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Contos-->A Flautista -- 28/12/2002 - 11:31 (Guimaraes Julia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
________________________
Amor e Fantasia



A Flautista
Por Guimarães Júlia





Amanda Novaes pensava em Dona Belinha, sua avó, enquanto aguardava nervosa na ante-sala do gabinete do professor Luciano Del Faro. Sua entrevista com o professor havia sido marcada há mais de um mês. Estava ansiosa e apreensiva, repassando sua fala, já ensaiada.

Planejava ligar para a avó assim que voltasse para a pensão onde se hospedara. Ela se dava conta da grande importância que sua avó tinha em sua vida sempre que se distanciava dela. Imaginava que a avó estaria esperando pela sua ligação. Depois de muitos anos juntas, era o primeiro aniversário de Amanda que elas passavam longe uma da outra. Aquele era o dia do seu vigésimo oitavo aniversário. Ela abriu a bolsa e procurou um cartão. Um cartão que havia recebido da avó quando fizera quinze anos de idade. Ele viera acompanhado de um presente, um livro de Cora Coralina, escritora que se tornara sua predileta. Pela milésima vez nos últimos treze anos, Amanda leu o que nele estava escrito, em letras bem desenhadas:

Que você seja aquela amorosa,
De tantas ruas,
Talvez estreitas,
Talvez curtas,
Intrincando,
Saindo uma das outras.

Feliz Aniversário!
Belinha, 15/2/1987
[plagiando Cora, nossa poetisa]



Anabella Duarte Novaes era conhecida por todos por Belinha. Era uma mulher simples, alegre, de gostos singelos e muito atarefada. Além dos afazeres de casa, do cuidado da neta e das costuras, em seus poucos momentos de calma, ela lia e escrevia poemas. Dela, Amanda herdara seus dois traços mais marcantes, era objetiva e prática, apesar de sonhadora e romântica. Dona Belinha cuidara da neta desde os oito anos de idade, após a morte dos pais da menina, em um acidente. Viviam no subúrbio do Rio de Janeiro, sustentadas pela pensão deixada pelo avô de Amanda, ex-funcionário do Banco do Brasil, complementada pelos serviços de costura que Dona Belinha prestava para a vizinhança. Dona Belinha era toda a família que Amanda tinha, e a jovem esforçava-se muito para ser uma boa filha para sua avó. Fora principalmente por insistência da avó que Amanda viera a São Paulo.

Enquanto aguardava ser recebida pelo professor Del Faro, Amanda tentava adivinhar como seria o professor pela decoração e estilo da ante-sala de seu escritório. Era um ambiente comum de escritórios de universidades: despojado, com móveis simples e paredes forradas de cartazes anunciando congressos e seminários científicos. Algumas plantas aqui e acolá quebravam a austeridade.

Amanda sempre se interessou por antropologia. Estar ali significava a oportunidade de carreira sonhada por muitos anos. Ela era fascinada pelas marcas que o passado deixava no presente e se encantava com a possibilidade de decifrar, a partir dessas marcas, como eram e como viviam as pessoas. Ela costumava pensar que o presente era prenhe do passado, e que o papel do antropólogo era trazer o passado à luz do presente. Durante a faculdade, freqüentada na PUC do Rio de Janeiro, conhecera o trabalho do professor Luciano Del Faro da Universidade de São Paulo. Ela descobrira que esse professor trabalhava na fronteira entre a Sociologia e Antropologia. Ele era um sociólogo que utilizava métodos da Antropologia. Embora se sentisse jovem e inexperiente, algo lhe dizia que essa quebra da ortodoxia era o que mais importava. Era o pensar um pouco além dos limites convencionados.

Amanda, em seus 28 anos de idade, se tornara uma mulher ao mesmo tempo determinada e serena. Morena bonita de estatura mediana. Seu corpo sedutor e seus olhos verdes-escuros, sempre curiosos, chamavam a atenção de todos. Tinha uma sensualidade natural e nem se apercebia disso. Como os versos de Coralina, Amanda deixava para trás uma mistura intrigante de mistério e de cheiro de terra molhada, como já lhe dissera um namorado muito mais velho que tivera. Embora fosse permanentemente assediada pelos rapazes da faculdade, ela não tivera envolvimento profundo com homem algum. Alguns poucos encontros eram sempre suficientes para ela concluir que o pretendente não era o que ela queria para sua vida. Para Dona Belinha ela costumava dizer que se não fosse profundo, definitivo, o namoro não fazia sentido. E enquanto esse amor especial não surgia, ela trabalhava e mergulhava nos livros que sempre foram sua verdadeira paixão. Era tradutora. Trabalhava como profissional autônomo, traduzindo livros estrangeiros para uma editora carioca. Não ganhava muito, mas era o suficiente para suas despesas pessoais, aliviando o orçamento doméstico.

A avó era a grande referência da vida de Amanda. Talvez por isso Amanda sempre se deu bem com pessoas idosas. Era delicada com os mais velhos e querida pelas mães e avós de suas amigas. Estas costumavam dizer que parecia que a alma da moça era muito mais velha que sua idade cronológica. Se é que alma tem idade, pensava Amanda sorrindo. Fora Dona Belinha quem insistira que ela fosse para São Paulo, em busca do seu futuro profissional, e ajudara a jovem a enfrentar seu medo, seu temor de ser rejeitada.

– Se esse professor de São Paulo é como você descreve, então vá. Não tenha medo. Ele a aceitará como sua aluna. Ele descobrirá, sem dificuldades, que você é especial. – Dona Belinha insistira com a assertividade de sempre.

