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Ensaios-->IMAGENS PERDIDAS -- 14/09/2010 - 16:31 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Outra noite de insônia.
Penso e repenso nos idos tempos da minha infância, no velho Bixiga, bairro paulistano que muitos ainda teimam em chamar de – Bela Vista.
Nesses momentos vem a nostalgia, ao relembrar as procissões, principalmente a do funeral de Cristo, que aconteciam nas noites de sexta-feira da semana santa.
Em devaneios, num repente mágico, meu quarto transformou-se em um daqueles cortejos.
A multidão nas ruas. As irmandades com seus hábitos saíam da igreja da Achiropita. Lá estavam os meus avós, meus pais, parentes e amigos, todos, como a maioria, com velas acesas nas mãos.
Aos acordes de uma marcha fúnebre tocada pela Banda de Música da Guarda Civil, o caixão com o Cristo, carregado nos ombros pelos religiosos, debaixo de um pálio amarelo, saía para a rua, completando a tristeza e a solidão das pessoas.
Com pesar, lembrei-me de um poema feito no passado e o declamei, em voz baixa:


Pai... oh! Meu Pai... onde estás
Pra sussurrar-Te no ouvido
Pai... Eu não acredito
Ver o Meu sangue escorrido
Perdido na lama e caído
Na terra... onde não vi brotar
O amor... a paz.. e a justiça
Se tenho comigo os desditos
E... as mulheres a chorar
Porque... Eu vim Te pergunto
Pois os pecados do mundo
Não consegui renegar
Assim... leve-Me ciente
Pra Ti meu Pai resoluto
Deixando ao Teu lado ficar
Este Teu Filho infortuno
Crucificado e ferido
No corpo... n’alma e no olhar...

Todo aquele respeito e a convicção ao Deus crucificado trouxeram-me lágrimas aos olhos. E assim, comovido, continuei:


Pregado ao lenho... só moribundo
Cravando luzentes olhares pro céu
Cristo ao tirar os pecados do mundo
Propôs-Se a expiar os ímpios labéus.

Num êxtase mortal e furibundo
Sabendo a morte é vinda em tropel
Estremece o corpo febril e iracundo
Chamando as mulheres encobertas por véus...

Piedosas pedintes... exaustas... exangues
Sob o temor vacilante das multidões
Que tombam por terra... em lamentações.

Mas... treme a terra... ribombam os trovões
Goteja-lhe o suor... mesclado em sangue
De Suas esperanças e... dos ladrões...

A lua cheia, como por encanto, iluminava a noite sob os repiques das matracas funestas.
Em seguida morto o andor com Nossa Senhora das Dores.
Quando a banda parava de tocar, as irmandades e o povo entoavam uma canção triste, pedindo perdão ao Senhor por todos os pecados.
Verônica, uma senhora da congregação das Filhas de Maria, a cada cem metros subia em uma cadeira e cantava as estações da via-sacra.
Depois a procissão continuava.
Outro poema veio-me ao pensamento:


Sexta-feira maior
Meia-noite enluarada
A lua era cheia... e surgia
Entre nuvens... enciumadas
Na Terra os sepulcros se abriam
Deles... avantesmas surgiam
Junto com outras entidades
Assombrando as cercanias
Da velha capela sagrada
Onde um Cristo jazia
Em sua cruz de pecados
Enleado e enlutado
Em panos roxos... surrados...

Em paz com essas lembranças, acompanhei novamente, como se fosse ao vivo, aquele ritual que nunca mais voltará.
E os poemas dedicados à sexta-feira santa continuavam em meu balbuciar:


A noite era fria e sombria
Ao longe os passos marcados
Ritmavam a romaria
Relembrando as nostalgias
Das liturgias passadas
Entre o brilho das velas
A procissão prosseguia
Ao som de cantos do além
Carregando o Senhor morto
Enleado... enlutado
Naquele esquife doirado
Sobre os ombros curvados
De pecadores dispostos
A expiação dos pecados
Cometidos... ajuizados
Nas tentações dos poréns...

Comecei a sentir os olhos pesados. Será o sono que vem, em gratidão aos meus pensamentos?
Já sonolento, mas ainda com aquelas visões, lembrei do menino que sofria a agonia daquelas paixões:



A lua era cheia... ia alta
Envolta em gazes sutis
Olhava de cima... as passadas
Difíceis e atormentadas
Daqueles homens gentis
Carregando um esquife
Sob o pálio amarelo
Entre tochas e luzernas
O Senhor em seu flagelo
Nos ombros era levado
Para cumprir a missão
Do dia mais inquietante
Da ida crucificação
Pois só por alguns instantes
Ao meio das confrarias
Da sexta-feira maior
O menino ajoelhava-se
Demonstrando a sua dor
Em orações de agonias
Pedia em ave-marias
Para deixar suas mágoas
Nas fitas daquele andor...

Embalado por recordações daquele passado de fé e de crenças, dormi e sonhei com aqueles momentos suntuosos.
Ao acordar, fiquei pensando em nosso tempo atual. Daquelas antigas procissões transcorreram mais de sessenta anos.
Hoje não existe mais aquele romantismo nem o respeito do público pelas procissões.
Ao passar pelas ruas Manoel Dutra, Rui Barbosa e Conselheiro Ramalho, os bondes paravam, e o condutor e o motorneiro tiravam seus quepes azuis-marinhos que faziam parte do uniforme.
Por mais frio que estivesse ou mesmo com garoa, todos os homens ficavam sem chapéu.
O trânsito era bloqueado em todo o trajeto da procissão.
Os moradores penduravam colchas amarelas com franjas doiradas nas janelas e de lá viam as imagens e o povo passar com velas nas mãos.
O feriado da sexta-feira santa era tão cultuado e respeitado que os bares, restaurantes e botequins do bairro permaneciam fechados, assim como os cinemas e teatros.
As rádios só tocavam música clássica. Ainda não existia a televisão no Brasil.
Meus avós maternos, Francisco e Joana Trombieri, da Ordem Terceira de São Francisco, nesse dia não colocavam toalha na mesa, seguindo uma antiga tradição da Calábria, na Itália, de onde vieram.
Quando falecia alguém da família, em sinal de luto também não se colocava toalha na mesa das refeições, até a missa do sétimo dia.
Ninguém quase falava. Nem o rádio era ligado. O silêncio era quase total.
Atualmente, além de a Igreja Católica ter mudado radicalmente os seus dogmas e rituais, fazendo com que o seu rebanho vá para as igrejas evangélicas, cada vez mais as tradições da instituição comandada pelo Vaticano estão desaparecendo.
Para mim, temente a Deus, os dias são de tristeza pelos males que me atormentam.
Ah! Se o passado pudesse voltar em uma máquina do tempo! Juro pelo Cristo morto naquele andor que nunca mais deixaria de ser criança!
Menino, mas atormentado e temeroso daqueles rituais.

Era noite e um mistério
No quarto escuro... o tédio
No tempo a solidão...
Nas paredes os retratos
Um Cristo crucificado
Olhava a inquietação
Do menino assustado
Com seus sonhos sem recatos
Mas sonhados com pavor
Com a morte... lôbrega... adusta
Que vira na ante-sala
Daquela casa fadada
Em ser alvitre da dor...

Roberto Stavale
Setembro de 2010.-
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