carro brilhavam sobre o asfalto molhado. Já parara de chover.

– Agradeço muito sua ajuda e sua companhia. – Júlia ofereceu ao jovem, que descia do carro, um doce sorriso de despedida.

Sebastian, irremediavelmente enfeitiçado, ficou parado na calçada, esperando o Audi de Júlia virar rapidamente a esquina.



Quando o professor entrou na sala, Sebastian sequer o notou. Ele pensava na mulher. Sentia ainda seu perfume.

– Hoje é dia de laboratório, – disse o professor. – Os grandes escritores ensinam que uma obra escreve a si mesma. Ela existe da forma que é, independentemente do desejo de seu criador. E assim, um escritor enfrenta os mais diferentes tipos de desafios em seu trabalho. O autor escreve o que seus personagens ditam, o que requer o roteiro, que vai se desdobrando naturalmente. Hoje vocês têm uma tarefa difícil. O trabalho que pedirei a vocês é um grande desafio a todo escritor.

O professor fez uma pausa, enquanto os alunos, em suspense, aguardavam impacientes a explicação do que seria tal tarefa.

– Imaginem que vocês estejam no meio de uma história, – continuou o professor, no mesmo tom de voz, – e que chegam num ponto que ela requer uma passagem erótica, quente, ardente. Esse é o treino de hoje. Vocês têm duas horas para escrever um conto erótico.

Os alunos, embora já acostumados com as surpresas que um curso de criatividade apresentava, trocavam olhares de constrangimento. Sabiam que na segunda parte da aula eles teriam que ler o que escreveram e os demais criticariam.

– Pensem nisso como se fosse um trabalho profissional. Isolem-se. Esqueçam que estão na sala de aula. – O professor tentava ajudar os alunos. – Para que o texto não seja artificial, tragam à mente alguma situação que viveram, pensem num filme, pensem na namorada, pensem em algo real em cima do qual vocês possam compor a cena erótica que descreverão.

Sebastian mal ouvia o professor. Já estava escrevendo. Precisava escrever. Se não escrevesse explodiria. Antes de se esgotar o tempo dado pelo professor, ele havia terminado seu texto. Ao término, ele estava mais sereno. Sebastian foi o primeiro a ler. Sua voz estava emocionada. Ele lia algo imaginário como se realmente tivesse acontecido. Talvez fosse algo real que imaginara.



"Ipê Rosa
Por Sebastian Lorenzo


Não sei se meu caro leitor conseguirá perceber a força da emoção com que tais episódios ocorreram. O que relato é verdadeiro. É a pura expressão da verdade. Não há porque se esconder a verdade de coisas que aconteceram há quase cinqüenta anos e que, de tão importantes, ainda estão fortes e presentes na minha mente. Acredito que meu caro leitor entenderá o porquê de minha decisão de compartilhar o acontecido. Acontecimentos que transformam definitivamente a vida de uma pessoa não podem ficar enclausurados. Eles clamam por revelação.

Com pouco mais de trinta anos de idade eu comecei meu trabalho na Brás e Azevedo, uma velha e respeitada editora. Logo depois, eu conheci Rosa, do departamento de revisão, uma mulher muito ativa e sempre alegre. Era morena e seus olhos negros, amendoados, revelavam sua descendência japonesa. Rosa era revisora e meu contato com ela era direto e constante. Estávamos sempre juntos, talvez mais até do que o trabalho justificasse. Eu gostava muito da companhia de Rosa e ela parecia gostar da minha. Nessa época, acredito, nossa relação era exclusivamente profissional.

Eu era casado e Rosa, solteira. Ambos nos dedicávamos inteiramente ao trabalho. Com o tempo, nos tornamos confidentes. Amigos íntimos.

Eu só me dei conta do quanto estava envolvido com Rosa quando ela se demitiu da editora e foi estudar em Barcelona. Longe dela, iniciei uma fase difícil na minha vida. Eu passei a sonhar com ela quase todas as noites. Eu sentia sua falta em todos os momentos. “Estarei apaixonado?” eu comecei a me perguntar. A resposta, embora óbvia, não se apresentava a mim como certa. Eu era um homem casado.

Aos poucos Rosa mulher começou a povoar minhas noites. Sonhava com freqüência que fazíamos amor. Com os sonhos, eu finalmente consegui libertar o desejo que tinha por ela. Comecei a me lembrar de seu corpo bem feito, de seus seios pequenos e delicados, das pernas longas e tentadoras. Sua pele, encantadoramente branca, tornou-se referência de beleza para mim.

Esse desejo revelado tarde demais tornou-se obsessivo. O meu universo sexual passou a conter apenas Rosa. Eu fazia amor com minha mulher imaginando ser Rosa. De volta à adolescência, eu me masturbava pensando em Rosa… suas mãos delicadas, seus seios… seu corpo tentador… sua boca vermelha… seu olhar no meu… seu perfume… Eu estava enfeitiçado por aquela mulher. Eu sentia uma paixão devastadora por ela.

