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Ensaios-->NATURALISMO E ARTE LITERÁRIA EM -- 25/06/2009 - 10:20 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

NATURALISMO E ARTE LITERÁRIA EM “O ALIENISTA” DE MACHADO DE ASSIS
João Ferreira
Junho de 2009

“Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho”.
MACHADO DE ASSIS. Prólogo à terceira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas.


Entre as obras que marcam a fase realista e naturalista de Machado de Assis está “O Alienista”. Procedendo a uma recente leitura da obra para uma palestra destinada a alunos do ensino médio, achamos interessante aproveitar dois termos utilizados pelo próprio Machado no prólogo para a terceira edição de Memórias Póstumas de Braz Cubas para definirmos nossos marcos de leitura no que se refere à análise e interpretação de O Alienista. Esses termos contidos na citação colocada acima, são: a “taça” e o “vinho” (“outro vinho”, mais propriamente). Vamos explicar. No citado prólogo da terceira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas, referindo-se à possível relação do texto de Memórias com a leitura de alguns autores estrangeiros, citados nominalmente por Machado, como Sterne, Almeida Garrett e Xavier de Maistre, o escritor-autor de Memórias consegue sair desse confronto mostrando a polissemia criacional de seu texto: na resposta aos amigos e críticos que lhe fizeram algumas observações sobre a natureza do livro, Machado diz, por exemplo, respondendo a Capistrano de Abreu que Memórias podem ser romance ou não, dependendo do ponto de vista do leitor ou do analista. Respondendo a outros, diz também que Memórias pode ter algum tipo de relação com as Viagens da minha Terra de Garrett ou não, assim como podem ser relacionadas com os escritos de Xavier de Maistre ou não. A saída de Machado é uma saída polissêmica da pluralidade ontológica que atinge a genética da obra literária e as raízes da autoria. Uma saída polissêmica, porque no fundo a genética da obra, por ser fruto da imaginação criadora e da ficção, é mais do que tudo uma viagem. E aviagem ficcional não tem espaço definido. E por isso se expande ou se estreita, passa vizinho ou se funde no intertexto da escrita universal. Machado pela voz de seu defunto-autor mostra que apesar da vizinhança e familiaridade com esses autores, Memórias Póstumas são “uma obra difusa”. E isso porque se têm “uma forma livre” de um Sterne ou de um Xavier Maistre,confessa Machado, têm também a mão personalizada de Brás Cubas que não sabe se lhe meteu “algumas rabugens de pessimismo”. Machado, já para o fim do prólogo citado, explica a peculiaridade de “seu Brás Cubas”. Ou seja: quando fala de “algumas rabugens de pessimismo” Machado refere-se ao lado específico e pessoal da elaboração da obra, ao tom literário verdadeiro e ao rosto do escritor, independentemente de onde venha a moldura externa, ou o vaso que contém os genes do DNA: “Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e ás pero que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho”.
Achamos importantíssima sob o ponto de vista hermenêutico esta passagem de Machado no prólogo das Memórias de Brás Cubas. Ela abre para nós o pórtico luminoso de interpretação do que precisamos de saber sobre o ponto de partida da criação literária de Machado em sua relação com modelos, teorias e práticas literárias de seu tempo. Isso nos interessa diretamente para melhor captarmos a sua relação literária com fatores externos e melhor entendimento de sua endogenia literária. Este entendimento nos ajudará a analisar melhor a concepção e realização de O Alienista. Sendo assim, utilizaremos como espelho metodológico essa visão do autor expressa no prólogo citado para tornarmos mais clara a leitura literária de O Alienista.