Amanda hospedara-se numa república de estudantes que lhe fora recomendada por um de seus professores da PUC. As acomodações eram boas, com quartos individuais, bem arejados e iluminados. E mais importante ainda, o local era limpo e silencioso, propício para trabalhar e estudar.

Ela se instalara rapidamente e na semana seguinte já estava na ante-sala do professor Del Faro. Como sempre, com os cabelos presos, vestia calças jeans e blusa de linho branca, com mangas arregaçadas. Na hora marcada, a secretária a conduziu ao professor. Ela o reconheceu imediatamente pelas fotos que havia visto na contracapa de seus livros. Del Faro era um homem de meiaidade, um pouco magro, cabelos lisos, desordenados e grisalhos nas têmporas. Seus óculos de leitura denunciavam a vista cansada. O ambiente da sala fazia Amanda sentir que o professor era desorganizado com seu espaço, embora ele tivesse uma certa aura de formalidade além da medida, e nisso não correspondia ao que Amanda imaginara encontrar. Talvez os professores em São Paulo fossem assim mesmo, pensava ela enquanto Del Faro levantava os olhos para cumprimentá-la.

– Desculpe-me por somente poder recebê-la hoje. – disse Del Faro, enquanto se levantava de sua cadeira e retirava alguns livros que ocupavam uma poltrona, oferecendo-a para Amanda. – Estou terminando um trabalho e tenho ficado pouco no escritório. Você me foi muito bem recomendada pelo professor Sampaio. Ele me disse que você pretende fazer sua pós-graduação em São Paulo. Por quê? A PUC tem ótimos professores…

Apesar de agitado, o professor Del Faro tinha voz calma e seu olhar era doce. Nos seus 55 anos, Del Faro parecia ter a energia e a vitalidade de alguém 10 anos mais jovem. Amanda se esforçava para conter seus pensamentos que se mostravam em turbilhão e focá-los na entrevista.

– Li todos os seus livros. E concluí que o que eu desejava mesmo era ser uma socióloga da maneira que o senhor ensina. Talvez seja pretensão minha, mas vim para São Paulo para estudar com o senhor. Estou pronta para meu trabalho de mestrado e sonho que o senhor seja meu orientador. Já terminei meus créditos na PUC e falta preparar minha dissertação. Fui informada de que o senhor tem as credenciais para orientar estudantes da minha escola. – Amanda, nervosa, recitava o texto que ensaiara por tantas vezes.

O professor a olhava com curiosidade e bom humor, percebendo o nervosismo da jovem. Amanda se sentia como se o olhar do professor a dissecasse. Seus olhos, nos olhos dela, pareciam ver sua alma. Isso a deixava mais perturbada ainda. Precisava retomar a frieza e assumir o controle das suas emoções.

– Entregue uma cópia do seu curriculum e de seu plano de trabalho à minha secretária. Volte em uma semana. – O professor falava enquanto se levantava dirigindo-se à porta de sua sala. – Mais uma coisa: durante essa semana, você poderia fazer um pequeno trabalho?

– Certamente que sim, professor. Que trabalho? – perguntou Amanda, curiosa.

– Há alguns anos atrás, – Del Faro começou a explicar, – na entrada principal da Cidade Universitária existia uma enorme árvore, uma velha Paineira. Ela foi cortada no início da década de 70, provocando muitos protestos. Descubra algum traço que ela possa ter deixado e a história que esse traço nos conta.

– Em uma semana? – perguntou Amanda surpresa.

– Sim, vejamos o que você consegue em uma semana. – O professor encerrou a conversa e conduzindo a jovem estudante para a ante-sala, onde já a aguardava D. Elaine, a secretária.



***



Amanda jamais se esqueceria da semana que se seguiu. Foram sete dias de visitas a bibliotecas, a registros históricos, entrevistando pessoas, trocando mensagens e pesquisando na Internet.

Ela sabia que existia muita informação sobre a história brasileira em centros de estudos tanto brasileiros quanto estrangeiros, facilmente acessíveis pela Internet. Ela não dera importância a esses, porque eram registros já feitos, eram fatos já interpretados. O passado que ela buscava estava marcado no Brasil, estampado em suas esquinas e vielas, como num livro para ser lido. Ela tinha certeza de que era exatamente esse olhar atento à sua volta o que o professor esperava. Reconhecia que o trabalho que fazia era um teste proposto pelo professor Del Faro para saber se ela também conseguiria olhar além dos limites convencionados.

Uma semana depois, munida de uma enorme pasta, Amanda novamente esperava nervosa por Del Faro. No horário preciso, ela foi conduzida à sala do professor.

– Boa tarde, Amanda. Trouxe o trabalho? – Como sempre, direto ao ponto, Del Faro cumprimentou a estudante. – O que você descobriu?

– Descobri que a Paineira trazia o registro de um dos milhares de dramas vividos pelos jovens na década de 70, – respondeu Amanda enquanto se sentava na poltrona em frente à mesa do professor.

– Explique melhor, – pediu Del Faro.

– Essa Paineira, há duzentos anos atrás, era ponto de despedida dos bandeirantes. Quando esses homens se separavam de suas famílias a caminho de expedições, a Paineira era o local de adeus dos que iam sem a certeza da volta. Isso está registrado e documentado, conforme os textos que trouxe comigo. – Amanda explicava enquanto abria uma enorme pasta repleta de relatórios. – Entendi, professor, que o senhor desejava conhecer o passado ainda escondido que a árvore registrara. Assim, comecei pelas fotos da Paineira e passei a analisar cada detalhe que essas fotos continham. O que estava buscando, não sabia ainda dizer. Ampliei as fotos e notei as inscrições marcadas em seu tronco. Uma era muito nítida. Veja, aqui está a foto dessa inscrição.

Amanda mostrou uma foto de um trecho do tronco da árvore com um coração entalhado. Dentro do coração lia-se “Xam e Téh sempre”.

– Decidi descobrir quem eram esses jovens apaixonados, – continuou Amanda, mais animada, começando a se acostumar com o olhar inquisitivo do professor, – e se esse registro trazia algo importante para os envolvidos. A Paineira, famosa, fora muito fotografada. Comparando com fotos anteriores, descobri que o entalhe foi feito entre final de 1967 e meados de 1968. Em tão poucos dias que me restavam, tudo que podia fazer era tentar entrevistar os professores da Universidade que aqui estudaram nesse período.

– Entrevistar todos os professores? – Del Faro perguntou, incrédulo.

– Fui ajudada pelo pessoal da computação que preparou uma lista desses professores e pude, então, enviar uma mensagem pelo correio eletrônico para todos. O senhor não recebeu? – perguntou Amanda, curiosa.

– Sim, recebi, – respondeu Del Faro com um sorriso nos lábios, – e gostei de sua iniciativa. Continue, por favor.

Amanda sentia-se mais aliviada. O clima entre eles tornara-se mais ameno. Ela levantou-se e começou a caminhar pela sala enquanto falava. Assim, não tinha que ficar olhos-nos-olhos com o professor. Continuou mais tranqüila, notando os sinais de aprovação do professor.

– Uma professora do Instituto de Matemática me respondeu, dizendo que conhecera o casal que eu procurava. Alexandre Severo era Xan, um estudante de Matemática, e Téh era Tereza Évila Humes, uma estudante da Escola de Comunicação e Artes. A professora se lembrava da história do casal. Minha sorte maior foi que Tereza, ela própria, ainda trabalha na Universidade. Ela é a bibliotecária chefe do Instituto de Química.

– Como pesquisadora, uma de suas primeiras descobertas será que o acaso e a sorte são os melhores parceiros numa investigação. – Del Faro comentou num tom informal que denotava sua apreciação pelo trabalho da aluna.

– Eu procurei Tereza e lhe contei do meu trabalho. Ela, emocionada, revelou-me que conhecera Alexandre quando pedia carona sob a Paineira. O senhor sabia que a Paineira era ponto de carona para os estudantes? – perguntou ingenuamente Amanda.

– Sim. Eu mesmo cheguei a utilizar esse ponto quando estudante. Mas, conte-me. O que você descobriu de Dona Tereza? – pediu Del Faro, realmente interessado pela história de Amanda.

– Ela conheceu Xan, aluno do quarto ano de Matemática, em 1968, quando ela era primeiro-anista da Escola de Comunicações e Artes. Segundo ela, Xan era um jovem que só pensava em política; era membro do Centro Acadêmico e estava sempre ocupado em reuniões. Xan queria mudar o mundo. Seus estudos e sua vida política ocupavam absolutamente todo seu tempo e todo seu coração. Xan dirigia um Fusquinha velho, que lhe fora dado por seu pai, um feirante da região leste de São Paulo. O carro já saía lotado da Penha, onde morava. Estava sempre acompanhado por amigos e, por isso, nunca oferecia carona aos que ficavam no ponto da Paineira. Numa manhã fria, Xan viu Tereza sob a Paineira. Chovia muito naquela manhã e a moça era a única no ponto de carona. Embora seu carro já estivesse com cinco pessoas, ele parou e convidou-a: “Entre, ou você vai pegar uma pneumonia!”. Tereza conta essa passagem como se lembrasse cada palavra dita, – observou Amanda. – Ninguém no carro reclamou das roupas molhadas de Tereza. Segundo ela, para aquele grupo, a solidariedade era tudo, viviam por isso. Depois desse dia, Xan passou a dar carona para Tereza todos os dias.

Amanda andava, falava, gesticulava, sorria e se entristecia, tudo ao mesmo tempo. Del Faro olhava para a jovem estudante com um olhar de surpresa, aprovação e temor. Enquanto ela estava sentada à sua frente, as coisas eram mais fáceis para ele. Ele dominava a jovem olhando em seus olhos, e os papéis de professor e estudante estavam mais nítidos e sob seu controle. Agora, com ela caminhando e gesticulando pela sala, ficara mais difícil, pareciam colegas.

Del Faro esforçava-se para desviar os olhos da figura de Amanda. Seus cabelos soltos acompanhavam o movimento de sua cabeça, sua emoção com a história que contava era contagiante. Del Faro começava ali a descobrir a mulher, com seu corpo, seus seios, sua sensualidade. Ele notara que o botão superior da blusa de Amanda se soltara, e o início dos seios da jovem dificultava sua concentração na história. Ele sabia que essa atração não era bem-vinda. Jamais se envolvera com uma estudante e estava determinado a continuar sem se envolver no futuro. Tudo se dava tão rapidamente, tão inesperadamente e ele, desprevenido como raramente acontecia, permitira-se a fantasias impróprias na conduta correta de um professor. Ele começara a sentir o cheiro de terra molhada. Mas precisava recolocar suas emoções no quadrante correto. Precisava se concentrar na apresentação dela.

– Não demorou muito Alexandre passou a buscar Tereza em sua casa – continuou Amanda. – O namoro começou pouco tempo depois. Alexandre foi o primeiro, e acredito que o único, amor da vida de Tereza. Ela o descreve como um jovem doce, ingênuo e apaixonado. Para Tereza, Xan tinha a vitalidade que provinha de um amor universal, um amor que sentia por todos. Ele queria um mundo menos injusto. O Brasil e suas agruras eram a constante preocupação de Xan. Tereza acredita ter sido capaz de quebrar esse padrão trazendo um pouco de individualismo a Xan. Fizeram amor uma única vez. Ocorreu num encontro que tiveram na casa de Xan. Ele morava num quarto isolado da casa de seus pais. Um quarto cheio de posters e livros marxistas, coisa proibida na época. Foi no meio desses livros que ela se entregou a Alexandre. Naquele mesmo dia, na volta para a casa dela, ele a levou até a Paineira e nela marcou sua certeza de amor eterno, inscrevendo em seu tronco com um canivete: “Xan e Téh sempre”… Esculpiu ainda um coração ao redor do texto. – A emoção era visível na voz de Amanda. – Veja, professor. Veja esta foto. Mandei ampliá-la. O coração com a inscrição estava visível no dia em que cortaram a árvore. E veja esta outra foto que eu tirei. É do pedaço da Paineira que continha o entalhe. Dona Tereza, que estava junto aos que protestavam pelo corte da árvore, conseguiu resgatar a lasca do tronco quando abateram a pobre árvore que fora testemunha de tantas histórias. Tereza mantém o pedaço de madeira em sua caixa de jóias.

– Você disse que eles fizeram amor uma única vez? Então eles se afastaram depois disso… parece até que esse caso confirma a tese de que o único amor eterno é o amor impossível – interrompeu Del Faro defendendo-se por detrás do cinismo… e recompondo-se, – continue, Amanda … por que eles se separaram?

Del Faro observava o rosto da jovem. Era expressivo, corajoso, sem medo de demonstrar as emoções que sentia. Era um rosto envelhecido de alguma maneira especial. Ele sentia que a jovem estudante estava totalmente envolvida pela história que contava. Se Dona Belinha a visse naquela hora talvez concluísse que Amanda perambulava por uma de suas ruas, uma rua totalmente particular, estreita e longa. Amanda se emocionava ainda mais a cada novo detalhe que trazia. A história se dera no final da década de 60. Aquele fora um período que Amanda sabia ser de fundamental importância para a geração mais velha, a geração do próprio professor Del Faro. Fora a época da ditadura militar, das perseguições, dos assassinatos de jovens. Ela lera muito a respeito e os que viveram naquele período sempre relatavam os dramas de um período de guerra, de ocupação militar. Dona Belinha, em sua simplicidade, costumava dizer que aqueles eram tempos nos quais o Brasil tinha sido dominado por militares inimigos, embora do mesmo país. Amanda sabia que a história que desvendara era mais um dos milhares de dramas daquela época.

– Os dois viveram, por poucas semanas, uma linda história de amor. Dona Tereza descreveu com muita emoção aquele período; ela o fez com enorme riqueza de detalhes, o senhor poderá ler no texto das transcrições que anexei…

– Semanas! … – interrompeu Del Faro.

– Sim, professor, semanas. Logo depois da noite em que fizeram amor, Alexandre sumiu. Ninguém mais soube dele. Tereza, desesperada, o procurou em todos os lugares e devagar foi descobrindo a vida secreta do homem que amava. Ele pertencera à Alianca de Libertação Nacional, o movimento liderado por Marighela. Tereza, nem pessoa alguma daquele círculo, jamais soube do paradeiro de Xan. Ela acredita que ele foi preso e morto, como ocorrera naquela época com tantos outros jovens. Desse amor definitivo na vida de Dona Tereza, só lhe restaram lembranças de um homem que a amou em tempos de guerra e a lasquinha da Paineira, onde se vê uma parte do coração, com as letra “Xan e Téh” gravadas no centro dele. Ironicamente, a parte do coração com a palavra “sempre” se perdeu sob o machado que abateu a Paineira… e sob o machado da ditadura… – Amanda concluíu com um olhar de desafio.

Terminado o relato, professor a aluna ficaram em silêncio por um longo tempo. Ambos emocionados. Ambos, por razões diferentes, identificados no drama de Dona Tereza. Amanda estava sentada displicentemente no chão, na frente de um sofá que existia no escritório de Del Faro, com as fotos espalhadas pelo chão, à sua volta. Ele estava sentado sobre sua própria escrivaninha. Depois do que conversaram, não havia espaço para formalidades e etiqueta. Ambos sorviam aos poucos a emoção da história e se olhavam. Aquele era o professor sonhado pela aluna, e essa era a aluna forte e sensível jamais esperada pelo professor.

- Professor, eu gostaria de lhe pedir um favor. Eu trouxe o plano de trabalho que o senhor pediu. Gostaria de rasgá-lo; e se o senhor me aceitar como orientada, eu quero refazê-lo, – pediu Amanda, voltando ao seu papel de aluna.

- Por que você quer modificá-lo? – perguntou Del Faro, como se antecipasse a resposta.

- Quero fazer uma dissertação que envolva o período da ditadura militar. Parece que esse período foi uma fase bárbara e importante na vida brasileira, que impactou fortemente a vida dos envolvidos.

- Que tal algo como “Relações Amorosas em Tempos de Guerra”? – sugeriu Del Faro. – Você estudaria a repressão política alterando a maneira livre e natural de amar. Ama-se de forma diferente quando a perda é iminente como acontece em tempos de guerra? Falo das diferentes relações amorosas, de homem e mulher, de pai e filho, entre amigos…

- Professor, – perguntou Amanda, visivelmente emocionada, – isso significa que já fui aceita como sua aluna?



***



Amanda, como orientada do professor Luciano Del Faro, iniciou um período de muito trabalho e estudo.

Solitária em São Paulo, Amanda tinha plenas condições de se dedicar com afinco à sua pesquisa. Luciano, com seus hábitos também solitários, tinha uma vida integralmente voltada ao trabalho. Assim, o cotidiano fazia com que estivessem sempre juntos. Na medida em que melhor conhecia a jovem, Luciano mais gostava do trabalho sério da estudante. Entre os dois foi se estabelecendo um clima de confiança e cumplicidade, raro na vida de Luciano e comum na vida de Amanda. O professor, no entanto, esforçava-se para impedir que sua relação com a aluna ultrapassasse os limites do profissional.

Tutor e pupila no trabalho de pesquisa, invertiam seus papéis na vida real. Em assuntos do cotidiano, Amanda parecia ser mais madura que Luciano. Por mais que Luciano evitasse, os dois foram se tornando amigos e, cada vez mais, a maneira mais íntima de se relacionar, característica de Amanda, ia predominando entre eles. Ela estudava dia e noite, testava suas teses em pequenas investigações práticas. Aproveitava suas visitas à avó para realizar pesquisa de campo no Rio de Janeiro. Quando em São Paulo, seus momentos de lazer eram passados com Luciano, que era a única pessoa que conhecia na cidade. Inevitavelmente, essas duas pessoas solitárias, passaram a ter um ao outro como confidentes, com Amanda sentindo-se cada vez mais à vontade ao lado do professor.

– Professor, o senhor nunca pensou em se casar? – perguntou Amanda em uma noite em que ambos encerravam o expediente com uma cerveja num dos bares de estudantes que existiam nos arredores da Universidade.

– Sim. Tanto é que já fui casado. E não vingou…

Amanda olhou-o surpresa, tanto com sua própria indiscrição quanto com a resposta de Luciano.

– Acho que minha vida não se adapta ao casamento… – Luciano falava como se tentasse justificar-se, – ou talvez eu não me adapte ao casamento.

Amanda continuou em silêncio por alguns momentos, avaliando se deveria ou não manter a conversa naquela trilha. Finalmente, não resistiu às suas dúvidas femininas:

– O senhor a amava quando se casou?

O professor, de bom humor, sorriu da indiscrição de sua aluna. Sem saber por que, ele gostava de sentir que ela o forçava a um relacionamento de intimidade. Já tinham bebido alguns copos de cerveja, o que colaborava com a descontração da conversa. O bar estava lotado de professores e estudantes. A privacidade era garantida pela multidão anônima.

– Estava certo de que a amava, tanto que me casei… – respondeu ele criando coragem, – ou eu estava enganado ou o amor acabou muito rapidamente. A verdade é que poucos meses após o casamento, eu comecei a descobrir nela, uma mulher diferente daquela com que me casara. Talvez eu tenha fantasiado demais, talvez eu tenha imaginado que ela fosse outra, diferente, ou talvez eu procure algo que não existe nas mulheres.

Luciano interrompeu sua fala surpreso de ter ido tão longe. Amanda ainda se desconcertava ao perceber que aquele homem de 55 anos às vezes parecia um menino. Um menino cheio de “talvez”. Mesmo assim, ela não deixava de reconhecer o enorme esforço que ele fazia para revelar-se de maneira tão íntima.

– Professor, existiu por acaso alguma mulher especial na sua vida? Alguma que deixou saudades? –Amanda perguntava sem saber direito onde queria chegar, mas certa de que estava ultrapassando os limites estabelecidos pelo professor.

– Por incrível que pareça, – disse Luciano, enquanto sorvia sua bebida em pequenos goles, – de todas as mulheres que conheci, a que mais me marcou foi a Flautista, uma mulher que conheci por apenas uma noite. Ainda hoje, sua lembrança me acompanha.

– Fale-me dessa noite, – pediu Amanda, olhando em seus olhos.

– Eu tinha cerca de 20 anos e era professor num cursinho preparatório para vestibular. Todo ano fazíamos exames para concessão de bolsas e recebíamos centenas de candidatos. Naquele ano, em 1968, eu fora designado para cuidar de uma das salas noturnas de exame. Eu notei a presença dela no momento exato em que entrou na sala. Não era bonita. Mas tinha algo que a destacava de todos.

– Como era o nome dela? – Amanda queria detalhes.

– Nunca soube. Não perguntei.

O silêncio se instalou na mesa do bar. E parecia que o silêncio se estendera pelo bar inteiro, uma vez que nada mais ouviam senão um ao outro. Luciano se tornara sério, pensativo, como se tivesse se transportado para um passado remoto e perigoso. Era como se ambos estivessem caminhando sobre areia movediça. Amanda, tocou em sua mão. Sentiu-a pela primeira vez de uma maneira diferente… amiga e, de uma certa forma, amorosa. Olhando para ele, ela pediu:

– Não pare, conte-me.

Luciano parecia querer falar, mas não conseguia. Era difícil lembrar daquela noite, principalmente diante de Amanda, com quem queria manter o relacionamento estritamente profissional. Ele então continuou:

– No final da prova, os alunos foram terminando e a Flautista ficou por último. Ela entregou seu exame e começou a conversar comigo, comentando alguns detalhes da prova. Ficou ao meu lado até descermos as escadas da escola, a caminho da rua. Perguntei onde morava. Ela me disse que morava com a avó, nas imediações da Av. Angélica. Ofereci carona e, para minha alegria, ela aceitou.

Amanda não deixou de perceber a coincidência. A Flautista tembém vivia com a avó.

– Parei meu carro em frente à sua casa e ficamos conversando. Ela me descrevia seu mundo de maneira colorida e cheia de metáforas. Acabara de voltar de uma longa viagem pela Índia e o Tibet. Era budista. Falava das coisas com tal envolvimento e com tal encantamento que foi impossível eu não me apaixonar por ela instantaneamente. Eu tinha 20 anos e ela 17. Um amor de adolescentes, daqueles que acabam no dia seguinte…

– Mas está presente até hoje… Não? – Amanda interrompeu-o, ansiosa.

Luciano não respondeu. Ficou alguns momentos em silêncio, como que organizando suas emoções. Recobrando-se, ele sugeriu que caminhassem um pouco. Ele precisava de ar fresco. Mas ela não queria interromper aquele momento.

– Termine, depois caminhamos, – pediu ela com ternura.

Ele aquiesceu apertando as mãos da jovem que olhava fixamente para seus olhos.

– Nós ficamos conversando no carro e, quando nos demos conta, o dia clareava. A noite se fora … muito curta. Lembro-me do sentimento de perda iminente, lembro-me de não querer ir embora. Ofereci a ela um café na padaria da esquina. Foi a única coisa mundana que fizemos. Pingado e pão com manteiga foi nosso menu. De volta, já no carro, a caminho da casa dela, uma profunda tristeza começou a me envolver. Quando paramos na frente da casa da avó, observei as pessoas passando por nós, a caminho do trabalho … era hora de ir embora. Então ela me deu um beijo nos lábios. Nosso único beijo. Quando se afastou, abrindo a porta do carro, ela me disse: “frágil como um vaso de porcelana…”, saiu do carro e se foi. – Luciano ficou alguns intantes em silêncio e depois concluiu, tentando se recuperar no mundo da racionalidade. – Nunca mais a vi. E nunca entendi direito por que ela concluiu que o que se passara entre nós era frágil.

Amanda não conseguia esconder seu envolvimento com o que ouvira. O professor, por seu lado, se sentia desgastado pela emoção revivida. E se entristecera. Amanda ainda segurava suas mãos, num gesto novo de intimidade entre eles. O garçon se aproximou para perguntar algo, mas desistiu e se afastou. Eles ficaram quietos por um longo tempo. Foi Amanda quem quebrou o silencio:

– Não tentou revê-la?

– Eu apenas sabia onde ela morava e que ela havia participado, como flautista, num dos festivais de música popular da antiga TV Record de São Paulo. Por muito tempo eu rondei a casa dela, na esperança de vê-la. Mas jamais tentei tocar a campainha e perguntar por ela. Afinal, ela sabia onde eu trabalhava e, se ela quisesse me ver, ela saberia onde me encontrar – explicava Luciano. – Também não tive sucesso em descobri-la nos festivais de música seguintes. Nunca mais soube dela.

Foi naquele exato momento que Amanda tomou sua decisão: iria descobrir quem era essa mulher misteriosa. Para ela, o professor Luciano Del Faro desejava encontrar sua misteriosa mulher, mas não tinha coragem. Ela faria isso por ele. Seria seu presente. Ao mesmo tempo em que pensava isso, seu corpo emitia vibrações e calafrios. Ela também estava com medo. Mas não seria o medo que a deteria. Amanda conjecturava consigo mesma que a Flautista deixara suas marcas não apenas no coração do professor, mas também nos registros daquele festival. Talvez começasse por ali.

Os dois saíram do restaurante e caminharam até a casa de Amanda. Nada falaram durante a breve caminhada. Despediram-se com um beijo no rosto, como já se tornara habitual entre eles.



***



Os dias se passaram sem que falassem sobre a Flautista. A vida continuou em ritmo normal. Amanda se sentia mais próxima de seu professor, enquanto que ele continuava resguardando uma confortável distância entre os dois. Na verdade, depois daquela noite, Luciano se afastara dela mais do que o habitual.

Em segredo, Amanda foi progredindo em sua pesquisa sobre a Flautista, sem sequer se questionar se certas coisas, depois de petrificadas, não deveriam ficar definitivamente enterradas no passado. Porém, era seu ofício e era da sua natureza revelar o passado. Amanda não iria parar por nada.

Passados alguns meses, Amanda deu por encerrada sua pesquisa e decidiu, finalmente, que era hora de contar tudo para Luciano. Não sabia como fazê-lo e suspeitava que ele poderia não gostar. Mas era inevitável revelar a ele o resultado de suas investigações. Convidou-o, então, para jantar numa noite de sábado. Escolhera um restaurante de classe e prometera que pagaria a conta (embora isso significasse uma semana de traduções extras). Sem saber o que sua pupila estava tramando, Luciano encontrou-se com Amanda na república onde ela morava e se dirigiram a um elegante restaurante que ambos já conheciam; algo entre o tradicional e o moderno. Amanda estava tensa e Luciano curioso. Amanda jamais o convidara para jantar. Ele pressentia algo no ar.

Amanda estava linda, com seu corpo realçado por um de seus raros vestidos. Até um pouco de maquiagem e um leve perfume ela se permitira. Era impossível Luciano não se sentir atraído pela linda mulher que tinha a seu lado, mesmo com todas as suas naturais resistências.

O jantar transcorreu de maneira alegre e sensual. Luciano, que sempre tivera o papel de garantir o correto afastamento entre eles, parecia especialmente alerta naquela noite. E ela, tensa e temerosa, refugiava-se num jogo inútil e silencioso de sedução feminina. Nada falaram a respeito da razão do jantar. Amanda tentava se convencer de que o melhor mesmo era não estragar a noite e deixar para lhe contar tudo num outro dia. Porém, já na sobremesa, Luciano perguntou:

– O que você afinal tem para me dizer? Que descoberta você realizou?

Luciano percebera as dificuldades de Amanda em lhe contar o que quer que fosse. Ele nunca a tinha visto em tal estado de tensão e não sabia direito o que fazer naquela situação inusitada. Ele imaginava que o que a preocupava era o trabalho de mestrado.

– Prometa que você não irá se zangar comigo… – criou coragem Amanda.

– Como prometer se não sei o que você tem para me contar? – respondeu Luciano, rindo do jeito infantil e deliciosamente feminino de sua pupila; sem imaginar o que viria.

– Eu descobri quem é a sua misteriosa Flautista… – Amanda falava de olhos fechados.

Luciano ficou em silêncio, olhando fixamente para Amanda. Os segundos se passavam e a atmosfera entre eles ficava mais e mais pesada. O olhar de Luciano se transformava de severo em furioso.

– Eu só queria ajudar você, – disse nervosa, esquecendo a etiqueta entre ambos e tratando-o pelo informal “você”, – Eu queria trazê-la de volta para sua vida … quero você feliz.

– E quem lhe disse que não sou feliz? E quem lhe disse que preciso do meu passado para me trazer alegria? E quem lhe deu o direito de interferir dessa forma na minha vida? – Luciano estava realmente irado e continuava no mesmo tom de voz. – Você falou com ela?

– Sim. – Amanda respondeu com voz vascilante, temerosa. – Ela quer se encontrar com você.

– O quê? Encontrar-se comigo? Jamais! – As feridas de Luciano estavam novamente abertas.

– Amanda Novaes, você foi muito longe! – Luciano a ameaçava, vermelho e descontrolado. - Eu não quero ver essa mulher. Eu não vou vê-la. É passado, acabou. Você não devia revolver dessa maneira o passado das pessoas!

Paradoxalmente, aquele era o professor cujo ofício era revolver o passado. Amanda nunca o tinha visto tão zangado, realmente bravo. Porém, além da raiva, ela também conseguia ver o menino amedrontado, indefeso diante de seu passado. Ela, pela segunda vez, pegou suas mãos e olhou docemente em seus olhos.

– É seu passado, encontre-se com ela. O passado revelado exorcisa o presente, não é o que o senhor ensina? – Amanda falava, recobrando sua coragem e tentando acalmar seu descompassado companheiro de mesa.

O jantar estava encerrado. Eles deixaram o restaurante caminhando. Era uma noite paulista fria de céu claro. Conseguia-se ver algumas estrelas. As ruas estavam desertas. Ele acendera um cachimbo que sempre o ajudava a lidar com situações difíceis. Ela seguia quieta ao seu lado, segurando seu braço e sentindo seus seios roçarem no corpo de Luciano. Ela gostou dessa intimidade com aquele homem.

– Fale-me dela, – pediu Luciano, depois de um longo silêncio.

– Ela se chama Laura Mendonça Paulin. É viúva de Louis Paulin, um rico industrial francês, amante das artes. Ela viveu a maior parte do tempo na Europa, onde fez uma breve carreira artística. Voltou depois que ficou viúva. – Parecia que Amanda estava apresentando um relatório. Presa no braço de Luciano, ela se sentia segura e confortada.

– Ela se lembrava de mim? – O professor precisava saber mais.

– Apenas vagamente, sinto dizer. Dois dias depois do encontro de vocês, ela viajou para a França, para estudar música. Na Europa, ela se casou e não voltou ao Brasil. Teve dois filhos que hoje vivem em Provence.

– Você lhe contou da minha vida? – Luciano perguntava, ainda ansioso.

– Sim. De início ela não acreditou no que eu relatava. Depois ficou emocionada em saber que o senhor ainda se lembrava dela. Ela quer lhe ver. Aqui está seu nome e endereço. Ligue para ela. – Amanda, entregou-lhe um pequeno pedaço de papel dobrado.

Amanda sentia-se ameaçada pela possibilidade de Laura vir a interferir na sua relação com Luciano. Temia perdê-lo e ter que voltar para sua solidão. Porém ela tinha um compromisso inato com a verdade. Era uma de suas ruas. Ela fez o que tinha que ser feito. Continuaram caminhando em silêncio. Ela se aconchegou ainda mais em seu corpo protegendo-se do vento frio. Ele, aparentemente, nem percebia a proximidade física dela.

Amanda sentia seu coração acelerado. Ela sentia Luciano tão próximo, tão humano que seu desejo era abraçá-lo e protegê-lo. Mas tinha algo mais. Amanda sentia que sua relação com o professor não mais seria a mesma. Não depois do que viveram juntos.



***



Luciano passou alguns dias sem saber se ligava ou não para Laura. Finalmente, numa noite, em sua casa, ele levantou o telefone do gancho e ligou:

- Alô?

- Laura? Aqui é Luciano, de muito tempo atrás. – A fala quase não saia.

- Luciano, que alegria em te ouvir! – A voz de Laura era nervosa, mas pausada, um pouco artificial, muito diferente da jovem sonhadora de trinta anos atrás, apenas o timbre lhe era familiar. – Que bom que você me descobriu!

Marcaram um encontro. Iriam jantar num restaurante chique nos Jardins, um bairro rico de São Paulo. Após o telefonema, Laura ficou em estado de ansiedade crescente, aguardando o dia marcado. Não sabia o que esperar. Na verdade, ela não se lembrava dele. Fora Amanda quem, com seu entusiasmo, a contagiara. Amanda lhe passara a imagem de um homem tão especial, tão apaixonado por ela, que ela não resistira ao conto de fadas. Laura estava mais tocada pela história de amor eterno do que pela existência do antigo professor do cursinho.

Luciano e Laura encontraram-se no bar do restaurante. Não se reconheceram. Eram dois estranhos completos.

– Laura? Sou Luciano. É bom te ver depois de tanto tempo. – O professor estendeu sua mão para cumprimentá-la.

Para ele, ela estava diferente e dificilmente a reconheceria se a visse na rua. Era impossível, para Luciano, ver nela a mulher por quem sonhara por tantos anos. Laura era uma mulher bonita e refinada, mas, de alguma forma, encapsulada, como que envolta em algo artificial. Vestia uma saia cinza, longa e solta, sobre uma blusa de seda, cor creme. Um xale dourado, brilhante, sobre seus ombros, completava seu figurino.

– Olá, Luciano. Sim, é bom estar aqui. –Laura cumprimentou-o com um elegante sorriso.

Para ela, Luciano definitivamente era um estranho. Um estranho que em segredo a amara por mais de trinta anos. Seu jeito de professor, era toda a lembrança que tinha dele. O garçon os levou para a mesa. Um cantinho romântico, à luz de velas. Conversaram sobre suas vidas com a formalidade de duas pessoas que acabaram de se conhecer. Embora a voz de Laura lhe trouxesse recordações, Luciano não conseguia ver nela a Flautista de seus sonhos. Onde estava a magia que ela o fizera sentir? Onde se escondera a fascinação que seu sorriso provocava? Em que lugares da Europa se perdera seu perfume, tão único? Onde se aninhara o romance que ele sentira naquela noite mágica? Seu desconforto crescia a cada minuto. Laura por outro lado, olhava para aquele homem bonito, interessante, inteligente e se perguntava por que ele se apegara a ela por tanto tempo. O desastre daquele encontro foi irremediável. Despediram-se como dois estranhos.

Luciano nada disse a Amanda sobre seu encontro com Laura. Na verdade, eles não mais falaram a respeito daquela mulher. Amanda se corroía em especulações solitárias. Ela tentava adivinhar o que se passara, o que estava se passando, mas não conseguia. Ela somente saberia se ele lhe contasse.

A jovem pressentia, sem estar certa de nada, que a relação entre ela e o professor se alterara de maneira sutil. A delicada mistura de pessoal e profissional continuava a existir, porém com as barreiras entre esses dois espaços atenuadas. Embora continuasse a se frustrar na sua busca instintiva por uma maior proximidade com Luciano, Amanda estava mais feliz que antes com o trabalho e com a convivência com o professor. Uma convivência que ela imaginava estar mais leve, mais alegre e, quem sabe até, mais carinhosa.

Aos poucos a vida retornava ao ritmo normal. O dia da defesa de tese de Amanda se aproximava e havia muita coisa a terminar. O trabalho da estudante chegava à sua fase de conclusão. Amanda e Luciano estavam juntos há um ano, um longo período que passara muito rápido e que se aproximava do fim. Amanda, de fato, queria ficar em São Paulo, ao lado dele. Ela queria prolongar sua estadia ao máximo. Ela pensava nisso enquanto observava Luciano lendo a versão final de sua dissertação. Estavam sentados nas poltronas da sala do professor. Ela se lembrava da conversa que tivera na noite anterior com sua avó. Falaram do desejo dela de continuar em São Paulo. Dona Belinha perguntara se ela estava apaixonada pelo professor. Amanda respondera que não tinha certeza de nada, que seus sentimentos estavam confusos e que o professor não aprovaria nenhum envolvimento com uma aluna tão mais jovem. Dona Belinha respondera que ele seria um grande imbecil se não quisesse uma mulher tão especial quanto Amanda.

A lembrança da conversa com a avó fez Amanda sorrir. Luciano levantou os olhos do texto e olhou para a aluna, sentindo algo insinuante no ar.

– Você já pensou no que fará depois de concluir sua dissertação? – Luciano quebrou o silêncio, como que adivinhando os pensamentos da moça.

– Sim … – respondeu ela, surpresa com a pergunta, – já pensei muito. Mas não sei ainda o que fazer.

Voltaram a ficar em silêncio. Ele absorto em seus pensamentos, ela controlando suas dúvidas e domando sua inquietação. Luciano retirara os óculos de leitura e, com uma das alças em sua boca, fitava para além dos papéis que tinha em seu colo. Amanda o observava, inquieta.

– Como se dizia no passado, um tostão pelos seus pensamentos, – ofereceu Amanda com um sorriso carinhoso.

– Não revelarei. – Luciano respondeu, forçando um olhar sério. – Vou guardar para quando o mercado de pensamentos estiver em alta e assim conseguirei um preço maior.

– O mercado pode despencar… – ameaçou a jovem.

Luciano sorriu, recolocando os óculos para voltar à leitura.

– Você tem estado mais feliz, mais leve… – insistiu a jovem, novamente trilhando caminhos mais íntimos, – até mais amoroso…

– Você quer dizer… – interrompeu Luciano, com um olhar misterioso, – que talvez eu tenha sido… exorcizado?

Os olhos de Amanda se fixaram nos de Luciano, num sinal de que ela, finalmente, entendera. Então, após alguns momentos, ela esboçou um leve sorriso e disse em voz solene:

- Professor Luciano Del Faro, eu li todos os seus livros. E concluí que eu desejava mesmo era ser uma socióloga da maneira que o senhor ensina. Talvez seja pretensão minha, mas vim para São Paulo para estudar com o senhor … e não gostaria de voltar.

Luciano sorriu, lembrando-se do primeiro encontro que tiveram.





FIM


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