Então, o inesperado aconteceu: Rosa me telefonou. Contou-me que voltara de Barcelona e que buscava recolocação no trabalho. Imediatamente eu a contratei para minha equipe. Era difícil acreditar! Ela estaria de novo perto de mim

Ela voltou. Mas algo novo estava presente. Agora, eu a desejava, eu a queria como mulher. Em nossas reuniões de trabalho, a libido me movia. Eu, disfarçadamente, cobiçava seu corpo e, sempre que podia, eu tocava nela. Eram gestos inadvertidos, mas incontidos. Ela parecia não notar ou não se importar. Voltamos a estar sempre juntos.

Dois meses depois de sua volta, Rosa e eu fomos visitar uma empresa na região de Ribeirão Preto. Visita de rotina. Quando marquei a viagem, desejei que algo acontecesse no trajeto. Fantasiei que pararíamos num hotel de beira de estrada e eu conheceria, finalmente, o corpo da mulher tão desejada.

No mundo real, eu evitava qualquer aproximação mais explícita com Rosa. Eu temia perdê-la. Seria difícil sustentar um caso entre nós, eu sendo casado e ela sendo minha funcionária.

Eu me encontrei com ela na garagem do edifício da editora. Ela vestia um vestido azul claro, do tipo indiano, decotado, justo na parte superior e bem solto abaixo da cintura. Era uma roupa comum na década de 50. Vestia sandálias. Estava mais jovial que nunca, felicidade contagiante. Fomos conversando até chegarmos na empresa. Parecíamos enamorados de tão felizes que estávamos. Após a reunião, decidimos almoçar num restaurante de estrada. Era um restaurante simples e barulhento. Ao lado dele existia um enorme bosque, de árvores frondosas, cobrindo uma colina. Na entrada do bosque, uma placa de madeira, com letras entalhadas, informava seu nome: Parque da Neblina. Resolvemos, após o almoço, dar uma caminhada pelo bosque. O dia estava fresco e convidativo.

Rosa colheu lírio vermelho no jardim que existia na entrada do bosque. Ela disse que levaria de lembrança daquele dia. Seguimos pela trilha, unidos pela magia. A neblina do lugar insinuava que algo inevitável estava na iminência de acontecer. Caminhávamos de braços dados. Os seios de Rosa roçavam no meu braço. Eu identificava os mamilos, enrigecidos, convidativos… Já não falávamos, apenas nos sentíamos.

Paramos numa clareira, embaixo de um pé de Ipê, coberto de flores rosas, e nos olhamos nos olhos, sérios. Então aconteceu o beijo. Foi irresistível. Seus lábios eram macios, seu sabor adocicado com o frescor de milho verde. Foi um beijo longo, ardente. Meu corpo tremia inteiro. Meu coração parecia prestes a explodir. Eu a beijava, segurando seu rosto com as duas mãos. Após alguns momentos eu desci minhas mãos, buscando os seios de Rosa e tocando neles levemente. Os seios tão desejados! Ela gemeu bem baixinho quando eu baixei seu decote e expus seus seios à leve brisa da tarde e aos meus olhos, que tanto os adivinharam no passado. Eles eram lindos, com a pele branca, delicada, tinham mamilos rosados, muito mais tentadores do que a minha mente fantasiara. Era a minha Rosa, que se destacava de tudo mais que existia naquele bosque. Voltei a beijar seus lábios enquanto acariciava seus seios. Estávamos um ao lado do outro. Minhas mãos nos seios de Rosa e as mãos dela, pela fresta da camisa, acariciavam meu peito.

A respiração de Rosa se tornou mais ofegante quando eu comecei a descer minhas mãos pelas suas pernas. Ela se afastou um pouco do longo beijo e me olhou nos olhos de maneira séria e profunda. Seus olhos negros tinham a ternura da mulher apaixonada. Minhas mãos subiram por suas coxas, levantando seu vestido, até tocarem em suas calcinhas. Os olhos de Rosa não desgrudavam dos meus. Ela me envolveu num abraço forte quando meus dedos, sob sua calcinha, tocaram levemente em sua vagina encharcada pelo desejo.

Rosa começou a gemer e a pressionar seu púbis mais fortemente na minha mão. Senti que ela estava descontrolada, totalmente entregue ao que seu corpo ditasse. Naquele momento, Rosa me puxava para um vôo a dois, ela à frente, nas nuvens e eu atrás a perseguindo, buscando seu corpo, querendo nele mergulhar. Ela voltou a me beijar, a morder minha língua, enlouquecida, enquanto suas mãos, por cima da roupa, procuravam meu pênis. Rosa sem parar de me beijar, libertou meu corpo. Suas mãos me acariciaram. Estavam trêmulas, emocionadas.

Rosa, descontrolada, fora de si, gemia alto em resposta à minha mão que percorria sua vagina quente, exigente. Ao mesmo tempo, ela me acariciava delicadamente.

Então, nossos olhares se encontraram novamente, no momento do gozo. Gozamos juntos olhando um nos olhos do outro. Foi um gozo longo, que parecia não ter fim; que eu não queria que tivesse fim. Voltamos a nos beijar como se fosse o último beijo, um beijo desesperado, pedindo socorro. Não se vá! Tive a certeza, naquela hora, do amor profundo que eu tinha por aquela mulher.