I - Modelos, pontos periodológicos e estéticos de partida. A taça

Na primeira parte deste texto assinalaremos por isso os vestígios latentes dos princípios que nortearam a estética da ficção naturalista a partir de 1866. É o modelo material. É a utilização da análise científica como temática no romance e em outras obras de ficção. A essa moldura parecem estar vinculadas as traves mestras de O Alienista mesmo que Machado não se tenha atrelado a ela de maneira ortodoxa e formal. A moldura é a taça. O trabalho literário de Machado é específico, é algo além da taça. “É outro vinho que está longe de vir de seus modelos”. Sendo assim, a taça representaria apenas a estrutura estética periodológica do naturalismo literário como se se tratasse de um contêiner. Já o vinho representa o conteúdo, ou a arte literária mimetizada por Machado através de uma grande metáfora que é a paródia geral de O Alienista. A paródia mimetiza o grande fracasso do cientificismo que significava para muitos a única via de salvação para a humanidade. Machado quis denunciar esse engodo positivista, materialista, cientificista que julgou uma simplificação de um problema mais profundo e mais sério que é existência humana no mundo. Essa paródia, mostra que o trabalho literário de Machado é “outro vinho”, bem diferente do vinho que lhe ofereciam os modelos realistas e naturalistas que exploraram a inclusão temática da pesquisa e análise científica nas obras de ficção.

Detenhamo-nos então em mostrar a moldura da taça que contém o vinho literário de Machado em
O Alienista.
Machado apresenta como protagonista de seu livro um famoso psiquiatra. Trata-se de Simão Bacamarte formado nas universidades europeias de Coimbra e Pádua. Terminados os estudos Simão regressa a Itaguaí, sua terra natal, com a obsessão de “entregar-se de corpo e alma ao estudo da ciência”(pág.5). Ao optar por uma temática científica como nervura central de O Alienista, publicado inicialmente no jornal A Estação entre 1881 e 1882 e reeditado depois em Papéis Avulsos em 1882, Machado de Assis entra na história literária brasileira, ao lado de Aluísio de Azevedo, autor de O Mulato (1881) como um dos pioneiros do naturalismo brasileiro. Apenas por uma questão de cronologia relativa, Aluísio ainda é considerado autor do primeiro romance naturalista da Literatura Brasileira. Mas nada há contra a hipótese de que os dois autores, Machado e ele, terão escrito seus livros coincidentemente no mesmo ano de 1881. E por isso poderão, se a crítica especializada assim o permitir, ser declarados conjuntamente os dois primeiros autores de ficção naturalista brasileira, no âmbito dos parâmetros cientificistas e sociológicos anunciados por Taine e praticados por Zola e outros autores franceses.
Se acompanharmos a evolução das raízes da estética naturalista pela ordem em que circularam as idéias no século XIX e consequente influência no movimento cientista e naturalista temos estes grandes nomes na ordem cronológica da produção. O primeiro a ser considerado é sem dúvida, o de Augusto Comte(1798-1857), fundador do Positivismo, que publica, de 1830 a 1842, o famoso Curso de filosofia positiva, em 6 volumes, renomeado em 1848 com o título de Sistema de filosofia positiva e, depois, o Discurso sobre o espírito positivo(1848). Através dessas e de outras obras, Comte pregou o positivismo cientista ou o cientismo que varreu a Europa e o Brasil como uma onda. Logo em seguida vem Charles Darwin (1809-1882) autor de A Origem das espécies (1859), cujo fulcro é a teoria evolucionista do homem a partir do macaco. Em 1864 Hyppolite Taine (1828-1893), expunha em História da Literatura inglesa a via determinista que interpretava o comportamento humano como fruto do momento histórico, do meio e da raça.
Quando em 1866 Émile Zola publicou Therèse Raquin tornou-se evidente que tinha já em seu cardápio mental não apenas a teoria evolucionista de Darwin, mas o positivismo de Comte e o determinismo de Hipollyte Taine. A tarefa foi fácil para Zola. Absorvendo rapidamente a novidade científica francesa e inglesa, resolveu apresentar nesse livro uma análise científica do ser humano, da moral e da sociedade. Em virtude desse eixo temático a nova obra de Zola passou a ser considerada como início de um movimento literário novo , cujo objetivo era a análise do ser humano com bases científicas. Esse movimento foi chamado de Naturalismo.

O naturalismo chegou a Portugal também. Na conferência pronunciada em 1871, no Cassino Lisbonense, sobre o “Realismo como nova expressão de arte”, Eça de Queiroz mostrou-se movido por duas idéias-forças oriundas de Paris e chegadas a Coimbra havia pouco tempo: a idéia de revolução haurida em Proudhon e o homem como produto do meio herdada de Hypollite Taine. Essas idéias que semeou em O Crime do Padre Amaro (1876) e em O Primo Basílio (1878), construíram as bases da nova Literatura em Portugal. Tais ideias foram porém superadas em 1880, quando Eça, ao publicar O Mandarim, utilizou apenas a livre imaginação criadora, sem se ligar rigorosamente a uma corrente literária explícita.
Coincidentemente, Machado que acompanhava atentamente os movimentos literários europeus, iniciava por volta deste ano de 1880, quando Eça já está desistindo da corrente realista-naturalista, uma fase de escrita naturalista, que vai colocar em relevo em O Alienista.
O livro representa uma decidida opção por um tema científico que vai constituir a espinha dorsal de uma narrativa. Em termo de taça e até de modelo material lembra Zola, ao destacar o cientificismo e o momento histórico da cultura racionalista e cientista vivida pelo protagonista Simão. Há estas evidências em O Alienistas. É a ação dos modelos. Porém, em termos literários Machado imprime um intencionalidade artística própria na obra, além dos modelos, colocando na taça dos modelos “outro vinho”.
Na altura em que Machado escreve, Zola já estava praticando uma literatura neo-realista avant la lettre em sua obra-prima Germinal(1885) onde mostra preferir o realismo social cru ao optar por uma escrita onde se descrevem as condições de vida subumanas de uma comunidade de trabalhadores de uma mina de carvão em França. Um veio social que será explorado no romance de 30 por autores brasileiros e no neorealismo português da década de trinta do século XX, também.

II – “Outro vinho” dentro da taça. A literariedade ou a paródia criativa

É exatamente esse “outro vinho” que faz a singularidade literária de Machado. Isso o leitor poderá analisar em primeiro lugar através da intencionalidade literária expressa na própria narrativa quando fala do estudo e da análise científica sobre a loucura a que irá dedicar-se Simão Bacamarte: “Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina” (p.10). Simão escolherá um recanto psíquico e as patologias cerebrais para centrar a pesquisa sobre a loucura: “Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção – o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral”(Ib. 10). Em termos de modelo foi este tipo de intencionalidade literária que moveu Zola em Therèse Raquin em 1866: “inspirado pelos estudos científicos da época, Zola propõe não um simples romance, mas uma análise científica pormenorizada do ser humano, da moral e da sociedade.”
A tese científica conduzida por Simão é apenas um ponto de partida. Uma forma material temática. No decorrer da intriga machadiana o leitor se aperceberá que a ação do protagonista não terá consistência. Sua atitude científica por isso trará conclusões libertadoras para o homem nem para a sociedade de Itaguaí. O protagonista-cientista armado por Machado é, à partida, um médico disposto a revolucionar tudo pela ciência. No decorrer da ação, porém, seus métodos e volúpia científica terminam por quebrar diante de resultados problemáticos gerando o fracasso do próprio alienista. A novidade da narrativa de Machado não está no fato de ter dado a Simão uma missão de cientista. Está, sim, em associar a esta missão, uma paródia, que é expressa por uma ação variada, múltipla, confusa e fracassada gerada pelo protagonista em Itaguaí. Com essa paródia Machado mostra a incapacidade do cientificismo do século XIX em embalar esperanças reais de uma sociedade que durante décadas esperou pela libertação que o progresso, a ciência e a perspectiva positivista lhe prometiam. Machado indiretamente desfaz esses mitos. No decorrer da narrativa machadiana os efeitos da aplicação das teorias científicas da loucura são estranhadas e rejeitadas pela sociedade e ridicularizadas por serem radicais e mais fantasiosas do que científicas. A obra de Machado de Assis por isso não é um simples aproveitamento da tese científica utilizada por outros escritores. É mais do que isso. Tem mais o jeito de ser uma obra literária onde o propósito do protagonista é estudar e pesquisar ciência mas no final é confundido pelos próprios resultados do método com que aplicou a ciência. A narrativa não poupa Simão e o ridiculariza de tal maneira que no fim de uma vida dedicada à ciência, ele não sabe mais o que é loucura. Não sabe se é um desequilíbrio das faculdades mentais, como defendia a tradição, se é, na verdade , o próprio equilíbrio ou perfeição das faculdades mentais. Esta conclusão arrancada às custas do desempenho do protagonista aparece como a essência da grande paródia arquitetada por Machado de Assis. E esta é por isso a metáfora literária essencial do livro do genial escritor. Por outras palavras, entendemos que O Alienista não é mais do que uma objurgatória indireta mas espetacular contra o cientificismo vazio propalado em certos ambientes europeus e brasileiros incluindo o ambiente jornalístico de opinião no século XIX.

'Este vinho' representado pela intencionalidade literária marca certamente a diferença entre Machado e Zola. Diferença grande.
Machado coloca o tempo da história em pleno século XVIII, período do racionalismo europeu. E associa esse período ao tempo da escrita que é o século XIX, período do cientismo contra o qual Machado de Assis dirige sua crítica. Com a habilidade que lhe é natural, Machado cria a moldura e a taça e depois produz e verte o vinho na taça.

III- A narrativa e sua natureza literária

Dito isto, podemos perscrutar agora a narrativa em sua mais profunda natureza e sentido e buscar aquilo que faz de O Alienista uma obra de “arte literária” .
Sabemos que é essencial numa narrativa que haja uma história e alguém que a conte.
A história que encontramos em O Alienista é apresentada por interessantes peripécias, contadas por um narrador.
A história, ao ser narrada, transforma-se em palco de ação, num tempo e lugar. Os personagens são os agentes da ação. As coisas vão acontecendo porque há em Itaguaí personagens falando, pesquisando e agindo.
Quanto ao narrador da história de O alienista percebemos rapidamente que é onisciente. É próprio do narrador onisciente saber tudo sobre os personagens. Sabe o que são, o que fazem e o que sentem. Sabe até o que eles sentem mas não dizem.É esse narrador que vai conduzindo a dinâmica da história e condicionando o modo como a história chega ao leitor a fim de seduzi-lo e empolgá-lo. Faz isso através de um processo de ação que mistura a forma natural de conviver e de agir das sociedades civilizadas com os meios técnico-expressivos que levam a linguagem a produzir seu efeito final no espírito do leitor.
Mas há outros processos utilizados pelo narrador. O primeiro deles é a técnica narrativa falando na terceira pessoa. Narrar em terceira pessoa, significa que o narrador não participa dos fatos. Machado acha que ficar a distância dá mais autonomia para a linguagem e para a ação. Colocando o discurso em terceira pessoa, o autor se auto-libera para controlar o desenrolar da história. Ao escolher a processo de narrar em terceira pessoa, o autor escolhe a maneira de controlar clandestinamente o fluxo da história. Oficialmente quem conta a história é o narrador. Mas a verdade é que o narrador faz seu dever de casa no domicílio do autor, que termina por ser o avatar da urdidura narrativa.

Ao falarmos da estratégia empregada por Machado, no sentido de canalizar toda a narrativa para a terceira pessoa, ajuda certamente mostrar algumas passagens textuais capazes de mostrar ao vivo como ele faz isto:
“As crônicas da vila de Itaguaí dizem”...(9)... “Dito isto, meteu-se em Itaguaí e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras..”(9)[...] D. Evarista mentiu às esperanças do dr. Bacamarte, não lhe deu filhos nem robustos nem mofinos” (9)...[...] Mas a ciência tem o inefável dom...”(10 [...] A vereança de Itaguaí, entre outros pecados[... ] tinha o de não fazer caso dos dementes”] 10[...A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência...”10
Falando de O Alienista como texto literário gostaríamos de mostrar como é que e por que é que esse texto é uma obra de literatura.
Importa lembrar que se chama livro de arte literária aquele texto que é trabalhado ficcionalmente dentro de algumas propostas e critérios que fazem dele um texto artesanal com índices dominantes de literariedade ou de literaturnost, como diziam os formalistas russos.
Para tratar um texto como obra de arte literária, os teóricos da literatura distinguem três elementos principais ou três espelhos que refletem o rosto literário da obra de literatura.
Esses elementos são a mimesis (mimese) ou representação, a linguagem e a ficcionalidade.

Ao afirmarem que toda a obra literária é representação dotada de linguagem própria e específica, os autores querem apenas mostrar que a obra literária tem uma identificação singular.
Pelo lado da narrativa, ficou claro que a Literatura não é a história em si vivida pelas pessoas reais nem é a realidade física local de uma cidade ou vila nem a realidade de um tempo cronometrado por um relógio. A Literatura é apenas uma representação artística, um faz-de- conta, uma realidade imaginária ou um toque de aproximação que procura uma verossimilhança. Neste jogo imaginário entram, é claro, elementos históricos e sociais, mas sempre entretecidos e reduzidos a um nível de ficcionalidade.
Para o autor obter essa representação ou imitação, necessita de lançar mão de uma técnica. Essa técnica tem sido chamada de mímesis, em grego. Foi Aristóteles quem nos deixou em sua Poética essa palavra-chave de mímesis. Temos a palavra mimese em português, no sentido de imitação ou representação . Quando dizemos que uma obra literária imita ou representa a vida real presente na narrativa de uma história queremos dizer que ela procura reproduzir imagens, costumes, formas de dizer, situações, sentimentos, afeições, comportamentos a nível de ficção e através de uma linguagem literária - com tal arte e eficácia que crie na consciência do leitor a ilusão e a convicção subconsciente como se estivesse diante de uma criatura viva, de uma pessoa,de um ente real.
Falando de representação ou mímesis diremos que o conceito pode apresentar uma dupla face. Ele tanto pode estar presente na genética da obra quando o autor figura seu mundo literário através da linguagem narrativa como pode estar na recepção da obra quando o leitor em sua leitura tenta aproximar pela inteligência e pela imaginação a história narrada em todos os detalhes de comportamentos e linguagens. O horizonte imaginário escrito tem a capacidade de levar o leitor a fazer de conta que o que está sendo narrado é “como se” estivesse acontecendo e se desenrolando no tempo e no espaço. A mimese tem lugar na escrita e na leitura: o leitor na hora de sua leitura reproduz vivências quando aciona o texto na consciência e na imaginação.

Entrando enfim, no aspecto da linguagem do texto é oportuno dizer que em literatura nada chega a nós em termos de expressão e comunicação se não for pela linguagem.
A linguagem é instrumento e espelho. Como instrumento ela é o meio principal que temos para a expressão e comunicação literária que nos leva até ao outro. Como espelho ela nos reflete o mundo e as coisas em seus ângulos de existência e de vida.
No texto literário, a maior parte da linguagem que o autor usa para se situar em tempos e lugares pessoas e coisas é referencial. Mas o sinal distintivo e singular do texto artístico é feito pela linguagem metafórica ou conotativa, que é uma linguagem de ampliação de significado.
Segundo o lingüista do formalismo russo Roman Jakobson(1898-1982), a linguagem tem seis funções: referencial, emotiva, conotativa, poética, fática e metalinguística.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 2005.
Todas estas funções coexistem num só texto literário, distribuindo-se com naturalidade por todo o discurso. Mas para ser literário, o texto tem de ter uma linguagem dominante. É a linguagem poética ou literária. Em O Alienista encontraremos por isso no decorrer da narrativa tanto a função referencial como as funções emotiva, conotativa, fática, metalingüística e, particularmente, a função poética , que na exposição de Jakobson é tratada como um desvio da norma lingüística-padrão. Poética tem aqui o sentido amplo de linguagem literária ou artística, sendo a poética sinônimo de literariedade, que se verifica sempre que ela for a linguagem dominante de um texto.

Ainda como componente da literariedade de O Alienista há a análise do texto como obra de ficção. Ao dizermos que O Alienista é uma ficção estamos dizendo por outras palavras que o texto espelha uma situação determinada, ou seja que ele é mímesis de uma situação da loucura num tempo e num lugar – Itaguaí colonial do século XVIII . Essa mimesis é a representação que Machado de Assis fez de modo imaginário criando uma história, personagens, ação, narração e linguagem para os representar em cena literária, como se fosse num palco teatral.
Mas a literatura como arte verbal é uma coisa só: é predominantemente arte imaginária ou arte de ficção.
As crônicas de Itaguaí citadas por Machado não são mais do que instrumentos de construção desta arte literária. Não são história real a matéria exposta e a movimentação dos personagens em O Alienista. E sim ficção. A ficção tem sua base na imaginação. A imaginação de Machado de Assis, transforma-se em imaginação criadora. Cria situações, amizades, atitudes científicas e pseudo-científicas, conflitos, revoluções, terror, reações, amor e ódio. Mas denuncia também indiretamente pela paráfrase literária latente o orgulho científico que reinava no século XIX.
A título de conclusão diremos que Machado de Assis pelas vias da literatura mostrou que há uma variante na arte de estar, de pensar e de ver o mundo. Para além da via positivista e cientista do século XIX, Machado de Assis mostra a variante literária de encarar o mundo humanamente. Pela literatura pode ser entendido que o propósito racionalista do século XVIII encarnado por Simão Bacamarte não trouxe a solução última para os grandes problemas da humanidade, nem para a loucura, nem para as dúvidas que assaltam a consciência peregrina do homem na terra. Indiretamente, Machado, através de sua narrativa, faz ver que razão e ciência terão que ser vistos como meios. Pela simples razão de que a verdade não é um mero episódio de afirmação. A verdade é algo mais: talvez um processo de constituição ontológica com raízes cósmicas. Há exigências profundas na sua busca. As fronteiras da loucura e demais fronteiras da existência deverão continuar a ser estudadas. Pelas projeções lançadas na pesquisa por Simão Bacamarte, os limites reais da loucura e da razão ainda são confusos.

No fim de contas Machado de Assis encontra uma maneira de trazer a história até mais perto de nós. Pelo recurso à paródia inteligente, e à ironia, encontra uma maneira de teatralizar ao vivo, provoca a hilariedade, o riso, satiriza, ridiculariza. Ou seja, dá ao texto uma função de representação e de catarse. O alvo é o pseudo-cientismo ou o cientificismo. As cenas são muitas. Em conjunto, a paródia abrange o livro como um todo e os personagens em sua representação, ação e linguagem são a principal bagagem de que o autor se serve para representar a paródia.

A paródia fecha quando Machado depois de todas as experiências científicas do alienista e da revolta dos reclusos contra as teorias psiquiátricas do médico resolve escolher, como final da narrativa, classificar o próprio Simão como doido varrido. Foi esse personagem que em nome de um absoluto e irracional cientismo fez sofrer as populações de Itaguaí. Como compensação e alívio para todos os que sofreram, a história termina com o protagonista se auto- internando na Casa Verde depois de ouvir um conselho de amigos. Estes, opinando a seu pedido, acharam que Simão era um homem perfeito, sem nenhum defeito. Esta é a ironia paródica de Machado. Com tal desfecho em termos de paródia, o narrador remata a narrativa de uma maneira libertadora: “Alguns chegaram ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí”.
Fica patente que nesta grande parábola sobre a loucura, Machado de Assis só podia dar a resposta paródica que deu aos racionalistas e pseudo-cientistas dos séculos XVIII e XIX. Eles achavam que tinham encontrado a última solução para o homem, mas Machado indiretamente dava o recado de que o caminho humano é bem mais profundo e que a distância a percorrer ainda é longa.
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