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Ensaios-->Herdeiros de Antígona: O direito de enterrar os mortos -- 15/10/2008 - 00:28 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
HERDEIROS DE ANTÍGONA: A LUTA PELO DIREITO DE ENTERRAR OS MORTOS

Elaine Angela Bogo Pavani

Universidade Estadual de Maringá

Considerada o berço da civilização ocidental, a civilização grega antiga nos permite recorrer a temas e aspectos enriquecedores da cultura clássica, permeando questões legais, políticas, artísticas, filosóficas. Entre uma das mais importantes obras literárias e da dramaturgia grega se encontra a tragédia “Antígona”, de Sófocles. Neste artigo, busca-se entender a interrelação entre a personagem sofocliana Antígona e as personagens reais envolvidas na luta com o Estado ditatorial militar. A peculiaridade deste estudo está na verificação de uma situação que ultrapassa a ficção teatral e adentra o cenário político do Brasil no século XX. Antígona, a personagem que nomeia a tragédia em questão, empenha-se obstinadamente contra o decreto do estado, emitido pelo rei Creonte, no intento de prestar honras fúnebres ao irmão morto em confronto. De outro lado, grupos de familiares iniciaram a luta na década de 70 no Brasil, denunciando a morte de parentes ocorrida em circunstâncias não esclarecidas e exigindo o acesso aos restos mortais sepultados indevidamente.

Sófocles, ao escrever a tragédia “Antígona”, evidenciou a complexa relação que se estabelece entre tirania e direito, entre moralidade e poder, conduzindo o público a profundas reflexões acerca da política, da moral, da religião e do direito. Escrita no ano de 444 a.C, “Antígona” apresenta uma problemática que envolve a existência humana: o homem é definido antes de tudo como um ser mortal. A morte complementa a vida e portanto não é considerada de forma simplista como marco final de um processo mas como um ritual de passagem que concede à vida um novo significado.

Nascida de um matrimônio condenado pelo incesto, Antígona é filha (e irmã) de Édipo. Na história, os irmãos de Antígona, Etéocles e Polínices, também filhos do rei Édipo e de Jocasta, eram herdeiros do trono de Tebas. Os irmãos estabeleceram um acordo em que cada um exerceria o poder por um ano, revezando-se com o outro. Etéocles, porém, encerrou seu primeiro ano de governo e negou a sucessão a Polínices. Indignado pela violação de seus direitos, Polínices alia-se ao rei de Argos, rival dos tebanos, e decide lutar com o irmão pelo trono. Durante o violento confronto que envolveu os sete chefes tebanos e o exército de Argos, Etéocles e Polínices morrem em combate, um pelas mãos do outro. Com a morte dos irmãos, quem assume o trono é Creonte, irmão de Jocasta. Ao saber da tragédia, Antígona, que está no exílio, retorna a Tebas juntamente com sua irmã Ismene. O novo rei de Tebas ordena que Etéocles seja sepultado com todas as honras devidas pois morrera defendendo a cidade de Tebas. Simultaneamente, acusa Polínices de traição e proclama um edito decretando ser “terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou lamentar sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves e cães, e se transforme em objeto de horror”.(Sófocles, 2001, p.16) Quem violasse o decreto real seria morto. Para Antígona, permitir que seu irmão fosse privado dos rituais fúnebres e tivesse o cadáver exposto às aves e animais de rapina era inaceitável. Antígona se rebela contra a lei de Creonte, enfrenta os soldados e enterra o corpo de Polínices.

A tragédia se desenrola por um caminho conflituoso entre as leis divinas e as leis humanas. Antígona e Creonte protagonizam a trama, defendendo posições antagônicas e bem definidas a partir de seus valores pessoais: a primeira representa as leis sagradas e universais e Creonte, as leis temporais e o poder estabelecido. O rei defende a sua posição autoritária, justificada pela necessidade de manutenção do poder e relega a segundo plano as relações familiares e os sentimentos pessoais.

Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecerá meus encômios. O homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo, quer seus atos pareçam justos, quer não. Quem assim obedece, estou certo, saberá tão bem executar as ordens que lhe forem dadas, como comandar, por sua vez; e será, na guerra, um aliado valoroso e fiel. Não há calamidade pior do que a rebeldia; ela é que arruina os povos, perturba as famílias, e causa a derrota dos aliados em campanha. Ao contrário, o que garante os povos, quando bem governados, é a voluntária obediência. (Sófocles, 2001, p. 44 e 45)

Antígona foi condenada à morte sob o argumento da isonomia que vigorava em Tebas. O rei Creonte declarava-se justo e correto diante da cidade e de seu povo e proferia em seus discursos que as leis do Estado destinavam-se a todos os cidadãos, independente dos laços familiares ou de sentimentos pessoais. Antígona recorre ao Direito Natural e insiste que a proclamação do edito está em desacordo com a vontade dos deuses e com os costumes.

Em “Antígona”, encontramos uma amostra das complexas relações estabelecidas entre moralidade e poder, incidindo sobre as esferas pública e privada. Ao assumir a luta pelo resgate da memória do irmão ultrajado e pelo direito de proporcionar-lhe um sepultamento honrado, Antígona desafia o Estado e concede ao conflito político estabelecido um caráter puramente humano. A idéia de que é direito tudo aquilo que é instituído em nome do Estado é corajosamente questionada por Antígona que fundamenta sua defesa invocando os direitos de origem natural ou divina.

O rei Creonte personifica o Estado como fonte única de direito, com poder para interferir em todas as esferas da vida humana. Nada é permitido fora do Estado e nem contra o Estado. Polínices, acusado de traição política, perde o direito ao funeral e à sepultura, segundo a lei da cidade. Na história dos povos, os mortos sempre mereceram lugar de destaque e, ao redor da morte, desenvolveram-se inúmeros rituais para o culto e despedida da memória dos falecidos. A morte e o sagrado mantêm relações muito íntimas. Assim, Antígona decidiu ignorar as ordens do poderoso Creonte para realizar o ritual por piedade fraternal, desafiando as leis escritas da cidade e revelando a importância dos direitos familiares e afetivos, das leis dos costumes e crenças.

Sem o ritual fúnebre e o sepultamento, Polínices não teria o direito a outra vida. E nesse ponto o significado da morte atinge a esfera social pois morrer compreende não só estar privado de uma vida física mas também, estar privado de uma vida social no seio da pólis. Os rituais são as formas através das quais se pode conceber uma segunda identidade de morto. Ferida pela tragédia familiar e pela postura do Estado, Antígona questiona se a condição de traidor é razão suficiente para impedir que um cidadão da cidade receba sepultamento digno.

Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irre;vo;gá;veis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram! (Sófocles, 2001, p. 30)

As discussões levantadas por Sófocles são tão atuais quanto pertinentes como fonte para debate das questões morais e sagradas. Os laços familiares são mais fortes que os contratos humanos? Nesse sentido, o mito grego transfigura-se em drama universal vivido em diferentes perspectivas e transcende o classicismo, servindo como objeto de reflexão sem que para isso existam condicionamentos a tempos ou a lugares. Maria Fernanda Aragão Ponzio afirma em suas análises que atacar a injustiça e mostrar os abusos de um poder que se firma sob a égide do medo e da anulação de direitos são pontos que permitem e requisitam o paralelo em relação a vários conflitos presentes na sociedade atual. O drama vivido pela família Preis aproxima-se de Antígona em vários aspectos: a dor pelo parente desaparecido por uma causa política; a violação do direito sagrado; o corpo que teve negado o direito de sepultura digna e o autoritarismo do Estado.

A análise comparativa dessas figuras evidencia conflitos que se estabelecem para ilustrar a precariedade acerca da condição humana, imersa em períodos marcados pelas tiranias do silêncio e da obediência. São fragmentos da história pessoal e familiar de homens e mulheres que tiveram suas vidas confundidas, muitas vezes de forma dolorosa, com a realidade política do país.

No caso de Arno, durante duas décadas o irmão João Preis lutou para realizar os rituais fúnebres e sepultá-lo conforme o costume. Séculos separam a história dos Preis e dos Labdácidas mas a indignação movida pela dor e sentimento fraternal os aproxima. Arno Preis foi morto em 1972. Oficialmente sua morte ocorreu após troca de tiros com policiais em Paraíso do Norte de Goiás. No inquérito instaurado para apuração dos fatos, consta que, na troca de tiros, Arno Preis matou o policial Luzimar. Preis é citado como subversivo e conspirador. Os soldados foram promovidos por cumprirem seu dever e citados como heróis, bravos e corajosos.

I – Seja solicitado ao Exmº Sr. Cel. Cmt. Geral da Policia Militar, promoção à graduação imediata do 3º Sgt José de Ribamar Santos, Soldados Edmilson Almeida Cruz, Soldado Antônio Mendes da Silva, Gentil Ferreira Mano e Pós-Morte ao Ex-soldado PM Luzimar Machado de Oliveira, pela coragem, bravura e heroísmo por haverem eliminado da Pátria brasileira mais um conspirador da mesma; II – Seja solicitada ao Exmº Sr. Secretário de Segurança Pública do Estado, promoção à graduação imediata, dentro de sua categoria de Policial - Civil Benedito Luiz de Paiva por ter sido o mesmo um herói na perigosa missão citada no item anterior [...]”. (Escrito pelo Comandante do 3º BPM Ten. Cel. Jorge Correa, publicado em BI n° 53, de 16/03/1972).

O soldado morto no confronto recebeu homenagem pós–morte e a praça central da cidade recebeu seu nome: Luzimar Machado de Oliveira.

Arno fora enterrado com nome falso e o corpo dado como desaparecido. As informações contidas nos depoimentos, nos laudos e em notícias são, ora superficiais, ora contraditórias. Os familiares não foram comunicados oficialmente e tomaram conhecimento do fato através da Folha de São Paulo.. A notícia publicada vinte dias depois como versão oficial do governo, significou o início de um calvário para a família. Preis foi identificado como líder terrorista, morto ao tentar fugir depois de matar um policial e ferir outro. Félix Maier sobrinho de Arno, relata em artigo como ele e outros familiares souberam da morte de Arno.

Após eu fazer o curso de sargento do Exército no Rio de Janeiro, em 1971, fui designado para servir, como fotógrafo, no Campo de Provas da Marambaia. Certo dia, lá pelo final de fevereiro de 1972, lendo distraidamente um jornal carioca, deparo com a notícia da morte de Tio Arno, ocorrida no dia 15 daquele mês, na cidade de Paraíso do Norte, GO (hoje, Estado de Tocantins). (...) Minha primeira providência foi escrever para Tio João, em Maringá, PR, relatando a morte de Tio Arno, ao mesmo tempo em que perguntava se meus avós maternos já sabiam do ocorrido. A carta foi mandada com certa apreensão, pois naquela época, com atentados terroristas ocorrendo a todo momento, eu, de certa forma, também me expunha, pois sabia que, durante o governo revolucionário, muitas cartas eram abertas pelos órgãos de Segurança. Assim, se minha carta fosse interceptada pelos órgãos de repressão, muita dor de cabeça eu poderia ter até explicar que focinho de porco não é tomada. Tio João, porém, já havia sido informado da tragédia familiar e junto dos demais parentes foi combinado que nada seria dito aos avós. De fato, a trágica morte de Tio Arno foi escondida da oma (avó) e do opa (avô) Preis durante muitos anos, até que um dia alguém da família deu com a língua nos dentes, quando os avós faziam uma visita a Forquilhinha, SC. (Maier, 2007)

João Preis relata que foram dias muito difíceis para a família. Indignação e dor se alternavam com a esperança de que o irmão estivesse vivo. Decidiram não comunicar o fato aos pais, já idosos porque não havia a confirmação oficial da morte e as incertezas latejavam na lembrança dos familiares. Como explicar para a mãe, católica fervorosa, que o filho educado de forma rígida, não seria velado, pranteado e sepultado em lugar escolhido pelos seus? O culto aos mortos é uma tradição que já existia entre os povos primitivos e os rituais especiais para tratar dos corpos sem vida de seus entes queridos fazem parte de quase todas as religiões. Trata-se de uma deferência a quem se ama e, também, à própria morte. As histórias de vida constituem os alicerces que estruturam os rituais de evocação dos mortos. Lembrar do morto, falar sobre ele, relatar seus feitos, seus amores, suas obras inacabadas, é evocar sua passagem pela vida. No mundo dos vivos, a evocação dos mortos adquire muito sentido quando a lembrança permite a recriação do passado em função de valores atuais.

A crítica presente na tragédia de Sófocles ecoa desde o século V antes de Cristo: por que as leis de Creonte não se inspiravam nas leis divinas? O autoritarismo do rei de Tebas foi empregado para que o horror inibisse outros pretendentes ao trono enquanto a ação de Antígona se traduz aa representação da religião familiar, privada, centrada na tradição.

Em 1980, Ivo Sooma, advogado e amigo pessoal de Arno Preis, decidiu investigar as circunstâncias de sua morte. Durante a investigação autônoma, Sooma conseguiu localizar o coveiro Milton Gomes que realizou o sepultamento de Arno Preis. Milton Gomes relatou que os policiais entregaram-lhe um corpo enrolado em lona preta e ordenaram: “Enterra de qualquer jeito. Isto é um porco”. Gomes, no entanto, ao final do sepultamento ergueu uma pequena pirâmide de concreto e fincou nela uma cruz de madeira considerando que, um dia, alguém procuraria aquele corpo.

Os conflitos ocorridos no período militar envolveram principalmente cidadãos e o próprio Estado. Assim, os direitos e deveres que cada um dos lados envolvido dispunha, não deveriam se confundir com a causa que acreditavam ser justa. A militância na guerrilha ou a inclusão no exército ou na polícia não afasta o sujeito histórico da pátria, da nação e muito menos rompe os laços familiares ou afetivos.

Assim como Lamarca, Marighella e tantos outros, Arno Preis ousou lutar com arma em punho. E sobre tal postura não deve haver consenso ou aplausos. Não se trata de heroísmo nem tão pouco de traição ou terrorismo. Esses homens agiram com precipitação e talvez não fosse o momento propício ou a melhor forma da resistência obter sucesso? Talvez. Mas como ignorar que foram até as últimas conseqüências, entraram de corpo e alma, literalmente, por uma causa coletiva? Apostaram alto, dedicaram a vida e até a própria morte sem nenhum exagero poético.

Arno Preis representa o rebelde que enfrentou a ditadura não reconhecida por ele e por seu grupo como Estado de Direito, assim como Polínices. O descaso das autoridades com seus restos mortais e principalmente com o direito dos familiares de saber as reais circunstâncias de sua morte e de poder conceder um rito fúnebre conforme os costumes religiosos e culturais, consistiu numa violação de direitos que extrapola o Direito Constitucional. Nesse sentido, uma questão deve ser levantada: o que dá legitimidade a lei? Qual o limite entre governantes e governados?

O debate grego se aprofunda quando Sófocles coloca em cena o filho de Creonte e noivo de Antígona, Hémon. Creonte personifica o tirano, parecendo injusto para os tebanos. Hémon vem à presença de seu pai preocupado com o destino da mulher amada mas também com a imagem do rei, que está começando a ser mal visto pela população. No contexto de fortes elucubrações do herdeiro do trono de Tebas ressalta-se a importância da democracia e do uso da razão. Razão esta que consiste em ouvir outras opiniões arrazoadas, não tomar apenas a opinião própria como a única correta. A oratória de Hémon revela que a opinião do povo deve ser levada em consideração, não demonstrando preocupação com a opinião dos deuses ou com os costumes. O embate entre Creonte e o filho simboliza a disputa entre democracia e tirania, de forma que os argumentos de Hémon são mais fortes mas não conseguem se sobrepor ao autoritarismo e à teimosia.

Certamente essa é uma discussão tão antiga quanto problemática no que diz respeito aos impasses entre justiça e direito, ordem pública e vida privada, sagrado e profano. No entanto, a postura de Hémon demonstra maior politização e consciência ao entender que a discussão entre direito natural e o poder do Estado se esvaziam quando estão calcados em bases democráticas pois já estará de acordo com a religião, a moral e os costumes da sociedade e será um direito instituído pelo povo para um determinado Estado. Se a sociedade for organizada nessas bases, cria-se um contexto no qual os conflitos são expressos e negociados de forma que as leis divinas persistam e se aperfeiçoem na forma de leis escritas. Em outras palavras, a sociedade será essencialmente democrática quando as leis divinas fornecerem a base para as leis escritas e que essas sejam observadas e efetivamente respeitadas.

Maria Fernanda Ponzio afirma que a tragédia traz à tona relações complexas que envolvem os cidadãos e evidenciam a importância da participação política consciente e de reflexões sérias sobre as questões éticas para que se organize uma sociedade preocupada com problemas coletivos e não de pequenos grupos. Há, nessa perspectiva, a existência de uma política racional e um Estado democrático que garanta espaços para a liberdade, igualdade e não-violência. Entretanto, ao pensarmos nos quadros que compõem a realidade brasileira, nos deparamos com governos autoritários, ditatoriais e manipuladores que não garantem aos seus cidadãos os elementos básicos que lhes permitam acreditar em sua condição de cidadania. Com a promulgação da Constituição de 1988 retomamos legalmente a odisséia pela construção democrática que dura mais de cinco séculos. Ao longo da história se multiplicam as insatisfações em relação às políticas socioeconômicas desastrosas escritas na história de um povo que tem na resistência a única maneira de recuperar sua memória censurada e mutilada.

Segundo Matteucci, o autoritarismo pode qualificar as estruturas de um sistema político como também as concepções psicológicas acerca do poder ou as ideologias políticas. No primeiro caso, privilegia-se a autoridade governamental em detrimento do consenso. O poder é exercido por uma pessoa ou um órgão e qualquer outra forma de participação política, instituição coletiva e principalmente de oposição é combativa, neutralizada ou aniquilada.

No aspecto psicológico, considera-se uma personalidade autoritária, que apresenta traços característicos de obediência inquestionável em relação aos superiores ou a disposição em tratar com arrogância e desprezo os que são hierarquicamente inferiores. Já as ideologias autoritárias, procuram validar o poder com base na crença de uma suposta superioridade, negando qualquer principio ou discurso de igualdade. O exercício do poder justifica-se pela virtuosidade exaltada do líder. Nesse sentido, a obediência incondicional e os princípios de hierarquia e desigualdade entre os homens caracterizam o autoritarismo.

Os familiares de Arno Preis conseguiram somente em 1993 localizar os restos mortais, com o apoio da Comissão Externa da Câmara Federal, presidida pelo então deputado Nilmário Miranda. O corpo foi exumado e as ossadas identificadas no IML de Brasília. Após homenagens por ocasião do traslado na Câmara Federal, na USP, em São Paulo e na Assembléia Legislativa de Florianópolis, os parentes conseguiram assegurar um direito primordial ao ser humano: o de enterrar seus mortos. Após 22 anos de incertezas, Arno foi oficialmente sepultado em Forquilhinha, (SC) sua cidade natal. A mãe de Arno morreu com 94 anos e durante muito tempo esperou o filho voltar para casa em segurança.

A família ficou marcada para toda vida, afirma João Preis. A luta do irmão foi incansável na busca pelo corpo de Arno. Mas a procura era dificultada pela repressão da época e pela semelhança física dos irmãos. As fotos de Arno remetiam à figura do terrorista, inimigo do estado. Os militantes eram considerados subversivos, baderneiros, terroristas e comunistas: indivíduos de alta periculosidade. Enquanto para o Estado, a tortura, as prisões, os assassinatos eram práticas indispensáveis para garantir a ordem e fortalecer o regime, brasileiros fortaleciam a resistência transformando a luta contra a ditadura em ideal de vida. São fragmentos da história pessoal e familiar de homens e mulheres que tiveram suas vidas confundidas, muitas vezes de forma dolorosa, com a realidade política do país. João Preis não considera a tarefa terminada. Ele ainda sustenta a luta pelo resgate histórico da militância do irmão e pretende esclarecer as circunstâncias reais de sua morte.

O estudo dessas personagens é uma via aberta para abordar dramas de pessoas que foram marcados por conflitos semelhantes: compartilha-se da mesma dor por parentes que desapareceram por uma causa política ou corpos aos quais se negou o direito de sepultura digna. Pessoas alheias às lutas políticas não se deixaram calar e questionam a rigidez do Estado gritando por um direito que lhes foi negado. Trata-se de um texto que não envelhece porque os tiranos e os ditadores vêm e vão, eles estão aí. Porém sempre haverá aqueles que resistirão: Antígona e seus herdeiros.


1. Édipo, desconhecendo sua origem, matou Laio, seu pai e casou-se com a própria mãe Jocasta, com quem teve quatro filhos. Inconformado com o destino, Édipo cegou-se e Jocasta enforcou-se. Édipo deixou Tebas, partindo para um exílio na cidade de Colona, acompanhado pela filha Antígona.

2. João Preis é empresário em Maringá onde reside atualmente. Disputou o cargo de prefeito em 1988 e foi deputado pelo Paraná

3. Dinastia que fundou e reinou sobre a cidade de Tebas.

4. Félix Maier é militar da reserva e ensaísta. Escreve para Usina de Letras, Usina das Palavras, Ternuma, Digestivo Cultural e é também articulista de Mídia Sem Máscara. Sobrinho de Arno e João Preis, filho de Marina Preis e Hilário Maier, conviveu com Arno a maior parte da sua infância em SC. Relato integrante do Artigo “Tio Arno Preis”.

5. Podemos citar como exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento básico das Nações Unidas assinado em 1948.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. / Comissão responsável Maria do Amparo Almeida Araújo...et al., prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, Apresentação de Miguel Arraes de Alencar. Recife: CEPE, 1995.

JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella: o inimigo número um dia da ditadura militar. São Paulo: Sol Chuva, 1997.

MAIER, Félix. Tio Arno Preis. 11/07/2007. Usina de Letras: acesso em 12 de novembro 2007

MATTEUCCI, Nicola. “Autoritarismo” In BOBBIO, N., MATTEUCCI, N., PASQUINO, G. (orgs.) Dicionário de Política. Brasília, UnB, 1986.

MIRANDA, Nilmário. TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo: mortos e Desaparecidos políticos durante a ditadura miliatr: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo: Perseu Abramo, 1999.

PONZIO. Maria Fernanda de Aragão. No Olvidaremos, Ni Perdonaremos: Um diálogo entre Antígona e as mães da Plaza de Mayo XI Encontro Regional da ABRALIC 2007. USP - São Paulo. Disponível em acesso em: 05 de setembro 2008

REIS, Daniel Aarão. O Golpe e a Ditadura Militar. EDUSC, 2004

SÓFOCLES, Antígona. L&PM, 2001

TELES, Janaína. Mortos e Desaparecidos Políticos: reparação ou impunidade? (org) 2ed. São Paulo, Humanitas, USP, 2001.


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