Ao final do beijo, ela me olhou novamente, em meus olhos, olhar apaixonado, e me disse:

– Você sabe que o amo… sonhei muito com este momento. – E com lágrimas ameaçando correr por sua face, ela completou: – Mas isto não pode se repetir. Não quero perdê-lo.

Meu silêncio foi de concordância. Nós nos arrumamos e voltamos de mãos dadas ao carro. Rosa carregava em sua mão o lírio vermelho. O tempo ameaçava chuva. Voltamos para São Paulo em silêncio, sob uma chuva torrencial.

Jamais voltamos a estar tão próximos."



A turma de estudantes ouviu a leitura de Sebastian em completo silêncio. A emoção com que ele leu subjugou a todos na sala. Nenhum outro aluno quis revelar seu trabalho naquela noite. A turma foi dispensada após o professor pedir para Sebastian revisar o texto, imprimi-lo e trazê-lo na aula seguinte. Talvez ele conseguisse publicá-lo na seção de novos autores de alguma revista literária.

***

Na volta de sua viagem, uma semana depois da partida, Herculano foi recebido por uma mulher fria, distante. Ele imediatamente percebeu que algo diferente se passava com Júlia, mas ele estava tão atarefado, que decidiu não lidar com a situação naquele dia. Depois ele conversaria com ela. Júlia, por seu lado, tinha a expectativa de que seu marido imediatamente se importaria com ela e quisesse conversar, saber o que estava acontecendo. A indiferença dele doeu nela mais que tudo, até mais que a manhã do caleidoscópio. Ela ainda tinha esperanças de recuperar seu casamento, de resgatar o que julgava ter perdido. Mas a atitude do marido fez Júlia concluir que ele, de fato, não se importava com ela. Ela pouco significava para ele.

O sentimento de abandono teve um impacto fulminante. Júlia sentiu que perdera seu norte. Perdera a si mesma.



Quando entrou no carro para uma nova viagem de negócios ao Guarujá, no litoral paulista, Júlia mal notou a presença de Sebastian que a aguardava na garagem. Ele iria acompanhá-la naquela visita a um novo cliente.

– Ah… é você. – disse Júlia finalmente reconhecendo o jovem. – Fico feliz, porque você fala pouco. Hoje preciso de silêncio.

Ultimamente Sebastian se alimentava apenas das fantasias que tinha com a sedutora mulher. O perfume de Júlia era o principal detonador da imaginação do jovem enamorado. Ele era realista em suas divagações. Estava sempre presente nele o fato dela ser casada e apaixonada pelo marido. Não se esquecia também que ela era diretora da empresa da qual ele era apenas um revisor júnior. Sebastian tinha a exata noção da realidade que vivia. Por isso, preferia o mundo encantado de seus sonhos. Nos sonhos, seus desejos eram lícitos e possíveis.

Júlia não se deu conta de que fora rude com seu jovem companheiro de viagem. Em sua desordem, ela não se dava conta de coisa alguma que acontecia ao seu redor. O carro percorria rapidamente as ruas de São Paulo em direção ao litoral. Júlia tinha pressa para ir e para voltar. Voltar para o quê? Ir para onde?

A estrada estava vazia. Em pouco tempo haviam chegado próximos ao destino. A estrada vazia, o carro a percorria em ritmo nervoso. Já se percebiam, ao longe, os edifícios que marcavam o contorno da cidade. A estrada vazia, o carro nervoso, era como se fugisse de alguma coisa. Júlia pensava no caleidoscópio refletido na parede de seu quarto quando aconteceu. O carro nervoso e um cachorro atravessando a estrada. O susto, o chiar dos pneus, tudo girando, uma árvore, um som forte, as bolsas de ar explodindo.

Atordoada, Júlia saiu rapidamente do carro. Outros carros paravam para ajudar. Ela então percebeu que Sebastian não saíra do carro. O choque com a árvore se dera na porta ao lado dele. Júlia, desesperada, deu-se conta de que Sebastian estava ferido, desacordado, com o rosto coberto de sangue. A bolsa de ar não o protegera da batida na lateral do carro.



Júlia só foi se acalmar no hospital, quando o médico a informou que as radiografias não revelavam fraturas nem coágulos. Ele recomendou que Sebastian continuasse em observação no hospital até o dia seguinte. Júlia conversou com a tia do rapaz e prometeu que ficaria com ele no hospital e que o levaria para casa no dia seguinte. Já era quase noite quando ela pode entrar no quarto de Sebastian para conversar com ele.

– Me perdoe… – Os olhos de Júlia estavam cheios de lágrimas. – Eu podia tê-lo matado. Sou uma irresponsável em guiar daquela maneira.

– Não foi culpa sua. Foi o cachorro. – Disse Sebastian com dificuldade. Ele tinha muitos hematomas no rosto.

– Mas se eu estivesse guiando devagar, eu teria evitado…

– Por favor, – pediu Sebastian, – não se culpe. Você está aqui cuidando de mim. É o que importa.

– Falando em cuidar de você, – disse Júlia recuperando seu lado prático, – onde está seu cartão do plano de saúde?

– Está na minha pasta que ficou no carro. Procure dentro da carteira. – Os sedativos faziam efeito rápido e Sebastian mal conseguia ficar acordado.

Júlia ficou ao seu lado por mais algum tempo, deu um beijo no rosto de Sebastian que já dormia e saiu apressada do quarto.

A pasta de Sebastian estava junto com os demais pertences, na sala de espera. Júlia sentou-se numa das poltronas e abriu a pasta a procura da carteira com o documento. Ela então deparou-se com um texto bem datilografado. O nome do autor chamou sua atenção: “Ipê Rosa, por Sebastian Lorenzo”. Júlia achou que Sebastian não se importaria se ela lesse seu texto. Ela começava a se interessar pelas coisas dele. Retirou o texto da pasta, juntamente com a carteira. Munida do cartão do plano de saúde, Júlia dirigiu-se ao setor administrativo do hospital.



Já tarde da noite, sem sono, sozinha na ampla sala de espera, Júlia lembrou-se do texto de Sebastian. Ela pegou-o, ajeitou-se na cadeira e começou a ler.

O teor do texto surpreendeu-a de início. Que malandro esse menino!, ela pensava sorrindo. Os homens quietinhos são assim mesmo… Ela se deliciava com a leitura. Ao atingir a metade do texto Júlia, finalmente, se deu conta do que se tratava. Chegou nela como um choque, como algo estrondoso. Rosa era ela! Sebastian descrevia a caminhada que tiveram no bosque do restaurante! Continuou a ler por mais algum tempo, sem acreditar em seus olhos.

– Que infame! – Júlia estava furiosa, sentia-se invadida, desrespeitada, ultrajada.

Ela jogou o texto na cadeira ao lado sem saber o que fazer. Seu primeiro impulso era entrar no quarto de Sebastian, dizer alguns desaforos e abandoná-lo sozinho no hospital. Considerou então que talvez devesse apenas ir embora sem nada falar. Deixaria um bilhete na pasta, junto ao texto. Assim ele saberia que ela o havia lido. Pensou no que poderia escrever. Pegou a caneta em sua bolsa, rasgou uma folha da agenda e escreveu furiosa:

" Somente o perdôo porque você foi, pela manhã, vítima da minha tristeza. Mas você mereceu o acidente. Estamos quites. E não se atreva, jamais, a voltar a escrever essas coisas a meu respeito."

Júlia abriu a pasta de Sebastian e nela colocou o texto com seu bilhete em cima. Fechou a pasta. Parou, indecisa. Abriu novamente a pasta, retirou o texto deixando apenas o bilhete. Dobrou o texto e colocou-o em sua bolsa; em casa ela o destruiria.

Júlia pegou suas coisas, pediu para a enfermeira colocar a pasta de Sebastian no quarto dele e saiu do hospital. Era uma madrugada fresca, litorânea, com cheiro de mar. Pensou em caminhar pela praia, mas o ponto de táxi em frente ao hospital a fez mudar de idéia. Queria mesmo sumir dali. Entrou no primeiro carro da fila e pediu que a levasse para São Paulo. No dia seguinte ela enviaria um carro da editora para buscar Sebastian. Ele provavelmente ficaria se recuperando em casa por alguns dias. Na viagem de volta, Júlia tentava fazer encaixar aquele jovem doce, quieto, com o escritor transbordante de libido que a via com tanto desejo. Já mais calma, ela abriu a bolsa, retirou o texto e recomeçou a leitura.

***

Na manhã em que completou uma semana do acidente, Sebastian acordou sem dores no corpo. Era o sinal de que chegara a hora de voltar ao trabalho. Mas ele não queria voltar. Jamais teria coragem de olhar para Júlia novamente.

Nos seis dias anteriores, Sebastian lembrara-se de tudo com sobressaltos. Era como um filme permanentemente passando em sua mente. A cada momento em que imaginava Júlia lendo seu texto, ele se assustava, seu coração disparava e ele repetia e repetia:

– Estúpido! Estúpido! Pus tudo a perder!

Sebastian sabia que não seria capaz de voltar ao trabalho. Seu sonho de bom emprego e sua carreira de escritor estavam ameaçados. Naquela hora, isso lhe parecia ser a justa punição para tanta estupidez.

Na hora do almoço, Sebastian ouviu de sua tia que haviam telefonado do escritório para saber se ele estava melhor e quando voltaria ao trabalho. Sua tia disse que Sebastian ligaria mais tarde. Foi nesse momento que Sebastian decidiu afastar-se de todos por algum tempo. Ele tinha direito a férias acumuladas. Iria viajar por dois meses. Na volta decidiria o que fazer.

Resoluto, Sebastian telefonou para seu chefe na editora. Todos estavam compadecidos com o que acontecera. Seu chefe concordou imediatamente com o pedido de férias e prometeu depositar seu salário na conta do banco. No mesmo dia, Sebastian despediu-se de sua tia e pegou o primeiro ônibus que parou no ponto. Não sabia para onde ir. Não havia pensado nisso. Tudo o que queria era ficar fora do alcance de todos que o conheciam. Resolveu então passar a noite em algum hotel da cidade. Quando acordasse, ele decidiria para onde ir.


Na manhã seguinte, Sebastian estava bem cedo numa locadora de automóveis. Alugou o carro mais barato que encontrou. Não lhe importava a marca do veículo, tudo o que Sebastian precisava era da mobilidade que o carro lhe daria. Mesmo assim, gastou parte substancial do seu salário no aluguel do carro por dois meses. Saiu de São Paulo pela marginal do Rio Tietê, entrou na Via Dutra e pegou a saída para a Rodovia Fernão Dias. Era o caminho para o sul de Minas Gerais. Era sossego o que buscava.

Na medida em que se afastava de São Paulo, Sebastian ia adquirindo sua costumeira tranqüilidade. Parecia que deixava para trás todos os seus problemas. Ia em busca de paz e equilíbrio. Não queria aventuras.

Após algumas horas na rodovia, ele viu uma placa indicando a saída para uma cidade chamada Três Corações. O nome lhe pareceu sugestivo. Seguiu para lá. Decepcionou-se com o tamanho de Três Corações. Nela inqüiriu sobre alguma cidade menor, mais calma. Indicaram São Tomé das Letras. O nome era perfeito para o jovem escritor. A tarde já começava quando Sebastian chegou na praça principal da cidade. Ficou feliz por descobrir ali uma cidadezinha pequena, simples, com muitos jovens. Estava onde queria estar, embora se sentisse muito diferente dos freqüentadores da cidade. Encontrou uma pousada simples e lá se instalou com seu computador portátil que comprara quando iniciara seu curso de criatividade. Com o pequeno computador, ele poderia escrever onde quer que estivesse. Naquela noite, finalmente, Sebastian dormiu profundamente. Ali não sentia vergonha do passado, nem medo do futuro.



Na manhã seguinte, Sebastian acordou sentindo uma enorme falta de Júlia. Era um sentimento sem medida. Faltava-lhe um pedaço. Lembrou-se do sonho que tivera durante a noite, sua primeira noite na pequena cidade. Era um sonho maravilhoso. Sonhara que estava no hospital e que Júlia estava sentada na cama, ao seu lado, cuidando dele. Ele estava de olhos fechados, mas sentia a presença dela e, em especial, o seu perfume, que prenchia completamente o quarto do hospital. Então, o perfume começou a se tornar mais forte, mais forte, e ele sentiu os lábios dela. Ela o beijava, demoradamente, em seu rosto, próximo de seus lábios. Um beijo trêmulo, úmido, quente.

Sebastian lembrava-se do beijo de Júlia com maravilhosa nitidez. Era uma sensaçao única, forte, definitiva. Ele não queria perder a memória dessa sensação. Ele precisava registrá-la. Tinha que escrever.

Ligou seu computador e começou a datilografar um começo de história que já tinha, palavra por palavra, em sua mente:



" SEMENTES DE ROSA

Dedicado a Rosa, que com suas pétalas vermelhas, mantém pavimentada, até hoje, a passagem entre o real e o imaginário... "



Sebastian recomeçava ali a escrever. Sabia que não voltaria tão cedo a São Paulo. As pendências que existiam na grande cidade teriam que esperar.

***

Júlia passara os primeiros dias que se seguiram ao acidente em estado febril. Lia e relia o texto de Sebastian de maneira obsessiva. Parecia que buscava encontrar nele a chave de sua vida. Herculano viajara novamente e isso a deixara mais em paz com seus devaneios.

Júlia vagarosamente parecia se convencer de que Rosa era a mulher que ela deixara de ser.

Com o passar dos dias, seus sentimentos por Sebastian foram se modificando. A censura paterna que trazia dentro de si começou a fraquejar e ela começou a aceitar a possibilidade do jovem revisor sentir-se fortemente atraído por ela, e talvez até, que ele estivesse apaixonado por ela. Ou seria apenas atração sexual? Era difícil, para ela, imaginar que pudesse ser isso. Júlia, há muito, não se sentia despertando esse tipo de desejo nos homens. Ao contrário, ela havia se tornado uma pessoa recatada, insonsa. Talvez, finalmente, seu pai a aprovasse.

Júlia lia e relia o texto de Sebastian tentando decifrar como ele a via.

Uma enorme frustração tomou conta dela quando soube das férias de Sebastian. Ela tinha que vê-lo. Ela precisava conversar com ele. Queria entender e ser entendida. Sebastian, de uma certa maneira tornara-se o elo que a ligava a seu passado. Ela queria também desculpar-se pelo bilhete e pela forma rude com que o abandonara no hospital. Júlia passou a contar os dias que faltavam para o término das férias de Sebastian.



Herculano voltou de sua longa viagem num final de tarde. Já recuperada, revitalizada e tentando trazer de volta a mulher que fora no passado, Júlia esperou pelo marido com um jantar à luz de velas. Ela usava um vestido negro, justo, longo. Seu corpo estava coberto de uma maneira convidativa, tentadora, profana. Ela sabia usar o poder da sedução feminina.

Herculano gostou da recepção. Durante o jantar, ele admirava incessantemente os detalhes do corpo de Júlia. Ele acompanhava o movimento dos seios da mulher revelados pelo generoso decote. Ele os seguia enquanto ela falava, respirava e se movia. Júlia estava muito agitada. Herculano estava contemplativo, aguardando o momento de desfrutar daquela adorável mulher.

O marido esperou o jantar terminar.

– Quero você de sobremesa, – disse ele levantando-se de sua cadeira e beijando o pescoço da mulher.

Ela deixou-se levar para o quarto. Aguardou imóvel enquanto ele tirava seu vestido, a única peça que vestia naquela noite, e ofereceu-se inteira a ele.

– Quero que você me enlouqueça, como fazia no passado, – implorou ela sem ser ouvida. Puxou seu marido para a cama, sentindo em sua perna que ele já estava pronto para ela.

Herculano estava totalmente tomado pelo desejo, totalmente entregue ao prazer que sua mulher lhe oferecia. Naquela noite, ele queria Júlia como jamais pensara ser possível.

Júlia estava deitada na cama, nua, com seus olhos fechados. A mulher ensaiava sua entrega total. Ela forçava a viagem, o vôo que mudaria sua vida. Herculano beijava seus seios, enquanto suas mãos exploravam todo seu corpo. Júlia sentia que, naquela noite, ele a queria como antigamente, e acreditava que se ela permitisse, o mesmo aconteceria com ela.

Júlia sentiu os lábios de Herculano descerem por sua barriga. Era seu ponto fraco, ela sabia. Ela sempre perdia o controle quando era beijada na lateral de seu corpo, na região do ventre. Ela aguardou, antecipando.

De olhos fechados, Júlia teve a sensação de uma pequena claridade através de suas pálpebras. Ela abriu os olhos e procurou a fonte do brilho. Era o relógio de Herculano. Foi inevitável olhar para a parede. Novamente nela se formava um caleidoscópio de cores brilhantes refletidas pelo cristal do relógio do marido. Sebastian surgiu inteiro em sua mente. Surgiu sorrindo, caminhando a seu lado no bosque, em direção à clareira de Ipês. Seria ela capaz de se reencontrar com Sebastian? Seria o jovem revisor capaz de sentir-se atraído por ela, mesmo sem o jogo de sedução que parecia mobilizar seu marido?

Júlia deu-se conta de que entre ela e Herculano já não havia mais volta. Suas estradas haviam se separado definitivamente. Tinha que lidar com isso. Tudo o que precisava naquela hora, era de uma noite de preparação. No dia seguinte ela falaria com Herculano.

– Agora é minha vez, – disse Júlia, resoluta, empurrando delicadamente a cabeça de seu marido que beijava seu corpo.

Ela o fez deitar-se de costas na cama. Os lábios ainda vermelhos de Júlia encontraram o corpo de Herculano, envolvendo-o inteiramente. Em poucos minutos ele gozava.

– "Sei mesmo como fazer isso… pareço até profissional… " – pensou ela, orgulhosa de seu talento.

Ela já não sofria mais.

Júlia, imediatamente, levantou-se para tomar um banho. Queria tirar de seu corpo o cheiro daquela noite. Queria tirar de si o cheiro daquela vida. Quando voltou para a cama, Herculano dormia profundamente.

Júlia ficou na cama até tarde na manhã seguinte. Foi um sono reparador, depois de tantas noites mal dormidas. Quando se levantou, Herculano já havia saído. Tomou seu café demoradamente enquanto planejava o que teria que ser feito nos próximos dias.



Chegou ao escritório bonita e radiante. Todos notaram a diferença. Ela se sentia viva novamente. Entrou no seu escritório, consultou sua agenda e ligou para Dona Consuelo, a tia de Sebastian. A mulher reconheceu a voz de Júlia.

– A senhora sabe onde ele está?

– Não, madame. Não sei. Ele saiu sem dizer para onde iria.

– Mas ele nunca ligou para a senhora?

– Ele liga toda semana, em geral aos sábados.

– A senhora jamais perguntou onde ele está?

– Não. Se ele quisesse dizer, ele diria sem eu perguntar.

Júlia, frustrada, desligou o telefone, após pedir para dona Consuelo dizer a Sebastian que ela queria falar com ele. Júlia não era mulher de se conformar, de esperar. Sua necessidade de falar com Sebastian a dominava por inteiro.



Nos dias que se seguiram, Júlia conversou demoradamente com Herculano. Reviraram suas vidas dispersas e seus planos solitários. Apesar de casados há muitos anos, eles não tinham planos de casal para o futuro. Isso, para Júlia, era a prova de que eles não mais estavam casados. Pelo menos, não como ela acreditava ser um casamento. Eles apenas conviviam um com o outro, mas cada um tinha vida independente, com planos próprios que não incluiam o outro. Júlia pediu alguns meses para pensar melhor. Ela mudou-se, com suas coisas, para um pequeno apartamento próximo da editora. Imediatamente telefonou para Dona Consuelo pedindo a ela que informasse Sebastian de seu novo endereço e telefone.

Júlia estava recomposta. Finalmente vivia a vida que queria e gostava de si mesma nessa vida. No trabalho, sentia-se cada vez mais produtiva. Fora do trabalho, curtia a calma de seu apartamento, gostava da vida pacata, sem agitações sociais. Vivia muito bem sozinha. Apenas uma coisa lhe faltava: Sebastian. A qualquer toque de telefone, seu coração entrava em sobressaltos.



Era um final de tarde como outro qualquer, quando o diretor administrativo da editora lhe telefonou.

– Achei que você gostaria de saber que aquele jovem revisor, o que sofreu o acidente, ligou. – A voz do diretor era mecânica. Ele cumpria a tarefa de avisar Júlia.

O coração de Júlia disparou. Ela parecia uma adolescente, ansiosa, aguardando que o homem continuasse falando. Com um sinal de voz ela o fez entender que sabia de quem estava falando.

– Ele disse que está bem, vivendo fora de São Paulo, e que decidiu mudar sua vida. Ele pediu demissão do trabalho.

Júlia sentiu-se mal. Parecia que o chão desaparecera debaixo de seus pés.

– Ele lhe forneceu seu novo endereço? – perguntou Júlia, fazendo um enorme esforço para falar sem que o homem notasse o quão abalada ela estava.

– Não. Ele pediu que enviássemos suas coisas para a casa da tia. Tentei falar com a mulher, mas parece que a senhora não gosta muito de nós e não quis colaborar. Eu gostaria de ter certeza de que o jovem está bem mesmo.

***

A vida na cidade de São Tomé das Letras revelara-se perfeita para o jovem escritor. Já havia se passado seis meses desde sua chegada na cidade. Sebastian conseguia viver com o pouco dinheiro que ganhava com trabalhos esporádicos. Dela não saíra uma única vez. Escrevia crônicas para jornais do interior e as vendia através da Internet. Utilizava inúmeros pseudônimos, conforme o teor do texto e conforme quem o contratava.

A maior parte de seu tempo era gasto com o seu livro. Sementes de Rosa tornara-se sua companhia permanente. Com o livro ele se mantinha conectado com a mulher que amava.

Por muitas vezes ele pensara em telefonar para Júlia. Imaginava desculpas e razões para ligar. Mas, em seu bilhete Júlia fora definitiva. Não se atreva a jamais se aproximar de mim… Era o que Sebastian entendera.

Ele sempre perguntava para sua tia se alguém ligara da empresa ou se ela recebera algum bilhete. Mas a mulher sempre dava a mesma resposta:

– Não, ninguém o procurou. Esqueça a empresa. Esqueça o trabalho de revisor, de escritor. Torne-se um administrador de empresas como foi seu tio.



Finalmente chegou o dia em que o livro ficou pronto. O sentimento de alegria, de conforto, disputava com uma sensação de vazio, de perda. Sebastian não entendia direito o que se passava com ele. Talvez ele não quisesse terminar.

O livro parecia um conto de fadas. Era o relato de um velho. Falava dos episódios de sua vida e de como eles foram marcados pela paixão por Rosa. Trazia a emoção revivida por um homem à espera de seu centésimo aniversário em Barcelona. O velho, quase centenário, mostrava como o sentimento por essa mulher trouxera, para sua jornada, profundidade e significância. Era a história de uma vida moldada pelo encantamento e pelo medo, mãos direita e esquerda da paixão.

O vazio deixado pelo término do livro foi substituído pelo trabalho de encontrar um editor. Sebastian escreveu para muitas editoras, perguntando sobre possibilidades de publicação de seu livro. Apresentava até um resumo dele. Sequer obteve respostas. Obstinado, Sebastian insistia.

Sebastian soube do concurso literário pela Internet. Criou coragem e submeteu seu texto. Um mês depois, Sebastian recebeu um telefonema de um representante da comissão julgadora. Sementes de Rosa ganhara o concurso literário. Muito elogiado, o texto foi recomendado para publicação por um corpo de jurados famosos. Não tardou muito ele recebeu pelo correio o contrato de uma grande editora carioca. Seu livro seria publicado.

Feliz, Sebastian sonhava em comemorar sua conquista. Qualquer comemoração só faria sentido se fosse ao lado de Júlia, a mulher que o inspirara, mas ele havia decidido que Júlia jamais saberia do livro. Ele o fez publicar sob o pseudônimo de Lorenzo de Barcelona. Era a fórmula que ele encontrara para proteger a identidade de Júlia e de atender, pelo menos em parte, seu pedido de que não escrevesse sobre ela.

Sebastian sabia que ele não atendera o pedido, quase uma ordem, que Júlia fizera através do bilhete deixado na pasta. Ele continuara a escrever sobre a paixão que ela despertara nele. Seria isso escrever sobre ela? Nada de realmente concreto dela existia no livro. Apenas a imagem dela criada por seu coração apaixonado. Ali não existia Júlia, mas sim o produto da imaginação e dos desejos do autor. Júlia veria dessa forma? Sebastian temia que não.

