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cronicas-->Candango véi de guerra -- 29/09/2002 - 21:16 (L Henrique Mignone) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CANDANGO VÉI DE GUERRA

(Do livro Minha terra, minha gente, minha vida)

Seu Ivone Aguiar era uma daquelas figuras ímpares, únicas, que nos cativam logo nos primeiros momentos em que as conhecemos, por seu jeito simples, puro e amigo de ser. Com um sorriso aparentemente ingênuo eternamente estampado em sua face, legado que transmitiu aos seus filhos - Jaci, Regina, Tião e Maneca - que dele igualmente herdaram a maneira mansa de falar e, sobretudo, a perspicácia e a espirituosidade.

Grande parte de minha juventude foi passada na casa de seu Ivone, junto com Maneca, grande amigo, onde tínhamos nosso mundo próprio, o quarto de empregada transformado em laboratório, onde nasciam e se concretizavam as nossas grandes "boas idéias" que tantos aborrecimentos causaram a nossos pais e que consolidaram a "boa fama" que nos acompanhou enquanto lá vivemos e que hoje integram o folclórico das histórias que ainda contam.

Sua casa era nosso ponto de reunião, logo após o almoço, depois das aulas. Lá desenvolvíamos nossos foguetes espaciais, com o corpo de bomba de flits que com toda a pompa e requintes de tecnologia eram lançados ao espaço, deixando rastros de fumaça no céu, causando admiração e espanto na garotada e preocupação nos mais velhos; de lá saiam rádios galena do tamanho de caixas de fósforo, precursores dos rádios portáteis, feitos com cristais garimpados na pedreira do Tiné.

Lá, às escondidas, desmontávamos e montávamos daqueles rádios à válvula que seu Ivone possuía, enormes em suas imponentes caixas de madeira e que nunca mais sintonizariam nem mesmo a ZYO-26 - Rádio Difusora de Mimoso do Sul -, que na época falava para o Brasil e para o mundo.

Por respeito ao espaço de nosso "laboratório", à privacidade e ao sigilo do que estávamos desenvolvendo, ali seu Ivone não entrava; ficava, às vezes, à porta, chamando-me baixinho, com sua voz calma e pausada:

- Henrico! - assim ele me chamava!
- Henrico!
- Henrico!

E eu, absorvido pela importància da nova "invenção", às vezes não respondia, porque não o ouvira. Seu Ivone virava-se e ia embora, falando um pouquinho mais alto, o suficiente para que agora o ouvisse:

- Chamei treis veis, num respondeu morreu!!!

Era ali que consertávamos os isqueiros Zippo e Monopol dos amigos que se iniciavam no cigarro, as enceradeiras e liquidificadores dos vizinhos para defender uns trocados para a "soirée" de domingo; de lá saíam os projetos de karts, com motor de motocicleta e embreagem de rolha cozida no óleo com que infernizávamos as ruas; ali foi onde aprendi os primeiros conceitos de mecànica, desmontando e montando o velho Candango cinza de seu Ivone, que um dia ficou doido (o Candango, não seu Ivone), segundo suas próprias declarações.

Ainda hoje, vejo-me sorrindo sozinho, tantos anos se passaram, ao lembrá-lo contando os últimos acontecimentos e reclamando, em sua infinita paciência, do que ele atribuía às loucuras do Bagué:

- Henrico, Candango ficou doido, Henrico!!!
- Que qui houve, seu Ivone?
- Eu não entendo, Henrico. Eu cuido doCandango com o maior carinho, lavo e limpo todos os dias, não corro com ele e o Candango não me obedece. Bagué maltrata o Candango, tira as peças dele todas do lugar, monta e desmonta, corre com ele, passa em cima de meio-fio, bota o Candango prá carregar um monte de peso e o Candango fica quietinho e obediente. Imagina que ontem eu fui sair no Candango, ele começou a pular e a correr como um doido e entrou no salão de beleza da Dona Petrina, quebrando tudo. Petrina ficou brava comigo, me chamou de velho transviado, me botou prá correr com um cabo de vassoura.

E concluiu:

- Eu acho que ele só queria fazer um mise-en-plis, Henrico!!!

Talvez por ter passado a maior parte de sua vida defronte ao telégrafo, decifrando seus sons de morse, sem confundí-los enquanto os traduzia com a máquina de escrever e conversava com Maneca, sua rapidez de raciocínio era espantosa.

Certa vez, incomodado com a cabeleira do Zecanha, um empregado que morava em sua casa e que a deixara crescer à moda dos Beatles, resolveu fazer uma "vaquinha" e coletou 5 cruzeiros para que ele a cortasse, estranhamente deixando de lado sua pacífica aceitação de tudo, sua maneira cordata de ser e de viver. Chamou-o, entregou-lhe a grana e sentenciou, repressor:

- Zecanha, toma este dinheiro e trata de rasparesta cabeça ainda hoje, senão você não dorme mais aqui em casa.

E o Zecanha, muito desaforado:

- Ah, é, seu Ivone? E no cu?

Ao que seu Ivone respondeu:

- Se tiver troco, não tem problema, pode raspar também!

Assim era seu Ivone, este grande amigo que adorava passarinhos, principalmente os gaturamos e que todas as tardes ia para a varanda assobiar, chamando-os, enquanto nós, escondidos, respondíamos como se gaturamos fossemos. E ele, maravilhado com a possibilidade de pegar aquele gaturamo que cantava tão bonito, mandou que pendurassem na goiabeira, junto da porta de sua cozinha, um cacho de bananas maduras para atraí-lo para o alçapão, estrategicamente colocado a seu lado.

Mesmo após termos roubado suas bananas e o alçapão, em todos os finais de tarde, seu Ivone continuou chamando pelo gaturamo - e nós escondidos respondendo - o que motivou que comentasse comigo, acho que até desconfiado de minha participação na brincadeira:

- Henrico, eu vou ter que fazer um alçapão gigante para pegar este gaturamo. Ele deve ser do tamanho de um urubu, já que conseguiu levar meu cacho de bananas e o alçapão. Mas que canta bonito, isso ele canta !!!

E seu Ivone hoje descansa em paz, a bordo de seu candango velho de guerra que tanto amava e ouvindo o canto de seus gaturamos, mas vivo e sorridente em minhas eternas lembranças.


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