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Ensaios-->A representação da realidade em Dostoièvski - parte 2 -- 02/05/2009 - 19:12 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A representação da realidade em Dostoièvski: as relações ético-ideológicas de fins do século XIX, mimetizadas no homem do subsolo, e sua representação caótica intrínseca - Parte 2

Mais adiante, ao falar sobre o homem de ação, antagonista da representação a qual o narrador é exemplar, complementa o pensamento: '(...) Estou tão convencido desta suspeita, por assim dizer, que se tomarmos, por exemplo, a antítese do homem normal, isto é, o homem de consciência hipertrofiada, o homem saído, naturalmente, não do seio da natureza, mas de uma retorta (já é quase misticismo, senhores, mas eu suspeito isto também), o que se verifica, então, é que este homem de retorta a tal ponto chega a ceder terreno para a sua antítese que a si mesmo se considera, com toda a sua consciência hipertrofiada, um camundongo e não um homem. Talvez seja um camundongo de consciência hipertrofiada, mas sempre é um camundongo. Ora, trata-se de um homem e, por conseguinte, tudo o mais também. E o mais importante é que ele mesmo se considera a si mesmo um camundongo; ninguém lhe pede isto, e este é um ponto importante. (...)' (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.22)

Qualquer semelhança com o homem-inseto kafkaniano não é mera coincidência. Esta representação elaborada por Dostoievski tornou-se exemplar em toda a literatura. Atente para o fato de que o narrador introduz um estereótipo para o homem que rivaliza com o homem de pensamento. Mas, antes de adentrarmos neste assunto, tenha a consciência de que o narrador de Memórias do Subsolo não é contra a doutrina determinista e a relação racional do pensamento. Ele próprio está imerso nesta realidade e sabe que é impossível derrotar a lógica matemática; que ela não está sujeita a desejos e ao querer, e sim, regida por leis que estão fora do indivíduo, são exatas e naturais. Ele não as aceita como os demais indivíduos, o que provoca sua revolta intelecto-mental.
Para melhor ilustrar esta idéia, leia o seguinte trecho: 'Não é possível', vão gritar-vos, 'não podeis rebelar-vos: isto significa que dois e dois são quatro! A natureza não vos pede licença;ela não tem nada a ver com os vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não. Deveis aceitá-la tal como ela é e, conseqüentemente, também todos os seus resultados. Um muro é realmente um muro... etc etc. Meu Deus, que tenho eu com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me agradam essas leis e o dois e dois são quatro? Está claro que não romperei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo, mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra e de terem sido insuficientes as minhas forças'.(DOSTOIÈVSKI, 2004, p.25)
Como o homem de ação não é oprimido pela ética racional, ele está sujeito a seus impulsos primitivos, desejos pelos quais não há necessidade para reprimir. Portanto, ao receber a ofensa, não titubeará em retribuir a agressão. Esta espécie de homem não se preocupa com o bem daqueles que o cercam, nada o impede – nem a ética, tão menos a moral – de tomar atitudes para liberar seus sentimentos, no caso, a raiva (movida pela vingança).
Para o homem do subsolo, não há virtude alguma na vingança, pois, como vimos, é o fatum que coordena sua psiquê.
Aprecie o homem de ação por meio da lente do subsolo: 'Como é que faz, por exemplo, aquele que sabe vingar-se e, de modo geral, defender-se? Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele, nada mais resta em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse tipo atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abaixados, e somente um muro pode detê-lo. (Aliás, diante de um muro tais cavalheiros, isto é, os homens diretos e de ação, cedem terreno com sinceridade. O muro para eles não é causa de desvio, como, por exemplo, para nós, homens de pensamento, e que, por conseguinte, nada fazemos; não é um pretexto para arrepiar carreira, pretexto em que nós outros costumamos não acreditar, mas que recebemos sempre com grande alegria. Não, eles cedem terreno com toda a sinceridade. O muro tem para eles alguma coisa que acalma; é algo que, do ponto de vista moral, encerra uma solução – algo definitivo e, talvez, até místico... Mas deixemos o muro para mais tarde.) Pois bem, um homem desses, um homem direto, é que eu considero um homem autêntico, normal, como o sonhou a própria mãe carinhosa, a natureza, ao criá-lo amorosamente sobre a terra. Invejo um homem desses até o extremo da minha bílis. Ele é estúpido, concordo, mas talvez o homem normal deva ser estúpido, sabeis/ Talvez isto seja até muito bonito (...) '(DOSTOIÈVSKI, 2004, p.20-21)
Segundo Bakhtin, a idéia de Dostoievski era intitular o romance de 'Confissão'. Isto aponta para o tipo de discurso que o autor tinha em mente produzir: confessional. No entanto, provavelmente isto acarretaria ao leitor a idéia de que o narrador da obra estivesse em busca de compaixão. O gênio russo resolveu a questão ao elaborar uma voz irascível, que não abre espaço à misericórdia. Inteligente, dialética, direta, que não aceita piedade de ninguém. Ela própria se intitula, logo no primeiro parágrafo do romance, como doente e má.

'Um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a 'pregar peças' nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais'.(DOSTOIÈVSKI, 2004, p. 15)

O embate entre a voz que precisa e procura por compaixão, mas não admite a busca tão menos a recepção desta, cria no leitor uma angústia íntima que exige resposta: por que este homem age desta maneira? O que aconteceu para que se moldasse assim? Quais são seus anseios, desejos? O que oculta? Qual o motivo de sua raiva, de sua revolta?
No trecho supracitado, percebemos a criação de uma entidade que recebe o discurso, revelada pelo pronome pessoal do caso oblíquo vos (em grifo e em negrito), a qual passaremos a chamar de interlocutor, mesmo que esta representação seja pluralística. Este artifício tem função importantíssima na estética do texto, sobre o qual trataremos mais adiante.
Perceba que as negações são constantes e que o direcionamento do texto caminha lado a lado com o fluxo do pensamento. Por esta razão, muitas vezes, o texto parece incoerente para o leitor. Mas não se engane: é outro artifício utilizado com o intuito de desconstruir a imagem representada no interlocutor.
Como se vê, é necessário fazermos considerações a respeito da construção textual a fim de que a leitura deste ensaio crítico se torne mais proveitosa. Adentremo-nos, a partir de agora, no fazer-estético de Dostoievski em Memórias do Subsolo, sempre guiados pelas escrituras do mestre Bakhtin, para que possamos perceber e compreender claramente a genialidade e modernidade da narrativa em análise neste texto crítico.
Revelar-nos-á a representação da 'vida' do narrador e os artifícios empregados por este para a criação do sentido no discurso por ele proferido. Essencial é ressaltar que faremos uma análise breve desta matéria. Seria inviável, devido ao limite de espaço deste estudo, almejar além.
Conforme a teoria nos ensina, haja o dialogismo inerente ao discurso confessional, é necessário o verbo de outrem, o qual permanece fora do discurso – acusticamente falando. Funciona como referente e, neste sentido, reflete a voz do emissário. Ou seja, a palavra do outro, apesar de não representada explicitamente, age e influi sobre a palavra do confessor, estabelecendo assim a chamada réplica dialógica.
Posto isso, podemos compreender como o narrador vai tecendo o seu discurso dialógico, a ponto de antever a réplica do interlocutor. Antes, porém, é conveniente a leitura da passagem abaixo, que teoriza e sintetiza o significado para o termo dialogismo velado.

'Para os nossos fins subseqüentes tem importância considerável o fenômeno do dialogismo velado, que não coincide com o fenômeno da polêmica velada. Imaginemos um diálogo entre duas pessoas no qual foram suprimidas as réplicas do segundo interlocutor, mas de tal forma que o sentido geral não tenha sofrido qualquer perturbação. O segundo interlocutor é invisível, suas palavras estão ausentes, mas deixam profundos vestígios que determinam todas as palavras ausentes do primeiro interlocutor. Percebemos que esse diálogo, embora só um fale, é um diálogo sumamente tenso, pois cada uma das palavras presentes responde e reage com todas as suas fibras ao interlocutor invisível, sugerindo fora de si, além dos seus limites, a palavra não-pronunciada do outro. Adiante veremos que em Dostoievski esse diálogo velado ocupa posição muito importante e sua elaboração foi extremamente profunda e sutil'. (BAKHTIN, 1981, p. 171)

Este discurso bivocal de diálogo interno e refletido faz com que o homem do subterrâneo tenha uma atitude autocrítica e, muitas vezes, irônica em relação a si mesmo, que é inseparável da atitude do outro em relação a ele.
Bakhtin revela que o discurso do herói sobre si mesmo se constrói sob a influência do discurso do outro sobre ele. O narrador do subsolo não só domina com inteligência, sutileza e impecável eficiência sua palavra, que tende ao infinito, pois é pela vontade que o discurso progride, como também sugere o discurso do interlocutor, retendo forçosamente para si, a idéia final.
O trecho que segue demonstra exemplarmente este artifício: '(...) Juro por tudo que pensais assim. Mas acalmai-vos, meus senhores, não recebi bofetões, embora me seja de todo indiferente o que penseis a este respeito. É possível que eu mesmo lamente o fato de ter distribuído em minha vida poucas bofetadas. Mas chega, nenhuma palavra mais sobre esse tema, por mais que ele vos interesse'. (DOSTOIÈVSKI, 2004, p.24)
Passagem reveladora, indubitavelmente. Em poucas linhas, conseguimos aprender e depreender a genialidade representada neste texto. Observe o direcionamento da voz ao interlocutor e, não obstante, o desdém que o narrador tem pela voz objeto de seu discurso. Ele insinua, chega a jurar saber o que se passa na mente do ouvinte. Consegue ir além: ele observa a reação (física, por que não?) do interlocutor, quando pede que ele se acalme. Para comprovar a possibilidade de um discurso sem fim e para ter a palavra final para si, o narrador novamente desdenha da vontade de seu interlocutor sobre o assunto, finalizando-o.
Por esta relação íntima com a consciência do interlocutor, obtém-se um diálogo potencialmente infinito, como demonstrado no parágrafo anterior e pelo fragmento supra transcrito, ou seja, um perpetuum mobile sem saída da autoconsciência dialogada.
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