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Ensaios-->Sete Faces Congeladas -- 13/12/2012 - 23:34 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

 

 1

 

A vaca leiteira pasta na manga fronteira ao curral

Lambe o sal, sacode a cauda e muge chamando a cria

Novo dia se levanta no vaivém do nascer e pôr do sol

 

 

O fazendeiro volteou o curral antes do sol. Mandou Zenofre afrouxar a mão nas tetas da vaca e ser mais pródigo com a cria. Mimosa estava fraca, carecia de suplemento. Foi minguando o leite, minguando... Até que apareceu  no pátio sem o bezerro.

Cláudio mandou  rastrear qualquer sinal felinode grande porte, uma pegada, uma carcaça de presa, o que fosse. Levasse os dias que levasse. Varresse tudo, do grotão de Campo Grande até o grande cerrado de Sete Passagens. Assuntasse qualquer rabeira ou vestígio de animal selvagem por ali. E se encontrasse onça, trouxesse a lembrança do couro amarrado no rabicho da cela.

Negro e manso desde pequeno, Zenofre zunia defensivo como abelha-branca, se assanhassem seu ninho.

— Onça aqui não bebe água, disse ele.

— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...

A mando do fazendeiro, Euzébia de João Velho preparou víveres suficientes para sete pessoas em incursão na mata durante aproximadamente três dias. Leonísia de Adelço ajudou a socar carne seca no pilão e a encher quatro pares de alforjes com paçoca, rapadura, e água à vontade nas bilhas. À tardinha, a peonada se reuniu no alpendre. Zenofre Borá manobrou a cravina: culatra... culatra... A arma respondeu que estava de prontidão. Joselino Sousa conferiu a mira da parabélum e uma pomba verdadeira caiu no terreiro. João Velho afinava a ponta da zagaia com que abatera, quando ele era jovem, uma suçuarana na Furna da Onça. Calmamente, João Congo torcia as pontas do bigode, enquanto procurava por falha na malha da rede de caroá, aferindo se a tralha era capaz de suster animal do porte de uma onça. Coube a Vespasiano levar o mosquete e a respectiva forquilha de suporte. Piruruca do Curral de Dentro, levaria toda a tralha: água, mantimentos e a rede de caçador. Júnior de Dr. Adilson também foi, mas este não conta. Não era empregado da fazenda. Estava guardando férias em Campo Grande e quis entrar na infunca da onça, só por folia. A alegria era dele, mas a carabina e a coragem eram do pai.

 Pai Luís fica para tomar conta do roçado. Disse Manuelzão. Adelço também não vai, precisa botar sentido na fazenda.

Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.

 — Cadê os outros? Perguntou Cláudio.       

—Nem sinal de vida. Respondeu Zenofre.

— Melhor assim.

Inté a volta, patrão!

—Até...

 Manuelzão e Adelço campeavam. Montado, Cláudio gritava: “Corta pela direita! Volteia...” No fim da tarde, o cheiro da betônica estava impregnado nas perneiras e no suor dos vaqueiros. Cansado, Cláudio disse aos cafuçus: “Hoje não toco viola.” Foi quando Tonico Oliveira se manifestou recitando Ferreira em pé-de-verso, guardado na memória desde a mocidade.

Dim dão, Dim dão...

 

João Grilo foi um cristão que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura, mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora pelas artes que fazia.

 

Nasceu de sete meses, chorou no bucho da mãe;
quando ela pegou um gato ele gritou: ‘não me arranhe’

não jogue neste animal que talvez você não ganhe.

 

Os caçadores ainda estavam embrenhados na mata escura. Vaqueiro Zenofre guiava. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de Adilson na cabeceira de Xerém, burro sestroso, e bravo. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:

—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.

Vamosparar pra verter água. Disse João Velho.

— Faça da cabeça da sela. escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desse dos arreios sem eu mandar.

A intenção de Zenofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Fizeram fogo na entrada da gruta. A furna respirava a fumaça, puxava para dentro e depois soltava como João Velho fumando cigarro de palha.

—Evem coisa, disse João Velho, quase em sussurro.

—É uma raposa! Ninguém se manifeste.

Fizeram absoluto silêncio, mas nada se ouvia, senão o crepitar de galho verde ardendo no fogo e pequenos roedores  que saiam  da toca, correndo desembestados.

Arribaram.

Cachorro Graudez latiu longe encomendando tatu. Zenofre ralhou e seguiram marcha. Mais adiante, o vaqueiro parou. Tirou o chapéu, beijou o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e se benzeu.

Os cachorros acuaram bicho no mato.

Agora se espalhem de dois em dois — disse Zenofre — O rapaz da cidade fica comigo. João Velho pode seguir sozinho ou fazer uma trempe com mais dois. Todo mundo amontado. É preciso varrer esse sovaco de serra pisando miúdo, passando pente fino.

O tempo ainda estava turvo, quando avistaram  um vulto na copa de uma árvore.

  —Não desmonte, disse Zenofre, a onça está acuada.

Esperou um pouco, sempre de olho em um pau-preto, cujos galhos se moviam sem vento. O sol ameaçava levantar lentamente a pestana trazendo o lusco-fusco da primeira aurora. Teimoso, Adilson Júnior apeouabismado, contemplativo, com a beleza da natura que aos poucos se revelava.

O xixixi da chuva fina quebrava suavemente o silêncio da madrugada.  Gotas miúdas caiam, escorriam para o rio que corre para o mar além das Minas. Naquele tempo chovia, o sol se escondia semanas a fio, quase mês, e o rio transbordava. Os meninos se banhavam nas águas barrentas com as vergonhas de fora. Não tinham maldade. A infância era tão ingênua e bela como as flores que as meninas colhiam para enfeitar o presépio do Menino Santo. Era estação das águas. Vinha a chuva abençoar o pasto, trazendo berro de bezerro novo. A  jitirana espalhava suas flores deixando a mata em tom azulado. A lagoa enchia e depois vazava para o rio e o rio deixava peixe na lagoa. O trovão trovejava e trazia a coalhada escorrida, escorrendo numa bola de pano pendurada no travessão da casa. 

O destemido vaqueiro desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Cachorro Ninguém ladrava desesperadamente, os outros respondiam longe. Zenofre largou a cravina no chão. Amarrou a lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um cutelo e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Adilson Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar no pau-preto que se movia.

—Não atire!  O latido não acusa onça.

Zenofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o  animal com a grossa corda. Puxou devagar, sempre dando volta, tecendo uma teia entorno do ser tão semelhante ao humano. Aos poucos foi dominando a fera e já no chão, por um descuido dele, a selvagem mordeu-lhe a panturrilha. Os cães avançaram para estraçalhar a caça. Zenofre repreendeu todos eles e Graudez veio lamber a ferida onde a índia cravara os dentes. Ela balbuciou algumas palavras em língua  que ele não conhecia: “Xambioá...Xambioá... Xambioá...Apinajé.” E o vaqueiro perdeu o faro da onça.

 Adilson Júnior sujou as calças.

—Esse bicho fedendo demais, seu Zenofre! Disse o rapaz da cidade.

—O bicho cheira a caça do mato, respondeu o outro.

Vaqueiro Zenofre uniu as mãos fechadas em concha e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata percorrendo um raio de meio quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu...fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Piruruca perdeu o ritmo da cavalgadura, a tralha e a vareta de açoitar cavalos. Os outros, cada um trazia seu quinhão de medo ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.

—Alguém viu Joselino? Quis saber Zenofre.

O parceiro de Joselino era Piruruca, gente vinda do Curral de Dentro com o juízo de fora. Piruruca tinha perdido a tralha, tudo que levava e se desgarrado do companheiro.

Ninguém viu Joselino.

Esperaram um quarto de hora, assobiaram,gritaram o nome dele, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada do vaqueiro Joselino aparecer ou dar ares de vida. Voltaram sem o companheiro. Mais tarde, haveria algum camarada descansado, refazer a trilha e encontrar o vaqueiro deixado para trás.

Espiados por um olho de sol coado entre os galhos da mata, romperam caminho de volta e horas depois, cavalos e cavaleiros riscaram o pé da cancela na sede da fazenda, visivelmente cansados, ansiosos e de boca seca. Era justo o prometido: cada caçador ganhar na volta uma bezerra. Tanto faz ter chegado na primeira hora como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma.  À frente da tropa ia Zenofre, puxando a índia, sempre seguido de perto por seu cachorro de estimação. Alguns de casa inda guardavam repouso da noite de ontem.  Cláudio acabara de tomar uma xícara de café escoteiro e estava com roupas de dormir, quando ouviu o tropel. Queria saber do sucedido com a caça e com os caçadores.

ficando maluco, homem de Deus! Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?

—Se comeu, não sei. Mas é uma índia ‘fema’.

— O bicho fala?

—Prezei. Ela dixe. “Xambioá, Xambioá... Apinajé...

A índia, provavelmente, era da tribo Apinajé e tinha uma ferida debaixo do peito de onde escorria uma resina semelhante à mucilagem da babosa; gosmentae brilhante como o rastro deixado pela lesma. Taturana, concluiu Cláudio. Taturana queimou o peito da índia.

— Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua, das mais velhas, para cobrir este animal.

—Nossa! O cheiro é bom, a mulher, feia.

—Que vamos fazer com essa coisa, seu Cláudio?

—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora.

Durante duas semanas a índia só aceitava água e fruta. Foi quando Zenofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário. Vaqueiro Zenofre retirou o relicário do pescoçoe deu à índia. Ela pôs no próprio pescoço, em ritual indígena, depois o devolveu. O vaqueiro ficou sem ação. A selvagem gesticulou, disse algumas palavras ininteligíveis e Zenofre percebeu pelos gestos dela, que deveria repetir encenação. E o fez, mantendo o escapulário no lugar onde sempre estivera: no pescoço dele. Eram amigos ou estavam casados, no entender da índia.

—Zenofre, mande Adelço ir atrás do vaqueiro desaparecido, dissera o patrão assim que os caçadores de onça chegaram.

As horas corriam. Joselino sozinho, com a arma atravessada no arção da sela, deparou-se com a fera no despenhadeiro. Longe, muito longe do grotão. Dona Euzébia que preparara a matulachorava a sina do filho que em mata fechada, em luta travada entregara seu espírito de vaqueiro ao Criador. “Será que meu filho comeu, pelo menos da paçoca?” E olhava as mãos calejadas na soca do pilão. Olhou também para  o horizonte distante e de cima do monte descia um vulto cavalgando o trote da vitória.

—É seu Joselino, gritou um menino.

—E traz um couro de bicho na lua-da-sela, pintado, bonito, estampado de preto e amarelo-ouro como chita, disse Euzébia.

 

 

 2

Faz tanto tempo... A lua ainda era menina

Havia mel na boca da noite, no soalho, no chão,

no agasalho. Tudo era suor. Tudo respirava amor

como orvalho, doce orvalho derramado no coração.

 

 Cláudio Manuel, meio baiano, meio mineiro, não esperava que um galo cantasse e levantasse outro galo o mesmo canto noutro terreiro. Poeta inventado de ser fazendeiro, ele parava encantado, e se encantava em uma poça d’água, apreciando uma borboleta auriverde que bate asas; faz que vai, faz que vem, volteia e pousa no dedo. Em sua rotina diária, consumia pedaço de sol minguado cedo, e à tardinha, assentado na barriga de uma raiz que bebe no córrego. Ficava fios de hora olhando lambaris que deslizavam, escorrendo luz prateada em suas escamas. E perguntava interessado na resposta. “Por que a beleza das cores é tão passageira? Por que uma linda borboleta vive tão pouco? Mal sai do casulo e três meses depois evapora, entrega seu espírito de borboleta ao Criador e se vai. A vida se esvai.  Parece que a criatura tem natureza artificialmente postiça. Tudo descora lentamente e a cor da gente desaparece com os raios do último sol.”

Nas noites de lua clara a peonada se reunia no alpendre. A meninada acompanhava os pais, interessada em saber das estórias que Cláudio contava, recitando cordel nos acordes de sua viola. Aquele ano foi de poucas águas e a luta para salvar o gado parecia interminável. Levantava um animal aqui, caia outro ali. Levantava um ali, caia outro acolá... Até barrigueira pro animal ficar em pé, Cláudio fazia. Ele aprendeu a salvar gado nas grandes secas do Nordeste, dando papelão molhado e garapa de rapadura às reses mais fracas. Muita gente fazia isso e salvava parte do rebanho.  Quem não tinha papelão, oferecia galho de cacto sapecado e os animais babavam comendo churrasco de mandacaru, levemente queimado. E, mesmo morando em Minas onde as águas borbulham nas nascentes, nos anos de pouco chuva Cláudio se valia desse recurso.

— Papelão para  vaca parida? Tá ficando maluco? O pasto está minguado, o leite também, mas você pode comprar torta de algodão e dar ao gado.

— Nada não, mulher. Quero que o leite saia empacotado, como ovo de galinha.

— E a garrafada de rapadura? É para o leite sair adocicado?

— Sê besta animal ruminante! Rapadura é o melhor energético para levantar gado caído.

Não quis dizer que no Nordeste, ele mesmo comeu macambira na grande seca de 1932. Nem que era um bufão, um saltimbanco sem tablado, como milhares de retirantes nordestinos que abandonam suas terras, por causa da seca. E, lembrando-se dessas coisas, dedilhava a viola, procurando afiná-la com a toada que ouvia quando era novo. Tírú-lírú-lírú, lírú- lírú lírú-lão. Tírú-lírú-lírú, lírú-lírú lírú-lão:

 

A seca de 32 não foi culpada sozinha, porque desde 27 que ano bom já não vinha.

 

A lua já era velha e o repertório de Cláudio não se esgotava.

Inté outro dia, cumpade.

— Até...

Muitas vozes respondiam: Inté...inté...

Tudo eram lembranças da fazenda Campo Grande que Corina não queria esquecer. Ela nunca esqueceu a vida no campo: a caça à onça e as noites de lua clara no alpendre do casario...

 

 

 3

 

Mesmo quando acaba o perfume,

o zeloso frasco ainda guarda

por muito tempo o cheiro

 

 

A viúva arrumou as malas de couro cru, pôs em cada bruaca um pouco de goma, farinha e carne seca.   Vendeu tudo que tinha: porco, galo, pavão, peru e galinhas; cavalos, ovinos e todo o rebanho de gado vacum.  Vendeu também por pouco dinheiro a coleção de livros que Cláudio tinha e a fazenda que cobria grande parte do chão banhado pelos rios Juramento e Saracura, que vai do baixio de Campo Grande às partes altas das Sete Passagens. Escondeu na matula o dinheiro apurado  e tomou o trem na estação de Montes Claros com destino ao Rio de Janeiro.  Na cidade grande, Corina nem cogitou Copacabana ou Ipanema. Preferiu sonhar verde e morar na Tijuca, que lhe remonta lembranças  de Campo Grande. Saudosas lembranças também ela tinha do coco que Zé cantava a Mirabela e de todas as coisas belas de Minas.  Minas tem poeta, boa cachaça e artistas famosos nascidos naquele chão. Tem Tião Carreiro, ZÉ Coco do Riachão e muitos outros talentos gerados e crescidos na culinária montanhosa de arroz com pequi e tutu de feijão. Em Minas tem Carlos Drummond, João Guimarães e Santos, o  pai da aviação. Foi em Minas que Cláudio Manuel conquistou Corina, a glória que a Vitória da Conquista na Bahia, não lhe ofereceu. Ela nunca esqueceu a cena de morte quando Cláudio perdeu a vida e a vaca, numa encenação de campeio, para entregar o animal da aposta. Ninguém acreditou na versão que o baiano morreu no breu da noite, acidentado em um toco. Aquilo foi rixa com confrontantes! Sumia galinha da fazenda e as frutas desapareciam da chácara de Cláudio. Também o leite sumia. A vaca que dormia de úbero cheio,  acordava vazia.

Vaqueiro Zenofre contava à peonada e a filha do vaqueiro assuntava atrás da porta: “Morte besta teve seu “Claude”. Tudo por conta de uma aposta com o primo Joaquim. “Claude” casou Mimosa, a vaca que mais leite dava na fazenda, a troco de um rufião chamado boto-cor-de-rosa que nunca gerou uma cria. Claude dizia que Durão Preto não ganhava. E quando Preto ganhou a eleição  de Juramento, para honrar o nome, quis Claude entregar Mimosa e montou Xerém, burro brabo, amansado sem amansar. Asneira! Dizem que morreu estrepado num toco. Aquilo foigolpede peixeira...

No velório de Cláudio,   Corina mandou servir chá com biscoito e dias depois, surgiu o zunzunzum que o homem  era santo, porque gente doente tinha curado resfriado, bronquite e reumatismo, depressão e muitos males respiratórios depois de tomar o chá-de-defunto.

Apinajé chorou...

Sempre que ela levava almoço aos cafuçus, na curva do caminho o patrão lhe concedia, meio  avexado, um dedo de  prosa. No tijupá os homens que esperavam pela refeição, reparavam nela o cabelo assanhado,  dourado de folha seca...

—Vaqueiro Zenofre é negro retinto ajuntado com uma índia. Não deveria a filha  ser caburé? Disse um deles.

— Pois é...Mas é branca de cabelo liso. Cruz credo! Arrenego...

 

 

 4

 

Saudade vai, saudade vem. Saudade tem hora que dói

Açula demais o coração. Saudade é comichão que pica

A mulher se foi morrida. Sete  filhos vivos se vão

E só, Chanana, a filha caçula fica

 

 

Apinajé tocava cangoeira feita com um osso do pai morto em conflito com o homem branco que construía a Belém-Brasília e quando resolveu falar Português, a índia revelou que há meses rondava Campo Grande e no silêncio da noite, bebia de um rio cujo nome sua língua não falava. Colhia frutas na chácara e dividia com um bezerro as tetas de uma vaca mansa que lhe dava de mamar. Disse que viu a onça pintada abater o bezerro que, para ela era irmão-de-leite. Por isso, perseguia a pintada quando foi acuada pelos cães do homem branco. Disse também que fugira de sua tribo em Goiás logo que os deuses encomendaram castigo de destruir a floresta. Ela quis saber do marido quantas luas homem branco gastava montado em seu cavalo-de-ferro, dali de Juramento até Bico do Papagaio.

— Sê besta mulher! Morcegar traseira da vespa de Vespasiano até Goiás e com uma barriga deste tamanho!?...

 A índia  se referia ao animal fumegante que servia de transporte para branco. Queria pegar a jardineira de seu Neco Braga, até Montes Claros, e daí em diante, tomar rumo da aldeia noutra condução. Nunca foi.

Dias depois, ela gemiaem dores de parto.

Parir de sete meses, não era bom sinal para Apinajé nem para a cria. O primeiro filho também foi prematuro. Vingou bem. Para lidar com caça, cafuzo Adail vingou bem. Desaparecia na mata sem deixar rastro. Era preguiçoso  para pegar no pesado com o pai, mas corajoso para entrar na mata atrás de uma caça. Passo macio, veloz e ligeiro chegava com um tatu a tiracolo. O pai desgostoso sabia que o filho bebia cachaça nas vendas do povoado.

— Vá tomando nota aí, seu Jerômo. Quando interar cinco eu trago outro tatu-preto pro Sinhô.

Era bom negócio para Jerônimo que vendia caro ao doutor Adilson, tanto a bebida quanto a farofa de tatu e ainda proseava contando vantagem:

— Fui eu quem pegou. Peguei  debaixo do bigode da onça. A pintada vinha sentindo o tatu, os cachorros deram nela e eu saltei na caça.

Dr. Adilson pigarreou. Dona Angélica de Quadros desconversou:

— Neste quadro Adilson também gravou o nome dele.

Jerônimo fez-se desentendido.

—É... tive uma ponta de medo.

—Tamanduá-bandeira não tem medo de onça, disse zombeteiro o doutor.

— Apinajé morreu de que mesmo? Indagou Angélica.

— A mulher do vaqueiro de Cláudio morreu de parto.

Apinajé não tinha nome, mas deu nome ao marido Zenofre de Apinajé. E em dores de parto deu-lhe também Chanana, a última flor inculta e bela. Foi quando a filharada debandou de casa. Sete caburés de cabelos grossos, corridos, guiados por Adail, fundaram enfileirados na mata, feito filhotes de perdiz, e depois de ziguezaguearem durante muitas luas, encontraram remanescentes Jês e lhes deram boas e más notícias: “Índia Apinajé casar. Ter muitos filhos. Índia morrer no parto de Chanana. Chanana morar com pai Zenofre, longe, longe muitas luas deste chão”.

Para Zenofre, com a  passagem de Apinajé para o outro lado da vida, a fazenda Campo Grande era só tristeza. João Velho viu urubu fazendo sombra no rumo da furna da onça. Foi ver. E viu. Viu o vaqueiro pendurado, balançando em um galho de pau-preto. Mal de Banzo, Zenofre morreu de tristeza, diziam. Outros vaqueiros e trabalhadores braçais migraram para a cidade, quando a viúva do fazendeiro vendeu os teréns e foi embora para o Rio de Janeiro.

 

 

5

 

Quantas lembranças: recordações guardadas nas tranças congeladas no álbum de família.

 

A casa 77 da rua Ibituruna na Tijuca, viu crescer duas gerações  de Cláudio. Ali Corina quis dar o mesmo aspecto do casario da fazenda, mandando cavar um oratório na parede, e quando entrava no quarto, podia ver a imagem do Crucificado entalhada em bronze sobre um nicho repleto de imagens. No alto da parede, com a face voltada para os pés da cama, também estava o retrato do finado quando jovem. Já na moldura menor, sob o olhar de ontem do pai, a pequena Dulcineia descansava no colo da mãe.  Era o retrato  de família gravado nas tranças congeladas.

Nem tudo que Corina aprendeu, veio das cercanias da fazenda Campo Grande. Ela tinha impressões de viagem do Rio de Janeiro ao Piauí, fuxicando com a neta o Centro-oeste, parte do Sudeste e todo o Norte de Minas para reconstruir a colcha de retalho que era a história  de Cláudio: uma realidade ou uma lenda? A Carimbamba, por exemplo, a mulher de Cláudio achava que era invenção do marido. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia, sem parar. O povo dizia que na lagoa morava um pássaro sanhoso, sanhudo, que trazia presságio agourento em seu canto fino. Quem o visse cantar, ficava menino se fosse velho e ficava velho se fosse menino. E assim, quando Yula Maria nasceu, o pai dela prometeu casá-la com a carimbamba, para quebrar o encanto da lagoa, sonho que muitos sonhavam em usufruir do banho nas águas do pequeno lago. Dizem que a carimbamba que há três mil anos cantava, tinha cabeça de gente e asas que não voam. Era igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia queSete Marias[1]precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...  Era quase escuro quando Yula ouviu cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou. Curiosa, adentrou a mata e ao pisar o junco na beira do brejo, a vegetação se abriu e a lagoa encantada apareceu. A mocinha viu a carimbamba e nunca mais voltou para casa. Até hoje, corre o boato que uma velha encurvada grasna em noites de lua cheia na lagoa, que não é mais encantada.

— A carimbamba existe mesmo vovó?

— Quando se acredita em uma coisa ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado.

— E a menina se transformou numa velhinha?

— Bem a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor para que a história nunca termine, continue viva e passe de geração para geração. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Estão sempre vivas e quando alguém agita as páginas do livro em que elas moram, uma porta se abre e as personagens saem. Tomam a forma de gente e convivem com os humanos como se humanos fossem. E são humanos, porque a ficção desaparece e se revela palpável. Cada personagem abandona sua maca e sai andando. Outras existem de verdade, são alter ego do autor, autobiografia, ou, biografia de outrem, as três coisas juntas ou nenhuma delas. Em verdade, uma realidade que virou   ficção ou uma ficção que virou realidade.

Intrigada, sem saber onde a avó tinha aprendido aquelas coisas, Talita deduziu que Corina lera a Coleção de Obras Célebres, antes de vendê-la. E só muito depois, entendeu como os personagens saem das páginas do livro. Saem pela vontade das pessoas como as esculturas de protagonistas do cristianismo que a avó retirava do oratório e levava para o presépio. Pois era assim mesmo: O oratório ficava vazio. As imagens iam adorar o Menino Santo em uma gruta improvisada no canto da sala.

Era Natal.

 Sobreveio a tarde e depois a noite de muitos dias. Talita cresceu e descobriu que tinha um sonho, uma vocação: contar estórias sem monstros, que ajudassem na formação de crianças saudáveis, destemidas e livres de pesadelos.

Por exemplo: o homem na cruz que ela via no quarto da avó era o grande mistério de suas lembranças...

— Foi o vento, vovó! Foi o vento.

— Eu sei, foi o vento.

— Eu só ia retirar o vovô da cruz...

— Não diga isso, menina! Aquele pregado na cruz não é teu avô. O homem  na cruz é o Deus dos cristãos.

— Agora, venha. Não quero que fique sozinha neste quarto.

Pouco depois a menina  voltou e pôs-se a olharuma réstia de sol que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.

— Você é Deus?

—Sou tocador de flauta.

— Quem te machucou?

— Foram as pessoas que amo.

— Você tem irmãos?

— Sou filho único.

— Eu também sou filha única. Não é bom não ter com quem brincar.

A menina olhava para o Tocador de Flauta  naquela cruz, desprezado. O corpo coberto de chagas, mas o coração não reclamava.

— Vovô também mora nesta parede e não conversa comigo.

— Quem está na parede não é teu avô. É só a imagem dele. Cláudio mora no céu.

— A vovó está me chamando.

 — Vá, pequena Talita.

— Você sabe meu nome?

—Antes de te formar no seio materno, eu ti conheci.Agora vá filha de Jeremias.

Ela saiu com um biquinho de tristeza mesclado com um sorriso docemente infantil. Devagar, em silêncio, sentou-se no sofá, relaxou como se estivesse ali há muito tempo e fez uma varredura procurando por  algum tesouro escondido. Alguma coisa que não conhecia ainda. Não havia nada novo sob aquele teto sem laje. Nada novo sobre o velho piso de mosaico.  E deixou o projeto de literatura infantil para outra oportunidade, começou a escrever para adultos, de modo que crianças também pudessem ler, porque só criança pode ver um carneirinho desenhado dentro de uma caixa de papel fechada. Ela não esqueceu. Não esqueceu  o dia em que ouviu os chinelos do pai no corredor de acesso aos dormitórios. A “Aquarela”  acompanhava como uma sombra os passos de Jeremias.Era o suor da alma de Toquinho sendo derramado no coração da menina.

 

  Numa folha qualquer. Eu desenho um sol amarelo. E com cinco ou seis retas. É fácil fazer um castelo...

 

— Este é o túnel do tempo, disse o pai dando-lhe uma folha de papel em branco. É só  imaginar e podes antecipar tua festa de debutantes, casar,  ter filhos,  netos e voltar a ser menina outra vez. Se quiseres, podes escrever mil verdades por trás de uma mentira e como Serna terás um livro com mais de cem asas para voar.

Ela relutou.

Não arriscaria ainda apresentar os originais de seu livro a alguma editora. Tinha muitos escritos guardados, mas não lhe pareciam coisas de botar em livro. Eram sonhos, apenas sonhos nos quais se via vestida de longo, maquiada e penteada, pisando o tapete vermelho numa trovoada de  fleches. Fleches e sorrisos, enquanto valsava com o namorado na festa  de seus quinze anos. Ela era a mais bonita, a mais alta e mais esguia escultura  a desfilar entre outras debutantes. Em seguida, imaginava-se sozinha numa ilha, e de repente, encontrava um náufrago. Deve ser triste não ter nada que fazer em uma ilha — pensava.   Provavelmente, muitas vezes durante a sobrevivência em uma ilha deserta, o náufrago desejou ter morrido afogado a viver solitário... Mas a sensação de pisar em terra firme é reconfortante e dá ao flagelado um sopro de vida a sua alma. Degredado na ilha do medo, o filho de Eva, gemendo e chorando, sente que a morte cada vez mais, arranca-lhe as forças vitais e o náufrago grita e seu grito não ultrapassa os vitrais azulados do céu. Sobreviver. Lutar para sobreviver. Afora isto, nada mais  se tem a fazer numa ilha, senão olhar o horizonte. Ter miragens como um beduíno no deserto. Vê nas espumas flutuantes a borda falsa ou o castelo de um navio fantasma, o monstro do lago Ness, ou um xaveco pirata. “E se não houver água potável?” Indaga a alma em seu desterro e  ela mesma responde: “Há sempre água potável em uma ilha.” E apagou a ideia de encontrar um náufrago. Preferia descobrir uma ilha em que ninguém jamais houvesse habitado, nem mesmo os fenícios. Assim, com caneta e papel, cruzaria os céus nas asas de uma aeronave. Novamente seu pensamento a interrompia. Tinha medo de avião. Viajaria, pois, de navio, deixando o cabelo esvoaçar ao vento da proa e os olhos se encantarem com o sol que se põe atrás das asas de uma gaivota. “E, se o navio naufragasse?...” “Bem, se o navio naufragar, poderá então  descobrir uma ilha, uma ilha deserta e dar a ela o nome  Brasileia de Salomão. Gravar o próprio nome nas paredes de uma gruta e escrever sua história em livro de pedra”.

Teve medo. Sentiu-se prisioneira da Caverna de Platão.  Queria dizer para o mundo que a vida é uma sombra tremulante, uma figura tremifusa da realidade projetada na parede. Discordou da sombra. A vida acima de tudo é uma sinfonia, uma orquestra.

“ Uma orquestra”, repetiu em voz alta, sem perceber...

— Viajando na imaginação? Indagou Robert.

 — Estou pensando como escrever sobre uma ilha deserta...

 

 

Lembranças daquela menina, quando ainda criança pulando amarelinha que  lhe desfazia a tranças

 

Era primeiro de abril. Foi-lhe dado vestes brancas para aguardar os colegas de escola, que viriam festejar os quinze anos dela.  Todos chegaram cedo e cedo se foram. Robert não dançou a valsa. Contentou-se em fitar o rosto moreno, parcialmente coberto por negros cabelos. Depois descia fazendo uma varredura em câmera lenta, traço por traço, ponto por ponto, curva por curva, da cabeça  aos tornozelos, dando close nos seios rosados como caroço de pitomba a furar as finas vestes desguarnecidas da aniversariante. Nilmário dançava solto e só tinha olhos para Morgana.  Gonçalo era uma cópia apagada de si mesmo e os outros meninos, eram apenas os outros meninos que levaram presentes pouco interessantes. Com as pontas dos dedos Talita afastou uma mexa de cabelos que cobria o olho esquerdo. Alguém assobiou. Ela sorriu disfarçadamente.  Soprou as velas. Todos riram. Os convidados trocaram a posição e o 15 tornou-se  51. Ela riu porque, quando realmente tivesse 51anos, poderia fazer uma festa de 15, apenas trocando as velas de lugar.

Tudo foi muito simples, apenas uma festa oferecida em casa aos amigos e novamente ela estava só. Sozinha, navegando velozmente no silêncio supersônico de sua imaginação: “Hádentro do homem  uma  gaivota buscando romper os limites de sua espécie ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos  voos sem limites nem horizontes. Sem medo de inovar, muitos escritores construíram grandes obras porque não temiam dar asas a seus sonhos. Toma, pois, caneta e papel, menina,  e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota... As biografias não mentem, muita gente famosa publicou antes dos quinze”.

   Realmente, era bobice julgar que estava nova para escrever um livro. Tinha o exemplo de Coralina que  aos 14 anos publicou “Tragédia na Roça”. Ganhou o carinho dos leitores e alguns vinténs de cobre fazendo doces. A filha de seu Jeremias, não deveria temer. Construíra conhecimento, sob a regência do Padre Davi, tornando-se uma sombra dele, de modo que, se o padre bocejasse, ela arregalava os ouvidos para captar o menor sinal de sabedoria que saísse de sua boca, mesmo que fosse um simples “desculpem-me.”   Ela sabia que era preciso decifrar muitos mapas para encontrar o Tesouro de Bresa, por isso, quando penetrava nas páginas dos livros, viajava na imaginação e queria matar os vermes que roeram os livros do Velho Testamento  e nada sabiam sobre eles, nada se lembravam. Ou era de Betinho o livro?... Ou de Casmurro? Ela  leu, releu e remoeu cem livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lida há muitos anos. Em suas lembranças mais dolorosas figurava o episódio de Androceu, o cambista que mais tarde se tornara seu tio postiço, casando-se com Chanana, a menina órfã que Corina trouxera para o Rio de Janeiro.

 

 

        6

 

Queria ser o regalo e não o pranto. O orvalho matinal na relva fresca

Queria ser ainda e não somente o  ombro amigo, a mão que afaga

Também o  amor que o vento sopra.Sopra fortemente e não apaga

 

 

 

A praça Afonso Pena e adjacências estavam totalmente inundadas. Vez por outra a explosão de um transformador da Light lançava fagulhas iluminando, por um instante, um pequeno trecho da rua Doutor Satamini. Enquanto isso, e em vão, Androceu tentava pegar um táxi que passava na Tijuca com água quase entrando pelas portas. Ninguém parava para prestar socorro. Aflitos, os taxistas tentavam salvar primeiro suas almas. Pois foi naquela noite escura. Naquela noite de trevas que dois homens encapuzados o  abordaram.

— Ei, você profanou meu santuário —, dizia um deles com a voz  arrastada, tropeçando nas palavras como   um bêbado. Ele ouviu só isto, antes de sentir o nariz tapado por um  lenço umedecido em éter. Os homens fizeram o serviço. Os dois homens encapuzados fizeram o serviço e largaram a vítima em frente a um hospital público. Três semanas depois, e já curado da castração, novamente Androceu estava pronto para servir o chefe, vendendo jogo do bicho.

Sentado em uma cadeira de balanço, Martiniano contempla um exemplar  do ciclo das Ninféias  assinado por Monet. Fuma charuto cubano e arquiteta planos para comprar o amor da professorinha.

 — Vá vender um bilhete àquela professora. Pegue o fusca, fique nas proximidades da escola o tempo que for preciso, disse o bicheiro.

— Professor não arrisca a sorte  em jogo do bicho!

— Conversa homem! Faça o jogo dela para o sorteio da tarde e me passe os números jogados. Sei o que fazer.

 Acanhado, Androceu não abordou a diretora, mas, ela o reconheceu.

— O  senhor me emprestou gasolina não foi mesmo?

— Sim, sim!

E contou a ela as dores do seu coração. A vida sofrida, o trabalho exaustivo vendendo  jogo do bicho... Enfim, a vida escrava que levava numa mansão alheia na Barra da Tijuca.

— O túnel do tempo só  existe em tua mente — disse Chanana. Não podes mudar fatos   passados, mas, podes livrar-se de algumas lembranças dolorosas, colocando uma redoma em torno delas, ou criando uma ponte, um atalho. Não podes apagar tua história, mas podes reescrevê-la. Tenho formação em  Psicologia e posso ajudá-lo... Por que não cobrou a gasolina?

— O carro é do patrão.

— O fuscão preto ou  a Ferrari?

— Os dois.

—Quero jogar no gato e no dragão.

— Dragão não faz parte do jogo do bicho. E não  jogue no  gato que talvez você não ganhe. Jogue uma milhar no primeiro prêmio e se acertar, o patrão paga na hora.

 Jogou e antes das oito da manhã do dia seguinte, sorridente, o cambista a procurou na escola.

— A senhora ganhou o prêmio grande, seu Martiniano quer fazer, pessoalmente, o pagamento. Posso levá-la ao escritório dele.

— Esta é a felizarda — disse Androceu olhando para o chão.

— Olha só!... Deus ajudou e você ganhou sozinha o prêmio maior.

— Deus não interfere em jogos. Embora não seja pecado ter muito dinheiro, Deus não interfere em jogo.  Muita gente faz promessas para ganhar na loteria dizendo que dará boa parte aos pobres. Dá nada! Se ganhar, joga tudo fora, mas não dá nada a ninguém. Fica mais sovina e mesquinho do que antes. Se, realmente ganhei um bom prêmio, e antes que meu ouro escorra entre os dedos, quero dividi-lo com Androceu.

— Então se case com ele, respondeu o bicheiro como se batesse o martelo da sentença.

As palavras de Martiniano de Castro soaram como uma profecia e sob o pretexto de tratamento psicológico, os encontros de Androceu com a Chanana se amiudaram como pingos de chuva fina  a escorrer na calha do tempo. Logo, comemoraram as bodas de cobre e a aproximação com os familiares dela foi uma consequência.

— Tio, — disse Talita apontando para a Bíblia — vou ensinar uma técnica que aprendi no Grupo de Oração. Mas a Bíblia não  pode estar viciada.

— Que é isso, menina! O viciado aqui sou eu.

— Não é isso, tio. A Bíblia não ser viciada, significa que não pode ter  nenhum marcador dentro dela, senão, vai sempre cair naquela mesma página. A dinâmica consiste em abrir aleatoriamente e ler o primeiro trecho que se lhe saltar aos olhos.

Durante sete dias seguidos, Androceu punha a Bíblia sobre a mesa com a lombada virada para baixo, segurava a capa com a mão esquerda e com a direita, a contracapa. Por último, soltava  o miolo que se abria como uma sanfona no capítulo três de Oséias.

 

  O Senhor  disse-me: Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo, e que foi adúltera, pois é assim que o Senhor ama os filhos de Israel, embora se voltem para outros deuses e gostem das tortas de uvas.  

 

— Tente de novo — disse Talita.

— Não devo desafiar a Deus, mas...

 Refez o movimento como em uma roleta-russa e pela oitava vez, recaiu na mesma página:  

 

Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo e que foi adúltera...

 

Empalideceu.

 — Assustado, tio?

—Não! Apenas sinto enjoo.

— O Senhor leu a nota de rodapé?

— Rodapé?

— Rodapé da Bíblia.

—Li não!

— Pois é, a mulher adúltera é a Igreja, infiel na aliança com Deus.

—Ah!...

Androceu adiou por longos anos  o compromisso que fez com a mulher  de ingressar na Associação dos Alcoólatras Anônimos. Agora, sua pele ressecada e as manchas amareladas nos olhos, sinalizavam algum tipo de complicação hepática. Ele buscou por recursos médicos tardiamente. Não  tinha mais saúde para  carregar a harpa de  quarenta e sete cordas que pesava sobre seus ombros. Amarelou e despencou como um fruto peco de uma mangueira velha.

Era dois de novembro e seu pobre corpo descansou como rico em um ataúde de cedro.  Havia poucos amigos e muitos curiosos na sala onde um caixão repousava sobre quatro suportes de prata. Velório sem choro, nem lamentações, apenas o burburinho de oração que se misturava com os cochichos de curiosos. Pessoas que nem se conheciam, cumprimentam-se com olhar piedoso e em pouco tempo, conversam como se fossem velhos amigos.

— Morreu novo.

— Menos de cinquenta, e deixou uma viúva bem arranjada.

—Onde esse pobretão conseguiu dinheiro? 

— Dizem queMartiniano de Castro visita com muita frequência a casa dos moreiras.

— Androceu Moreira. Isso é nome de gente?

— Com todo respeito, será por que ele   bebia tanto?

— Os filhos da Candinhacomentam que o falecido ficou sem os grãos porque se meteu com a mulher do bicheiro, e, sobrevivendo, recebeu em troca do silêncio uma casa passada em seu nome com tinta e papel. Só fazia sala. Oito anos de casado e nunca fez filho na mulher.

 A sala de velório da Santa Casa ficou em silêncio e os rostos antes descontraídos tomaram feições sérias. A viúva deixou cair uma lágrima minguada, abraçou o sacerdote e disse baixinho: “Ele se foi, padre! Ele se foi...” As mulheres entoaram um cântico que os homens acompanhavam com sensível atraso.  A viúva passou um lenço no rosto...

— Por favor, padre Davi, faça as recomendações.

– A alma de Androceu, disse o padre, encontrou repouso. Nesta caminhada, estamos apenas de passagem e acreditamos que o Senhor nosso Deus edificou para nós uma morada no Céu. No mundo, muitos acumulam grandes fortunas, muitas vezes ganhadas ilicitamente. Mas este homem viveu a simplicidade dos humildes e para ganhar o pão, começou a vida vendendo bilhetes de loteria, tornando-se mais tarde um empresário bem-sucedido. Finalmente, este peregrino encontrou abrigo em boa estalagem.

Padre Davi aspergiu o caixão com água benta. Olhou de soslaio para Martiniano de Castro e se retirou. Capciosamente, disse   quase em sussurro: “outro dia passarei aqui para ver como está minha paroquiana”.

 

 

 

                  7

 

Sou o poema não escrito

a voz abafada, o grito...

 

 

 Ora Chanana achava  que o amor é coisa feia que se faz às escondidas, ora que amor é vida e desse amor se vive eternamente, pregado numa cruz.

Durante sete semanas  vestiu luto na cor azul. Tudo era azul... 

— Pelo visto, a viuvinha  não ficou desamparada, não é mesmo?

— Vá pro inferno, Anacleto!

Se o Anacleto soubesse, teria dito que viúva só guarda luto do marido enquanto durar o dinheiro que ele deixou para ela. Malandro solteiro, ele sabia que  Chanana tinha boa pensão do falecido, o faturamento do colégio Intensivo, e ajuda da igreja que o padre fazia questão de levar pessoalmente à casa dela. Na medida do possível, o cunhado também ajudava. “Se precisar de mim, cunhadinha é só falar.”  E em cumprimento da promessa ele mandava  trazer de Minas,  dúzias e dúzias de pequi para a cunhada postiça.  Católico não praticante, pouco faltava a Jeremias para rezar a missa. Sabia a Bíblia quase de cor e articulava bem as palavras. Bom pai. Mas bom esposo talvez não o  fosse, pelo menos era o que a mulher dizia. Às vezes seu Jeremias  rezava mil ave-marias em um só dia. Às vezes, em mil dias não rezava uma só ave-maria. Era o outro eu de si mesmo, outra personalidade da mesma pessoa. Criou personagens que mostram diferentes culturas dos mais diversos  lugares por onde passavam, mas,  ele mesmo, escondia o próprio rosto. Seus personagens deixam pingar gotas de lágrimas no papel e viajam em nuvens brancas, negras e azuladas carregadas de paixão. Mesmo triste, Jeremias Palmeiras arrancava dos outros um sorriso com seu jeito maroto de fazer humor:

 

Tristeza, pra quê tristeza? Esse mar não mora em mim. Lápide, lapidada assim. Não quero, com certeza, esse mármore em mim.

 

—  Um dia, todos morreremos. Disse sua mulher.

— Minha doce Dulcineia. A morte não é o fim...

Dulcineia não poderia permitir que  Chanana, a irmã de criação, fosse atirada do monte  Capitolino e confessou:

— Jê. Eu gostaria muito de ter um menino ou uma menina.

— Dulcinha, dulcíssima Dulcineia. Façao que mais te aprouver.

— Você sabe como é a língua do povo... Simulo uma gravidez e Chanana esconde a dela.

A família cresceu. Jeremias refez os cálculos, ajustou o orçamento familiar e matriculou Talita e Victor Augusto no colégio dos padres.  Os alunos que se destacavam no colégio, logo padre Davi imaginava para eles alguma função na igreja. Robert daria um bom presbítero, tem boa oratória e, por certo, impressionará os fiéis com sua homilia. Entusiasta, o padre chegava a colocar um manto de freirana cabeça de Talita Cumi e com tristeza, vestes de Madalena em Tília Abraham.

Naquele dia, a aula pareceu endereçada a Tília. Davi não teria abordado o tema se ela não houvesse perguntado, publicamente, aquilo que em particular já lhe dissera sobre música funk: “A Igreja  sabe muito bem o efeito da música sobre as pessoas: a música prepara o ambiente para a ação do espírito de Deus, se provém dele ou, para a ação do mal, se vem do inimigo. Existe uma canção nova, uma música nova,  que faz  novas todas as criaturas. É Deus fazendo novas todas as coisas através da música. Existe também uma “canção velha”, a música do homem velho, da velha criatura. A música velha, mundana, alienante e pornográfica deve ser banida entre os cristãos, para que não guardem material explosivo em seu interior. Assim como se escolhe o alimento do corpo, deve-se também escolher o alimento espiritual. A boa música faz bem a alma, mas se não for boa, pode fazer mal. Tudo vai depender dos frutos que ela produz na mente e no espírito de quem ouve. A música só é boa, se der bons frutos.Enfim, não  queira, pois, ir para Nínive quando eu te mandar para Tárcis!”   E olhou por cima dos óculos para um canto da sala, na direção de Tília.

Robert questionou:

— Agora há pouco o professor dizia: “Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis.” Não seria o contrário: não queiras ir para Tarcis, quando eu te mandar para Nínive?

— Ora! — explica o padre: Alexandria tinha uma biblioteca com 700.000 volumes em rolos de papiro; Nínive, talvez a segunda maior da antiguidade, com 30 tábuas contendo ensinamentos de Astrologia. Quem sabe, Jonas além de profeta era também vendedor de livros, e preferiu vender suas idéias em Tárcis que não tinha biblioteca!? Agora imagine. Não queiras ir para Nínive, quando eu te mandar para Tárcis e não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive, tem o mesmo princípio: a obediência.

Davi se sentia pastor ferido, incapaz de conduzir o rebanho da casa de Jacó. Servia a Deus na esperança de que a Madre Igreja não tardasse permitir que os sacerdotes se casassem. “Por que não agora? Quanto tempo esperar ainda?” Estaria padre Davi vivendo o processo agostiniano de conversão? Um processo inverso, porque primeiro, Agostinho viveu a concupiscência da carne, e depois se converteu. Ele, Davi, estava  profundamente perturbado com a pergunta que Morgana fizera há poucos dias no colégio: “É verdade que José de Alencar é filho de um padre?” Teve vontade de dizer que o romancista brasileiro era filho do ex padre José Martiniano de Alencar. Mas sabia que padre, uma vez padre, mesmo perdendo as atribuições do ofício, nunca deixa de ser padre. Levantou, vestiu a batina e pouco depois já estava na Basílica celebrando a missa das sete. Consagrou o pão e o vinho. Distribuiu as partículas consagradas, deu a bênção final aos fiéis e ficou em adoração ao Santíssimo. O Auto da Alma se lhe passou pela mente:“Nesta triste carreira   desta vida, para os muitos perigos,  a  ALMA houvesse de alguma forma, encontrado guarida. Pousada com mantimentos,   mesa posta em clara luz e fartura,   sempre esperando  com dobrados mantimentos a criatura,   dos tormentos    que o Filho de Deus resgatou na Cruz,    comprou, penando... Sua morte foi avença,     dando, por dar-nos paraíso,   a sua vida.  A Alma que lhe é encomendada, mesmo enfraquecida,  vai tomando raio.  E em   se achegando nesta pousada  se abastece, recobra as forças, sai do desmaio...” Como se saísse lentamente de um estado de letargia, Davi ainda não respirava bem, mas podia ouvir o rufar de asas e o sussurro do  Anjo de LUZ  e quando o padre  percebeu estava voando nas alturas, em direção às SOMBRAS e à ESCURIDÃO... A luz sumia na distância, cada vez mais longe. Até que, na última hora, abraçou  a CRUZ,   e deu um grande e decisivo mergulho para a eternidade. Venceu o temor e o asco. Beijou a MORTE e viu o anjo das trevas desaparecer na escuridão. Mergulhou na direção da LUZ,  onde a Vida o resgatou...  Sem temor nem medo, escarneceu do anjo negro e voou para a luz.

Como em transe, o padre viu as cenas de seu  juízo particular: São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Persignou-se. Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito e em seguida, telefonou para Chanana suplicando por uma refeição.

— O padre não tem quem lhe faça o almoço.

— Não tenho nada especial no cardápio de hoje, se não se incomodar com o trivial... vamos comer arroz, feijão, alface, bife e ovo frito.

— Ótimo! Não aguento mais frango caipira.

Chegou cedo trazendo na mão esquerda uma valise e na direita, uma sacola.

— Que é isso? Veio de mudança?

Teve vontade de dizer “SIM”. Mas se calou.

— Fique à vontade, padre! Ainda não terminei o almoço.

— Sim, sim! Mas gostaria de te entregar estes paramentos! Se puderes mandar lavar, quero dar a eles uma aposentadoria digna.

— Aposentar por quê? Estão novos.

— Não é bem por quê é para quê. O sacerdócio é uma página virada no livro de minha vida.

­Durante a refeição a anfitriã olhava os movimentos de Davi cortando a carne com a mão esquerda.

— Canhoto, o senhor é canhoto?

— Quem criou as etiquetas de boas maneiras, esqueceu dos canhotos. Como posso cortar com a faca na mão direita? As pessoas acham-se no direito de determinar um padrão único para destros e canhotos e ainda pedem explicações aos que não se afeiçoam aos moldes que eles criaram.  Percebeu que tinha dito uma asneira. Ele devia explicações ao bispo diocesano sobre os motivos da decisão de deixar a batina. E quando o fez, o diocesano já sabia pela boca do povo.

O bispo sugeriu-lhe que tirasse férias, pensasse bem e decidisse da melhor forma, de modo a não causar escândalo na comunidade, mormente, por causa da intenção do pároco de se unir a uma paroquiana. Mas o padre estava decidido e assinou os papéis. Meses depois, correu a notícia que a Santa Sé negara a padre Davi o pedido de dispensa, no entanto, ninguém falava em excomunhão. A própria igreja já não se valia deste termo, mesmo porque há uma comunhão parcial do padre que abandonou o sacerdócio. Sem a excomunhão, pode ser cristão como um leigo, um ordenado sem direito de exercer a ordem.

Enquanto durou sua gestão como Reitor do Marista, as árvores do pátio recebiam decoração luminosa, as portas e janelas ficavam adornadas com o tom vermelho dos adereços natalinos e o auditório se transformava em enorme salão de festa para confraternização dos professores. No último ano letivo, a conversa informal parecia tentar resolver pendências que sofreram solução de continuidade. Davi contou que o pai de Tília viera reclamar da diretoria, por causa de medidas administrativas em relação às vestes usadas por baixo dos uniformes. Estavam proibidas as estampas de monstros e outras que o religioso chamava de símbolo da Nova Era.

— O Senhor humilhou minha filha, diante dos colegas no pátio da escola — disse o pai de Tília.

—Senhor HostílioAbraham, tudo que compõe ou está contido nesta escola, ainda que em caráter temporário, deve constituir-se em ferramenta paraeducar. A atitude de pedir a tradução do letreiro em inglês foi educativa, primeiro porque a camiseta usada pela menina, continha erro de gênero: Bad Boy significa rapaz mau ou rapaz ruim. Girl seria o nome propício para moça. Ademais, cada um escolhe o adjetivo com o qual quer definir-se, mas não posso permitir em minha escola uma Groupie que declaradamente afirma sua condição de andar pelos bastidores atrás de garanhão e faz isso através de inscrições em língua estrangeira, exibindo durante o recreio o letreiro das vestes usadas por baixo do uniforme.

— Padre, eu e minha filha não servimos ao teu Deus, ainda assim, as paredes do colégio que ela estuda estão cheias de estampas e imagens de um deus feito por mãos humanas!  Vou entrar com uma representação contra o Senhor.

— Pois entre logo. Disse o reitor dando as costas.

— Sacripanta! O velho reitorperscruta a imensidão do céu e não vê o recife de coral que fura o casco do navio. Se nós conselheiros, não fizermos oposição a esses abusos, logo o padre estará determinando a cor das calcinhas que as meninas devem usar.GROUPIE backstage pass é quase um movimento jovem. Quem consegue por freio numa juventude desembestada!

Solange Gomes sorriu

— Calma, Arnaldo!  Não convém premiar  delinquentes com as benesses do auxílio detenção, tampouco se deve espicaçá-los com a foice Carandiru.

  As palavras de Arnaldo ressoavam na alma do padre como um pecado público. Viver com uma mulher sem as bênçãos da Madre Igreja, doía-lhe muito. Não podia mais celebrar missas nem casamentos. Não podia participar da Partilha do Pão. Perdera o cargo de Reitor do Seminário e também de professor do colégio Marista, mas ganhara o coração de Chanana. Todas essas coisas colocadas na balança de São Miguel poderiam pesar contra ele. Ou talvez não! Já fora punido na terra! Portanto, Deus não cobraria duas vezes a mesma conta. Não teria o Criador selado aquela união? 

O afastamento de Chanana do colégio Marista foi também uma consequência de seu relacionamento com Davi. Com muito jeito, o novo reitor disse a ela:

— Filha, não fica bem para o Marista ter uma professora em nosso quadro que vive maritalmente com um padre... E como vai o Intensivo?

O questionamento do reitor trazia a sombra de uma proposta amigável de rescisão contratual.

— Padre Davi pediu demissão? Perguntou  Chanana.

— Digamos que houve um acordo.

— Está ficando tarde — disse ela — e assinou a rescisão contratual.

 

 

  8

 

A tarde fez-se mistério

Sobreveio a noite e depois

A manhã de um novo dia

 

 

Talita foi ao baile funk com um grão de sal debaixo da língua e uma folha de arruda na orelha.

— Tenho uma surpresa, quero que conheças Cristiano meu colega de faculdade. Cristiano esta é Talita e aquela é Tília! Disse Morgana.

A voz dele pareceu familiar. Talvez o conhecesse da Confeitaria, da loja de informática ou de outro lugar. Sim, lembrava-se perfeitamente de um jovem que  entrara em sua loja, há algum tempo,  procurando por uma Lan House. Seria Cristiano viciado em computador? Elaconheceu jovens que perderam dinheiro em apostas virtuais, namorados que perderam suas namoradas, maridos que perderam suas mulheres, moças que perderam a virgindade e crianças que se tornaram vítimas de pedofilia, depois de fazerem amizade com adultos pela Internet.  Tudo começa com joguinho inocente... Crianças interagindo com adultos, tornando-se presa fácil desses monstros. Ela Talita, não conseguiu ficar no baile. Estava em falta consigo mesma, tinha  compromisso de escrever pelo menos uma página de seu livro por dia. Saiu levando Morgana. Tília ficou. Cristiano também.

Não escreveria nenhum capítulo sobre baile funk, ou escreveria? Definitivamente, ela não gostava de conceitos pré-estabelecidos nem pós-estabelecidos. Tinha conceitos sobre a coisa de seus desejos, e, aos poucos, sentia-se imaculada, como nos primeiros dias de  Eva no paraíso. “Não se mudam conceitos por força de lei”, pensava, lembrando-se de seu poema que não pôde participar do Concurso de Poesias do Marista, com o título “MULATINHA”, porque considerado preconceituoso e segregativo.Ora, mulata já não significa mais  a filha de escravo e escrava sexual do patrão. Não é isso mais. Mulata é delicada, tem pele morena, cheiro de gravo e canela. Mulata é Talita, mulata é Gabriela.

Talita procurava passar a imagem de uma atendente atenciosa e gentil. Frequentemente recebia galanteios de grande parte da freguesia masculina. E, quando a conversa tomava rumo diferente, pedia licença para atender outro freguês. Nunca se apresentava como proprietária da Suport Informatic. Talvez por medida de segurança, pois, não se sabe exatamente a intenção das pessoas que chegam a um  balcão de informática. Jovens buscam por uma Lan House nos fundos de uma loja de fachada, onde possam fazer apostas enavegar sites pornôs. Outros,  procuram por informações, afinal, informação e informática têm a mesma raiz, o mesmo conceito etimológico: prestar suporte a. Daí a loja chamar-se SUPPORT INFORMATIC — um jogo etimológico com tom americanizado, para desviar a atenção do MADE IN CHINA gravado na embalagem e no fundo das peças que ela vendia.

Muitos fregueses retornavam, sob o falso pretexto de fazer levantamento de preços e compravam alguma coisa barata de que não necessitavam. Tudo para ver aquela encantadora balconista, repetir a mesma frase: “Volte sempre...”

 Os lábios carnudos da vendedora, contornados com batom mel-avermelhado tinham curvatura semelhante a dois acentos circunflexos, um com o vérticepara cima e o outro com vérticepara baixo, ligeiramente abertos, prontos para jogar um beijo. Todo dia ela pegava o metrô no Largo do Machado e descia na Estação Carioca. Via pessoas apressadas. Rostos de diversas feições, feições de diversos rostos fervilhavam na rua como formigas em formigueiro. Pobre Talita, morta de desgosto e cheia de tristeza de ver sua mocidade desabar como uma estrela cadente... Estava  cheia de vontade de dizer à rosa dos ventos que a vida não presta. Que as pessoas são árvores que andam, criaturas artificiais que vivem a mesmice do dormir e acordar, uma rotina, um caminho que não leva a lugar nenhum. Ou não. A vida é uma grande tela pintada com estilo e arte, uma paisagem de gente de todas as raças, mulheres de todas as taças à procura de marido. Há homens de short e de camisa regata, outros de terno e gravata, pendurados nas barras do trem como roupas no varal.Ela não pleiteava um herói de pancadaria em  teatro de mamulengos. De modo algum  invocaria frei Gaspar de Santo Antônio, mas o próprio Santo Antônio casamenteiro de Pádua para lhe conseguir um marido. E, embora não alimentasse sonhos de princesa, queria um casamento simples, com poucos convidados e uma banda tocando a valsa nupcial. Queria se casar na noite, na rua, no céu, no mar, mesmo e ainda que fosse com um vesgo, até mesmo um galo-de-campina... Estava cansada de comprar os beijos de Valdivino com o salário da loja.

Era festa do padroeiro  o coração acelera: dindãodindãodindão. O sino toca anunciando Deus  na  Trindade  de  três notas Teo-Deo-Céu. A lira  de dez cordas recorda os Dez Mandamentos como eco gravado, no coração. Bate o sino no campanário: dim... dão... dim ...dão. Toca o coração da menina badalando igual sino dim...dão, dim...dão.Bate o badalo, toca o sino bate o coração-menino na  festa do padroeiro.O sacristão toca o sino. Dim... dão... dim...dão...e desce do campanário. O vigário começa a procissão. O coração bate igual sino: Dim...dão...dim dão. Na festa do padroeiro o santo casamenteiro promete para o solteiro um par para seu coração dindãodindãodindão.

Devagar o ponteiro gira sem descanso, mais rápido, mais lento, o menor,  preciso e absoluto marca as horas, o grande,  pontilha o tempo, envelhece a aurora lentamente e escorre na  ampulheta cada minuto de vida. Finalmente, tudo  passa pelo vértice da existência, repousa como a areia deixada pelo vento e descansa em paz. STOP. O tempo parou ou foi a vida?

A vida não para...

Durante semanas e meses, Fernão ocupava uma das cadeiras do primeiro vagão. Talita desembarcava na Estação Carioca e ele seguia viagem. Nunca dirigiu a palavra a ela senão, quando a perna da moça ficou presa no espaço entre a plataforma e o trem. Naquele dia, prontamente, o rapaz a segurou pelo braço e desceu com ela na Estação Carioca.

—Você se machucou? — indagou com ar de preocupado.

—Não, não! Apenas algumas escoriações leves.

—Mas está sangrando...

—Sangra um pouco. Vou passar no  Posto de Saúde e fazer um curativo.

—Vou com você.

—Não precisa!

—Não tenha medo. Sou o Fernão. Trabalho aqui perto.

Passou um número de telefone, anotado em pedacinho de papel que arrancou da agenda. Acompanhou-a com o olhar e despediu-se tão logo o enfermeiro limpou os ferimentos e entregou a ela  um pacotinho com mercúrio e algodão: “Repita este procedimento amanhã. Não é nada grave, requer apenas higienização uma vez por dia.”

 Desejou vê-lo novamente, mas seria como encontrar uma agulha no palheiro, o Rio de janeiro é grande e movimentado em qualquer estação. Pôs a melhor roupa, soltou o cabelo, passou maquiagem e ligou para o número que havia recebido. O celular tocou muitas vezes, até gerar a mensagem: “caixa postal, o número que você ligou não existe ou está fora de área...” Apressou-se para pegar o metrô e ocupar o primeiro vagão. O trem chiou a um palmo de distância de seus pés. Lembrou-se da perna presa no vão da plataforma e entrou com cuidado. O primeiro vagão estava cheio de gente vazia, duas velhinhas conversavam em pé porque as cadeiras reservadas aos idosos estavam ocupadas por jovens que sorriam zombeteiros. Outras pessoas penduradas nas barras de ferro disputavam um lugar para colocar as mãos. Olhou atentamente, com certeza, não era ele.  Não guardara maiores informações na memória da fisionomia de seu herói. Mas aquele homem não usava terno. Não era o cavalheiro que a ajudara no dia do acidente na plataforma. Imagens desfilam velozmente na janela do trem, aos poucos, a máquina perde velocidade, e uma voz anuncia:

 

Próxima estação, Estação Carioca. Desembarque pelo lado direito.Next stop Carioca station, landing on the right side.

 

Pensou em telefonar para Morgana. Sempre que se sentia em baixo astral, ligava para a “Morga” e ela recitava alguma poesia, na maioria das vezes, de autoria da própria Talita.

— Sabe quem disse isso? “Se te sentes triste, solte a gaivota que há dentro de ti... grite, faça voos rasantes sobre o espelho das águas, depois, pouse no  capelo de um  navio.

Esta abordagem fez lembrar-se do pássaro de Bach. “Sim, Fernão é o nome dele”.

 

 

                  9

 

No fim da tarde o céu vermelho-acinzentado

 era igual ao crepúsculo da última hora

e  aurora do primeiro dia

 

 

Insone, a cidade cochilava sob o manto da escuridão. Caiu a noite sem luar e sem estrelas, nenhum ser luminoso brilhava no céu. Vez por outra, o breu da noite era riscado pelo clarão de foguetes, sinalizando a chegada de drogas ou a aproximação da polícia.

A luz de emergência de uma viatura passa em grande velocidade seguida do som ensurdecedor da sirene. Biba e Leonardo caminhavam ocultando seus vultos cambaios visivelmente exaustos, enquanto se  afastavam da cena do crime.Tília foi assassinada... Ela nunca fora presa por pequenos furtos. Sempre alegava que acontecera apenas um esbarrão e se dizia estudante, exibindo um livro que nunca lia. Cresceu de cima para baixo como rabo de cavalo e, quando se envolveu com tráfico de drogas, o corporativismo do pai não prevaleceu. Foi apanhada pela ronda do tenente Duran. Não adiantaram os protestos: “Sou filha de oficial.” Era verdade, a informação constava em sua identidade e esse registro em época de ditadura, salvou a pele de vários filhos de militares, envolvidos em crimes menores. Mas o tenente Duran era aroeira de sete cascas...

 Por causa do tráfico, Tília curtiu meses de cadeia em presídio feminino do Rio de Janeiro, até conseguir, a custa de muito dinheiro, provar que a quantidade de drogas que portava não era aquela informada no processo. Não negou a droga dos bolsos, alegou que tinha pequena quantidade, o suficiente para alterar seu enquadramento de traficante, para usuária. Conquistou a liberdade mediante o arrolamento de falsas testemunhas e a contratação de um advogado de porta de cadeia, conhecido por Diabo Louro. Ela escreveu com mão canhestra a história de sua vida e deixou a imagem gravada em monumento de cera. Associou-se ao tráfico de drogas e entregou-se à prostituição. Dividiu,  com outra prostituta, as imundices e depravações de uma cafua de bordel na Vila Mimosa. Comeu do fruto proibido e bebeu água do Nilo, ferida pela a vara de Moisés. A notícia de sua morte  foi divulgada na “Folha da Madrugada”, um periódico  de poucas páginas, desses vendidos nos semáforos por um quarto de real: 

 

Uma mulher de nome TíliaAbrahamconhecida na VM por Conchita, foi encontrada morta, na madrugada de ontem, em um quarto-e-sala da rua Ceará, com um tiro no peito, dois na cabeça e um na perna... Segundo versão dada por populares, a vítima explorava a venda de bebida alcoólica e drogas, e teria sido morta pela amante. A polícia suspeita de Biba, que vivia um triângulo amoroso com Tília e Leonardo. Biba e Leonardo não foram localizados pela polícia.

 

Robert soube da morte de Tília por informação de Talita, que, ao noticiar o fato, pediu uma audiência com ele.

— Quero convidá-lo para um sarau.

— Sarau?

— Uma tertúlia. Tenho um projeto literário e gostaria que você o examinasse.

—Bem, então este é o sarau?

— Não exatamente. O sarau na verdade, será na chácara de Alice em Petrópolis. Ela lançará um livro. Estarão presentes convidados da alta sociedade e do mundo das letras na circunscrição  literária do Rio, Petrópolis e São Paulo.

— Alice? Nossa ex-professora do Marista?

— Sim ela mesma.

– Menina, veja para onde está me levando...

— Por quê?

— Ora, eu como livro, me alimento de livro.

— Então, você é o verme gordo que roeu os sete livros do Velho Testamento?

Riu.

A semana passou devagar como se os dias escorressem numa ampulheta. Finalmente, quando Robert tocou o interfone, Talita, já o esperava.

Surpreso, viu o livro de Alice na mão de Talita.

— Que privilégio é este?

— Amizade, meu caro! Amizade. Alice goza de minha amizade e conhece meu projeto. Sabe até que você me acompanhará nesta jornada e ofereceu a chácara. O lugar é sossegado e muito bom.

 

 

10

 

No terreiro pia o pinto sem parar,

 corre o rato foge o gato do cachorro a rosnar

 Adiante voa o pato, cansa o ganso. ‘Tô franco’, diz o cocar

 

 

A casinha branca no pé da serra tinha uma ponte serpentiforme, bem no pongo do córrego onde a princesa Mariana, outrora se banhava. Lá embaixo, lambaris deslizavam nas águas cristalinas do ribeiro e fora da baia o garanhão negro cobria uma égua no cio.

— Linda! Disse Robert.

— Obrigada. Ouvir um elogio com o sol ainda baixo eleva a autoestima.

— Estou falando da chácara, boubinha.

Ela ficou sem resposta. Linda é uma palavra que não necessita de arranjos, diz tudo por si mesma. Sentiu a mão dele fazendo gracejos na bochecha dela e pensou no garanhão negro que vira na manga roçando o pescoço na crina de uma égua.

Na estrada, ela contara que o sítio fora do irmão de Alice e quando ele partiu deste para o outro lado da vida, a família colocou o imóvel à venda. A própria Alice encarregou-se de anunciar  em jornais a venda do imóvel, tomando como anúncio um texto atribuído a Olavo Bilac.

 

Vende-se encantadora propriedade, onde cantam os pássaros ao amanhecer; com extenso arvoredo, cortada por cristalinas e marejantes águas de um ribeiro.  A casa banhada pelo sol nascente oferece a sombra tranquila das tardes, na varanda.

 

Logo de manhã cedo Alice comprou o jornal.

— Rui, leia isto!...

— O sítio é bonito assim?

— Muito mais!

—Por que nós mesmos não o compramos? O contato com a natureza restaura as forças da alma e dá ao corpo  novo ânimo de vida.

— Eu gostaria muito, disse ela.

 Nem sempre as visitas conhecem a propriedade por inteiro, ficam em torno da sede, em volta da churrasqueira e do congelador cheio de cervejas. Acham o cavalo encilhado na porta da casa, volteiam o pátio e se dizem quebrados e descansam numa cadeira preguiçosa com uma lata de cerveja aos pés. O sítio  era quase uma fazenda. Terra bastante para criar  manga-larga em regime de confinamento.

— Basta comprarmos dez éguas e um garanhão, disse ele, daí a dois anos, com a venda das crias, só isto será suficiente para a manutenção da fazendola: pagar caseiro, comprar ração e ainda sobrar uma ponta de dinheiro para os gastos extras nos finais de semana.

 

 

 

 

 

11

 

Nas primeiras águas,  berra o boi solto na manga,

 corre o cavalo batendo os cascos,

 atrás de uma égua no cio...

 

As fantasias de Talita eram coisas de mocinha virgem que jamais consegue explorar completamente os meandros da concepção. Ela criava imagens incompletas dos sete minutos de intimidade dos Castros que  Morgana ouvia atrás da porta e lhe contava. Então, pensava em  receber de Robert um convite para celebrar a missa no altar dos sacrifícios...  E ria e chorava e conversava com o travesseiro.

Deitou-se, acomodou a cabeça, olhou para o teto e buscou por lembranças dos tempos de marista para afastar a inveja que sentia de Morgana pela amiga ter casado, e ela permanecer solteira. Enquanto pensava, ouvia no silêncio de sua imaginação  a voz do quarto animal que  clamava:  ‘Vem Talita!’ E viu surgir o cavalo esverdeado do apocalipse seis sete. Seu cavaleiro tinha  por nome Morte;e a região dos mortos a seguia com outro nome chamado pelos humanos de dengue hemorrágica. Só um mal daquela monta a impediria de ir ao casamento da Morga.  O pai gracejava: “ O mal de Talita é dengue. Está dengosa minha menina. Um dia a ciência vai mudar o nome da dengue para MAL DE TALITA CUMI”. Desta vez não riu. Sentia febre, dores musculares e vontade de ficar deitada...

— Amanhã, você receberá alta, disse o médico.

É pena, pensou ela: “faz dois dias que Morgana se casou! E ela, Talita  curtia dengue em leito de hospital. Em seguida, fechou as asas como uma gaivota em voo vertical para  erguer-se das águas com um troféu  no bico. Relembrou o sarau no sítio de Alice: o garanhão sacudindo o pescoço, roncando  atrás de uma égua no cio... Leu Iracema e viu Alencar colocá-la nos braços de Martim: “trêmula e palpitante como tímida perdiz...” É hora da estrela. “Por que não disparar o arco de cupido no coração de um náufrago. Soltar um grito de gaivota, e derrubar as muralhas de Jericó?” Tomou os originais do livro e dirigiu-se à casa de Robert.

Logo que sentaram para examinar o material, surgiu o primeiro impasse: Pelo gosto de Talita, declinaria o nome de todos os colegas do Marista, até o gol de Nilmário que deu à sala o título de campeã em 1980, merecia registro. Haveria de conseguir algum papel para muitos colegas, mesmo que fosse uma ponta, uma passagem rápida, como figurantes em telenovelas. Robert examinou os rascunhos, leu alguns títulos e deu seu parecer: “A primeira coisa a ser definida é o público-alvo, depois, constroem-se as cenas, escolhem-se os personagens e traçam-se os perfis. É preciso introduzir cada capítulo, sem contudo, fazer um prefácio dele. Cuidar da arte como se cuida de um filho em tenra idade. Há que se mesclar técnicas, colocar uma pitada de sal e outra de açúcar, levedar a massa e produzir um alimento de agradável sabor. O escritor deve construir cenas e cenários, de modo a permitir que os leitores entrem no livro.  Personagens precisam sair das páginas como Raquel e Alvarenga, para socorrerem Biba  acidentada na calçada. É a fantasia da realidade denunciando, fazendo o lado social da literatura. As histórias não podem ser estanques:  não se deve esvaziar o tinteiro, para que, com o resto da tinta, o leitor possa pintar novo quadro e recontar a história”.

Talita não gostou da preleção, fez um muxoxo seguido de desânimo. Não era seu feitio descartar uma oportunidade de negócio no primeiro obstáculo. E... mão por baixo, mão por cima, como morcego que lambe a presa antes de sugar-lhe o sangue, apontou, mirou bem e lançou um dardo flamejante:

—Essas coisas que me dizes, ouviste de Adilson, de Massaud Moisés ou do Carrero?  Soube que queimaste pestanas à cata de técnicas para escrever um livro. Dividiste o travesseiro com Clarice Lispector, andaste em longas caminhadas com Machado de Assis e ainda  debruçaste com Gilson Chagas em Música para Pensar. A crítica só  é importante quando se reveste de prévia análise.  Ninguém  consegue criticar uma obra, com isenção de ânimos, se não analisar primeiro os  fenômenos de linguagem e as técnicas utilizadas para construir imagens. Eu te propus um romance escrito a duas mãos... Mas, se queres analisar obras literárias, escreve tu mesmo o teu Ensaio e não conte comigo para isso.

O que Robert queria era excluir episódios e personagens que em nada contribuíam para o enredo. E por mais que insistisse deixar fora o gol de Nilmário, Talita distraiu o goleiro adversário para que a bola entrasse livremente.

—Podemos fazer um ensaio e depois transformá-lo em romance, disse ele.

— Vamos transformar os setenta capítulos em vinte e  um ou vinte e dois... Temos  células-dramáticas demais.

— Eu não quis dizer que devêssemos enxugar tanto. O enxugamento muito rigoroso traz o risco de descartar precioso tesouro.

“Transformar em romance...” Talita fez-se desentendida. Sabia muito bem  quando sair do aquário.

No dia seguinte, ela  não compareceu. Robert trabalhou sozinho! Consultou o dicionário de termos literários e procurou na  Internet por  Tipologia dos Personagens. Repetia em voz alta como se quisesse  decorar:

 

A personagem Plana é mais simples... Já a personagem   Redonda é complexas. Tem boas e más qualidades. Evolui durante a narrativa...

 

Robert, estudava conceitos e já os tinha praticamente de cor quando lhe bateu uma fome de cachorro sem dono. Seguiu a Mariz e Barros até o supermercado e com seu sotaque meio nordestino, meio carioca e quase mineiro, dirigiu-se a um velho que atendia no balcão de carnes.

—Quero comprar músculo de boi para fazer um cozido de panela. Vocês conhecem aqui esse músculo como paulista ou lagarto?

— Tanto faz!...Paulista e lagarto é a mesma coisa. Tu queres plano ou redondo?

Afastou-se pensativo: “Que sabe um açougueiro sobre perfil dos personagens?

 Numa esquina da Mariz e Barros, bebeu uma pinga 51 e pagou outra para Anacleto que exibia o retrato antigo de um menino.

— Este é meu filho Nilmário quando tinha onze anos. Hoje, ele é  o melhor jogador do rubro-negro.

Bebeu outra cachaça, e pagou mais uma ao outro. Mastigou um chiclete para dissimularo bafo da pinga e andou devagar, enquanto questionava se realmente, existiram muitas evas. Talvez sete, do contrário os descendentes da primeira mulher teriam sido resultado de incesto. Talvez um só Adão e muitas evas, pelo menos assim, irmãos se casavam com meio-irmãos, como as raças de  cavalos cruzadas no sítio de Alice. Deixou de lado as raças equinas e examinou etimologicamente o nome Holofernes, tentando formar algum conceito que designasse luz e inferno, claridade e trevas. Então o inferno é aqui e tapou o nariz para não sentir o cheiro da creolina que os cariocas derramam debaixo das marquises para afastar os moradores de rua. Sem pressa, fumou um cigarro. Deu outro a um mendigo e quando chegou a casa, Talita há muito já o esperava.

 — É necessário excluir algumas personagens, e eliminar outras, logo nos capítulos iniciais — disse Robert — e tomou como exemplo o trabalho de uma aranha. A aranha desenvolve uma armadilha para capturar sua presa. Ora, se a presa é grande, maior e mais resistente deverá ser a teia para envolvê-la, do contrário, facilmente escapará. O mesmo ocorre com as palavras de um texto: quanto maior for o rebanho de letras, maior será o trabalho do pastor para conduzi-las ao aprisco. Também com as personagens de um romance a situação é semelhante: se forem em número excessivamente grande, uma ou outra, acaba escapando, desgarrando-se do fio condutor. Não viste o que aconteceu com o amado Jorge? Ele tinha só 19 anos quando, resolveu tocar um rebanho muito grande e acabou perdendo algumas ovelhas no caminho. É preciso juntar as pontas, alinhavar o texto como a costureira faz com o pano, arrematar e aparar arestas.

— Concordo — disse Talita — o narrador  deve ser fiel a quem lhe emprestou a pena para escrever. Eu penso e tu escreves.

Dito isso, abaixou orelha e com todo sacrifício do raciocínio, entregou novos rascunhos para Robert, submissa, como Helena se entregava a seus maridos. Nada obstante, no canto do olho, escondia uma réstia de autoridade e, ironicamente arrematou: “Se vires algum erro na tradução do latim ou do grego, não te acanhes em consultar São Jerônimo, o dicionário de Renzo, e confessar com Santo Agostinho”.

Talita não hesitou em usar a autoridade quando Valdivino emitiu uma nota fiscal de mercadoria comprada na clandestinidade. Demitiu-o da loja, sem pagar os direitos sobre os beijos atrasados. Faria o mesmo com Robert, se ele balançasse na falsa baiana, durante a travessia de obstáculos.

— Joguei um capítulo na lixeira, disse ela.

— Não deveria — um livro não chega pronto e acabado como o ovo que a galinha solta na esteira de produção. Parágrafos e capítulos inteiros costumam vir desordenados;  recebe-se a matéria-prima que vem não sei de onde, mas é preciso por a casa em ordem ou ordem na casa. Seria bom se  pudéssemos escrever tudo sem pontuação e depois disséssemos: “Ordinário, marche” e todos os pontos, vírgulas e interrogações tomassem seus postos. É preciso que depois do lampejo, venhamos  com mãos de aleijadinho e transformemos a pedra sabão em arte e no final, sobra pouco do que se tinha antes.

Apanhou os rascunhos atirados por Talita no lixo e  leu devagar.

— Mimosa! Isto aqui, isto aqui é um capítulo do livro! Por que não  fundi-lo com outros contos e ter,  finalmente, um romance?Sem Mimosa não teríamos Apinajé, e sem Cláudio, não teríamos Campo Grande nem as lembranças que Corina guarda da cidade e das serras. Posso começar um Romance a partir de uma palavra-chave, da letra de uma música, ou de trechos de um poema. Se eu tiver uma fonte, as palavras surgirão borbulhantes, alimentarão as torrentes  de um rio que desaguará  em um  mar de ideias.

— É verdade! O leitor espera, por algo que seja um caldeirão fervente de cenas, cenários e ação, porque as digressões são cansativas. É certo que muitos leitores reconhecem essa técnica e saltam as páginas que discorrem sobre um regato louro ou uma pedra...

— Nisso tens razão. Leem-se romances por causa dos personagens. O povo quer saber até o que se passa nos bastidores de seus ídolos.

A estas palavras de Robert, Talita ouvia o eco da voz de Umberto refletindo sobre o que pensa uma pedra e se sentiu no dever de explicar a pedra que foi para ela, falar de percalina verde que arrancara da boca do Boitempo e, embora tenha dito que muita coisa de seu livro era de autoria do pai, ela  se esquecera de mencionar o avô. Ora, se Corina vendeu a coleção encadernada em percalina verde sem ler, Chanana  que à época só tinha doze anos também não deve ter lido. E muito menos Dulcineia que  saiu de Montes Claros, enrolada em cueiros de três  meses. Só havia duas possibilidades:  A primeira é que nada impedia que o avô Cláudio tivesse  lido a coleção e produzido aquela escrita; a segunda e a mais provável é que seu Jeremias tenha estabelecido um diálogo com “Boitempo” para homenagear o poeta mineiro. De qualquer modo, a homenagem parece dirigida não apenas a Drummond, mas se estende a todos os poetas que esperam tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia. Ela sabia que o pai participava de antologias e mantinha os livros escondidos em um quarto nos fundos. Sabia também que sua mãe era uma pedra-pomes, um pomo de discórdia saído das lavas de um vulcão em atividade. Pensava  a mãe como uma pedra? Será que as pedras guardam o registro de tudo que aconteceu durante sua vida pétrea? Se uma pedra nunca foi esmagada  e sendo uma pedra dura de roer, por quanto tempo durará a existência de uma pedra? Pode uma dinamite que explode uma pedreira, por fim a vida de uma pedra, ou transformá-la em dezenas e centenas de pedras menores que continuarão individualmente sendo uma pedra? Pode uma bola de fogo destruir uma pedra sem deixar cinzas de pedra? A Terra é uma bola de fogo que precisa de calor para subsistir, e,  em esfriando totalmente, morrerá congelada e não haverá mais vida. Não haverá mais pedra sobre pedra. Então, por que temer o aquecimento global, se o perigo está no resfriamento da Terra?

Parou. Pensou...

Há coisas mais importantes do que refletir sobre uma pedra. Por exemplo, o que pensam as pessoas sobre os personagens dos livros que leem?  Uns torcem para que Conhcita morra, outros que ela se case com Leonardo e viva feliz para sempre. Machado sugere que se comesse uma peça pelo fim. Entre logo no ápice, atingindo a culminância nos primeiros momentos. Seria seduzir o leitor, contar tudo no primeiro ato e dali em diante, desfiar os pormenores da trama, até chegar aos fatos que desencadearam o que já fora dito antes.  Talvez por isso, Jeremias ou quem quer que seja que escreveu “Percalina verde-drummond”, reduziu  de 24 para 12 os volumes da coleção em percalina verde, para depois apresentar mais seis volumes e depois mais seis, abrindo a torneira aos poucos e fechando na hora certa para que uma formiga  não seja arrastada pela correnteza.

—Não, não convém retomar os volumes da Biblioteca Verde nem  enrolar demais o leitor— disse Robert — Por que dizer tão pouco com tantas letras, se pode-se dizer muito, com pouca tinta? A linguagem cria seu próprio jeito de adequar-se e, já não se pode mais ser tão prolixo como outrora, mesmo porque, o tempo não para, anda  à velocidade da luz. O leitor não aceita ou não se debruça mais para ler longos textos; prefere os nanocontos. Sejamos, pois, concisos em tudo que dissermos, porque já o somos naquilo que fazemos. Ninguém tem tempo para nada: ninguém para diante de uma formiga que arrasta uma carga sete vezes mais pesada do que ela. Ninguém cuida de um pardal que caiu do ninho antes de estar pronto para voar.

 Robert  sabia que no voo literário, o percurso mais longo é a porta do avião e, antes que a Dama do Metrô reabrisse uma polêmica sobre assunto encerrado e voltasse a afagá-lo com piparotes, bocejou, acomodou-se melhor na cadeira e com as mãos metidas em luvas de seda declarou:

— Evitaremos as garças negras penduradas como morcegos no travessão de João Cabral e de outros tantos pensamentos alheios que utilizamos para explicar, para confundir ou ganhar tempo.

Referia-se às aspas, imagem buscada em morcegos grudados nas palavras como brincos em orelha de madama. Ele, Robert, preferia outros recursos, realçar em “itálico”,  ou mencionar o nome do autor de forma indireta, como: “não entrar em guerra nesses matos com Gregório, para citar Gregório de Matos Guerra.Talita não quis polemizar o discurso. Engoliu a seco muitas aspas. Ela sabia que não precisava voltar ao primeiro século antes de Cristo para encontrar Lucrécio ajoelhado aos pés de Mecenas. Encontraria em qualquer esquina um escritor vendendo o cérebro para comprar leite e pão. Pior ainda, muitos pagam pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou, Queirós também, e Coralina gastou todos os seus Vinténs de Cobre. Robert não queria pagar para ser lido. Também ela  nada pagaria a ele pela pareceria e revisão dos textos, a não ser que uma editora de renome abraçasse a causa, publicando a obra e lhe recompensasse  em dinheiro os justos e merecidos direitos autorais. Não cobraria nada dele, se resolvesse fazer uma edição independente. Mas não haveria produção independente. Pagar para ser divulgada estava fora de seus propósitos, pelo menos em alguns pontos seus anseios respiravam o mesmo ar que o parceiro. Ela também tinha ojeriza às aspas, verdadeiras caspas poluindo os textos que lia ou escrevia.

Abriu um sorriso sardônico e deu seu grito de gaivota:

—Mãos à obra!

— Amanhã, em minha casa— disse ele.

Dava para perceber que Robert estava cansado e nervoso. Mais nervoso do que cansado de tanto lutar para transformar o negro em branco e a brancura em negrume, retirar muitas as aspas e caspas do livro da vida.

 

 

 12

 

Não se pode por freio na boca de um profeta

Nem algemas nas mãos de um poeta...

 

 

 

Naquele dia, o encontro pareceu fora de propósito. Robert mostrava-se sem ânimo para escrever. Sentia-se algemado e com  um freio cabrestante na boca. Não sabia por onde começar e recebeu Talita  em casa com um sorriso meio fabricado:

 —Incomoda-se se eu tocar baixinho um CD do Fábio Jr.

— Se for alma gêmea, já está tocando.

Riram.

Ela tomou suco de abacaxi para ajudar na digestão de um batráquio que engolira na loja: teve que trocar uma peça visivelmente danificada pelo freguês e ouvir a ameaça de denunciá-la  ao Programa de Orientação e Proteção ao Consumidor. Pensou em acrescentar: “Até porque, duas vezes tivera que se explicar ao advogado do PROCON”.  Mas preferiu não dizê-lo pois, Robert não gostava dos conectores. Tinha ojeriza aos ‘tipo assim’ de Tília. Julgava-os inexpressivos. Também não gostava dos  “até porque”, nem do “diga-se de passagem”, este último, já tão desgastado pelo uso abusivo. Finalmente, retirou um papel entre as páginas de Exupéry e o entregou a Robert.

— Olha isto!

E aguardou por alguma reação dele, mas Robert em silêncio, corria as vistas, demoradamente, na página.É isso — disse ele.  Os leitores pagam para interagir com o autor, alguns se sentem biografados, outros reclamam, cobram mais ação e dizem que os escritores os tapeiam nos enredos: “São prolixos demais... eu diria isso ou aquilo de outro modo...” É verdade, os leitores têm seus direitos (não-autorais). O que gastam na compra de um livro é o preço que pagam para viajar em suas   páginas. Vamos apresentar a jibóia do pequeno Príncipe engolindo um elefante! As crianças saberão decifrar, senão agora, mais adiante, no decorrer da trama.

— Talvez noutro capítulo, disse ela.

— Depois não. Agora mesmo! Não podemos perder personagens no caminho. Algumas desaparecem por si mesmas, depois de cumprirem a missão, outras voltam para as páginas do livro de onde vieram e seguirão os desígnios do seu criador ou continuarão em outras obras. Não devemos praticar genocídio com nossas personagens, só por não sabermos o que fazer com elas. Não podemos jogar velhinhos em alto mar nem matar nossos jovens. O Carandiru e o infanticídio de Vigário Geral não podem mais se repetir na Gentil Pátria Amada.

Robert parecia triste não sabia como enxugar seu passivo, nem seu passado, porque o passado doído de menino criado sem pai, nunca passou.

—A noite é velha — disse Talita. Onde quer que façamos a próxima tertúlia?

— Na Chácara de Alice — respondeu ele sem titubear.

A chácara de Alice reconstruía em Talita lembranças do tempo em que ia com o pai à Quinta da Boa Vista, algumas vezes na companhia de Tília e Morgana ou com outros colegas de sala.

—Robert vai? Perguntava seu Jeremias.

— Talvez!...

—Podes convidar também o Nilmário, se quiseres.

Nem sempre os dois podiam ir, e quando isso acontecia, o pai de Talita deixava transparecer seu desejo que a escolha recaísse em Robert.

Logo, Talita  abortou as lembranças da Quinta da Boa Vista e aterrissou na chácara. Olhou uma gigantesca mangueira carregada de frutos e disse com suave doçura:

—Lindo!

— Obrigado. Eu também te acho linda.

— Não estou falando de ti, Bobinho! Falo delas...

— As mangas, além de bonitas devem ser doces, vamos levar algumas quando formos.

— As mangas são lindas, mas estou falando daquelas aves. E apontou para um casal de maracanãs trocando carinhos no galho.

— Parece que se beijam enquanto catam piolhos, ou catam piolhos, enquanto se beijam.

— Não estão catando piolho, boubinho!...

Como por um impulso, Robert beijou-a na boca, meio sem jeito, meio fora de prumo. Ela tremeu palpitante como a tímida perdiz alencarina. Sonhava com aquele beijo desde os tempos do Marista. Queria um beijo mais certeiro.

— A natureza é mãe e mestra, disse Robert, tremendo a voz, os lábios e as pernas.

Tudo tremeu, saiu do prumo, depois aprumou a conversa:

— Viste a Lagoa Azul?

— Sim, é uma linda história de amor que se passa numa ilha. Às vezes viajo na imaginação, e me sinto numa ilha deserta...

A pergunta caberia outras respostas. Talita teve vontade de dizer que viu estrelas, sentiu calafrios, mas conteve-se. Robert tentou estender o assunto. Queria falar do amor com estro poético, afinal, a vida é um poema que espera ser escrito. Quis falar,  mas não  pôde! Nada disse, apenas sorveu o doce mel dos lábios dela.

Muito tempo depois. Segundos, minutos... (Ninguém sabe! Nessas horas o relógio para e só o coração bate aceleradamente).

— Ando curiosa com alguma coisa que vi.

— Com  quê?

— Vi teu nome escrito em uma página amarelada pelo tempo, dentro do baú de meu pai. Eu ia ler, mas escutei o barulho dos chinelos dele no corredor e larguei o envelope, sem terminar  a leitura. As linhas introdutórias apontavam para um pedido de desculpas. Foi quando o pai me chegou trazendo a aquarela de Toquinho e uma folha de papel em branco, dizendo ser o túnel do tempo... Eu estava mais interessada para saber o que estava escrito naquele  papel que acabara de encontrar no baú dele. Fiquei curiosa.

 —Eu também

— Nada perguntei, para não levantar suspeitas. Nunca tinha visto a chave daquela arca antes. Agora depois que passamos a trabalhar juntos neste  livro, o pai anda seguindo meus passos. Larga a chave do baú em qualquer lugar, como se quisesse que eu encontrasse algo que ele não tem coragem de me contar, mas quer ter certeza de que tomei conhecimento ou não de alguma coisa misteriosa, cujo mistério se oferece para ser desvendado. Vi também alguns poemas, mas não tive tempo de ler.

— O poema em forma de um pássaro é de teu pai?

— Às vezes transcrevo textos que ele constrói e me convence a assumir a paternidade, ou melhor, a maternidade e me torno mãe postiça de muitas criações e criaturas que não gerei.

Pararam para um lanche. Talita teve vontade de contar a Robert as objeções do pai sobre o namoro dos dois que o velho insinuava haver descoberto. Seu Jeremias não apontava defeito no rapaz. Não queria o casamento entre eles e pronto!

O relógio disparou.O calendário também. Eles realizavam tertúlias uma ou duas vezes por semana. Já estavam trabalhando o livro há mais de seis meses e o rendimento apresentava melhores resultados para uma história de amor entre os dois do que o enredo de Sete Faces, ou não seria este o nome do livro? Haviam cogitado muitos outros nomes e nenhum deles parecia adequar-se ao enredo. Ela até pensara homenagear o pai, dando ao livro o nome: “ A Outra Face de Jeremias Palmeiras”. Com isso, quem sabe, o velho  que andava tão triste, voltaria a sorrir.

—Por que não “Tranças Congeladas”, sugeriu Robert.

— Talvez..., respondeu ela.

Deixaram o sítio.

A proximidade do casamento fez com que suspendessem por algum tempo os trabalhos  de enxugamento da obra. Era a hora da estrela. Talita refez a maquiagem, deixou o salão e em poucos minutos estava na Basílica de Santa Teresinha.

 

A grinalda que não pôs era branca e tinha uma  rosa vermelha bem no centro

 

O pai  descobriu que a filha se casaria com Robert Bessone às 17:00h na Basílica de Santa Teresinha. Faltavam quarenta minutos para as cinco da tarde, quando Jeremias Palmeira pegou o carro no  Aterro do Flamengo e se dirigiu em alta velocidade para a Tijuca.  Entrou em contramão, cortou sinal e foi multado diversas vezes pela vigilância eletrônica. Não se importava, precisava chegar a tempo de impedir o casamento da filha. Chegar  antes que Talita jogasse  o buquê para trás. O  velho Palmeira rezava para que a noiva se atrasasse.

Ela atrasou.

Os convidados esticaram  o pescoço na direção da porta de entrada.   Enfim, toca a valsa nupcial. Talita caminha lentamente, levada pelo braço de Cristiano. Queria casar-se de forma simples e embora não usasse vestido longo, não se podia dizer que estivesse desalinhada. Uma ponta de ciúme fez Morgana lembrar-se do dia em que se casou. O noivo estava bêbado, Cristiano estava bêbado demais no dia em que se casou com ela, Morgana. Agora, para Cristiano, tudo parecia um sonho, uma felicidade clandestina que duraria até o momento de entregar Talita  a Robert...

As fantasias de jovem soavam forte em sua mente, trazendo imagens de um passado não muito distante quando Cristiano, entrou na loja de informática da Rio Branco, procurando por uma lan house. A boca bem contornada pelo batom vermelho da atendente escondia a face da verdadeira dona da loja. A dona daquele bocão era também dona da loja Suport Informatic.

De longe, Morgana aguçava o sexto sentido para decifrar os pensamentos do marido que, agora conduzia Talita sobre o tapete vermelho da Basílica, andando a passos lentos como quem caminha sem querer chegar. O ministério de música para. Desolado, Cristiano entrega Talita a Robert, como Abraão entregou Sara ao faraó e sozinho volta. Sentou-se ao lado de Morgana e  ela o desprezou. Não lhe sorriu, desejou matá-lo. Frei Gaspar saúda os noivos. A assembleia muito reduzida fica de pé, faz o sinal da cruz e reza o Ato Penitencial. Cumpriu-se o ritual de fé até  o momento do “SIM” e então, pergunta o celebrante:

— Robert Bessone, é de livre e espontânea vontade que aceita Talita Cumi, como sua legítima esposa?...

— Sim!

Voltando-se para a noiva, repete o questionamento.

O silêncio do “sim” que não veio misturou-se com o barulho vindo da porta principal da igreja como se alguém pulasse cordas. Lá, um homem gesticulava, pulava e sacudia desesperadamente os braços. Frei Gaspar não acredita no que vê. Pensa nos proclamas que autorizou reduzir o prazo de divulgação... Jeremias continuava pulando sobre brasas, subia e descia balançando as partes vergonhosas, mal guardadas. Estava com uma camisa listrada, provavelmente, de um pijama, e na parte de baixo, uma ceroula de braguilha aberta, sem botão ou zíper. Estarrecido o frei conjecturava: “As mulheres seguram os seios quando pulam, já os homens não se preocupam com seus penduricalhos. Será por que Jeremias veio com aquele traje ao casamento da filha?” Alguém lhe passou as alianças e uma luz brilhou como lampejo: “Se alguém souber de algum IMPEDIMENTO, fale agora, ou se cale para sempre!” Um grito pula no ar como foguete itabirano: “Eles são irmãos! Eles são irmãos...”

 Os convidados olharam para trás e viram um homem com roupas de dormir, ainda em pé, mas despencou em fração de segundos. Exausto como o soldado de Maratona, Jeremias Palmeira tombou. Bateu a cabeça no chão, produzindo um som fofo e indescritível que ecoou em toda nave da igreja. O sangue escorreu no mosaico. Robert empalideceu.  Acabara de achar o pai e perder a noiva. Teve uma idéia, um gesto de carinho que não pudera receber nem dar antes. Retirou o lenço que enfeitava o fraque, enxugou suavemente o sangue que escorria da sobrancelha de Jeremias e guardou o lenço. Entre uma lágrima solta e um sorriso abafado, pensou: “Hoje perdi minha mulher e meu pai, ou não! As duas coisas juntas ou nenhuma delas”.

 

                    13

 

Sensual,  cativante  e criativa a leoa (que não tive)

 chama o amante à tarde, à noite e à luz do dia

E dessa chama de amor que arde se  vive

eternamente pregado em uma cruz 

 

 

Robert contempla o Palácio dos Leões de São Luis de Ribamar, uma fortaleza destruída, para que dos escombros nascesse um castelo.   Distante, muito distante geograficamente da cena de um casamento fracassado, seus olhos espiam a rua que passa na janela do lotação, enquanto pensa: Deveria ter abraçado o sacerdócio sugerido pelo padre Davi? Se o fizesse, não teria passado pelo vexame do impedimento de seu próprio matrimônio. Não! Não queria ser padre sem vocação. Seria um homem frustrado sem a costela que lhe foi retirada pelo Criador. A fêmea escolhe o parceiro pela capacidade genética de lhe dar uma cria forte e saudável. Que atrativo tinha ele  para conquistar uma mulher: baixinho, nariz amassado, sobrancelhas cerradas... Não era detentor de beleza física nem de recursos financeiros suficientes para atrair as fêmeas. Era apenas humorista com um emprego público e arrastava os mesmo genes de Talita, a mesma carne e os mesmos ossos de seus ossos, ou não?

Há meses sem notícias do Rio de Janeiro, sabia apenas que Morgana também se mudara para São Luís do Maranhão, mas, vê-la por ali, só por força de milagre do acaso. Levantou-se para deixar o lotação. Teria que descer na próxima parada. Tinha encontro marcado com a solidão de quatro paredes do quarto de luxuoso hotel na capital maranhense.

Precisava criar logo outro endereço eletrônico. Perdera toda lista de contato daquele que fora bloqueado pelo provedor. O email que criara com Talita para tratar do projeto literário fora invadido por hackers que enviaram mensagens pornográficas para todos os contatos da lista. Alguns deles não atendiam sequer as ligações telefônicas originadas de seu número. Não era exatamente o caso de Talita. A questão com ela era outra, um sonho desfeito...

Na portaria, o funcionário entregou-lhe um pacote.

— Encomenda para o senhor.

O Sedex procedia do Rio de Janeiro.

Robert tremeu. Abriu. Viu muitos textos encadernados e na primeira página, um recado manuscrito: “Explicit. O livro está concluído. Veja o que pode ser acrescido ou retirado. Beijos.Talita.” Ele releu o poema, de muito antes conhecido, desta vez já com o título:  

 

 VOO ABS 815

A

parede

 do mundo

 é azulada,

 até onde a vista alcança... O poeta vê além das

 nuvens brancas uma aquarela: nuvens amarelas... pássaro

 solitário refaz o ensaio de uma valsa. Tudo passa velozmente

 no imaginário... Se Fernão olha a gaivota, não vê o sol

de relembranças

que se põe

detrás

das

 suas

  asas

 

O poeta vê além das nuvens brancas uma aquarela. “Isto  não é uma gaivota, nem uma jibóia engolindo um elefante.É o voo de uma aeronave”.

— O senhor disse o quê? Perguntou o porteiro, por entender que Robert lhe dirigia a palavra.

— Nada não. Só pensei alto.

Fechou o guarda-chuva. Pôs o pacote debaixo do braço e entrou no hotel sentindo-se acompanhado por Talita. Ela estava ali inteira, naqueles escritos. Ele, Robert, achava  que agora sabia tudo porque o poema tinha um título: VOO ABS 815. Ledo engano. O que  era permitido dizer, Talita soltava aos poucos, abrindo a torneira e fechando-a imediatamente para que uma formiga que passava não se afogasse no dilúvio. Como saber tudo? O mundo do Romance viaja no túnel do tempo. É só  imaginar e pode-se viver o passado e o futuro quase que simultaneamente. Viver hoje o sol de ontem, e amanhã, o sol que ainda não veio como se o coração fosse feito apenas para guardar recordações... Ela já não sabia separar o passado do presente nem a ficção da realidade e nada sobre o futuro lhe  fora permitido revelar até o momento em que conheceu Fernão.

 

 

                     14

 Se Fernão olha a gaivota,  não vê o sol de relembranças

 que se põe atrás das suas asas.

 

 

 

Ouviu sons de chinelo na calçada. Aguçou os ouvidos debruçou-se na janela. O peito ofegante à espera daquela, cujos passos cadenciam o compasso e as batidas ritmadas de seu coração. Transeuntes num vaivém vão, outros vêm e passam apressados. Tudo alucinação... .Que pena! Não era Vannini. Era Vitalino, artesão nordestino, seguido pelos bonecos de sua criação.

Fernão dizia que fora seguido por um disco voador, que uma luz tentou sugá-lo para dentro da nave.

— Para com essas coisas! Para que te quer um extraterrestre?

— Então não acreditas também que tua mãe me aparece cercada de diabos querendo me levar paro o inferno?

—Minha mãe era uma mulher justa e acreditava na ressurreição dos mortos. Não por merecimento de sua pobre alma, mas por misericórdia de Deus. Se os justos vão para o céu, ela está no céu. Portanto, não lhe fará mal algum.

E se irritava. Pensamentos hostis, estranhos e às vezes agressivos se manifestavam nele. Calmamente Vannini trazia chá-de-jasmim e um comprimido, mas Fernão os recusava.

—Ontem não tomaste o remédio nem o chá? Beba e vê se não interrompe mais o tratamento!

Ela agia com paciência e cautela para não contrariar o marido, e assim, quando convocada para cobrir a falta de algum colega, deixava recado sobre a mesa, na tela do computador ou no criado mudo. Sempre estava disposta a servir a empresa, que lhe pagava em dobro pelo cumprimento de serviço em regime de urgência. Suportou com resignação todo o sofrimento advindo do convívio com Fernão até quando pôde. Mas desta vez, em poucas linhas, fez a mente dele dar um giro de trezentos e sessenta graus em torno de sua história, em torno do casamento com ela e dos sete anos de espera por um filho que não veio. Fernão abriu a porta do apartamento. Não havia ninguém em casa. Logo, pensou que sua mulher estivesse fazendo trabalho extra, cobrindo escala... Abriu as cortinas da sala e depois do quarto. Sobre o criado estava o bilhete deixado por sua mulher.

 

Meu teste de fertilidade deu positivo, e recusas fazer o teu. Ainda assim me insultas dizendo que eu não sirvo nem pra parir. Voltarei para assinar o desquite.

 

E rabiscou seu nome de solteira: Vannini Saboia Norato, deixando sinais de pouca firmeza no punho e muito tremor no coração. Ele tentou abrir a janela da sala como se o fizesse para libertar um pássaro da gaiola e foi impedido por um temporal que desabava lá fora  do tamanho da dor que invadia sua alma. Sete anos de casado e tudo somado não era nada, nada que pudesse impedir a separação. Ele não podia mais esperar que cessassem ventos e trovoadas e uma nova estação se lhe surgisse, trancado entre quadro paredes de um apartamento. Cansara de esperar que a mulher voltasse e ela não voltou, então, rasgou o  luto da separação e  saiu. Tomou o trem e desceu na Estação Carioca.

Na estação, Talita  se sentiu seguida por um homem de terno escuro cujo rosto lhe pareceu familiar. Olhando-o fixamente, reconheceu nele a imagem do passageiro que lhe dera o telefone anotado em um pedacinho de papel. Ela jamais diria que lhe telefonara durante dias seguidos... Por sorte, Fernão a poupou deste constrangimento, informando-a de que estivera fora do Brasil. Ela desceu na Estação Carioca e entrou na Suport Informatic. Ele a acompanhou.

 — É mais um freguês,  pensou Talita.

Fernão indagou  o preço de uma placa-mãe para seu NOTEBOOK ADM TURI. Pagou e retirou-se, não sem antes filmar com sua retina o perfil da balconista sorridente que dizia: “Volte sempre!” Logo que ele se retirou, curiosamente, ela  leu na segunda via da nota de balcão: Fernão de Noronha Capelo — Praça General Osório...  Àquela hora o prédio da Rio Branco estava praticamente vazio. Fechou a loja e passou na confeitaria. Por lá sempre aparecem jovens, pessoas mais velhas com ar de intelectual,  e empresários que fecham grandes negócios, enquanto tomam o chá das dezessete e trinta. Contemplou cinco enormes prateleiras que guardam a beleza das taças de cristal bordadas em ouro. O telefone móvel  tocou. Atenta, ouve a voz suave de um interlocutor que não lhe permitia falar.

— Não nos encontraremos mais no primeiro vagão, naquele horário da manhã — respirou  fundo e disse pausadamente — logo mais estarei na Confeitaria. Preciso falar pessoalmente com você.

Ela esperou.

Mil e um pensamentos passaram em sua mente. “Será que vale a pena? Pode não dar em nada esse encontro. Talvez sim, talvez não, quem sabe!” Novamente Fernão tomou o metrô, desta vez, em sentido contrário. Voltando... As palavras de Vannini ainda ressoavam no fundo de sua alma: “Vá de táxi”, dizia quando notava que o marido não tomara o comprimido na noite anterior, porque os sinais de abstinência eram visíveis: mostrava-se irritadiço, não queria comer ou comia demais. Dormia tarde e acordava muito tarde e se dizia perturbado, muito perturbado com a voz da sogra a ecoar em seus ouvidos: “Louco, você é um louco!...Deixe minha filha em paz...”

Ele não podia ser contrariado. Aquilo que lhe era negado insistia até conseguir. Mas, não era momento de pensar naquelas coisas. Tinha horário marcado na confeitaria com a moça da loja de informática. Obsessão! Talvez àquela hora sua mulher estivesse nos braços de Hemor. Seria mais prudente então, empreender uma nova conquista que disputar o amor de Vannini com o aviador.

Naquele final de tarde, Talita bebeu água no poço de Jacó e deu também de sua água ao samaritano. Foi o primeiro encontro. Fernão a levou em casa e se despediu dela com um ingênuo beijo no rosto. Ela retribuiu com outro um pouco mais ousado. Ele dissimulou. Tentou mostrar-se emocionado, mas não sabia se estava fortemente afetado pelo efeito da dose dupla de fumarato que tomara ou enciumado com as imagens que fazia de  sua mulher nos braços de  Hemor. Fitou Talita demoradamente. A moça  tinha sorriso  doce e sobre os cabelos negros, uma rosa vermelha guardava harmonia com as vestes. Ele olhava e via nela o rosto de Vannini. Não sabia muito sobre  Talita, nem mesmo que figurava nos registros de memória dela apenas um casamento que não  aconteceu. Foi cauteloso, jamais fizera convite direto para ela conhecer seu apartamento e os encontros na confeitaria, bares e restaurantes tornaram-se mais frequentes.

Outro dia, ele parou com ela, de carro, defronteao prédio em que morava e disse:Volto logo, só vou pegar um chaveiro de memória... Se não se incomodar com a bagunça, suba! Deves imaginar o que é um homem sozinho em casa.” Ela subiu mais pela curiosidade de saber como é um “homem sozinho em casa”.

Realmente, o apartamento estava em total desordem: copos na pia, panelas sujas sobre o fogão e roupas jogadas no sofá. Mas, sem demora, Fernão desconectou o pen drive de seu computar e  enfiou-o no bolso. “Se quiseres, já podemos ir, ou vais ficar para lavar a louça?” Disse com ar de riso, estendendo-lhe a mão. Abriu a porta e saíram devagar. Na escadaria, deu  um beijo no rosto dela, que  parecia mais uma caricia de pai, um amor diferente, um amor que inspira confiança.

O Notebook estava no carro, seria ainda aquele para o qual comprara uma placa-mãe? Talita não entendeu por que Fernão chamou o pen drive de chaveiro. Segurou a curiosidade, nada perguntou. Talvez ele não quisesse interferir na memória profissional dela. Andaram pouco, sem qualquer direção, praticamente calados até que o rapaz irrompeu o silêncio:

—Posso levá-la em casa? Tenho um trabalho a fazer no escritório, com certa urgência!

— Pode sim, pode sim...

Agora ela tinha um homem... Se nascera fadada a virgem vestal, julgava haver cumprido a missão: viveu trinta anos de castidade e, mesmo correndo o risco de ser atirada do monte Capitolino, tinha agora um homem pra chamar de seu. Poucos dias depois, novamente ele fez outra parada no apartamento. Parecia  um convite   para ela entrar. Desta vez não criou a desculpa de pegar um pen drive, simplesmente, disse:

—Demorarei pouco. Vou tomar banho e arrumar para sairmos. Se quiseres me acompanhar, garanto que não tem prato sujo na pia.

— Tenho sede. Vou subir. Espero que os copos também não estejam  sujos na pia.

Era quase possível ver o nervosismo dele refletido no soalho.  Não havia roupas espalhadas no chão. Nada sujo na pia. Tudo limpo e arrumado revelava a obra de uma boa diarista. Pratarias, talheres, cristais e vinhos sobre a mesa lembravam, guardadas as proporções de espaço e posses, o salão de chá da Confeitaria Colombo. Talita vasculhava com o olhar tudo que suas vistas alcançavam. Precisava explorar o máximo que pudesse, sem tocar em nada, enquanto ele tomava banho.

O tempo não lhe pareceu tão longo. No banheiro, Fernão criava frases, fazia e desfazia abordagens dirigidas ao espelho, acompanhando e refazendo os movimentos para corrigir gestos labiais e frases que não podiam ser feitas por encomenda. Queria ser autêntico. Temia assustá-la se saísse de roupão, ou quem sabe, no susto ela deixasse escapar um “Oh!” Preferiu não arriscar o roupão. Quem sabe uma bermuda, uma roupa caseira mais leve?...

—Demorei muito?

— Nem tanto! Agora preciso ir ao banheiro.

 A banheira de hidromassagem estava coberta de pétalas. Pétalas de rosas vermelhas, da cor dos lábios dela.

Relaxou e disse sorridente ainda saindo do banho.

— Gostei da surpresa. Não sabia da banheira com pétalas.

A garrafa de vinho que Fernão abriu, não chegava a ser um rare wines. Mas, tinha nome estrangeiro e a indicação da safra 1977.Ela não conhecia a marca GROUPIE. Nem tinha certeza da tradução. Pensou, pensou até se lembrar  de  já ter visto aquela inscrição nas camisetas que Tília usava por baixo do uniforme como um pacto com seus ídolos.Mas, vinho com aquele nome, nunca tinha visto. Talvez Fernão tivesse mandado rotular por encomenda a algum vinhateiro.

Talita também tinha um pacto com Fernão: nenhum deles investigaria a vida do outro. Deveriam continuar do mesmo modo como se conheceram antes e assim, evitariam discussões. As discussões faziam muito mal, por isso, ele mesmo propusera o pacto de vida a dois com suas individualidades preservadas, inclusive, morando cada um em sua casa...

O primeiro vexame foi o encontro com frei Gaspar.  Ela apresentou Fernão como marido, para não ter que dar maiores explicações. Sabia o que pensava a Igreja Católica sobre a união de um homem com uma mulher, sem o sacramento do matrimônio.

— Frei, este é meu marido.

— Muito bem minha filha! Por que não escolheu a Basílica de Santa Teresinha. Faria teu casamento com todo o prazer. Foi na pia de nossa igreja que foste batizada. Sabias disso?

— Sim, eu sei!  A mãe me falou algumas vezes sobre meu batizado.

— Vocês não apareceram mais na Basílica?...

— É verdade! Mamãe morreu e nos mudamos para o Aterro do Flamengo.

— Meus sentimentos pela morte de sua mãe. Dê um abraço em seu pai.

— Ele também morreu...

— Pena, seu Jeremias era um homem tão bom!

A conversa desviando-se de matrimônio parecia melhor para Fernão. Talita fingiu esquecer a pergunta sobre o casamento dela na Igreja Católica e o Frei, não insistiu nem insinuou aguardar resposta. Despediram-se e cada um tomou sua direção.

— Não sabia que me casara com uma carola!

Ela levou um susto e com sabedoria, respondeu:

— Faz parte de nosso pacto, não te lembras?

— Sim, mas não me apronte  armadilhas para casar na tua igreja.

 Pobre Talita! Guardava com tristeza as palavras dele: “Não me apronte armadilha para casar na tua igreja”. E entendeu perfeitamente que este posicionamento era um aviso de que jamais se casaria com ela. Percebera isso no desconforto que Fernão sentiu na presença do frei. Mas, o pacto que fizeram não permitia indagações sobre a vida particular de cada uma das partes.

— Quero romper o pacto, disse ela.

— Estás propondo descasamento?

— Não! Quero romper o pacto que fizemos de sermos anônimos, nada sabermos da vida do outro. Quero conhecer tua família!

— Vamos marcar um jantar com minha mãe! Sou filho único e meu pai é falecido.

Fernão ficou  aflito, chegou a imaginar que Talita pudesse  ter visto o diário de Vannini escondido no guarda-roupa... Ligou imediatamente para dona Raquel marcando um jantar em família.

Com que roupa eu vou...

Raquel escolheu a melhor veste, nem esportiva demais, nem exagerada como em seus tempos de estrela. Era uma mulher bonita e trazia alguns traços da mocidade que marcaram sucesso em capa de revista masculina no início dos anos sessenta. Sua maior recordação, ainda palpável, era o cadilac vermelho-acetinado com que, outrora, transbordava elegância e beleza na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Precisava cuidar-se para não se dirigir a Talita, chamando-a de Vannini. Apreensiva, Raquel se policiava o tempo todo e aquela noite não fora uma das melhores de sua vida. Havia um ar pesado, alguma coisa escondida por trás do olhar da mãe de Fernão que durante aquele encontro disse apenas: “Meus filhos, o amor é lindo, e ao mesmo tempo, feio se não vivido com maturidade...”

— Muitos já falaram de amor e quase nada foi dito — completou Talita — Há muito ainda que se dizer e escrever. Há muito ainda que se viver para descobrir o verdadeiro amor. Amar é sonhar a dois os mesmos sonhos. Viver as mesmas emoções, partilhar da mesma sensação de dor ou de alegria. É um eterno retirar pedras do caminho ou aprender a conviver com elas.

 Lentamente, Talita deixava que fosse lida uma ou outra página de sua vida, na esperança de que Fernão fizesse o mesmo. Mas, ele era pedra de cimento, areia e cal. Mudo e duro como uma rocha mantinha-se firme no propósito de não descobrir o véu, não revelar as sombras que pairavam sobre a sua cabeça.Tinha ciúme de Vannini e imaginava-a nos braços de Hemor. Com certeza, suas queixas eram menores do que a dor. Casara no civil e no eclesiástico, tudo direitinho, com tinta e papel! E de que lhe valeu isto? Casar é brigar e não ficar brigado. Se bem que não brigavam. Fernão apenas reclamava porque Vannini não lhe dava um filho. Ele pensava em contar tudo a Talita e o medo de perdê-la dava-lhe forças para enfrentar a realidade. Não era mais casado. Vannini Saboia conseguira do Tribunal Eclesiástico a Declaração de Nulidade do matrimônio: o Defensor do Vínculo admitiu que Fernão ocultara uma doença grave para se casar com a moça... Então ele, Fernão já se sentia solteiro, pronto para assumir novo compromisso, desde que não dependesse de assinar papel em cartório ou na Igreja. Isso ele não queria mais. Não entraria em pormenores. Bastava dizer: “Sou separado”. Mas aí, a pergunta vem. “Separado e divorciado?”  Porque não dizer então: “Sou solteiro, meu casamento com Vannini foi declarado nulo.”

— Queres me dizer algo?

— Não, não! Estou só pensando em uma viagem que preciso fazer à França, para concluir meu curso de aviação.

— E nem me convidas, talvez eu possa ir junto.

— Devo ficar por lá mais de um mês e você tem sua loja para cuidar. Além disso, eu jamais  iria a passeio. Não tenho boas lembranças das tardes cinzentas de Paris. Talita sentiu os ventos elísios congelarem seu coração  e foi assim, acusando a friagem das tardes que Fernão partiu sozinho para a França.

 

 

                 15

 

Sintetiza a vida. Coloca um pouco menos, de pontos de interrogações. Fala pequeno, mesmo sendo grandes as questões...(Paola Rhoden)

 

 

Na sala de espera do aeroporto, um homem contemplava a beleza feminina por trás do manto: um rosto lindo, salpicado de sardas, como minúsculas estrelas pontilhando o céu. Os olhos eram esverdeados, separados por delicada formação cartilaginosa, sobre a qual se podia dizer oh, que nariz bonito! Bonito também deveria ser aquele corpo coberto por longas vestes — uma freira — quanta beleza guardada nas dobras do manto!

— Morgana! É você?

A freira o olhou com suavidade e sorriu docemente.

— Meu nome é Paola Rhoden Napoleone... Quero dizer: irmã Paola e fechou o livro que estava lendo.

Nilmário passou as vistas ligeiramente na capa.

— Essa foto...

Não concluiu a frase e Paola completou:

— Foi a última vez que estive com meu pai. Eu tinha dezessete anos. Pouco tempo depois, ele morreu.

— Linda, muito linda!

— A música é linda. Aprendi a gostar de Pink Floyd com meu pai.

— Não falo da música — disse receoso de ser castigado pelo Céu, pois sabia que as consagradas se consideram servas e esposas de Deus. Outra vez, Nilmário a olhou, demoradamente... Aqueles olhos puxando para o verde deixaram-no estonteado. “Como se parece com a Morga!... Até o modo de sorrir lembra a ex colega de escola!...”

Ele enrubesceu. Sentiu a cor do beijo de Morgana tocado pelos ventos Maristas durante o campeonato intercolegial.  “Não, não pode ser! A Morga, uma freira? Não era ela!” Paola pareceu pura de corpo e de mente como Morgana. Sim, doce e pura como a Morga quando há muito tempo disse: “Parabéns, campeão!...E pregou no rosto dele um beijou ingênuo, infinitamente infantil.

— A madre vai a Paris?

— Desço em Dakar!

— Sou Nilmário.   Estudei em colégio de padres.

A freira recolheu o livro que largara na cadeira vizinha e pôs na bagagem de mão. Diferente de Lispector que não lia seus textos, depois de entregá-los ao editor, Paola leu e releu “Dezessete Anos”, até porque, seria traduzido para edição na Itália.

Persistiu ainda nele a estranha idéia do retrato de família viajando na carne.

— A senhora é irmã de Morgana? Nunca soube que ela tivesse uma irmã mais velha e tão bonita quanto. Falo de Morganade Castro Napoleone.  São parentes?

— Não! Embora meu nome de registro seja Paola Rhoden Napoleone. Não somos parentes. O nome não quer dizer nada.

 Nilmário mudou o rumo da prosa e contou sobre o desejo que o reitor do Marista tinha de tornar padre muitos meninos do colégio.

— Chegaste a fazer o teste vocacional?

— Não! Agendei uma entrevista com o Bispo, por insistência do Reitor, mas não compareci. Naquele mesmo dia, apresentei-me ao rubro-negro. Defendi sua bandeira até final do ano passado, quando meu passe foi vendido ao Saint-Etienne. Naturalmente, já não tenho o mesmo vigor dos anos oitenta, quando conquistei a taça para nossa turma do colégio Marista. Foi um gol lindo! Decisivo para nossa vitória. Nunca soube que Morgana tivesse alguma irmã, mas a senhora se parece tanto com ela...

— Talvez o sejamos — e sorriu no intervalo da dor — Meu pai jamais me falara de outra família. Depois que minha mãe faleceu, ele me internou no convento de freiras e raramente aparecia por lá. A Madressilva me contou tudo que sabia dele. Mas não era muito...  Nos primeiros cinco anos, visitava-me uma ou duas vezes por mês, depois disso, sumiu... Fiquei mais de dez anos sem vê-lo. A madre superiora foi transferida para um convento no Pará e por mais que eu tentasse contato, não conseguia. Talvez ela já soubesse da morte de meu pai, ou não queira acrescentar maiores informações sobre meu passado sofrido. Eu também nunca disse  que sabia da morte dele — Fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu: Esta será minha última missão! Ficarei alguns meses em Dakar e em seguida, deixarei o hábito. Pretendo tornar-me cidadã italiana, tenho um pé no Brasil e outro na Itália. Sinto muito decepcioná-lo por não ser parenta de Morgana. Deus utiliza um molde para cada pessoa, e jamais repete o mesmo modelo de rosto. Há sempre alguma coisa que diferencia uma pessoa de outra. Somos plural e singular, um ser coletivo e ao mesmo tempo, individual e único para Deus.  A propósito, no VIII Congresso Missionário Latino-Americano de 2008,  no Equador, um padre que se identificou como Victor Augusto me fez pergunta semelhante. Tive medo de penetrar no misterioso labirinto de meu passado e me calei. Preferi não revelar o pouco que sabia sobre minha vida e minha história. Só o GALILEU conhece a dor escondida na burca da samaritana. Disse finalmente, tentando por um ponto final naquele assunto.

— O padre não deu maiores informações sobre Morgana?

— Não! Não dei esta oportunidade a ele.  Aprendi com o anonimato uma forma de maquiar o rosto e não rasgar lembranças. Estávamos no Coliseu General Rumiñahui, na cidade de Quito e depois daquela hora, evitei novo encontro, misturando-me com a multidão. Eram mais de três mil pessoas de diversos países da América do Norte, Sul, Central e Caribe. Delegações religiosas, movimentos eclesiais e jovens missionários leigos. Foi muito fácil me esconder de um brasileiro no meio de tanta gente estrangeira. Meu pai falava pouco. Parecia esconder uma de suas faces, alguma coisa que o incomodava, alguma coisa que seu coração queria me dizer e ficava presa como um pedaço de maçã na garganta  de Adão. Ele também percebia um nó em minha garganta e nos calávamos. O silêncio guarda muitos mistérios — disse finalmente a freira, enquanto segurava uma lágrima que tentava escapar pelo canalículo nasolacrimal.

A conversa foi interrompida por uma voz firme quase mecânica: “Atenção senhores passageiros do voo ABS 815 com destino a Paris, por favor, dirijam-se ao Portão B.”  Sem nenhum tumulto, os passageiros se organizaram em fila única. Fernão também se apresentou e se identificou como operador de voo, ainda assim, encontrou dificuldade para embarcar no aeroporto do Rio, porque debaixo do terno, o colete salva-vidas o deixava com o tórax desproporcional, largo, muito largo como de um jogador de futebol americano.

 O curso para obter licença de pilotar avião que concluiria na França, completava as horas mínimas de voos necessárias para conquista do brevê. Ele não queria apenas uma carta para voar. Depois do brevê, ingressaria na Esquadrilha da Fumaça e faria acrobacias assustadoras. Sua coragem e habilidades fariam de Hemor um velho atobácom os pés presos na areia da praia.

Quando Fernão entrou na aeronave, os demais passageiros já estavam sentados e os comissários de voo, preparavam-se para a demonstração de uso dos equipamentos de segurança. Sentiu-se uma gaivota nas mãos de Richard Bach... Abriu o livro com avidez; aguçou a imaginação e foi engolindo cada página como se nunca houvesse lido o livro antes. Ele queria ser diferente dos outros seres de sua espécie: não mataria por vingança, ao contrário, superaria suas próprias forças, quebraria as barreiras e limites individuais, dominaria o céu. Não seria mais um ser qualquer à procura de ração. Queria fazer acrobacias que deixassem Vannini encantada, arrependida de tê-lo trocado por Hemor. Ele era um Fernão!  E jamais agiria como Menelau pedindo ajuda a Agamêmnon, para retirar a esposa dos braços de Páris. Faria tudo sozinho, aperfeiçoaria sua técnica de voo, de modo que nenhum piloto voasse tão bem quanto ele. Poderia até simular um acidente aéreo, destruir a Casa Dourada ou o Castelo Branco para retirar sua amada dos braços do rei de Siquém e finalmente ter uma vida de príncipe. Enquanto divagava, um comissário apresentava os equipamentos de segurança e uma voz suave descrevia o modo de usá-los.  Aquela voz era de Vannini, não tinha dúvida: Vannini estava a bordo.

O tempo lá fora parecia ruim, de quando em vez uma carga elétrica disparava flashes na pequena janela da aeronave, revelando rostos amedrontadamente pálidos. Interessado no conhecimento de aeronáutica que a leitura oferecia, Fernão leu Capelo Gaivota, muitas vezes no intento de  aprender a superar barreiras e limites inerentes à sua espécie. Como o ciúme. Este mau sentimento era o grande obstáculo que precisava transpor. Precisava estar aberto de corpo, e de  mente, quando desembarcasse em Paris e fosse conversar com Vannini.  A inveja tinha sido o vulcão aceso com a tocha do diabo que seduziu Siquém a raptar Dina. Vulcão que também ardeu na alma de Hemor quando tomou Vannini para si.  Fernão decolaria em voo experimental no porta-aviões Charles de Gaulle e pousariano coração de Vannini para nunca mais decolar. Queria superar os limites de suas forças; rasgar as páginas  que registram a vida de um homem traído e não esconder de si mesmo o segredo que muitos já sabiam: sua mulher o trocou por um piloto que voava sem licença para voar. Pobre diabo este Capelo. Não tinha boas lembranças de Paris...

 

 

                   16

 

A menina (dos olhos) não se cansa de olhar

o mar e o céu azul na retina das lembranças...

 

 

Levou o recorte de papel que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: “Vim te devolver isto”. Abriu-o outra vez e leu em silêncio o poema que escrevera no verso do bilhete dela. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Vannini, no momento do desembarque em Paris. E reprisoua cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho navegando um navio sem timoneiro chocando-se com o paredão da encosta. Fernão tinha certeza que desta vez não voltaria sem ter uma conversa com  Vannini e quando retornasse da França contaria tudo a Talita. Malgrado, não conseguisse nada com aquela que fora sua  esposa, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Talita sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador.

Nos momentos de aflição, as horas parecem escorrer mais lentamente e cada minuto torna-se uma eternidade. Fernão estava em um isolamento de quatro paredes aladas que pareciam não sair do lugar. Sequer ouvia com clareza o ronco das turbinas, tal era sua compenetração na leitura de Bach. Tudo era um silêncio mortal, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: “Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá alteração no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa  é de quarenta e sete grausnegativos. Boa noite e boa viagem!”

— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.

— Sim, eu aceito! — respondeu Alice.

— Acho que esses companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional paraas Artes e Literatura na França. Aquele não é o Arnaldo?

— É ele sim! E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que inscreveu no Salon Du Livre.

— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...

— Autobiográfico?Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — Não leste as últimas postagens de Vaninha Lopes? Pessoalmente é uma pessoa realizada, mas sua poesia transpira  desassossego da alma, inquietude e solidão. No caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso. Realmente, Arnaldo  se desentendeu com padre Davi. Como educador, o padre  não evoluiu. Tem cultura, mas parece nunca ter lido Paulo Freire. Davi sempre foi autoritário, um & 39;ditador& 39;, e não um & 39;mediador& 39; de conhecimento.

— Nascemos velhos — diz Alice nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc. Só quando adultos e desfrutando da razão crítica, vamos rejuvenescer... vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, jogamos fora grande parte do fardo...

— Será que   Arnaldo não foi ao velório do padre Davi? Não o vi por lá!

— Foi. Eu o vi. Calado como sempre, mal me cumprimentou. Arnaldo é durão e o padre, uma pedra, uma pedra que a Igreja não conseguiu lapidar. Que Deus o tenha!...

— Cruz credo!  isso é hora de falar em morte?  Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés bem firmes presos no chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!

— Claro, Solange. Foi este voo literário que nos pôs nas asas deste avião. Mas, à morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o Anjo Negro venha apanhar-me agora.

Anjo Negro...Também li aquele confrade no Portal Literal. A construção das identidades e as representações de mundo são retratadas em suas obras, com um olhar sistêmico-funcional. Com uma magnífica literatura de raiz...

— Você entende muito dessas coisas, não é mesmo?

 —Não sou crítica de literatura. Sou pesquisadora de Linguagem. A priori, o objetivo desta viagem é científico. Logo depois do encontro no Salon Du Livre, devo ir ao Sul da França, na região administrativa de Languedoc-Roussillon, pesquisar   Joseph-Abraham Bénard, um comediante francês. 

– Também não sou crítica. Produzo meus textos depois de ler livros de Filosofia... pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. Sabemos que as palavras criam mundos, nossa responsabilidade é usarmos a imaginação, e a criação para tentar colaborar na melhoria do mundo real. Qualquer ato humano participa do devir, das mudanças.

— Sabia que a viúva do padre está neste voo?

— Chanana?

Sim! Parece que vai divulgar obras do finado.

— Qual foi mesmo o mal que o matou?

— Padre Davi morreu do mal de Lázaro.

— Hanseníase?

— Sim, hanseníase. Dizem que doenças antigas, praticamente erradicadas, estão voltando.

— Já soube  que o Carrero vai ser publicado na França?

— É mesmo! Qual dos livros será traduzido?

— A Preparação do Escritor.

— Nossa! É o mesmo que ensinar inglês aos ingleses. No bom sentido é claro, porque a França continua sendo o berço da linguística e coleciona o maior número de Prêmio Nobel de Literatura.

Fernão fechou o livro de Bach. Era aquela a terceira vez em menos de dois anos que lia Capelo Gaivota.

 

 

                    17

A parede do mundo é azulada até onde a vista alcança...

Se Fernão olha a gaivota  não vê o sol que se põe

 atrás de suas asas  

 

Ele se destacara como um dos melhores cadetes de sua turma. Mas, naquele momento, teve medo de voar. Tinha conhecimentos técnicos de aeronave, navegação aérea, teoria de voo aerodinâmico e segurança. Fora preparado para tomar decisões acertadas em situação de emergência e naquela hora, não pôde, contudo, evitar que uma constipação o apanhasse subitamente.  Não sabia se era emoção por aproximar-se o momento de ter em mãos o seu brevê ou de estar viajando com Vannini. Calma, Fernão, calma! — dizia ele para sua alma: “Em situações de emergência é preciso ter calma. É preciso fazer tudo que tem que ser feito”. E dirigiu-se ao toalete.

No trajeto, deparou-se com uma pessoa que lhe pareceu conhecida...

— André, é você?

— Sou André Albuquerque.

— Não te lembras de mim? Fomos colegas no Joaquim Nabuco!

— Gaivota! Não acredito? Quanto tempo!...Não te importas mais com este apelido, não é mesmo?

— Claro que não! E até tenho muita saudade do colegial. Recordo-me de estar pronto para te dar um soco, quando,suavemente, me deste uma tapinha nas costas, dizendo: “Brincadeirinha, amigo!”

— Lembro perfeitamente, disse André.

Os dois riram, e, entre o sorriso e o medo, uma turbulência cortou o diálogo. Alguém gritou:

—Vamos estourar!

— Coisa passageira — disse outro.

Desfeito o susto, Nilmário permanecia segurando a mão de Paola. Com cuidado e maciez na voz a freira puxou lentamente a mão e sintetizou.

 — A turbulência passou! Não tenho permissão ainda para tirar o hábito. 

Ela sempre foi de poucas palavras e interrogações. Sonhou com um curso superior e ainda jovem, graduou-se em Direito e, por  causa da faculdade, retardou sua missão, princípio e foco maior do regulamento interno da congregação de  Nossa Senhora de Namur. Inicialmente, Irmã Paola trabalhou em missões domésticas. Em Goiás, conheceu remanescentes Jês que habitavam o baixo Araguaia, e o Tocantins. Aquela  comunidade indígena chorava as baixas em combates com o homem branco, em quantidade tanta, que não tinham potes suficientes para depositarem seus mortos. Os jês  pranteavam a morte do cacique Cuiarana, morto durante a construção da Transbrasiliana. E choravam uma Apinajé desaparecida quando tinha  17  anos...

 Naquele mesmo ano, a consagrada  Paola decidiu dar nova direção à sua linha de trabalhado, afastou-se da assessoria ao Conflito dos Guajajaras e desligou-se da Escola Brasil Grande, para assumir  missão evangelizadora em países da África. Ali, curou a ferida alheia e  com a alma na mão guardou as suas dores na gaveta. Por qual espírito estaria sendo movida agora? Por que lhe vinham à mente projetos de casar e ter muitos filhos? “Deixe-se conduzir pelo Espírito”, dizia, recordando-se das palavras do apóstolo Paulo. Mas, também está escrito: “Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher...”  Ela poderia servir a Deus como leiga, casar-se e ter filhos. Viver uma vida santa. Compreendera que “a vocação para a vida eterna é sobrenatural”. Alcança casados, viúvos, solteiros, velhos, jovens e crianças. Casar com um jogador do Saint-Etienne, um brasileiro que conhecera na sala de embarque do aeroporto no Rio de Janeiro, e ainda muitos anos mais novo do que ela?! A idéia pareceu absurda, mesmo porque, embora Nilmário tenha insinuado, ela não recebeu sequer um pedido de namoro. Nem poderia! Consagrara sua vida a Deus com votos de pobreza e castidade. Era cedo para pensar em morar na França. Seu projeto para o futuro seria voltar às raízes, fixar residência na Itália e escrever livros, muitos livros.

O outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há  cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.

— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero, dirigindo-se a Gilson Chagas.

— Talvez sim! Fui bancário e levava vida cigana. Precisava estar mudando de uma agência para outra, com o objetivo de fazer carreira no Banco. Trabalhei em Picos, Fortaleza, no Rio de Janeiro, em Brasília e em várias cidades de diversos estados. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do “caminho das índias”. Mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas  nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.

—Pelo tipo de prosa, o amigo também é escritor! Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro noSalon Du Livre?— Perguntou Carrero.

— Sim! Escrevi “A Ferro e Fogo” e um livro técnico em 2005, intitulado Contabilidade Geral Simplificada.  O último foi o romance “Música para Pensar”, lançado este ano. Produzi também outras obras na juventude que, hoje renego, e seria capaz de escrever nelas:“incorrigível. Só o fogo!” Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto.

— Não conheço teus livros! Li alguma coisa em sites literários. Não acha perigoso colocar a própria fotografia na Internet?

— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida.

— É verdade! Muitos já disseram isto com outras palavras.

— Sim, já disseram. Muitos já disseram: “Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos”.

— Os sites literários estão repletos de velhos e novos talentos. Li um artigo de Francisco Miguel sobre PROSOPAGNOSIA. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... “E aí começava meu martírio” — diz Miguel.

—É... o Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador na direção das Letras.

— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?

— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele já tem 76 janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa chegar a essa idade e o Chico ultrapasse em muitos anos o marco até agora alcançado.

Somos pedras que se consomem...  Diz Carrero —Meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha!  Eu gosto tanto disso aqui!  É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...

E trocaram gentilezas oferecendo um ao outro os últimos títulos que publicaram. Fernão olhou de soslaio. Lia muito, mas nunca pensara em escrever livros. Poesia nunca fez. Aventuravafazer rimas.   Aborrecia-se com os colegas que zombavam de seu nome: “Fernão Capelo tem pena de gaivota no cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua autoestima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio no Joaquim Nabuco.  A galhofa que lhe faziam do  nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Ele só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha  nem Noronha Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach. Perdera, no entanto, o apelido quando voltou com quinze anos para o Rio de Janeiro.

Inquieto, Fernão acionou o serviço de bordo. A comissária aproximou-se:

— Pois não, deseja alguma coisa, senhor?

— Estamos voando baixo, disse ele.

— O Senhor está enganado! Estamos em cruzeiro, voando a trinta e seis mil pés.

— Vejo o azul muito próximo.

— Sim, o céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente. Qualquer dúvida pode chamar-me novamente.

Aproveitando o clarão do relâmpago, Fernão olhou através da janela, captou a imagem de fora e reconstruiu a frase da aeromoça: “O céu é lindo porque é azul.” Refez várias vezes... “O céu é lindo porque é azul da cor do mar”. 

— É isso, o mar é azul da cor do céu. Vejo o mar debaixo de meus pés.

 

 

 

18

 

Tão temerosa vinha e carregada.

 Que pôs nos corações um grande medo;

bramindo, o negro mar de longe brada,

como se desse em vão nalgum rochedo.

(Camões)

 

 

Camões assim cantava a glória da navegação portuguesa. E, tão eloquente antes quanto agora, permitiu que Fernão visse em sua frente uma parede. Acenderam-se as luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: “Senhoras e senhores. Nimbos se aproximam em rota de colisão, por favor,  mantenham a poltrona na vertical e apertem os cintos. Obrigada!” Agora a voz feminina confirmava a suspeita. Era ela! Fernão conhecia muito bem quando Vannini estava nervosa. Aproximadamente, cinco minutos depois, ela anuncia novamente: “Senhoras e senhores,  por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência.Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada!”

Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, pareciam compenetrados demais, vasculhando  procedimentos de segurança. Fernão sabia como abrir a porta de emergência situada nas proximidades de sua poltrona. Levantou-se. As pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou-se. Deixou que se passassem alguns segundos... Abriu o terno, conferiu o colete, retirou o paletó e afrouxou os sapatos. Queria ter penas de gaivota na cabeça, nas asas... Queria voar!  Ele era um Fernão como diziam os colegas de escola. Sim!...Era Fernão um náufrago em potencial. Não havia jeito! Titanic se partiria no choque contra um iceberg. E se sentia como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Superaria seus limites como uma gaivota voando a uma velocidade impossível para sua espécie ou se espatifaria em um paredão de água dura como concreto.

Cenas do Armageddon desfilavam em sua mente: viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia “É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras”. O primeiro anjo tocou. Saraivada de fogo  percorreu o interior  da nave. O anjo abriu o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto no regaço. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrito.  Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco...  Quanta vez deixou de dizer à pessoa amada “Eu te amo!” Quanta vez virara o rosto para Vannini, e maculara sua pureza com infâmias e desdéns!... Quanta vez Talita dera a ele a oportunidade de refazer a própria história e as páginas permaneciam em branco!... Desejou abraçar Vannini e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris.

Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladinhas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço em voz alta e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: “Sou PASTOR!” E traçou com as duas mãos no ar o sinal da cruz, dizendo: “Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoou todos os vossos pecados inconfessos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Alguns responderam: “AMÉM!” Ninivitas creram e balbuciaram palavras quase inaudíveis,outros, apenas moviam os lábios como se falassem a língua dos anjos. Por um instante, fez-se silêncio no céu. Em êxtase, Fernão entrou na cena de seu batismo, viu os pais e padrinhos na Igreja da Consolação. Viu uma pia com água e pessoas da comunidade que acendiam velas no Círio Pascal. Com um crucifixo no peito e outro bem maior na mão o sacerdote ungia-lhe a testa e o peito com o óleo dos catecúmenos. Viu ainda um animal asqueroso levantar-se do mar. A Fera tinha dez chifres, sete cabeças e muito poder sobre a Terra. A fera queria apagar a vela que os cristãos acenderam para Deus, lançando espessa fumaça na mente daqueles que vacilavam na fé. A mãe traçou uma cruz na testa do filho. Houve uma explosão que só o menino ouviu e chorou. O animal desapareceu numa nuvem de fumaça negra. Fernão viu também Moisés no monte Nebo jogar seu manto para Josué, dizendo-lhe: “O que está oculto pertence ao Senhor, nosso Deus; o que foi revelado é para nós e para nossos filhos. Nada temas. O Senhor mesmo marchará diante de ti, e estará contigo”. Passou em seguida o manto para Josué e Josué passou o manto sobre a cabeça do menino. Veio uma nuvem luminosa e o envolveu. Extático, Fernão desprendeu-se do sobrenatural e lentamente, retornava ao mundo dos mortais. Não muito bem desenhadas, traçou uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito.  Objetos, poltronas e bagagens voavam em todas as direções e se chocavam, ora contra a fuselagem, ora contra os passageiros e tripulantes. Gravemente ferido, o corpo do Pastor estava estendido, a fio comprido, no corredor da aeronave.

—Tem algum médico a bordo? — perguntou a chefe dos comissários.

 André Albuquerque conseguiu, com dificuldade, pegar sua maleta. Em seguida, a doutora, Tânia Piccininitambém apanhou a dela. Os dois caíram inertes. Algum metal pesado os atingiu e suas maletas foram sugadas pela janela quebrada. Também foram sugados muitos passageiros e lançados para fora da nave. Vannini evitou o choque com um notebook que passava voando. Abaixou-se e sentou pensativa numa poltrona ao lado de uma velhinha morta. Arrependeu-se de ter avisado a Hemor que Fernão estava a bordo. “E se ao invés de desviar dos nimbos, o piloto resolveu entrar em rota de colisão com eles? Fernão é “esquizo”. Hemor também. E se Fernão invadir a cabine de comando? Se os dois entrarem em luta corporal...”

 Levantou-se segurando firme em uma e outra poltrona.  Ainda sentado Fernão estava. Ela assentou-se juntinho dele e estendeu-lhe a mão. “Que seja eterno enquanto dure!” Pensou ele, entregando-lhe o bilhete guardado há anos, com anotações recentes.

—Leia o verso — disse ele.

Vannini leu em silêncio e ouviu os gritos do coração.

— Vai dar certo, disse ela.

Colocou o bilhete em um dos bolsos do uniforme e  voltou para a cabine pensando em sua história, sua vida com Fernão.

 

 

 

19

Não adianta se esconder de mim,  nem

de ti mesma, a tua luz continua acesa

brilhante e reluzente como uma estrela

 

 

 

Sete anos de trabalho na casa de Raquel, Vannini tinha. A própria Raquel que ensinara os serviços de camareira à menina, também lhe ensinara  como se comportar na entrevista para uma vaga de aeromoça.

Os bons modos impressionam favoravelmente, disse a patroa:  O modo de sentar, caminhar no corredor da aeronave ou ficar em pé, indicam a linha de educação, a personalidade  e o estado de espírito da pessoa. Tudo isso, de maneira mais natural possível porque a  fala ou os gestos excessivamente artificiais causam fadiga a quem ouve ou vê. A boa postura física impressiona, positivamente, na conquista de  emprego, trabalho ou pretensões de  casamento. Já o olhar doce cativa e transmite segurança. Não olhe  demasiadamente para o chão, nem para o teto. Mantenha um olhar horizontal, nivelando-se social e culturalmente com o interlocutor ou com a platéia. O olhar para baixo indica submissão, extrema inibição. E o olhar por cima, transmite arrogância e superioridade, o que não é bom. Nunca caminhe apressada nem arrastando os calçados. O andar apressado revela nervosismo e o arrastar de chinelo, preguiça e apatia. O coração modifica a face e a face mostra o estado de espírito da alma, de modo que, em situações de normalidade, a expressão do rosto deve conter um sorriso suave e franco. Já em emergência, deve-se manter a tranquilidade. Nem sorriso fabricado, nem lágrimas. Tudo precisa estar sob medida, nem mais nem menos, concluiu Raquel. É verdade! As pessoas se esquecem de ensaiar. Quase tudo na vida precisa ser ensaiado, ensaiar o colóquio amoroso  que começa na sala e termina na alcova. Vannini precisava ensaiar o primeiro beijo que neste  caso, era facilitar os meios para que ele acontecesse.

E aconteceu...

 Fernão chegou querendo como se não quisesse nada e se sentou ao lado dela.Quis saber como se saíra nos ensaios para a entrevista a uma vaga de aeromoça?

—Anotei tudo que tua mãe me ensinou. Quer que eu represente?

— Sim. Eu farei parte da encenação. Serei o empresário.

Ela caminhou pela sala. Parava, caminhava outra vez e dava avisos.

— Palmas para a menina, disse ele.

 Ela deixou escapulir um sorriso que Fernão aparou com os lábios.

Não é preciso dizer que Vannini  estava no avião repassando a fita de sua vida. Recordações desastrosas, lembranças de um casamento fracassado. O dela.

Flap

O  Dispositivo localizado na parte  inferior da asa do avião foi acionado.

— Não faça isto, Hemor! — disse o copiloto — não podemos intentar aterragem agora. É mais seguro arremeter.

Momentos  depois, a chefe de comissários, entrou na cabine e viu o copiloto caído. Ele tinha sangue nas mãos e um cinto preso ao pescoço. O piloto, estava morto com um corte transversal na barriga e o   botão indicador de altitude estava desligado. Vannini acionou o side-stickcom a intenção de arremeter, mas o aparelho não correspondeu. Outra vez Fernão  traçou,  uma cruz, desta vez, só na boca, como se dissesse: “Fecha-te.Há muito mais na vida do que comer, beber e acumular divisas, brasões e estrelas nos ombros; há muito mais do que ser um líder, um formador de opiniões. Há mais beleza na imagem projetada pela  sombra de duas asas de uma ave do que todo encanto  das sete maravilhas do mundo”.

Levantou-se. Estendeu os braços como se quisesse abraçar o mundo, abraçar tudo que antes desprezava! Seu corpo pareceu leve, limpo e mais branco do que a neve. A alma nova lavada totalmente de sua falta, um coração novo, um homem novo a sorrir com a pureza de uma criança. Sacou a porta de emergência e tentou ficar em pé sobre a asa do avião cuja turbina pegava fogo. Desceria com calma, deixaria o corpo escorregar na horizontal. Alteraria sua aterrissagem de piloto em porta-aviões, para pousar como uma mariposa na jangada de Papyllon. Sem o brevê, sem incorporar-se à Esquadrilha da Fumaça, não poderia fazer um loop diante do olhar atônito de Vannini, senão naquela hora. Em seguida, deu ordens à sua mente: “Fernão, você é uma folha” e deixou o corpo cair, rolar no espelho das águas como uma folha seca tocada pelo vento. A água dura bateu em suas carnes, ardeu como choque em concreto. Não sabia se era capaz de suportar a dor dilacerante. Estava tonto, desorientado. As águas o envolveram. Algas passavam sobre sua cabeça e um camarão com sete barbas de profeta, disse-lhe: “Não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive”. Fechou os ouvidos, tapou os olhos e mudou o pensamento. Deixou de lado a as leis da Física e ateve-se às noções de sobrevivência no mar.“Só tende salvar um náufrago, se tiver certeza de que não vai se afogar com ele”. Fernão precisava aplicar tudo que aprendera no curso de aviação sobre acidentes aéreos.

 

 

 

20

 

Quantos mistérios trazem o tempo...

E o vento que sopra a folha seca no chão

Quantos segredos, quantas histórias chegam

E se vão numa  folha soprada pelo vento...

 

 

Quis gritar o nome de Vannini e não pôde. Tudo estava escuro muito escuro... Nem mesmo o clarão da aeronave em chamas, Fernão podia ver.

O Airbus Skylab caiu.

Pode ser que Hemor tenha acionado o piloto automático e dormido com Vannini na cabine do avião. Pode ser que  Fernão tenha desativado o piloto automático e o transponder não funcionou, e em pouco tempo, tudo estava consumado, restavam apenas destroços da fuselagem que boiavam ao lado de corpos, vivos ou mortos, nunca se sabe.

 

Está desaparecido o Airbus Skylab que saiu do Rio de Janeiro com destino à França.

 

Anunciavam os canais  de TV.

Talita se calou, perdeu a voz diante da notícia de desaparecimento do avião. Não disse nada. Desmaiou e sentiu-se arrebatada. Levada em espírito a uma praia recoberta de ossos ressequidos. Alguns, parcialmente envoltos em vestes que se puíam com o passar dos anos... “Não temas!” — Disse a voz que vem do alto:“O mar devolverá à praia todos os corpos que engoliu e a terra prestará contas dos mortos guardados em suas entranhas”.

Alguém tentou acordá-la dando tapinhas nas faces e ela  despertou como se voltasse de um pesadelo.

— Saiu a lista oficial de passageiros do voo ABS 815?

Sim, a lista de mortos e de desaparecidos.

 

Grande número de parentes, amigos e curiosos ocupavam os aeroportos do Rio de Janeiro, de Dakar e França. Eles esperavam por informação da existência de sobreviventes. Todos queriam saber quantos, e quais. O nome de Fernão de Noronha Capelo constou da lista de passageiros do ABS 815. Não necessariamente, da lista oficial dos mortos, mas da lista de desaparecidos.  

A força aérea francesa divulgou imagens dos destroços de um avião, provavelmente o Skylab. Enquanto isso, a Marinha Brasileira recolhia corpos em águas internacionais. Entre os mortos foram identificados os corpos de Vannini Saboia Capelo. Também o corpo do comandante Hemor Bar-Hemor de Siquém foi identificado. Os demais passageiros e tripulantes permaneciam desaparecidos ou não identificados.

Paola sorriu outra vez no intervalo da dor. Sorriu feliz na praça, olhando um pássaro azul perdido no céu acinzentado e  uma árvore roxeada de frio.  O salão do Livro de Paris estava escuro. Homens com semblantes austeros, e mulheres chorosas paravam no passeio. A alma-menina lia o cartaz afixado na porta junto a  uma faixa de luto com a lista de escritores mortos no voo Skylab. Na faixa estava gravado entre  tantos nomes, o nome dela, Paola Rhoden e o poema “Passeio sem rumo”. Agora ela podia viajar para qualquer parte do mundo, em fração de segundos, e se quisesse, podia estar em vários lugares ao mesmo tempo. Então foi para Dakar e viu sem ser vista, muitos chorando a morte dela. Viu as freiras de sua congregação tentando consolar os aflitos. Esperavam a irmã Paola, choravam por ela e ela estava ali e ninguém a via.

Enlutada, a natureza  árida e fria, habita o coração pacífico de tantos poetas, dizia André Albuquerque, passando as vistas na faixa:  “Quantos sonhos, quantos voos literários foram interrompidos!” E pegou asas de luz, voou ao Recife para consolar os parentes. Tentou conversar com Paulo Valença, falar das últimas produções depositadas no Portal Literal. Paulo não o ouvia, não respondia nem mesmo aos acenos de mão. Parecia choroso. André ouvia os choros, aparava as lágrimas  da esposa  e enxugava o rosto dela com o guardanapo da Viação Aérea Skylab.

Talita não foi ao aeroporto. Ainda na loja, ligou repetidas vezes para o número de Helen Raquel. O telefone tocou... tocou... e Raquel não o atendeu. Estranho!  Estiveram juntas na noite anterior no aeroporto!  Ela Talita, a  dona da Suport Informatic, convidou um funcionário para acompanhá-la até a casa da mãe de Fernão. Tocaram o interfone, bateram à porta. Ninguém respondeu.  Veio o Copo de Bombeiros e a polícia chegou após o arrombamento da porta.

— Infarto, disse o paramédico.

Na mesma semana a viuvinha, teve a ideia de fazer uma vistoria nas coisas  de Fernão. Não queria nenhum dos seus pertences, apenas colher mais fragmentos da história da qual fizera parte por algum tempo. Ela  sabia pouco sobre ele. O pai dele, um artesão pernambucano que fugira ainda moço para o Rio de Janeiro, sobrevivia  na Cidade-maravilhosa, vendendo miniaturas de navios, barcos e aviões de fabricação caseira. E a  mãe, uma vedete nascida em Minas, banida pela família quando abraçara a arte de representar, ambos  agora mortos. 

 Talita leu o diário e olhou o álbum de retratos. Vannini era uma mulher bonita. Examinou outros objetos. Viu cartas não postadas com o nome de Vannini e endereço da  ruaClaude Monet em Paris; viu ainda poemas, poesias, recortes retorcidos embolados como rascunhos e jogados na lixeira. Desembrulhou cuidadosamente um deles e leu: “Vejo-me a procurar-te em cada esquina...” (A letra era de Fernão). Tentou juntar outros pedaços, mas não conseguiu nada além de uma frase, ou parte de um poema, talvez... Sobre uma pequena mesa da sala o telefone repica. Pensou em não atender.

— Genildo Saboia. Dizia a voz deixando transparecer nervosismo.

— O quê?

O interlocutor se refez e uma voz masculina perguntou:

—Quem está aí?

— Meu nome é Talita Cumi e o senhor?

— Saboia. Sou o pai de Vannini. Você é a faxineira?

— Sim! Sou a faxineira. Lamento pela morte de dona Vannini e de seu Fernão. Vou deixar a chave na portaria. Aceite meus pêsames!

 “Será por que o senhor Saboia ligou?... Pensando melhor: “Qual o pai sabendo do desaparecimento de um filho, antes de lançar o barco em alto mar, não olha em volta da praia? Provavelmente, Genildo  Saboia ligara,  primeiro para a casa da filha em Paris e não a encontrado, telefonou para o número do Rio de Janeiro”. 

Talita deixou a chave na portaria e saiu,  meio viúva, meio solteira. Seu coração não alimentava nenhum mau sentimento, nem por Fernão, nem por Vannini nem por ela mesma. Agora, na condição de solteira, muitas páginas ainda teriam que ser viradas no calendário da vida.

 Veio-lhe um consolo: Fernão poderia estar vivo, nalguma ilha próxima a costa do Senegal... Ela morava confortavelmente no Aterro do Flamengo que, além de ser uma construção relativamente nova, tinha passado por ali o dedo de um decorador a quem encomendara um guarda-roupa com dois grandes espelhos: um espelho na porta da direita, outro na porta da esquerda, e no meio, um vão para o televisor, DVD e outras parafernálias da tecnologia moderna. No espelho da direita, via-se linda, maravilhosa! No espelho da esquerda, feia e com as pernas tortas. A esta imagem que via no espelho esquerdo, chamava de Tília. Então, dizia: “Menina, você está péssima hoje. Toma jeito!” Depois,  parava para ouvir sua voz interior: “Se olhares no espelho e disseres: ‘como és feio, rosto desprezível’. Teu rosto ficará vermelho. Envergonhado. Cheio de espinhas. E grande será a vergonha que ele terá de ti e do mundo. Tu para teu rosto és uma rainha. E tudo que disseres, ele crê, preza e obedece. Então, teu rosto ficará feio aos teus olhos. E se tu disseres  às tuas pernas: ‘vocês são feias, tortas e finas...horríveis. Finas demais!’ Então elas sentirão profundo constrangimento. Ficarão finas aos teus olhos e se contorcerão de dor. Mas, se ao contrário disseres que teu rosto é lindo, sempre que olhares no espelho teu rosto estará feliz, sorrindo, e o dia e as noites de tua vida tornar-se-ão um céu aqui mesmo na terra”.

Distante dali, no silêncio de sua dor, Morgana pensava no dia em que  de véu e grinalda, subiu os 382degraus da escada da Penha, um por um, como se percorresse o caminho do Calvário. Estava linda! Era uma princesa em carne e osso. Seu vestido preto trazia nuances amarelas nos mesmos tons do convite de casamento. A lista de convidados dos Castros compunha um rol de amizades rotas: pessoas que preferiam não mostrar o rosto ao lado de Martiniano viram-se obrigadas a cumprir um compromisso social para que, no futuro, não lhes faltasse dinheiro nas meias. E, embora procurassem evitar fotos que revelassem fatos, autoridades civis, militares e eclesiásticas, estavam na festa. Pobre sacerdote! Não segurava o sorriso aberto aos ricos e fechado aos pobres.

Durante a festa, o religioso bebeu em demasia, e falou mal do padre Davi, da vida desregrada, dos amores clandestinos que  aquela ovelha tresmalhada tinha. Mas, percebendo que cometia um crime contra o patrimônio da Igreja; emendou: “Santo Agostinho também viveu a concupiscência da carne, confessou publicamente seu pecado e tornou-se Mestre e Doutor da Igreja. Padre Davi se casou com a mulher de seus antigos amores, e reparou um erro diante dos homens. Por certo também obteve a graça e misericórdia de Deus”.

Em casa, naquele dia, Cristiano caíra em sono profundo e sequer pôde desabotoar o vestido da noiva. O casamento tinha sido um vexame. Morgana acordou virgem, na primeira, segunda e terceira noites de casada. 

— Não dá para anular meu casamento?

Frei Gaspar  olhou por cima dos óculos, arrancou um leve sorriso abafado  na dor  de ver a desconstrução da família.

— Você não é a primeira, minha filha, ainda nos idos de 1667,  Dona Maria Isabel de Saboia, que também não teve nenhum filho, pediu Declaração de Nulidade do seu casamento com o vitorioso Dom Afonso e se casou com um irmão dele.

O frei esticou  a mão, puxou do meio de outros livros a obra do padre Jesús Hortal, e entregou a Morgana.

— Leve para casa. Leia e me procure depois, se achar que deve. Doze meses e o ato  não foi consumado?

—Não! Não foi!

– Esse seu casamento não valeu nem diante de Deus nem dos homens!  Existem casamentos que nunca deveriam ter existido.  Anular um casamento é impossível, mas declarar NULO é outra coisa.

Que devo fazer?

—Há modelo próprio para montar o processo de nulidade. Pelo que me dizes, o rapaz se casou bêbado e está bêbado até hoje. O Tribunal Eclesiástico analisará com carinho teu pedido, caso queira fazê-lo. Nunca  se esqueça que a vida corre como um trem sobre os trilhos e é preciso passar com segurança em cada estação.

Morgana não suportava mais tanta dor. A caixa de correios da família estava  lotada de correspondências; cartas, panfletos e outros entulhos que chegam sem serem solicitados. A boca da noite não engoliu toda vergonha que ela sentia. Era possível  ainda,  ler em um  jornal deixado há dias, a notícia da morte de seu pai. O noticioso transpôs para suas páginas a maldade do colunista  e a satisfação coletiva destacando a atividade ilícita de Martiniano.

 

Ruiu o grande império dos Castros. Morreu na tarde deste sábado o banqueiro de jogo do bicho Martiniano de Castro Napolione. O “Bicheiro” foi atingido por uma bala perdida que depois de perfurar a vítima, alojou-se no olho esquerdo da amante. A polícia informou que o disparo partiu de uma arma de alto calibre, disparada durante um confronto de bandidos do Morro do Cantagalo, em disputa com gangues rivais.

 

Sete meses depois, noticiou outro  periódico: “Mulher do bicheiro Martiniano de Castro morre atropelada...” Jornais escorriam sangue ferindo gravemente o coração sofrido de uma mulher sem marido, de uma filha sem pai e sem mãe. Insatisfeita, programou sua mudança para São Luís onde sabia morar alguns parentes mais distantes. Em pouco tempo ela perdera o marido que nunca teve, a mãe confidente e o pai que fora apenas provedor dos gastos da filha.

Pôs a melhor roupa para sair numa noite fria: um agasalho grosso contra a tristeza, um chapéu para evitar que a saudade a visitasse.

Fez as malas.

O ônibus quase cheio se lhe parecia vazio como se ela fosse a única sobrevivente de um terremoto devastador. Estava só, sozinha entre muitos estranhos. Mal sabia que em poucas horas, o sol limparia a remela dos olhos com o dorso das mãos.  Eram sete horas da manhã, quando Morgana pisou terra maranhense na esperança de que a vida lhe oferecesse nova estação.

 

 21

Próxima estação, Estação Carioca, desembarque pelo lado direito.

Next stop Carioca station, landing on the right side

 

Teve dúvidas se a voz de Cristiano era um fato novo. Agora as imagens passadas se cruzavam com as mais recentes. O homem visto pelas costas, com uma valise, não carregava um notebook. Levava um novo invento da Engenharia Eletrônica ou uma caixa de ferramentas do Professor Pardal. A voz da Estação Carioca era de Cristiano. Talita se apaixonara por uma voz modificada eletronicamente... “ETA vida besta!”

Sentia novamente a sensação do indescritível, quando ele telefonava para reconfortar a amiga. Com frequência, Cristiano ligava e Talita tentava ficar calma, para não tremer a voz. Enrubescia, amarelava e corava novamente ao ouvi-lo. Corria um frio na barriga, um torpor, e novamente o frio caminhava em suas entranhas. Não era mais calafrio de virgem. Era desejo da carne.

— Surpresa!... Tenho uma surpresa para você. Disse ele do outro lado da linha.

— Surpresa boa ou ruim? Indagou ela.

— São duas, disse Cristiano.

— Sendo apenas duas não dá para ir muito longe, ou as duas são boas, ou as duas ruins ou uma é boa e a outra ruim...

— Isso é verdade... contudo, não há mel tão refinado que não deixe um travor na boca.

Travor na boca. Percebeu que tinha dito besteira. Pensava no casamento desfeito, o dele, declarado nulo pela Igreja. Foi por causa da separação com Morgana que decidiu mudar-se para o Nordeste.

— Podemos jantar juntos hoje?

— Ainda estás em Campina Grande?

— Sim, mas voltando para o Rio. Devo apresentar minha monográfica aí na faculdade onde iniciei o curso. Casa comigo?

Silêncio profundo...

— Assim por telefone? Que modos são esses de flechar meu coração?

— Eu disse que tinha duas surpresas. A primeira é que estaria voltando para o Rio e a segunda, revelei agora.

O sim saiu pausadamente e ela chorou devagarinho sem ele perceber. No soluço abafado, veio-lhe à lembrança o desaparecimento de Fernão... Não deveria pensar em morte. A vida é apenas um sonho que dura enquanto estamos acordados.

 — Vou arrumar as malas. Antes, porém, quero um beijo, disse Cristiano.

Bocão!...pensou ele e sentiu a sensação dos lábios vermelhos dela ajustando-se em sua boca, como nas fantasias que tinha desde que a viu pela primeira vez na loja de informática.

 

Por um momento os amantes são poetas.Por toda vida os poetas são amantes

 

Soprava suave o vento na Praia da Ponta. Ondas amenas e um sol carinhoso tocavam delicadamente a pele salpicada de sardas. O biquíni a deixava provocante, os seios fartos, discretamente guardados, as pernas bem torneadas e as nádegas abauladas não se envergonhavam da barriga que não tinha.

— Morgana!

— Robert!...

Abraçaram-se cordialmente e o beijo que se dão os cavalheiros e as damas saiu fora do prumo e escorregou no canto da boca.  Robert ficou envergonhado. Não fizera de propósito. Morgana ficou sem graça.

— Posso sentar?

—Sim, sim, respondeu ela.

—Há quanto tempo não nos vemos!

— Pois é, quanto tempo...

—Vens sempre aqui — perguntou meio sem jeito.

— Raramente venho aqui. Falta-me companhia.

—Agora não te faltará mais, se aceitares a minha.

—Ora, como não? Deixe-me te apresentar minha prima.

Saía do mar para a ducha uma morena que a um sinal de Morgana, aproximou-se da mesa, uma mesinha de praia com quatro cadeiras. Robert imaginou-se intruso. “São quatro cadeiras, portanto quatro pessoas. Sem contar com ele, faltavam duas. Provavelmente um rapaz que deve ser o namorado da Morga e o outro, o namorado da prima”.

— Robert esta é Gabriela, Gabriela, este é Robert...

O resto era sol e mar. Praia, areia na pele, pele na areia, pés na areia, areia entre os dedos... Ele enfiava os pés na areia, Morgana também. E os pés se encontravam sem serem vistos, protegidos por grossa camada de fina areia. Os olhares se cruzam. Os pés se tocam namorando escondidos na areia da praia.   A hora era de lançar azeite sobre as feridas. E cada um deles tinha a sua. Robert temia que algum assunto por ele levantado, pudesse trazer à tona sua história ou a história de vida dela. E assim, consentiu que seus olhos se encontrassem com uma revoada de nuvens azuladas que viajavam. E sem perceber, deixou escapar a voz contemplativa de sua alma: “A tarde que finda no azul-avermelhado é uma benção que chega e jamais outra igual  será vista...”

—Fazendo poesia para nuvens roxeadas?

— Não. Estou pensando por que estão assim apressadas.

—Ora! É porque o sol vai se por daqui a pouco.

Riram.

“A tarde que finda é uma benção que chega e jamais outra igual se repetirá”. Repetiu ele mentalmente. De fato. O sol pendia envolto por um manto de nuvens multicoloridas dando sinal que a noite que se avizinha conspirava em favor dos amantes.

— Está na hora de voltarmos — disse Morgana.

— Sim, vamos! Podemos nos ver amanhã?

— Hoje Gilson conseguiu uma mesa, amanhã não sei.

Ela falava do irmão de Gabriela que estivera mais cedo na palhoça e guardara a vaga até elas chegarem. Robert respirou aliviado. Foi Gilson Chagas primo da Morga  que estivera na barraca de palha.No dia seguinte, ele, Robert chegou antes das nove e acomodou-se à sombra do  quiosque que dava para o mar. Morgana não tardou e teve vontade de enfiar os pés na areia. Esconder o pezinho quente e delicado para ser encontrado pelo dele. Sentiu-se uma tola: “Isso é criancice...”

— Lembras de Nilmário, disse finalmente ela.

— Sim!

— Pois é. Estava no avião que caiu na Costa do Senegal.

Lembranças do tempo de colégio repovoavam a mente de Robert. Já naquele tempo, Morgana  revelava que em crescida seria uma das mais belas criações da mão divina. Isto posto, se fosse descoberta agora, pelos caçadores de talento, alcançaria um cachê mil vezes maior do que seu salário como funcionária da Prefeitura de São Luís. 

O sol de ontem brilhava hoje em seus olhos verde-alaranjados. Robert viu o beijo ingênuo que Morgana dera no rosto de Nilmário, quando o menino fez o gol decisivo do campeonato Marista. Quantos anos depois e ela continuava jovem e linda. Tudo estava bem distribuído. Ele teria a paciência que fosse necessária e a coragem que precisasse para conquistar Morgana. Não era sonho. Era a Morga o sonho capaz de apagar todos os pesadelos de outrora. Não queria pensar no casamento desfeito, nem na saudade do pai que mal conhecera. A vida lhe dera um poema de sete faces. Não só a ele, mas também a muitas pessoas que por sorte ou azar, morrem sem ler a primeira face.  A primeira face que Robert leu foi o rosto da mãe desfigurado pelo câncer, depois a face do pai que não estava no álbum de família. Eram tantas faces: rostos de luz e de sombras, faces brancas, pretas, amarelas e até um anjo azul soprando cinzas sobre suas lembranças: o Marista, a Quinta da Boa Vista e a menina linda que Morgana sempre foi. O vento brincava nos cabelos cacheados dela. E Robert não via o mar. Via Morgana muitas vezes desviar os olhos que se cruzavam com os dele. Ele fazia o mesmo e depois se arrependia. Fugir do olho no olho, da verdade que se abre na janela de um olhar? Tudo que queria dizer não ficou dito, e não diria, a menos que Morgana decifrasse a linguagem das estrelas.

 O coração ainda pensava em Talita que, pouco lhe telefonava. Como estaria a maninha? Robert não podia tocar neste assunto com Morgana. Ela quis saber da mãe de Robert, e quando lhe disse que morrera há dois anos, ficou besta. “Dona Sophia?!... Conhecia-a muito de nome.” Mas o  momento não cabia lágrimas. O filho  de D. Sophia acompanhou de perto o sofrimento da mãe que contraíra um câncer de ordem emocional, depois de aderir ao Plano de Demissão Voluntária oferecido pela empresa em que trabalhava. Robert  insistiu muito para a mãe não aderir ao PDV, mas dona Sophia!...Dona Sophia quando tomava uma decisão, não voltava atrás!

O celular repica insistente... A demora de Morgana  para abrir a bolsa e aceitar a ligação deixou Robert ansioso. Ela percebeu e sentiu a preocupação dele com a voz masculina do outro lado. Desligou e chamou Gabriela. Atento, Robert apanhou uma minúscula abelha-preta que zunia mexendo as patinhas e sacudindo as asas, entre um e outro morrico da meia-taça de Morgana.  “Cuidado, não se mexa!” E deixou a ponta dos dedos tocarem suave e delicadamente nos seios dela. Tanto alarido e suspense por causa de uma inofensiva abelha sem ferrão?

 

 

 22

 

No fim da tarde o céu vermelho-acinzentado

era igual ao crepúsculo da última hora  e 

 aurora do primeiro dia.

 

 

A brisa soprava levemente. O sol mergulhou no mar e eles trocaram o primeiro beijo...

­— Deixa-me partir, porque a aurora já vem, disse ela.

Morgana jamais fora assim, tão formal. Decerto, queria provocar o engenho poético de  Robert, que outrora vencera vários concursos de poesia promovidos pelo Marista.

— Aceito a penitência de te deixar partir, contanto queeu possa ir contigo.

— Perfeitamente, Romeu, disse a moça.

Riram.

A tarde fez-me noite mais cedo, e a noite, menina. Morgana dormiu e no outro dia Robert levantou antes que a patativa cantasse. Precisava ir ao escritório, passar as últimas recomendações ao substituto, e providenciar os passaportes.

Do escritório, ligou para o Rio de Janeiro.

— Quero falar com Talita!

— Pode falar, maninho! Não reconheces mais minha voz?

— Sim, sim, é que a ligação não está boa.

— Não é a ligação. Aqui está uma barulheira infernal. Estão reformando o prédio.

— Ih, não me fale em inferno. Estou com a passagem comprada para o céu.

— Que brincadeira é essa de morrer?...

— Morrer nada! Viajo em lua-de-mel nos próximos dias.

— Mas que surpresa! Nem me convidaste para o casamento!...

— Não convidei por temer que não viesses.

— Se tu casasses ainda que fosse com uma ogra, eu iria a festa.

— É casamento de mentirinha. Não houve papel passado nem no civil nem no eclesiástico.

 — Quem é a felizarda?

— Advinha!

—Não faço a menor ideia. Não conheço ninguém em São Luís do Maranhão!

— Esta tu  conheces.

—Tenho certeza que não.

— Conheces!

— Para com isso, diz logo, engravidou uma leoa no cio?

— Não sei. Ainda não há tempo para saber. É a ex de Cristiano.

— Morgana, a Morga?!... Ela sempre quis ser minha cunhadinha. O danado do Victor Augusto deu de ser padre e ela pegou o outro irmão, meio postiço, é claro, mas um bom irmão!

— Posso falar com a Morga?

— Estou no escritório. Ela está em casa.

— Olá, cunhadinha. Não é porque ele é meu “irmão”, mas fizeste, verdadeiramente, uma boa escolha.

Talita não quis dilatar a conversa. Estava de mente e coração abertos para acolher Robert e Morgana em escala no Rio de Janeiro, antes de viajarem para Cancun. Marcou o casamento dela  para a semana em que eles estiverem de passagem pelo Rio. E   se casou de vermelho com um arranjo da mesma cor no cabelo, não exatamente um arranjo, uma rosa, apenas.

Finda a celebração, Robert não estava na fila para cumprimentar os nubentes.  Ele caminhava a Mariz e Barros sentindo-se um cacto. Adiante, tomou um táxi para Copacabana e se sentou ao lado do mineirinho de Itabira que folheava as páginas de seu livro de ferro. O poeta gauche não dava conta de olhar as deusas que desfilavam de biquíni, a dois palmos de seu nariz.

- Com que pelejas? — Indagou Robert

- Luto com as palavras, mas minha luta é vã, disse o mineiro.

Robert provocou o poeta-maior, com um jargão dos tempos de Sêneca e Petrônio:

Virtutem verba puta.

Enquanto dizia essas coisas, uma morena escultural, parou, pôs as mãos na cintura, balançou as ancas na frente deles e perguntou:

— Qual dos dois me chamou de puta? Se nenhum responder, vou ter que arrebentar os dois.

— Não minha filha, ninguém te chamou de puta. Apenas Robert me perguntou se palavras são virtude...

Mineirinho fechou o livro, despediu-se de Robert e fez menção de partir.  Robert deu um passo adiante como se quisesse impedir um velho atobá de alçar voo. Acariciou a cabeça bronzeada do homem de ferro e gritou: “Você é poeta, eu faço rimas!”

 

O pensamento voa. A onda bate na proa e  o navio se lança em alto-mar

 

O vento soprava na proa açoitando os cabelos  dela e o namoro agarradinho aumentava a libido dos dois. Talita e Cristiano ocuparam o camarote que outrora  pertencera  ao rei Sigebert . Enfim, os viajantes dos mares chegam a uma ilha deserta,   Brasileia não era mais sonho!...

Aves migratórias ensaiam uma valsa. Espectros bruxuleantes vagueiam. Vermes passeiam. Era noite nas ilhas Brasileias de Salomão.

Oh, não!... Meu Deus, meu Deus, durmamos de mãos dadas. Alguma coisa flutua sobre o mar!



[1]Cabeça de Cuia.Folclore do Piauí. Canção atribuída a Bentinho.

 

NA

Esta Obra está Registrada em nome do autor Adalberto Antônio de Lima sob o número 135897704703377000, o autor tem um Certificado Digital de Direito Autoral que atesta este registro.

Sete Faces Congeladas -- 2013-01-23 - 19:37:27 (Adalberto Antônio de Lima)

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