TAPA OUVIDOS
O sol dos quadrinhos já havia se despedido, mas a pergunta ainda ressoava incessantemente em algum lugar da maldita caverna obscura que chamam de inconsciente…
Achei que as cinco horas extras de sono dominical ajudariam a esquecê-la, mas NÃO. Um iogurte com cereais, uma sessão de louças lavadas, e 40 minutos à procura de empregos nos classificados depois, e ela ainda estava lá. Martelando.
Foi então que decidi mudar a estratégia: ao invés de continuar fugindo, decidi encarar de frente a pergunta que não me deixava sossegar:
“Até que ponto eu suportaria a dor de não ser o que prevejo &
8722; ou seria desejo? &
8722; antes de me entorpecer com drogas, bebidas, remédios…; de me tornar hipocondríaca, maníaca depressiva, uma louca varrida, uma esquizofrênica sem eira, sem beira, e sem saída?”
Sentei, dessa vez no chão da sala, em frente a estante cheia de fotos e elefantes, uma espécie de altar que montei para as pessoas e coisas nas quais acredito, e depois de observar cada um dos rostos e patas: avistei, escondidinho, atrás da caixa de chocolate alpino, uma embalagem de plástico pequena, contendo os dois tapa ouvidos amarelos que minha mãe gentilmente me deu de presente quando passei a reclamar do barulho do ar condicionado nos dois quartos vizinhos ao meu…
Engraçado. Nunca pensei nos tapa-ouvidos como escudos, mas o que mais eles haveriam de ser? Ninguém tapas os ouvidos para o que quer escutar: a música favorita, a voz do namorado, o choro do irmão, o chamego da mãe, o conselho da avó… Só se tapa os ouvidos para o que não se quer ver. Sim, pro que não se quer VER. Porque ao escutarmos o que não queremos, visualizamos imediatamente, e de forma insuportável, o que nos recusamos a ver por vontade própria. E nessas horas o que sentimos passa a ser qualquer coisa parecida com assistir a um filme com palitos nos olhos para mantê-los abertos venha o que vier.
Durante muito, muito tempo recusei os tapa ouvidos que me foram oferecidos: em casa, na escola, na faculdade, nas festas, na casa de amigos, nas ruas; namorados, amigos, pais de amigos, colegas, vizinhos… todos dependentes, todos sem saída, todos entregues, enjaulados, encubados, entorpecidos.
Das óbvias às mais criativas, passando pelas esdrúxulas e inacreditáveis: recusei todas as ofertas. Nunca por falta de 'exemplos”. Sempre por falta de interesse, de vontade, de curiosidade. Indiferença pura e simples a tudo que poderia me livrar da realidade, mas que em troca exigiria uma resistência à dor física acima da média, e uma dose a menos de amor próprio.
Por saber que a hipocondria, o alcoolismo, as ervas e as pedras se quer consigo chamar de opção, me entristeço ao perceber que só me restará a loucura, caso eu não aceite a agrura de não chegar lá &
8722; seja lá onde isso for.
Nicole Rodrigues
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