Usina de Letras
Usina de Letras
154 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62190 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50596)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->A Contracultura no Brasil -- 20/03/2002 - 10:29 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Analisar a contracultura no Brasil talvez seja um intento pretensioso, mas como a modernidade urbana introduzida pela contracultura chegou para ficar nas nossas grandes cidades, é importante interpretar o fenômeno, desconstruindo os clichês veiculados habitualmente nos meios de comunicação.

Para falar em contracultura no Brasil e, querendo ir além do mero registro de um modismo, precisamos recorrer a textos de Paulo Coelho e Raul Seixas. Como boa parte do meio intelectual, artístico e jornalístico, Paulo Coelho e Raul Seixas, dois artistas intelectualizados, adotaram gestos e gírias contraculturais, lançaram um manifesto, e começaram a fazer sucesso com músicas e alguns textos em que narravam experiências, atitudes e indagações que marcaram o período, especialmente a transformação de valores que o fim da década de 60 assistiu. Em Abril de 1972, foi publicado o segundo número da revista 2001, que procurava também retratar o pensamento e o comportamento da chamada “contracultura”. O texto cita Howl (Uivo) de Allen Ginsberg:



Digo que estou o tempo todo na corda bamba, e que já vi os melhores cérebros de minha geração destruídos pela loucura ou pelo esquecimento. Eu não pertenço à geração da espada nem à geração da flor.

Não dancei rock, não pedi esmola viajando, não briguei em passeatas.

Tudo foi acontecendo um pouco à margem, e antes que acabasse eu já tinha consumido.

Por isso não pegava nem na pedra nem na guitarra. Como eu sofri, meu Deus, por causa disto.

Mas o fato é que tudo acontecia dentro de mim. Só que em algumas horas eu devorava aqueles anos inteiros da vida de outras pessoas.



O texto assume a postura de “anomia” social. O narrador está contra as regras vigentes na sociedade, mas não sabemos se tem algo a propor:



Não vim aqui para mudar a lei, nem para estar de acordo com ela!

Eu vim para contar o fim da história, escrever os evangelhos que estão faltando

Eu sou o grande mito da nossa Era.

Eu sou o Jovem.



No entanto, eles são dois artistas que importaram a contracultura diretamente da Europa e EUA, recomeçando do zero esta discussão e ignorando as polêmicas instauradas pelos tropicalistas dos anos 60 em diante. Tampouco põe em discussão o cinema “udigrudi” ou a poesia marginal dos anos 70. O ato de lançarem um manifesto os remete ao modernismo de 22 e ao tropicalismo, ainda que o diálogo não se estabeleça. Nos textos ressoa a linguagem bíblica, convivendo com a negação da modernização consumista proposta pelo regime militar, e o resgate do mau gosto, dos padrões da subarte:



Eu falo com você numa linguagem bem simples, dialética do conhecimento misturada com cafonice de escola de samba no Leblon. (...) Eu tenho vivido neste tempo. Entre pessoas que me dizem que se eu comprar aquela geladeira vou ter felicidade o ano inteiro. (...) Eu tenho vivido num tempo difícil de caminhar pelas ruas sem que alguém largue todas as suas preocupações cotidianas e venha me ofender. De pessoas que não gostam de mim porque uso cabelos compridos.



O pensamento aí exposto parece mais um mero reflexo da instalação de uma indústria cultural no Brasil. Oscila entre o misticismo e negação de uma vida de integrados ao capitalismo em prol da loucura. Num tom messiânico, profetiza a chegada do jovem como um novo sujeito na sociedade. Nestes anos se dava efetivamente a entrada do público jovem no mercado consumidor. Vagamente, propõe a mistura da erudição com a cultura de massa, nos moldes tropicalistas. Podemos supor que, assim como o cinema udigrudi se propõe em 1969 como “um passo adiante” do Cinema Novo, este Manifesto de 2001 evoca um messianismo jovem, e considera a problemática do tropicalismo versus cultura nacional-popular irrelevante. Na Alocução Final há algumas “revelações” mais claras:



Cada homem tem seu caminho e sua forma de agir. A nossa foi Krig-Há. Destruiremos, sem compromisso algum, as crenças e opiniões arraigadas durante séculos de cultura. Somos mais parecidos com bárbaros que com Robespierre, aprendemos a ler, no grande livro, os segredos da chuva e das pedras. Krig-Ha é apenas o estágio do momento.



Aqui, os adeptos da contracultura explicitam que regrediram até antes dos conceitos de esquerda e direita serem sistematizados. A destruição violenta da tradição, a atração pelo não-intelectivo, faz com que atirem toda a boa herança ocidental fora, numa tentativa de resolver uma crise que, fundamentalmente, é a crise da civilização ocidental. Sem adotar o código estabelecido nem criar um novo, ficam mesmo na corda bamba, numa posição anarcóide. O Manifesto pode ser lido à luz da frase de Gramsci: “enquanto o antigo permanece em decadência e o novo ainda não surgiu, aparecem uma vasta gama de sintomas mórbidos”. O rock através do qual os dois hippies veiculam suas idéias caminha para se tornar, a partir dos primeiros anos 70, uma subcultura dominante a nível mundial, por satisfazer as necessidades dos meios de comunicação. Nos anos 80, a cultura Pop, que estava penetrando no Leste Europeu desde 1968, quando as boates de Praga começaram a tocar canções dos Beatles, irá solapar o leninismo no Leste Europeu. A vitória do neocapitalismo em 89 será também a vitória da contracultura domesticada. Depois da queda do Muro de Berlim, o presidente tcheco Vaclav Havel se encontrou com Lou Reed, e a mídia anotou a importância dos fã-clubes de John Lennon na derrubada do comunismo. No lugar de Lênin, Lennon. A contracultura, de inimiga do consumismo imperialista, de ameaça para a família patriarcal nos anos 60, se converteu em contracultura oficial nos anos 80/90.

Um artigo chamado As Sociedades Alternativas foi publicado na Revista Planeta em 1974, tentando organizar o pensamento e as tendências de algo que os estudiosos chamavam As Sociedades Alternativas. Vou tentar destacar e analisar alguns de seus trechos mais interessantes. Paulo e Raul mostram uma tentativa de compreensão daquele momento crucial, quando o “milagre brasileiro” ia acabando em meio à crise do petróleo em 1973. Raul e Paulo acreditaram na contracultura como a única utopia que valia a pena ser tentada daí por diante:



O mundo parece desabar numa crise, provocada pelo próprio homem. O sonho acabou, como disse John Lennon. Agora, as pessoas estão em busca de caminhos, objetivos e realização pessoal. Todo o conforto da idade tecnológica não é suficiente, se falta ao homem o essencial: a descoberta de si mesmo.



Outro trecho mostra como a crença dos hippies era uma radicalização da ideologia liberal, caindo num individualismo abstrato:



A sociedade deveria adaptar-se às necessidades humanas, e não vice-versa.(...) Todos os movimentos políticos tradicionais partiam do princípio de que a sociedade era a justificativa para a existência do homem. O hippismo inverteu o processo: o homem era a única justificativa para a existência da sociedade.



Nota-se aqui, inclusive, um desejo de ruptura com os movimentos políticos tradicionais, deixando de lado as discussões em torno da relação colonial que o Brasil mantinha (e mantém) com os países desenvolvidos, em especial os EUA. A discussão não é retomada do ponto onde fora deixada pelos tropicalistas em 1968. Não há discussão de uma linha evolutiva para a música popular brasileira. As singularidades nacionais são abandonadas em favor do cosmopolitismo que alinharia os jovens brasileiros aos jovens europeus e norte-americanos. Nem mesmo Umberto Eco, com sua dicotomia “apocalípticos versus integrados”, é citado nesses textos. Mas Raul e Paulo são nitidamente integrados e favoráveis à cultura de massas. Não propõem a revolução política. Propõem a mudança de costumes, de cultura. Pretendem substituir a cultura burguesa pela subcultura jovem. E creio que o texto se equivoca quando postula que: “A primeira manifestação significativa de mudança de área de contestação foi o movimento hippie.

O individualismo humanista, o retorno à natureza, a valorização da arte e do trabalho manual, tudo isso já está em Walden, ensaio de Henry David Thoreau, uma obra escrita no século XIX. A significativa contestação de Rimbaud e Lautreámont no fim do século passado mostra que as raízes da contestação comportamental eram bem mais antigas. Também são dignas de nota as atitudes contestatórias dos beatniks e rebeldes sem causa nos anos 50 americanos.

O critério escolhido para analisar como “significativa” a mudança parece ter sido o alcance da mensagem contestatória, que extravasou do âmbito de uma elite cultural para chegar às massas nos anos 60. Os jovens brasileiros de classe média se viram tentados a “desbundar” diante dos modelos mostrados pelos meios de comunicação. Não levaram em conta o fato de estarem vivendo em uma sociedade subdesenvolvida onde era (e ainda é) impossível ter os mesmos padrões de consumo da Europa e Estados Unidos. Aí entramos em uma questão que o texto não esclarece:



As diferenças sócio-econômicas entre os vários países onde o hippismo floresceu, a grande revolução provocada pelos meios de comunicação (a famosa ‘aldeia global’ de Mcluhan) permitiu que seus valores fundamentais predominassem, independente do local onde estivessem sendo aplicados.



Devido às evidentes diferenças sócio-econômicas e culturais, o fenômeno hippie é um signo das diferenças de classe, um modismo cultural. A postura acrítica frente às generalizações de Mcluhan permite que analisemos o movimento das Sociedades Alternativas como integrado, postulando a adesão sem restrições à cultura de massas.

Devido à dialética da colonização, os valores da contracultura chegaram aqui com sinal trocado. Se os jovens da classe média brasileira apareciam cabeludos, isso era um signo de modernidade, a mensagem então era que aquele jovem de cabelos longos era sintonizado com o que acontecia na Europa e nos Estados Unidos, diferenciando-se do subdesenvolvimento ao redor. Para os militares, esses cabelos compridos eram reveladores de um inconformismo com o moralismo patriarcal. O regime de 64 reprimia qualquer manifestação de oposição ou protesto aleatoriamente. No entanto, a ditadura mostrou certa conivência com a mudança dos costumes, desde que não fosse politizada. Um exemplo foram as pornochanchadas que infestaram as telas de cinema do país a partir de 1970.

A vitimação pelo obtuso regime militar não queria dizer que os hippies fossem necessariamente símbolos de um inconformismo existencial profundo, uma postura radical de oposição.

A maioria dos adeptos da contracultura brasileira apenas manifestava o desejo de imitar os jovens europeus e norte-americanos, cujas roupas, preferências musicais e hábitos eram vistos como o supra-sumo da modernidade. Os militares estavam comprometidos com os valores patriarcais de tradição, pátria e família desde 1964. A situação era peculiar, e os militares não distinguiam hippies e comunistas. O inimigo comum serviu para fazer uma aproximação entre a juventude descolada e a politização à esquerda, que de outro modo não se daria facilmente. Nos EUA também houve quem pretendesse fazer a revolução política e de costumes. Eram os yippies liderados por Jerry Rubin e Abbie Hoffmann. Estes dois líderes juvenis representam bem o fracasso desta vertente do underground: Rubin tornou-se executivo da Wall Street em 1980; Abbie Hoffmann se suicidou.

O que Paulo e Raul não previram é que mesmo a ditadura militar brasileira pudesse tentar absorver a contracultura, através do estímulo a conjuntos como Os Incríveis, que transformaram o iê-iê-iê da Jovem Guarda em canção de exaltação ao milagre brasileiro. Equivaliam-se os distintivos da juventude de classe média: Jimmy Hendrix e a modernização conservadora de Médici eram ambos “modernos” nas marchinhas ufanistas de Dom e Ravel. O mesmo disco que continha a marchinha Eu Te Amo, Meu Brasil tinha também uma homenagem a Hendrix, morto naquele ano de 1970: a canção chamava-se Adeus, Amigo Vagabundo. Em 1970, sob as asas da modernidade, contracultura e tecnocracia enfim se completaram.

O texto de Raul e Paulo é lúcido quando cita a conclusão de Wilhelm Reich que precisamos levar em conta: aquela que observa que a repressão sexual é uma das principais molas propulsoras da sociedade atual. Os adeptos da contracultura ignoram, no entanto, que a sociedade de consumo lançou mão de uma certa “dessublimação repressiva”, como dizia Marcuse. A derrocada do patriarcado foi contornada pela sociedade de consumo, que passou a comercializar a sexualidade humana, num avanço impensado que horrorizaria Marx. Mais do que nunca, o capitalismo lucra com o fetichismo da mercadoria. A repressão sexual, depois da revolução dos costumes, não existe mais. Passa a existir uma falsa tolerância, uma limitada permissividade.

Outro agravante é a inadequação da proposta de liberação sexual no Brasil. Aqui, os valores morais e religiosos nunca se arraigaram como nos Estados Unidos. Para isso colaborou o sensualismo sentimental lusitano, a falta de orgulho racial dos portugueses, o catolicismo mais concentrado no ornamento e na cerimônia do que a vivência da fé cristã, o patriarcalismo polígamo. Aqui, o amor livre dos hippies descambou na erotomania e na pornochanchada.

O texto também avança no sentido de analisar a absorção da contracultura pelo capitalismo. Ele anota que:



Os hippies, sentindo-se seriamente atacados, passaram a radicalizar a contracultura, proclamando-a superior a tudo. A contestação transformou-se em romantismo, cultuando macaquinhos em posição de ioga, consumindo incensos, gurus e conceitos completamente distorcidos. Quando o jovem compreendeu que estava sendo atacado, ao invés de procurar controlar as destrutivas forças da sociedade de consumo, resolveu fugir, no tempo e no espaço, em busca de um primitivismo marginal. O hippie passou a alienar-se por completo dos movimentos sociais e assumir esta alienação como eterna e admirável.



Essa segunda etapa, a da contestação já digerida e institucionalizada, seria vivida não só pelos hippies como pelas gerações mais jovens do que a de 68. Coelho passou, a partir de 1974, a fazer o jogo da indústria cultural. Foi conformista alguns anos, tentando alcançar uma completa adaptação, um total enquadramento. Foi executivo de uma multinacional e viveu “o delírio do poder mundano”, em suas próprias palavras. Até que percebeu que poderia retomar alguns elementos da contracultura, diluindo-os. E se tornou um escritor fenômeno, propondo basicamente o escapismo místico e a resignação com a ordem estabelecida. Raul Seixas continuou na música, mas a postura redundante e conformista de Paulo Coelho o fez romper a parceria em 1978.

Deixou de existir, hoje em dia, a possibilidade de formação de guetos “antenados” através da identificação de costumes, da maneira como os hippies o faziam:



Se eu via uma moça ou um rapaz usando uma roupa que me era familiar - calça lee, camisetas, cores - eu iria imediatamente falar com ele e ele me respondia e participava dos meus conceitos, porque nós já tínhamos inconscientemente combinado que usar aquela roupa era participar de uma idéia.



Esta “idéia” se massificou cada vez mais com o passar do tempo, ultrapassou os pequenos grupos e alcançou a juventude de classe média como um todo. Logo surgiram os hippies de boutique, os meros seguidores de um modismo que a juventude adotava. Quaisquer intenções mais politizadas se diluíram. Um vago anarquismo, roupas coloridas, cabelos compridos, gírias e drogas foram elementos que penetraram os meios de comunicação desde então, permanecendo hegemônicos até hoje. Essa tentativa de contestação ficou, a meu ver, obsoleta; os meios de comunicação de massa e a publicidade se apropriaram dos “distintivos” da juventude prafrentex e estes da noite para o dia foram transformados em produto para todas as idades.

A geração dos nascidos no pós-guerra está hoje assistindo o conservadorismo político conviver com a liberação sexual. Depois dos anos 60, progressismo cultural e progressismo político nunca mais andaram de mãos dadas. É bom lembrar que quando Trotsky e André Breton escreveram juntos um manifesto que unia a vanguarda política com a cultural em 1938, selaram uma aliança e uma visão de mundo que a geração 68 também absorveria, herdando a convicção de que a revolução política marchava junto com a revolução cultural. Depois deles, o dilúvio: a ligação entre surrealismo e comunismo é algo esquecido hoje em dia; o surrealismo foi absorvido e até em propagandas de cigarro se registram elementos desta corrente artística. O comunismo se esterilizou na sua versão stalinista e não conseguiu se modernizar, prosseguiu com o realismo socialista e acabou desmoronando em fins da década de 80.

Nas duas últimas décadas do século, a mesma tribo que se reunia em torno de sexo, droga e rock passou a se reunir em torno de uma Nova Era, agora inteiramente de acordo com a ordem estabelecida. De fato os contestadores de ontem viraram os poderosos de hoje, pregando otimismo e a aceitação das liberdades - e que o poder oferece às novas gerações em troca de conciliação. Tendo vivido uma época de liberação sexual, os jovens dos anos 60, pais dos jovens dos anos 90, se compadecem destes filhos que foram obrigados a viver um “nada”, um tempo sem utopias e oferecem-lhes uma imagem distorcida do que foram os anos 60. Da época trágica que foi aquela, eles devolvem apenas o sonho cor-de-rosa. O maior exemplo deste processo foi o seriado Anos Rebeldes, de autoria de Gilberto Braga. Como dizia Marx, a história só se repete como farsa. Os anos 60 só vão voltar como uma farsa cujo pano de fundo esconde a tragédia.

Nos países capitalistas centrais -- e especialmente nos EUA -- a mudança foi anterior, passou-se de outra maneira e implicou em uma transformação menos abrupta do que no Brasil. Há, inclusive, alguns teóricos desta transformação, como Theodore Roszak e Charles Reich. Enquanto Roszak observava as deficiências da “nova geração”, seu gosto pelas drogas e sua adesão irracionalista com apreensão, Charles Reich, professor de Direito da universidade de Yale, analisava tudo com excessivo otimismo a priori.

Reich divide a nação americana no final da década de 60 em três mentalidades: a mentalidade rural (consciência I), a mentalidade urbana (consciência II) e a mentalidade da nova geração (consciência III). Ele observa que:



Se se escrevesse uma história da Consciência III, a mesma mostraria uma progressão fascinante. As fontes mais antigas são encontradas naqueles indivíduos excepcionais que existem em qualquer tempo e qualquer sociedade: os artistas, os homens de alta sensibilidade, os atormentados. Thoreau, James Joyce e Wallace Stevens falam todos diretamente à Consciência III. O Holden Caulfield de Salinger foi uma versão de ficção dos primeiros jovens precursores da Consciência III. Talvez houvesse sempre um fundo de Consciência III em todo adolescente, mas isso normalmente desaparecia sem demora. Holden vê claro através do mundo estabelecido; são todos ‘falsos’ e é impiedoso em sua sinceridade. Mas que podia alguém como Holden fazer? Uma subcultura de beats se desenvolveu e um mundo beatnik floresceu brevemente, mas para a maioria isso representou apenas mais um beco sem saída. Outros Holdens poderiam repetir a profissão jurídica e tentar ensinar literatura ou escrever ao invés disso, deixando os cabelos crescerem um pouco. Mas permaneceram como indivíduos separados, em geral procedentes de ambientes familiares ricos, mas infelizes e atormentados, e pagavam as suas divergências com a sociedade por meio do isolamento.7 ( REICH, 1972: p.179)



Charles Reich parece ter uma visão elitista, ignorando as possíveis repercussões distorcidas da revolução dos costumes nos países do chamado terceiro mundo ou mesmo para os jovens americanos de classes mais baixas. Um caso espantoso como o de Charles Manson, jovem homicida que usava cabelos compridos e morava em comunidade, foi ignorado por Reich. Para os filhos de ambientes familiares ricos, a mudança dos costumes foi vivida como exaltante e positiva. Para um white trash (branco pobre) como Manson, foi um mergulho em drogas, orgias e satanismo.

Charles Reich julga identificar três “níveis de consciência” presentes nos Estados Unidos de 1970. Ele aceita que a consciência é formada por condições sociais e econômicas:



Esses três tipos predominam atualmente nos Estados Unidos. Um deles se formou no século XIX, o segundo na primeira metade deste século e o terceiro está surgindo agora (no ano de 1970). A Consciência I é a visão tradicional do agricultor, do pequeno empresário e do operário que está tentando progredir. A Consciência II representa os valores de uma sociedade organizacional. A consciência III é a nova geração.8 (REICH, 1972, p.179)



E a revolução dos costumes, dissociada da política, trouxe liberdade mas baniu a gratuidade. Agora nada é proibido em termos de sexo, desde que se possa pagar.

Aqui no Brasil, tivemos o fenômeno tropicalista, integrado nos meios de comunicação de massa. No entanto, julgo observar um fenômeno interessante: algumas canções tropicalistas sintetizam melhor o espírito do tempo (no caso, os anos 60) do que as canções do mais emblemático disco dos Beatles, o Sergeant Pepper’s.

A canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, tem uma sensibilidade totalizante que a fragmentação e os delírios nostálgicos dos Beatles desconhecem. Esta canção, em especial, demonstra inspirar-se no Sergeant Pepper’s pela presença ostensiva das guitarras, no visual com o qual os músicos se apresentaram, nas imagens sugeridas pela letra. Assim como os tropicalistas, os Beatles também buscavam no estrangeiro elementos essenciais de suas músicas: a música negra americana, o misticismo e o visual orientalizantes, a batida reggae de Obla-di Obla-da são importações. As influências são oriundas de ex-colônias inglesas, respectivamente os EUA, a Índia e a Jamaica. Mas o conjunto inglês reprocessava e transformava em álbuns de sucesso mundial estas influências. Como diz Ferreira Gullar:



Existem, assim, uma cultura e uma arte internacionais, que são a expressão das várias culturas e artes dos diferentes povos e nações. Inevitavelmente, por razões objetivas, preponderam, sobre as demais, tendências e manifestações das áreas mais desenvolvidas dos grandes centros artísticos e culturais do Ocidente. Muitas dessas expressões hoje sofrem inclusive a influência dos países subdesenvolvidos, cuja presença ativa no mundo já não pode ser ignorada. Na maioria dos casos, no entanto, os países subsenvolvidos são utilizados como ‘matéria’ nas expressões artísticas dos povos desenvolvidos que nos devolvem - um pouco como fazem com os minérios - a nossa própria matéria-prima elaborada e industrializada. (Esse é, mais especificamente, o caso da música popular e, sob certos aspectos, o do cinema.) (...) ( GULLAR. Editora Abril: 1981: p. 90.)



Devido ao inimigo comum representado pela ditadura militar, a revolução dos costumes tomou uma coloração esquerdista. E isso foi o que tornou Alegria, Alegria uma música de tamanha penetração. Porém, Caetano não estava correndo na contramão naquele momento, em 1967, pelo contrário, estava aderindo aos processos triunfantes de nosso tempo. Nos países capitalistas avançados como a Inglaterra, a música popular e o meio artístico estavam bem menos politizados. Os Beatles obtiveram reconhecimento unânime já nos primeiros anos de sua carreira, inclusive oficialmente, pela monarquia inglesa, já que foram condecorados no palácio de Buckinhan. Era impensável que Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros tropicalistas obtivessem algum reconhecimento oficial em 1967; só o obtiveram nos anos 90, com Fernando Henrique Cardoso na presidência. Os tropicalistas foram inicialmente hostilizados por artistas importantes, como Chico Buarque e Geraldo Vandré, quando espalhafatosamente deram início ao descentrado “movimento”. Os Beatles foram, por outro lado, imitados até por conjuntos concorrentes, como os Rolling Stones - e por garotas eufóricas, rapazes cabeludos, enfim, pelas massas dos EUA, Inglaterra e do resto do mundo.

Os Beatles chegaram a se manifestar vagamente a respeito da guerra do Vietnã: “Tudo o que podemos dizer é que não gostamos dela”. O bloqueio vinha do fato de que a música dos Beatles é claramente inspirada na música negra norte-americana, ou seja, os Beatles são mais simpáticos aos EUA que aos comunistas, e ao mesmo tempo sabem que essa guerra sacrifica as vidas da juventude americana, que forma boa parte de seu público. Preferem, portanto, não tomar partido claramente. Lennon, o mais intelectualizado do grupo, posicionou-se a respeito dos acontecimentos de 1968 na canção Revolution, no disco lançado naquele mesmo ano. Na canção, ele demonstra interesse pela mudança em geral, mas reprova o maoísmo vigente na esquerda de então: “Mas se você for carregando quadros do timoneiro Mao não vai conseguir nada com ninguém.” (Revolution, White Album, 1968). O que demonstra que a opção de Lennon era pela New Left norte-americana, ou seja, liberal, social-democrático e anticomunista.

Lennon demonstra uma postura dúbia em relação às propostas políticas que marcavam o meio artístico norte-americano e o maio de 68 francês, o que em parte explica o maior entusiasmo pela mudança de costumes. A oposição aos Beatles e à “revolução jovem” costumava ser religiosa, patriarcal e conservadora em política e valores. Tornava-se parte do espetáculo dos rapazes. Na Europa do Leste e URSS, como bem demonstra a canção Back in the USSR, existia a desconfiança e a proibição dessas manifestações artísticas, por divulgarem padrões de consumo diversos. Mas, no Brasil, quando a mutação tropicalista apareceu com guitarras elétricas, a esquerda política, poderosa no meio artístico-cultural, repudiou esta importação como americanizada e entreguista. Os tropicalistas pretendiam conquistar o público dos festivais, predominantemente da esquerda universitária, e também embarcar no modismo do iê-iê-iê que já se disseminara pela TV e pelo rádio. No período de 1967-68, viram-se hostilizados simultaneamente pela esquerda nacionalista e por moralistas burgueses da direita. A estratégia mostrou-se vitoriosa a longo prazo: com o avanço da indústria cultural no país, a aposta tropicalista ganhou cada vez mais terreno, enquanto a ditadura militar relaxava e a esquerda abandonava as posições nacionalistas. O momento da consagração foi nos anos 90, quando FHC instalou a geléia geral, conciliando Francisco Weffort e Antônio Carlos Magalhães, um intelectual fundador do PT com um oligarca nordestino adepto do regime de 64, gerando um “enclave tipicamente tropicalista”.

O texto da canção Alegria, Alegria mantêm semelhanças com a letra de A Day in the Life (Um Dia na Vida). Ambas tomam como ponto de partida a observação dos meios de comunicação:



O sol nas bancas de revista

Me enche de alegria e preguiça

Quem lê tanta notícia?

(...)

Em caras de presidentes

Em grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot



Comparemos estes versos com os de A Day in the Life, ponto alto do Sergeant Pepper’s:



Eu li os jornais hoje, meu amigo

(...)

Ele estourou a cabeça em um carro

Ele nem notou que o farol tinha mudado

Uma multidão estava parada e olhava

Eles o conheciam antes

Ninguém sabia ao certo

Se ele era realmente da casa dos Lordes

Eu vi um filme hoje, meu amigo,

O Exército inglês havia vencido a guerra

Uma multidão foi embora

Tendo lido o livro

Eu gostaria de te ligar



A letra é construída a partir de fragmentos, à maneira das colagens surrealistas, uma influência já notada nas letras do grupo desde o álbum Revolver(1966). O resultado, na letra do baiano, capta e sintetiza melhor o espírito do tempo. As referências às drogas, nas canções da tropicália, são em geral menos apologéticas do que este “eu gostaria de te ligar”, que me parece explicitar o desejo de iniciar outras pessoas (ou os ouvintes) no uso de psicotrópicos. Em Alegria, Alegria, esta referência aparece de maneira velada, sugerida nas iniciais como em Lucy in the Sky With Diamonds; o contexto sugere menos o regresso à infância, como em Lucy in the Sky, do que a atitude desabusada, a decisão já tomada em prol do desbunde:



Sem lenço sem documento

Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor

Eu vou

Por que não?



Enquanto a música de Lennon, McCartney e Cia. assim se coloca:



Flores de celofane em amarelo e verde

Dançando sobre sua cabeça

Procuro pela garota com o sol nos seus olhos

E ela se foi

Lucy no céu com diamantes



Se a referência ao LSD não é deliberada, como disseram os Beatles, a de Caetano & Beat Boys está clara, ainda que também indireta. Com a distância do tempo, observamos que a referência às drogas, velada ou não, marca toda a cultura hippie. É um elemento indissociável do visual colorido, da psicodelia, do desbunde. Assumidamente ou não, o uso de drogas está entre as principais inovações comportamentais que trouxeram os tropicalistas. Quer eles queiram ou não, elas vieram junto na bagagem importada.

As referências políticas se fazem marcantes nas músicas de Caetano e esparsas nas de Lennon-McCartney. Caetano mistura a liberação sexual (grandes beijos de amor, dentes, pernas, Brigitte Bardot) ao impacto da era atômica e Guerra Fria (caras de presidentes, bandeiras, bomba atômica). A Day in the Life se refere ao cotidiano, à rotina e contrapõe a possibilidade de romper o tédio com a experimentação de drogas. A fuga, a entrada no sonho, tem mais sentido do que os quatro mil buracos de Blackburn Lancashire. É bem melhor a viagem lisérgica, apontando para o desconhecido, do que os quatro mil buracos da vida real...É sintomático que a frase final de A Day in the Life seja “eu gostaria de te ligar”. Isso, no contexto de rebeldia juvenil, é compreensível, mas não abrange a complexidade do momento e da época.

O irracionalismo que marcava as vanguardas dos anos 20, em decorrência da Primeira Guerra, volta nas músicas dos Beatles, agora suposto motor de uma nova consciência, de uma nova cultura. A fuga para o interior de si provocada pela droga se coaduna com o irracionalismo das religiões orientais:



Quando você tiver enxergado através de você mesmo

Então você poderá encontrar paz de espírito, esperando

E o tempo virá quando você enxergar

Que somos todos um só

E que a vida corre dentro

De você e fora de você.15



O orientalismo entrou como um elemento apenas secundário nas músicas dos Beatles, ou seja, entrou como mais um ingrediente na mistura. E o mais problemático é que se misturou ao irracionalismo contracultural. Não apenas um despertar espiritual ou retorno ao mito estava ocorrendo; era o reforço de uma postura que confundia a razão iluminista com a razão instrumental do regime capitalista. É assim que foi possível a aproximação da tecnocracia com a contracultura no Brasil dos anos 60/70. A cultura dos técnicos é a cultura de massas, eles abdicaram da cultura clássica e humanística. A dissociação entre cultura humanístico-artística e técnico-científica marca a cultura ocidental no século XX - e se acentuou a partir da década de 60, possibilitando o referido fenômeno.























Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui