VATAPÁ, ACARAGÉ E... MÚSICA[i]
O que foi o 1º Seminário Internacional de Música da Bahia.
L. C. Vinholes
Em janeiro de 2013 tive um reencontro com um texto que escrevi em 1954 e que parecia estar definitivamente perdido.
Em julho de 1957, dias antes de embarcar para o Japão, deixei com um amigo um malão de couro com materiais diversos incluindo partituras de pequenos trabalhos de composição, correspondência, fotos, apontamentos e recortes de artigos e poemas publicados. Meus planos iniciais eram permanecer em Tóquio o período de validade da bolsa que recebera do Ministério da Educação japonês, mas as circunstâncias mudaram, engajei-me em diferentes projetos, ganhei estabilidade em emprego iniciado em julho de 1961 e acabei ficando por dez anos ininterruptos no País do Sol Nascente, até abril de 1969. Quando cheguei em São Paulo quase não reconheci o que deixara e não mais encontrei o amigo guardião da mala que havia partido para sempre do convívio dos colegas de Escola Livre de Música da Pró-Arte.
Em janeiro de 2013, em reencontro virtual, via internet, com o colega e amigo maestro Ronaldo Bologna[ii] abriu-se uma cortina de esperança e voltou às minhas mãos uma cópia escaneada do Vatapá, Acarajé e... Música que registra os marcantes acontecimentos musicais ocorridos em Salvador durante o I Seminário Internacional de Música da Bahia.
Retomando o espírito vigente em meados da década de 1950, vale lembrar o teor do texto ao qual a revista São Paulo Musical decidiu, jocosamente, dar como primeiro título o de “Vatapá, Acarajé e... Música”:
Foi unânime o apoio que prestaram os jovens estudantes de música da Bahia e de todo o país à iniciativa, mais do que oportuna, da Universidade daquele Estado.
Realizando os Seminários Internacionais de Música-Bahia, com a colaboração da Escola Livre de Música da Pró-Arte, São Paulo, aquela casa de ensino superior deu início ao movimento que visa a dotar a juventude musical do Brasil de um ensino artístico baseado no estudo livre e imparcial de todas as manifestações da consciência humana nas diferentes e fascinantes fases de sua evolução.
Foi um marco decisivo para o levantamento do nível artístico-cultural, não só do Norte[iii], que, até então, se achava completamente abandonado e esquecido, como também dos grandes centros nacionais, que sentirão, dentro de poucos anos, a benéfica transformação e, quem sabe, a influência de uma cultura completamente nova, baseada num programa de ensino elaborado dentro dos princípios mais modernos, quer pedagógicos, quer artísticos.
Mais de 200 inscritos, vindos de todos os recantos do país, e do estrangeiro, trabalharam incansavelmente, procurando, com avidez, aproveitar os ensinamentos ministrados.
Gabrielle Dumaine (Paris), mezzo-soprano e o pianista Winfried Wolf (Lisboa-Salzburgo) foram os docentes hóspedes que participaram ativamente desse movimento.
Classes de teoria, solfejo, análise, história das formas, canto gregoriano, sociologia da arte e estilos, harmonia e contraponto, composição e jazz, regência coral e sinfônica – é a primeira vez que uma classe de regência teve uma orquestra à disposição -, música de câmara, violino, piano, flauta, iniciação musical e dança, além de um setor de artes plásticas, funcionaram com número de alunos realmente elevado. Quatro grupos corais, de vozes mistas e iguais, trabalharam cotidianamente na preparação de obras representativas da era polifônica (missas, motetos, madrigais...) obras essas apresentadas nas igrejas, nos concertos da juventude e nos da Série Oficial.
Toda a obra de J. S. Bach para piano e orquestra, o Concerto para dois pianos e orquestra de Mozart, em mi bemol; o de Tchaikowsky, para piano e orquestra, número 1; o para violino e orquestra de cordas de J. S. Bach e a Suíte para flauta e cordas de Telemann, assim como obras dos períodos clássico e romântico, integraram os programas dos “Festivais Bach-Mozart” e dos concertos a cargo da Orquestra Sinfônica dos Seminários, órgão esse com efetivo de 50 figuras.
O Duo Benda - Lola Benda, violino, e Sebastian Benda, piano -, de São Paulo, executou o ciclo integral das Sonatas de Beethowen, para violino e piano; Wilfried Wolf apresentou-se num recital de música romântica, enquanto que Gabrielle Dumaine ofereceu um programa de obras modernas, para canto e piano.
O magnífico Salão da Universidade da Bahia, tornava-se pequeno para abrigar o público que, entusiasticamente - comparecendo e aplaudindo -, apoiava a iniciativa.
Merecem ser citados os nomes do Dr. Edgar Santos, então Ministro da Educação e Cultura, e o Dr. Orlando Gomes, Magnífico Reitor da Universidade da Bahia, que por sua largueza de espírito e ampla visão dos problemas que afligem os jovens estudantes de música do país, não pouparam esforços no sentido de concretizar a ideia dos Seminários. Proporcionaram ao Norte meios que possuem os estudantes dos grandes centros artísticos: mestres competentes e ambiente propício ao desenvolvimento da cultura.
No corpo docente dos Seminários figuraram, além dos já mencionados, os professores Damiano Cozzella, Ernst Mahle, José Kliass, Yanka Rudzka, Elisabeth Nobiling (São Paulo), Pe. Jaime Cavalcante Diniz (Pernambuco), Maria Rosita Salgado Góes (São Paulo-Bahia) e H. J. Koellreutter, os dois últimos diretores artísticos, este, há muitos anos, batalhando pela renovação do ensino e elevação do nível de cultura musical nacional.
A fim de prosseguir com o trabalho tão brilhantemente iniciado nos Seminários Internacionais de Música-Bahia e continuar a proporcionar os elementos necessários para o desenvolvimento dos jovens, principalmente da Bahia, foi criado, por resolução unânime do Conselho Universitário e funcionará a partir de setembro vindouro, o Setor de Música da Universidade da Bahia, iniciativa essa que mereceu os mais significativos elogios e comentários nos círculos culturais do país.
Assim como a Escola Livre de Música da Pró-Arte, em São Paulo, é desconhecida pela grande maioria dos que hoje tem relação com a música erudita no Brasil, não conhecendo sua inserção no mundo musical paulista dos anos 1950/1960 e que, nesse período, por ela, direta ou indiretamente, passaram compositores e intérpretes, alguns deles até o presente desempenhando papel marcante no mundo musical do país e do exterior, assim também é, certamente, ignorado o big-bang[iv] inicial do movimento musical - e artístico -, que eclodiu em Salvador com a realização do referido Seminário e com o apoio permanente da Universidade da Bahia, na pessoa dos seus visionários reitores. Os mestres que compuseram o corpo docente do Seminário foram o fermento que resultou no crescimento do núcleo criado para iniciar a implementação do plano que resultou na atual Escola de Música. Outros nomes de relevância se fizeram e se fazem presentes em Salvador e uma plêiade de compositores e intérpretes, bem como conjuntos corais e de câmara dão continuidade ao trabalho de resultados vitoriosos iniciados há quase 60 anos.
Como nomes representativos daqueles que frequentaram a pioneira Escola Livre de Música, citarei os dos que me lembro e pertenceram à primeira leva de docentes e discentes, sob a liderança de H. J. Koellreutter: Celina Sampaio, Henry Jolles, Madaleine Bernhein, PaulUrbach, Isolda Bassi, Alexandre Schafmann, Johannes Oelsner, Ilda Sinek, José Kliass, Hans Bruch, Sebastian Benda, Rosita Salgado Goés, Yulo Brandão, Yanka Rudzka, Madalene Nicols, Roberto Schnorrenberg, Damiano Cozzella, Conrad Bernard, Ernst Mahle, Klaus Diter Wolf, Isaac Karabtchevsky, Henrique Gregori, Júlio Medaglia, Clara Swerner, Nei Salgado, Paulo Affonso de Moura Ferreira, Hortência Cristina Ravagnani Montgomery, Brasil Eugênio da Rocha Brito, Antonieta Moreira Leite, MariaAmélia CozzelaeElisa Helena Puntonio,Clélia Ognibene,Eva Milkó, Zina Bueno, Rosemarie Lüthold, Teresinha Saraiva Schnorrenberg, Suzana Bandeira de Melo, Sandino Hohagen, Norma Graça, Felipe Silvestre, Samuel Kerr, Ronaldo Bologna, José Luiz Paes Nunes, Carlos Alberto Pinto Fonseca e Carlos Eduardo Prates, Cláudio Petraglia, Paulo Herculano, Ula Wolf,Marina e Dilza de Freitas Borges, Orlando Leite, Severino Filho, K-Ximbinho e Lia Carvalho.
Reconhecendo o impacto dos Seminários realizados em Salvador a partir de 1954 e da escola que surgiu como consequência lógica, como ícones, permito-me mencionar o Grupo de Compositores da Bahia criado em 1966, liderado pelo compositor Ernst Widmer e que contou com a participação de Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira, Nicolau Kokron, Milton Gomes, Rinaldo Rossi, Antonio José Santana Martins (Tom Zé) e Jamary Oliveira; e o Conjunto Música Nova dirigido pelo maestro Piero Bastianelli que, em suas turnês, levou às plateias das principais metrópoles brasileiras e do exterior, uma amostra do repertório dos compositores brasileiros e do convincente trabalho realizado por seus músicos.
Hoje, sem dúvida alguma, pode ser afirmado que os ideais de 1954 foram alcançados, assim como previstos, e que a metade setentrional do Brasil foi cabalmente beneficiada com o trabalho pragmático de uma plêiade de dedicados administradores e mestre.
[i] Originalmente publicado na revista São Paulo Musical nº 44 (1954), ilustrado com três fotos com os seguintes rodapés: 1) Gabrielle Dumaine, Elisabeth Nobiling e H. J. Koellreutter após uma conferência; 2) Coral Misto dos Seminários executando a Missa Canônica, de Palestrina, no Concerto Coral a Cappella; e 3) Sebastian Benda, Winfried Wolf, José Kliass e Maria Rosita Salgado Góes, do corpo docente dos Seminários.
[ii] http://www.usp.br/osusp/maestro_ronaldo.html
[iii] Nos anos 1950, nas artes, dividiam o Brasil em Norte e Sul.
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