Nos meses que se seguiram à publicação do livro, os dias de Sebastian eram tomados respondendo mensagens eletrônicas de fãs e críticos. Protegido pelo pseudônimo, as pessoas apenas o contactavam através da Internet, pela caixa postal de Lorenzo de Barcelona. Se algum dia ele encontrasse Júlia, ele queria ser capaz de explicar tudo a ela, antes que ela lesse o livro. Estava certo de que, se ele tivesse a chance de explicar, ela certamente não se ofenderia com o livro.


Numa manhã fria, daquelas de muita neblina, Sebastian caminhava pelas estradas de terra que serviam aos sítios da região, ouvindo os pássaros e admirando a natureza. Foi nessa caminhada que ele se deu conta de que na semana seguinte completaria um ano do dia em que caminhara ao lado de Júlia pelo bosque de Ipês. Essa lembrança fez com que Júlia e a falta que ela fazia tomassem conta de seu espírito como uma avalanche. Transtornado, ele se perguntou se, tal como o personagem de seu livro, ele estaria condenado a viver o resto de seus dias relembrando os poucos momentos, fugazes, que tivera com a mulher amada. Seu personagem, pelo menos, amara e fora amado. Ele apenas amara e fantasiara. O seu era um amor solitário, irreal.


Ao chegar em seu quarto, já transformado em escritório, Sebastian começou a responder as mensagens eletrônicas que recebera. Era um hábito adquirido nos últimos meses. Ele respondia mecanicamente, sem pensar. Afinal Lorenzo de Barcelona era mais um personagem que criara. Nada era real em sua vida. Nem ele próprio.

Então, ele se deparou com a mensagem de Júlia.

Dizia apenas:

" Sebastian
Sei que é você. Li seu livro, emocionada. Quero te ver. Responda-me se você também quer. Não irei invadi-lo, se for seu desejo.
Júlia."


Sebastian ficou paralisado. Parecia não entender o que a tela de seu computador mostrava. Com o olhar perdido e as emoções em desvario, Sebastian estava imóvel. Apenas seus dedos se moviam, acariciando vagarosamente as bordas de um exemplar do livro Sementes de Rosa que se encontrava sobre a mesa. Tudo era silêncio. Naquele instante, seu mais intenso e profundo desejo estava sendo atendido, mas não era alegria o que ele sentia. Era medo. Medo do que poderia acontecer, medo de perder a mulher amada pela segunda vez.

Aos poucos ele se recuperou e vagarosamente, digitou:

" Júlia
Eu gostaria de vê-la.
Sebastian "

Nada mais conseguiu escrever. Ficou sentado na sua mesa, em frente ao computador, sentindo o coração querendo sair de seu peito. Seu olhar estava longe, como se tivesse se destacado dos olhos. Não se levantou. Não pensava. Apenas aguardava. Passaram-se horas. Um pouco mais lúcido, ele já começava a pensar em enviar uma nova mensagem, talvez mais longa, quando outra mensagem de Júlia chegou:

" Sebastian
Estou muito feliz em saber que voltarei a vê-lo, que saberei de você e principalmente que poderei explicar de mim. Você aceitaria um convite para almoçarmos na próxima semana, na quarta-feira (um ano!), no nosso restaurante da estrada? Diga que sim, por favor.
Júlia "

Esta segunda mensagem tirou Sebastian do estado de catatonia que se encontrava. Ele a leu com agitação. Sentia a ânsia de explodir. Ele queria vê-la naquela hora, tinha a certeza de que não resistiria esperar por tanto tempo. Uma semana seria uma espera longa demais!

Sebastian não dormiu naquela noite. Júlia estava presente a seu lado. Júlia, seu doce amor.

Seguiram-se os preparativos para a viagem. Ele ligou para São Paulo e avisou à tia que iria visitá-la. A tia prometeu fazer uma festa e perguntou-lhe se ele finalmente decidira cursar administração de empresas. Dona Consuelo não sabia do livro publicado pelo sobrinho. E talvez, mesmo que soubesse, pensava Sebastian, não daria a menor importância.



Na manhã de quarta-feira, muito antes da hora marcada, Sebastian caminhava pelo Bosque de Avalon. Ele olhava à sua volta tendo a certeza de que aquele lugar era encantado. Ele chegou à clareira e, emocionado, viu a árvore sob a qual, ele fizera amor com Júlia. Fora aquele pé de Ipê quem colocara a roda da vida em caminhos novos, diferentes, inusitados.

Mais tarde, sentado na entrada do bosque, próximo ao restaurante, ele viu aproximar-se um Audi. Era seu conhecido. Não teve forças para se levantar. Sabia que o que existia de mais precioso no mundo estava dentro daquele carro.

Então seu coração engasgou. Do carro desceu Júlia. De longe ele a viu: os cabelos negros, os lábios vermelhos, o sorriso maravilhoso. O olhar curioso parecia procurar por ele. Era desconcertante, parecia fora de lugar, mas ao mesmo tempo tão preciso, tão perfeito! Seu vestido era do tipo indiano, azul claro, à moda antiga. Justo em cima, bem decotado, e longo em baixo, rodado. Ela calçava sandálias. Trazia em suas mãos uma rosa vermelha. Sebastian acenou para Júlia. Ela chegara para tornar real a sua mais desejada fantasia.



FIM


Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui