Ando à deriva aguardando que me assaltem.
Elas ficam como insetos à procura de incautos desprotegidos ou como répteis em busca de espaços obscuros para se esconder. Esses espaços são os que as mentes como a minha permitem quando fazem pausas, tocando a realidade com vontade de dormir ou desprender-se dela por alguns momentos. Esses são os espaços habitáveis que não pertencem a ninguém em particular : geralmente vazios e invisíveis a olho nu, aguardam que então apareçam as palavras e facilitem as histórias, como água que hidrata a folha seca e revela sua textura. São os espaços universais que ocultam-se num sub mundo alienado e silencioso, vorazes como buracos negros quando encontram seres marginais, tanto para copiar suas histórias e contextos quanto para escravizá-los a contar essas histórias de outros copiadas.
Assim escrevo.
Então assaltam-me as mais sórdidas personagens que habitam o mundo oculto com suas manias e objetos mal acabados, e com suas emoções inexplicáveis, mal humores existenciais e vontades ensurdecedoras, às vezes de doces e comidas, às vezes de amor, clemência, perdão ou vingança.
Resolvi uma vez dizer-lhes que nada tenho a ver com isso, e que é melhor que acreditem em suas próprias existências sem precisar invadir o mundo alheio. Mas não foi possível silenciá-las: quem nasce propício para escutá-las, nunca deixará de enxergá-las, nunca poderá se ver livre delas, porque de algum forma costuraram em pontada seu mundo com o delas (o mundo nosso com o sub mundo dessas criaturas que nos abraçam) e então terá obrigação de escrever, contá-las, pintá-las, representá-las, imaginá-las, enfim cuidá-las até conseguir que ponham o pé neste universo colorido das pessoas e das coisas.
Até fazer com que habitem as páginas dos livros de romance, de contos, de quadrinhos ou simplesmente de textos desconhecidos da multidão, até que alguém as descubra : criaturas taciturnas e voláteis que fizeram-se possíveis. Em sonhos, em incômodos momentos de necessidade impulsiva, em domingos e feriados monótonos, em locais impróprios e horas atribuladas : em todas essas ocasiões e locais, essas criaturas ancestrais e atrevidas povoam a Terra e cutucam a nós que; muita vezes sem entender; existimos acorrentados à necessidade de contá-las. Apenas isso : revelá-las!