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Ensaios-->Memorial do Comunismo: A transformação do PC Italiano -- 12/06/2008 - 12:18 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Horizontes Antropológicos
Print ISSN 0104-7183
Horiz. antropol. vol.7 no.15 Porto Alegre July 2001
doi: 10.1590/S0104-71832001000100002
ARTIGOS


Rituais políticos e a transformação do Partido Comunista Italiano1

David Kertzer

Brown University - Estados Unidos


RESUMO

Os rituais exercem um papel central na vida política contemporânea, mesmo que, freqüentemente, este papel não seja reconhecido. Demonstramos, através da análise da transformação, entre 1989-1991, do Partido Comunista Italiano (PCI) em um partido pós-comunista, o papel-chave do ritual na política moderna. Ao longo deste caminho, examinamos e ilustramos as maneiras pelas quais os rituais são empregados para propósitos políticos. Após a queda do muro de Berlim, líderes do PCI decidiram que a identidade comunista tornou-se demasiadamente estigmatizada, e que uma nova identidade era necessária para o Partido, para que se evitasse o seu declínio. Desde a metade dos anos 1979, o segundo maior partido da Itália, o PCI, vinha constantemente perdendo suporte eleitoral. Na tentativa de mudar sua identidade, no entanto, os líderes do PCI deparam-se com a grande força do simbolismo associado ao Comunismo na Itália. Para muitos membros, o ser 'Comunista' era parte central de sua própria auto-imagem. A oposição dentro do Partido tirou vantagem da força deste simbolismo, e dos ritos associados a ele, para opor-se à mudança. A inabilidade para inventar novos ritos e símbolos que tivessem o mesmo poder, deixou a liderança vulnerável. Este artigo examina esta disputa, pensada através do simbolismo e do ritual, olhando para o processo pelo qual o Partido Comunista Italiano tornou-se o Partido Democrático da Esquerda (PDS).

Palavras-chave: Movimento Social Italiano, Partido Comunista Italiano, política, rituais.


ABSTRACT

Rituals occupy a central role in contemporary political life, although this role is often not recognized. Through the examination of the transformation, in 1989-1991, of the Italian Communist Party (PCI) into a post-communist party, the key role of ritual in modern politics is demonstrated. Along the way, the ways in which rituals are employed for political purposes are examined and illustrated. Following the fall of the Berlin wall, PCI leaders decided that a Communist identity had become too stigmatic, and that a new identity was required for the party to avoid inevitable decline. Long the second largest party in Italy, the PCI had been steadily losing electoral support since the mid-1970s. In attempting to change its identity, however, the PCI leaders faced the great potency of the symbolism associated with Communism in Italy. For many members, being 'Communist' was a central part of their own self-image. The opposition within the party took advantage of the strength of this symbolism, and associated rites, to try to rally the party faithful to oppose the change. Inability to invent new rites and symbols that would have the same power left the leadership vulnerable. This article examines this battle, fought through symbolism and ritual, looking at the process where by the Partito comunista italiano became the Partito democratico della sinistra.

Keywords: Italian Comunist Party, Italian Social Movement, politics, rituals.




A vida política se enraíza na manipulação de símbolos, e neste processo simbólico, o ritual tem um papel central. No entanto, com muita freqüência, os analistas e observadores políticos consideram o ritual apenas superficialmente, identificando-o com sociedades pré-modernas - imperadores e reis rodeados por superstição e espetáculo. Nesta perspectiva, o ritual na política moderna apresenta-se, no máximo, como uma 'sobrevivência' curiosa, um adorno que tem pouca influência no seu conteúdo real.

Neste artigo, gostaria de contrapor-me a esta visão convencional, demonstrando a importância do ritual para vida política italiana hoje, e identificando os aspectos do ritual que o tornam politicamente tão forte. Em resumo, eu esboçarei uma teoria da importância do ritual, examinando a política italiana, com um enfoque particular num dos principais processos políticos na Itália nestes últimos anos - a transformação do Partido Italiano Comunista (PCI) em um partido pós-comunista, o Partido Democrático da Esquerda (PDS)2. Com isto, no entanto, não pretendo sugerir que o ritual seja, necessariamente, mais importante para o PCI do que para outras forças políticas na Itália. A recente transformação dos democratas cristãos, dos neofascistas e de outros grupos, poderia facilmente ser vista através desta perspectiva, e, de fato, antes de concluir, analisarei rapidamente o uso recente do ritual na transformação do Movimento Social Italiano de direita para Alleanza Nazionale.

Ao examinar os rituais do PCI, e o seu uso na disputa pela transformação do Partido, adoto um conceito de ritual que não está limitado à religião. Em concordância com outras análises de ritual, e, especificamente, com trabalhos sobre os seus usos políticos, adoto uma perspectiva mais ampla, vendo o ritual como um comportamento simbólico, socialmente padronizado e repetitivo. De fato, é através de rituais que os símbolos são definidos, difundidos e revitalizados3. A série de eventos que fornece nosso primeiro foco neste artigo, começa em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim e com o desmantelamento do regime soviético. O secretário do Partido, Aquiles Occhetto, falando num ritual que comemorava a batalha de Resistência em Bolonha, anunciou o que veio a ser conhecido como la svolta (o retorno) - o que transformaria o PCI num partido pós-comunista. Ele evocou uma nova entidade política, que inicialmente veio a ser referida simplesmente como 'a coisa' (la cosa), uma vez que uma decisão em nome do novo partido provou ser um problema em si mesmo incômodo. Sua proposta provocou uma disputa acirrada em todos os níveis do partido, com a oposição firmemente contrária a desistir da identidade comunista do partido.

A luta pelo 'retorno' (svolta) ganhou uma grande extensão, enquanto uma disputa pelos símbolos através dos rituais. Estes forneceram os meios através dos quais os líderes dos partidos foram capazes de desvelar as paixões dos seus membros e simpatizantes. Mas, como veremos, o ritual faz mais do que simplesmente incitar as emoções.



O poder do ritual

As análises anteriores do papel político do ritual focalizaram, principalmente, seu uso para reforçar o status quo. Nesta perspectiva, o ritual sustenta os donos e os sistemas de poder existentes, ao cercá-los com a aura da legitimidade. A importância política do ritual, porém, vai bem além disto, uma vez que o uso bem sucedido dos rituais é crucial para os movimentos de mudança política. Quatro características do ritual são de especial relevância para o entendimento de seu valor político: o poder de representar grupos políticos; de fornecer legitimidade; de construir solidariedade; e de modelar as percepções da realidade política das pessoas. Analisaremos cada uma delas brevemente4.

Representando o Partido

Os partidos políticos só podem existir através de representações simbólicas. Eles só podem ser concebidos e percebidos por meio de símbolos a eles associados. Os ritos são fundamentais para o processo de associações de indivíduos com entidades simbólicas, como partidos, religiões ou nações. Através dos ritos associados ao partido, os indivíduos identificam-se e são identificados com o partido. Os rituais permitem que os indivíduos entrem em contato com os símbolos sagrados e os delimitem a esta entidade simbólica. Eles fornecem um contexto no qual os mitos que sustentam o partido podem ser validados e revitalizados. Também realizam uma função organizacional importante ao diferenciar o 'grupo-de-dentro' do 'grupo-de-fora', distinguindo os associados aos partidos dos outros, ao tornar pública a ligação entre o membro ou simpatizante e os símbolos do partido5.

Durante os anos do Fascismo, por exemplo, as pessoas afirmaram publicamente sua identificação com este através de uma série de ritos. Uma ilustração lamentável encontra-se no caso de uma jovem indigente italiana, mãe de três crianças pequenas, em seu leito de morte num hospital, quando em seu último suspiro de vida, o diretor do hospital, ao seu lado, ergue o braço da mulher para a saudação fascista e proclama: 'Viva il Duce! Viva l`Italia!'. Possivelmente foi a esperança da mulher que, através da performance deste rito, pôde atrair atenção favorável das autoridades para suas crianças recém órfãs6.

Para os líderes do PCI, a centralidade do ritual na definição do Partido, como um meio de ligação de um grande número de pessoas a ele, teve profundas implicações. Para a nova entidade política (la cosa) ser considerada de fato nova, necessitava de uma nova representação simbólica. Mas, ao mesmo tempo, os ritos existentes, que ligavam os membros e simpatizantes do PCI ao partido, eram ameaçados por qualquer rejeição dos símbolos anteriores nos quais os ritos estavam baseados. Os ritos do Partido sem bandeiras vermelhas, sem as antigas canções revolucionárias, sem as representações simbólicas dos heróis comunistas e vilões imperialistas, não pareceriam, de nenhuma maneira, serem ritos do Partido.

Legitimidade e mistificação

O poder dos rituais de conferir legitimidade foi bem compreendido pelos reis, papas e dirigentes de vários tipos ao longo dos milênios. A aura de sacralidade que as pessoas tendem a conferir ao poder é nutrida e fortalecida pela performance ritual. Ao manipular e reivindicar a posse dos símbolos sagrados, os donos do poder manifestam seus poderes especiais e legitimam suas reivindicações de autoridade. Ao mesmo tempo, formas rituais - de inaugurações a procissões imperiais - estruturam o contato entre os donos do poder e as massas.

Os rituais não só legitimam seus patrocinadores, mas também conferem legitimidade aos seus participantes. Considere a situação crítica do herdeiro do trono italiano no contexto da Segunda Guerra Mundial. Precisando terrivelmente sustentar a legitimidade da monarquia no início de sua convivência com Mussolini e, posteriormente, seu comportamento covarde ao fugir da ameaça nazista em 1943, o Príncipe Umberto visualizou meios rituais apropriados de legitimação. A oportunidade apareceu na ocasião de uma parada desmobilizadora de forças militares 'patrióticas' em Milão, programada para domingo, dia 6 de maio de 1945. Umberto pretendia colocar em revista as tropas na parada, identificando-se, então, com o anti-fascismo, e com as forças anti-nazistas, mostrando que o trono representava todos os italianos, tanto de esquerda quanto de direita. Os líderes das forças de Resistência, no entanto, não permitiram que o Príncipe revistasse ritualmente suas tropas. Ao invés de explicitar esta rejeição de forma pública e simbólica, o Príncipe Umberto simplesmente se retirou. Um ano depois, um plebiscito nacional acabaria com a monarquia italiana7.

Como mostra este caso, a luta por legitimidade através do ritual se dá, em parte, através dos esforços por reivindicar a proteção de um ritual existente. A sua duração ao longo da mudança política, significa que o ritual em si torna-se uma herança política, um tipo de 'cálice sagrado'. Competidores políticos, então, não brigam só através do ritual, mas também pelo ritual, ou seja, pelo direito de se identificarem com ritos poderosos.

Solidariedade e ambigüidade

Participar em comum dos rituais favorece um sentimento de unidade. A intensificação da emoção, o uso de vários estímulos de ambientação e visualização, a química da multidão, tudo isso dá ao ritual uma força incomum na criação e renovação dos laços de solidariedade. Estes laços não são uma nova descoberta, pois apóiam-se no coração da visão clássica de ritual de Durkheim8.

O fato de que o ritual produz solidariedade sem obrigar que as pessoas, reunidas, dividam a mesma interpretação sobre o significado dos ritos, tem sido menos contemplado nas análises sociais. Membros e simpatizantes do Partido Comunista que se reúnem numa praça, balançando bandeiras vermelhas e cantando canções revolucionárias, fortalecem enormemente seus laços de solidariedade, assim como seu senso de identificação com o Partido. No entanto, enquanto alguns deles vêem sua participação como contribuição para a morte do capitalismo, outros simplesmente a vêem como uma maneira agradável de passar a tarde9.

Provavelmente, o mais simples, embora poderoso, dispositivo ritual empregado pelos comunistas para este propósito, tem sido o uso do termo companheiro (compagno). De fato, quanto mais ameaçada a solidariedade do Partido, mais insistente torna-se o uso do termo companheiro. Todos que discursam como membros do Partido são obrigados a começar seus discursos com 'Care compagne e cari compagnil' (Companheiras e companheiros), para assim estabelecer a solidariedade entre o discursante e a audiência. Em seus discursos, em várias reuniões ao longo da crise de transformação do Partido, Occhetto geralmente iniciava cada parte de seu discurso com este ritual de encantamento. Isto alcançou seu auge no discurso de abertura do Congresso do Partido de 1991, quando o PCI estava para ser dissolvido: Occhetto dirigiu-se à sua audiência com a interjeição 'compagni' por seis vezes somente na parte final do discurso.

Em momentos de transição, o uso do ritual para produzir solidariedade torna-se especialmente enfatizado. Um bom exemplo deste mecanismo para expressar solidariedade aparece na reação à morte de Stalin em 1953. A relação do Partido com Stalin estava, de fato, publicamente definida através do ritual e sua morte foi saudada por um frenesi ritual. O PCI mandou sua liderança inteira para as cerimônias funerárias em Moscou. Por insistência do PCI, o Parlamento Italiano suspendeu suas atividades por um dia em deferência à sua morte. Atos comemorativos foram realizados simultaneamente em todo o país, do Comitê Central em Roma até o menor comitê rural do partido. Milhões de italianos assinaram livros de ouro (memorial books), os quais foram levados cerimonialmente até a embaixada soviética em Roma.

A construção ritual de realidade política

Como mostra a ritualização da morte de Stalin, além de criar solidariedade, o ritual produz certas visões da realidade política. Foi através do ritual, por exemplo, que a visão de que os comunistas soviéticos, búlgaros e italianos eram todos parte de um mesmo movimento, foi poderosamente enfatizada. Igualmente, através do ritual, os Estados Unidos pôde ser mais efetivamente identificado como o inimigo. Togliatti pôde mostrar a extensão da lealdade do PCI ao Partido Comunista Soviético através dos rituais descritos acima. Três décadas mais tarde, Berlinguer pôde mostrar a distância entre os PCI e o movimento comunista dirigido por Moscou, decidindo passar suas férias de verão na China10.

Os rituais enfatizam certos eventos e interpretações e ocultam outros, levando-nos a focalizar nossa atenção em algumas coisas e a ignorar outras. A história da posição internacional do PCI pode ser lida a partir da demonstração pública que o partido organizou. Ele patrocinou demonstrações de luto pela morte de Stalin, mas não pela de Mao. E, enquanto o PCI publicamente manifestou estar feliz com a morte dos regimes comunistas da Europa Ocidental, o fato de que nenhum ritual público foi realizado para celebrar este fim, deu o que falar sobre a posição atual do partido. O PCI, de fato, patrocinou milhares de demonstrações contra as tropas americanas no Vietnã, mas nem uma única demonstração contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Os líderes do partido tinham se pronunciado contra a invasão soviética na Checoslováquia, mas não realizaram nenhuma demonstração pública contra ela. A palavra não possui a mesma força do rito.

O poder do simbolismo e do ritual em definir a realidade política foi evidente em 1990, em um contratempo revelador nas celebrações em Bolonha, do décimo aniversário da bomba na estação de trem que matou várias pessoas. No momento imediato à explosão, com as emoções à flor da pele, os oficiais comunistas de Bolonha rotularam o ato como o trabalho dos 'fascistas', embora nenhuma reivindicação de responsabilidade verossímil tenha sido feita, e não houvesse evidência sobre a identidade dos que bombardearam o local. Grandes demonstrações foram organizadas em Bolonha, transformando a fúria popular sobre o massacre em uma expressão de solidariedade em torno do PCI e das autoridades da cidade, às quais foram proporcionadas ocasiões rituais poderosas para falar em nome da população contra o mal em seu meio.

As comemorações do ritual do décimo aniversário da explosão, no entanto, foram disputados por líderes do Movimento Social Italiano (MSI) de direita. Um deputado comunista no parlamento propôs um minuto de silêncio para comemorar o aniversário. Em resposta, um deputado do MSI reivindicou um dispositivo parlamentar para alterar a placa comemorativa que demarcava o 'lugar sagrado' que havia sido estabelecido na praça principal de Bolonha em memória do bombardeio. O MSI exigiu que a referência à responsabilidade 'fascista' fosse retirada. Apesar da reação indignada dos comunistas, o primeiro ministro do Partido Democrata Cristão, Júlio Andreotti, concordou com a reivindicação do MSI e esquentou o debate sobre a própria ritualização do bombardeio. Em reação, milhares de pessoas reuniram-se diante do 'monumento sagrado' na praça principal de Bolonha. Sua proposta de remover o termo fascista da placa foi, de acordo com o relato da L`Unità, de 'fúria, assombro e cólera'. Ao mesmo tempo, o líder da organização dos familiares das vítimas do bombardeio anunciaram: 'nós defenderemos a placa e a manteremos da maneira que está. E vamos considerar todos aqueles que apoiaram a requisição de Rauti (então líder da extrema direita do MSI) como amigos dos fascistas'11.

Na batalha por símbolos, o ritual é uma arma potente. O objetivo é fixar os símbolos e estabelecer a definição simbólica da realidade e, fazendo isso, equiparar seu próprio grupo político com o bem e o outro com o mal.

A habilidade para definir a história é central nesta disputa simbólica. Um bom exemplo de tal combate surgiu em 1990. Os jornais apareceram repletos de novas charges (na verdade, um retorno de velhas charges) dirigidas ao líder do PCI, Palmiro Togliatti. Togliatti, morto há muito tempo, atuou como Ministro da Justiça no primeiro governo pós-guerra e foi acusado de cumplicidade na proteção dos assassinos comunistas que mataram muitos inimigos políticos após a Libertação, em 1945. O local onde aconteceu o maior número destes assassinatos, a fortaleza comunista de Emilia Romagna, tornou-se conhecido como o Triângulo da Morte.

Enquanto foi possível, o PCI lidou com estas charges através de uma enxurrada de entrevistas e matérias publicadas na imprensa, mas foi o ritual que ofereceu o veículo mais efetivo para contrapor-se a elas. Somente através do ritual, o Partido pôde expressar sua posição e falar com a massa. Além disso, tal ritual público pôde estimular as emoções dos membros e simpatizantes de uma maneira que outras formas de comunicação não poderiam.

Líderes do Partido anunciaram que uma demonstração nacional seria realizada em Reggio Emilia, no coração do Triângulo da Morte, onde todas as forças partidárias - independente de suas divergências sobre a svolta - se juntariam 'em defesa da batalha da Libertação'12.

De sua parte, o MSI teve dificuldade para explorar as possibilidades rituais oferecidas pela ocasião, e prontamente anunciou que iria realizar sua própria Conferência Nacional e passeata em Reggio Emilia, no mesmo dia. A disputa ritual estava estabelecida. Um grande número de líderes (partigiani), ostentando suas medalhas, marcharam pelas ruas, junto com vários de seus correligionários. Esta passeata terminou na praça central, em frente ao 'monumento sagrado', onde estão gravados os nomes dos seiscentos moradores locais, martirizados na Resistência. Logo após a passagem da passeata, manifestantes do Partido Proletário Democrático, de extrema-esquerda, marcharam exibindo ritualmente sua militância ao cantar seus antigos hinos favoritos, como 'Camerata basco nero, il tuo posto è il cimetero' (Camarada de boina preta, teu lugar é o cemitério)13.

Enquanto isso, o MSI realizou sua 'Conferência' no Triângulo da Morte, num hotel perto do centro da cidade. Um grande número de manifestantes antifascistas reuniram-se do lado de fora. Cordas estendidas pela polícia separavam os dois grupos. Quando os membros do MSI saíram do hotel e entraram na praça, foram imediatamente saudados com assobios, berros e palavras de ordem pela multidão. Os fascistas reagiram através de uma performance ritual genuína, emitindo saudações com o braço estendido e cantando hinos dos anos fascistas. Na multidão antifascista, jovens exibiam sua militância colocando faixas vermelhas em torno de suas cabeças, enquanto outros disputavam o ritual contrapondo às canções fascistas, canções identificadas com a Resistência, que eram cantadas em voz mais alta. Como alguns dos jovens que portavam faixas começaram a juntar pedras, a polícia dirigiu-se a eles para dispersá-los. Enquanto isso, a apenas alguns metros além, na praça central, a ANPI, Associação dos partidários, mantinha sua vigília14.

Que isso teve um papel instrutivo para o PCI ficou claro pelos comentários do líder provincial do Partido em Reggio Emilia. No dia seguinte, ele explicitou que o fato do Partido reunir milhares de manifestantes na praça central da cidade, tinha tido um efeito positivo. Uma nova geração tinha 'aprendido a amar a Resistência de uma nova maneira'15.



Congressos do Partido

Ao final dos anos do Fascismo, após o período de repressão dos comunistas, os Congressos Nacionais do Partido representaram o mais sagrado dos ritos do PCI. Eles definiram a organização do Partido através de uma série de representações simbólicas na sua estrutura de poder, estabelecendo uma ligação entre suas lideranças e os membros ao Partido através de um processo capilar de realização de encontros em nível local e elegendo delegados para os níveis mais altos. Este processo legitimou as lideranças do partido e sua linha, proporcionando um mecanismo para explicitar o apoio dos sócios e permitindo que seus líderes fossem identificados com os símbolos do Partido. Os congressos aumentaram a solidariedade entre os membros do Partido, cujos laços foram renovados através de seus ritos. A estrutura de símbolos atrelada ao ritual definiu amigos e inimigos, a natureza do mundo e dos eventos nacionais, levando os membros do Partido a certas construções da realidade política.

Não surpreende, portanto, que os Congressos do Partido tenham sido o centro dos esforços para transformar o PCI no PDS. Foi através dos Congressos que o novo partido pode ser legitimado como o sucessor do antigo, enquanto era definido de uma nova maneira. Simultaneamente, no auge do contexto emocional de tais ritos, era dada à oposição uma oportunidade importante para afirmar suas reivindicações de legitimidade e sua própria construção da realidade política.

No início de novembro de 1989, quando do anúncio da svolta por Occhetto, a pressão da oposição forçou-o à convocação imediata de um Congresso do Partido. Para a oposição, o Congresso parecia oferecer a única esperança de derrotar Occhetto e seus aliados, uma vez que os partidários da svolta tinham uma evidente maioria no Comitê Central do Partido. Mas a realização de um Congresso também era importante para esta maioria, permitindo-a usar o ritual principal do Partido para legitimar a svolta, manter a solidariedade partidária e definir uma nova realidade política para seus membros e não membros.

O processo começou, como nos Congressos anteriores, com a realização dos encontros dos comitês locais por todo o país, onde seus membros debateram as propostas principais antes do Congresso, votaram-nas e elegeram delegados para representá-los no nível seguinte mais alto: as reuniões da Federação (em nível provincial), onde o mesmo procedimento foi repetido. O resultado final foi a eleição de 1.100 delegados para o Congresso Nacional.

No cômputo geral, 400.000, dos 1.422.000 membros do Partido, haviam votado nas reuniões locais, com 66% dos votos a favor da proposta de Occhetto (moção um), e a maioria do restante (31%) para a moção da oposição principal (moção dois). A terceira moção, identificada com a linha-dura comunista de Armando Conssutta, recebeu somente 3% dos votos. Embora Occhetto tenha obtido a grande maioria dos votos, nunca havia existido um Congresso do PCI com uma facção de oposição tão significativa e organizada que se posicionasse publicamente contra o programa da principal liderança do Partido16.

Occhetto e seus aliados tentaram usar o Congresso, realizado em Bolonha, para transformar o simbolismo do Partido, mas, ao fazer isto, tiveram que se deparar com o propósito da oposição de usar o poder do simbolismo contra eles. Quando o Congresso acabou, muitos dos símbolos antigos se foram. Entre outros símbolos descartados, pode-se registrar a ausência dos antigos representantes dos partidos comunistas irmãos dos outros países, que desta vez não foram convidados. Eles haviam se tornado uma vergonha, sua solidariedade não era mais ritualmente desejável.

Assim que isto veio à tona, Occhetto e seus aliados não estavam inteiramente seguros quanto ao desafio de competir com a minoria no espaço simbólico de um Congresso Nacional do Partido. Ao abandonar muitos dos símbolos e ritos que deram identidade aos Congressos anteriores do PCI, e que ligaram seus membros às atividades congressistas, os líderes da maioria ficaram sem qualquer novo simbolismo poderoso para substituir o antigo. Não propuseram um nome novo para o partido, nenhum símbolo, nenhuma canção, nenhum novo rito para expressar sua identidade partidária ou sua solidariedade de pertencimento ao Partido. Todos os ritos de solidariedade, legitimidade e identidade eram ritos velhos, que estavam agora identificados com a oposição.

A estrutura básica do Congresso em si não mudou. Abriu e fechou com longos discursos do líder do Partido e com vários discursos curtos dos seus delegados. Os problemas de Occhetto ficaram claros em seu discurso de abertura, de três horas, que produziu não mais do que um aplauso respeitoso. Os símbolos poderosos estavam realmente ausentes e, de fato, a primeira interrupção para aplausos veio somente vinte minutos após o início do discurso, quando Occhetto invocou os nomes sagrados de Nelson Mandela e Daniel Ortega. O aplauso seguinte veio quando ele exaltou a batalha heróica do povo palestino. Em resumo, apenas as passagens de seu discurso que evocaram os ícones canonizados do Partido e que se mantiveram dentro do consagrado modelo ritual, permitiram aos delegados a transposição para um tempo ritual especial. Em contrapartida, a oratória a respeito da perda dos símbolos e da identidade tradicional do Partido e sua crítica aos partidos da Europa Ocidental produziu somente desconforto em sua platéia17.

Em contraste com a situação crítica de Occhetto, os líderes da oposição estavam melhor posicionados para tirar vantagem simbólica do auditório oferecido pelo Congresso. Na sessão que se seguiu ao discurso pouco inspirado do secretário, Pietro Ingrao, líder das oposições, denunciou a svolta. Assim que concluiu suas observações, seus partidários ergueram-se para cantar Bandiera Rossa (Bandeira vermelha) e a Internationale, criando uma onda de emoções pela qual muitos dos membros da maioria foram levados. A prolongada manifestação foi uma provação amarga para Occhetto, que depois de um aplauso educado, permaneceu desconsoladamente imobilizado diante de uma multidão que havia explodido em celebração prazerosa. Outros líderes do partido subiram para apertar a mão de Ingrao, mas Occhetto permaneceu em seu lugar, tremendo enquanto a multidão gritava 'Pie-tro! Pie-tro!'. A seu tempo, Occhetto retornou ao palanque para o discurso final no último dia do Congresso. Ele estava claramente na defensiva. Não pôde fazer nenhuma crítica à história do PCI, nem dizer algo que deturpasse o simbolismo sagrado do Partido. Quando mencionou a União Soviética, foi somente de forma positiva, para congratular Gorbachev. Não mencionou os Estados Unidos, exceto para expressar sua crítica. Em suma, para se proteger dos ataques da oposição, buscou posicionar-se no terreno simbólico familiar do partido.

Ao invés de ter um único Congresso para sancionar a proposta da svolta e criar o novo partido, Occhetto foi compelido pela oposição a dedicar dois Congressos especiais para a questão. Após o XIX Congresso, que votou a seu favor, mas no qual ainda não tinha um plano concreto para lançar o novo partido, ocorreu um período frenético de disputas simbólicas. Occhetto e seus aliados anunciaram o novo nome do partido (Partito Democratico della Sinistra) e um novo emblema (um carvalho frondoso com o velho símbolo do PCI em sua base). Entretanto, a oposição argumentou que só agora o Partido era capaz de tomar uma decisão final sobre a mudança. Em resumo, na visão da maioria, a svolta não tinha sido totalmente legitimada pelo XIX Congresso do Partido, e a decisão teve que esperar pelo vigésimo, realizado dez meses depois do XIX, na cidade de Rimini, na Costa Adriática.

O XX Congresso aconteceu, não só num período de grande tensão interna ao Partido, mas também de uma excepcional tensão internacional. O ataque liderado pelos EUA contra as forças do Iraque no Kuwait tinha se iniciado apenas alguns dias antes. Surpreendentemente, as forças reformistas no partido, que poderiam ter usado a repulsa à conquista iraquiana do Kuwait como um meio de manifestar a sua nova posição internacional - que eles explicitaram através da criação do PDS - ao contrário, lançaram mão da antiga retórica e dos velhos símbolos. Ao que parece, foi julgado mais importante voltar-se para o cisma ameaçador dos anti-reformistas no Partido, do que fazer um discurso para fora.

Consequentemente, quando Occhetto subiu ao palanque para o discurso de abertura da reunião, que visava criar o novo partido e presumivelmente (embora ele não tenha podido admitir) marcar a morte do antigo, dedicou a primeira meia hora para uma denúncia da intervenção militar norte-americana. Deste modo, a oposição às tropas dos EUA tornou-se o meio simbólico para construir a solidariedade no Partido fragmentado, ao mesmo tempo que dava uma resposta aos ataques de inimigos de Occhetto, os quais afirmavam que ele não passava de um social democrata. Restabeleciam-se, assim, suas credenciais de esquerda.

Com a introdução de novos grupos pacifistas, ambientalistas, esquerdistas católicos, etc., a estrutura simbólica do XX Congresso combinou uma tentativa de reforçar a solidariedade diluída do antigo partido com o esforço de demonstrar o que deveria ser o novo. A mistura dos símbolos, no entanto, não foi totalmente bem sucedida.

Em defesa do velho, o Congresso começou tocando a Internacional, seguida pela mostra de uma série de vídeos em uma tela eletrônica enorme, pendurada no salão da Convenção. Primeiro foi apresentada a cena de um herói do Partido, recentemente falecido, Giancarlo Pajetta, na última festa de outono do Partido18, sobreposta com letras enormes: 'Obrigado camarada Pajetta'. Seguiu-se uma história, em vídeo, do PCI, focalizando a figura pacifista de jovens cantando 'Tudo que estamos dizendo é para dar uma chance à paz' (em inglês!). No último 'Tudo que estamos dizendo...', as luzes acima do palco gradualmente acenderam e o programa formal começou.

A liminaridade do Congresso era evidente nas decorações do salão. O palco estava ornamentado com vermelho, mas o pódio e as mesas para os delegados estavam cobertas com verde, recordando o esforço de atingir os ambientalistas. O uso do verde também tinha o efeito de oferecer uma alternativa para a interpretação (Comunista) do vermelho, pois verde e vermelho (e branco) são as cores da bandeira italiana. Um símbolo do PCI, fixado em um dos lados do palco, estava contrabalançado pelo símbolo do PDS, no outro lado. Nenhum nome do partido ou slogan foi dependurado acima do palco, apenas uma única palavra, em um tipo estilizado de escrita: 'Vigésimo'.

O discurso de abertura de Occhetto, assim como dos demais, misturou evocações simbólicas de continuidade com o passado e referências ao novo. As evocações do passado imediatamente causaram entusiasmo na audiência, as referências ao novo não. Propor o fim do caráter militar da NATO gerou aplausos, assim como a menção à recente celebração do centésimo aniversário de Gramsci. De fato, Occhetto repetidamente invocou Gramsci para legitimar sua proposta e expressar continuidade: 'Nós levaremos Gramsci conosco para o novo partido'. Em contrapartida, suas alusões repetidas ao Papa (em conexão com a presumida oposição do Pontífice à invasão do Iraque), e ao movimento ambientalista foram aplaudidos com menos entusiasmo.



A morte de um comunista

No período liminar entre o XIX e o XX Congressos do Partido, com seus símbolos em transição e a identidade dos seus membros ameaçada, a necessidade de liberar as emoções e de reafirmar a solidariedade através de rituais era enorme. Os Congressos do Partido, que haviam previamente servido para unir seus membros sob os símbolos antigos, renovar seus laços de solidariedade, revigorar sua construção da história e legitimar suas lideranças partidárias, tinham tornado-se um espaço de disputa de facções.

O que permanece é a morte, enquanto criadora de um tempo sagrado que vincula o passado ao presente. Foi a morte de um Comunista que permitiu, por um rápido, mas célebre espaço de tempo, aos membros do Partido imergirem em um tipo de comunhão que eles logo perderiam.

Em setembro de 1990, Giancarlo Pajetta, um legendário líder do Partido Comunista, 79 anos, morreu. Pajetta havia incorporado em sua pessoa muito da estrutura mítica do PCI e, como notaram mais de um observador, sua morte pareceu simbolicamente apropriada, acontecendo na época que o PCI estava por acabar.

Como um dos últimos líderes da Resistência e um dos últimos sobreviventes do PCI no período fascista, Pajetta tornou-se um personagem símbolo da continuidade da identificação do Partido com a luta antifascista e da Resistência. Occhetto, por exemplo, falou à imprensa a respeito da notícia da morte de Pajetta: 'nós lhe pagamos tributo, não somente como um lutador do PCI, mas também como o homem da Resistência e da luta antifascista'. Nesta oposição simbólica, a luta militar contra Mussolini e Hitler continuou ininterruptamente através do PCI por toda a segunda metade do século XX19.

Na manhã de 14 de setembro, o caixão de Pajetta estava colocado à vista no pátio do quartel-general do PCI em Roma. Estava coberto por uma bandeira vermelha do comitê local do Partido. Milhares de membros do Partido enfileiraram-se, alguns dos mais velhos com seus punhos estendidos para o alto e com lágrimas rolando em suas faces. No início da tarde, o cortejo fúnebre começou, levando o caixão do Botteghe Oscure (quartel-general nacional do PCI) para a praça em frente ao prédio do Parlamento, onde Pajetta atuou como deputado comunista por décadas. Enquanto a Internacional era tocada em um lento compasso fúnebre, as bandeiras das cidades da Resistência conduziram o cortejo, seguidas pelas delegações dos partidários. Estandartes proclamando 'Adeus partigiano Nullo' (nome de guerra de Pajetta na Resistência) e 'Longa vida ao glorioso Resistente' marcaram a marcha.

Occhetto, entretanto, para tirar o máximo proveito desta oportunidade ritual, teve que tomar cuidado para que suas alusões à multidão reunida na praça fossem vistas como sectárias ou em benefício próprio. Sua tarefa principal era identificar-se com Pajetta e com o simbolismo ligado a ele, e tirar vantagem do poder das emoções geradas pelo rito. Utilizando-se do poder emocional da morte, ele virou-se para a família de Pajetta e falou, numa voz tremula de emoção, de sua importância para a história da nação. Lembrou da mãe de Pajetta que, além de ter sofrido durante os anos de prisão de Giancarlo, durante o Fascismo, viu outro filho assassinado pelos fascistas e um terceiro deportado e torturado pelos nazistas.

Este era, proclamou Occhetto, um momento para unidade partidária. Desfazendo o sofrimento do próprio Pajetta pela crise que havia se abatido sobre o Partido - embora não mencionasse que Pajetta fez objeção à svolta e que havia se arrependido de o ter apoiado para líder do partido - Occhetto concluiu: 'Penso que mesmo que nossa visão do Partido hoje defira daquela formada nos anos de provação, que homens como Pajetta tinham... não podemos deixar de apreciar, à luz de nossas próprias experiências, o valor da unidade que ele arduamente liderou'.

A cerimônia - transmitida ao vivo à nação pela televisão - foi concluída, tocando-se novamente a Internacional. O caixão, ornamentado com a bandeira vermelha e com rosas vermelhas em cima, fez seu trajeto para a praça, enquanto milhares de pessoas levantavam seus pulsos e cantavam Bella Ciao e Bandiera Rossa20.

O PCI não era o único partido italiano ávido por mudar sua identidade no período de transição política após a queda do muro de Berlim. O clima político internacional, a transformação do Partido Comunista Italiano e a implosão dos partidos Cristão Democrata e Socialista - ligados a escândalos de corrupção de Tangentopoli - contribuíram para o surgimento de uma nova situação e novas oportunidades também para o Movimento Social Italiano.

Fundado em 1946 por veteranos da República Social Italiana de Mussolini - o governo fantoche nazista de 1943-45 - o MSI alcança, regularmente, em torno de 5% dos votos em nível nacional. Estigmatizado como neofascista pelos outros partidos, ele tinha ficado por muito tempo isolado das principais correntes políticas italianas21. No entanto, a queda da Democracia Cristã (DC) e o fim da Guerra Fria proporcionaram aos líderes do MSI novas oportunidades de crescimento e influência. Candidatos do MSI quase ganharam as eleições em Roma e Nápoles, em 1993. No início de 1994, Gianfranco Fini, o habilidoso secretário nacional do MSI, percebeu que alterando a imagem do partido poderia entrar em coalizão com a Força Itália, de Silvio Berlusconi, e, desta maneira, não só obter maior respeitabilidade para seu partido, mas também tirar o MSI de seu gueto e, pela primeira vez na história, aspirar tornar-se parte de um governo nacional.

Para conseguir isto, no entanto, Fini teve que refazer a identidade de seu partido, abandonando o seu incômodo legado fascista. O que, também, poderia ser feito através do ritual. Proclamações publicadas não eram suficientes. Ritos públicos tinham que ser realizados, novos símbolos inventados e manifestos22. Para isto, Fini primeiramente providenciou, como parte do movimento de aliança com a Força Itália, a mudança da sigla partidária pela qual o partido concorreria no início de 1994, cunhando o novo nome Alleanza Nazionale (Aliança Nacional - AN) em lugar do rótulo pesado e assustador de Movimento Sociale. Para sancionar a morte do símbolo antigo e o nascimento do novo, Fini convoca uma nova Convenção, a ser realizada na cidade turística costeira de Fiuggi, em janeiro de 1995.

As coincidências entre a convenção de Rimini do PCI, de 1990, e a de Fiuggi do MSI, cinco anos depois, são impressionantes. Ambas foram organizadas por líderes de partidos ávidos por refazerem suas identidades partidárias. Ambas foram ritos de transição, enterrando o antigo e inaugurando o novo. Ambas enfrentaram o problema de ter que lidar com o apelo dos símbolos e ritos antigos junto aos membros do Partido, que, embora maioria, tiveram que enfrentar com uma minoria de resistentes que preferia manter vivo o velho simbolismo.

Assim como no caso da Convenção do PCI em Rimini, havia dois grupos de delegados para a Conferência de Fiuggi. Um primeiro grupo mais numeroso representava os antigos membros do MSI, mas um segundo foi adicionado para simbolizar as novas forças que estavam associadas ao velho para criar a Alleanza Nazionale. A primeira metade da reunião, registrada como a XVII Convenção Nacional do MSI, teve a tarefa de enterrar o partido antigo, enquanto a segunda metade foi registrada como a Convenção Nacional da AN. Ambas foram abertas e fechadas pela mesma pessoa, o líder do partido Gianfranco Fini. Novamente a analogia com a experiência do PCI se torna próxima, pois, embora a liderança nacional fosse a mesma, isto não significou que não existisse problema com a continuidade, tornando difícil convencer os participantes de que o que estava sendo fundado não representava realmente nada de novo. Fini teve que fazer um grande esforço para manipular os ritos da Convenção e demonstrar que a AN não era simplesmente 'vinho velho em odres novos'.

Para cumprir este propósito, muitos dos ritos antigos mais conhecidos do partido tiveram que ser eliminados. Não se podia ter um partido não-fascista, enquanto se mantivessem os ritos identificados com o Fascismo. Oradores na convenção não deveriam se dirigirem aos delegados como 'camerati', como sempre o fizeram. E, as saudações Romanas do (partido) antigo, por muito tempo parte da nostalgia neofascista, assim como o uso da cor preta, não puderam mais ser toleradas. O velho hino do MSI, 'Sole che sorgi', teve que ser descartado, e foi introduzido um novo. O líder francês de extrema-direita, Le Pen, anteriormente muito caro ao MSI e um convidado permanente nas suas Convenções, estava evidentemente ausente. A própria história do partido teve que ser redefinida, ao mesmo tempo que a continuidade do antigo para o novo, demonstrada. Um vídeo sobre Giorgio Almirante, líder do MSI por longo tempo, veterano da República de Salò e mentor de Fini, foi rodado em uma tela enorme, fazendo brotar lágrimas nos olhos dos delegados. Alessandra Mussolini abençoou a mudança, dizendo que seu avô era um homem de inovações, que sempre olhou para o futuro. E, como no PDS, o novo símbolo da AN conservaria, em sua base, a velha chama tricolor do MSI.

Para muitos dos leais partidários do antigo MSI, desistir dos seus estimados ritos e símbolos antigos era algo emocionalmente doloroso, fato no qual os opositores à mudança se apegaram na Convenção. Aqui, também, os paralelos com as forças que se opunham à svolta do PCI eram claros. Líderes da oposição, ao se dirigirem aos delegados como 'camerati' e afirmarem que estavam orgulhosos de serem chamados de 'missini' (membros do MSI), deflagraram uma forte resposta emocional na multidão. E, quando o voto final pela mudança foi contado, e a oposição havia perdido, eles cantaram o antigo hino do MSI, exercendo um forte apelo emocional em todos os presentes. E, assim como Conssutta e os outros que romperam com o PCI em seu novo rumo, Pino Rauti e seus colegas da oposição do MSI ameaçaram a liderança do partido com uma ação legal, de modo a impedi-los de usarem os nomes e emblemas antigos do partido.



Conclusões

Na Itália, como em qualquer outro lugar, o ritual fornece às pessoas meios poderosos para influenciar o processo político. De um modo geral, avaliamos o poder político do ritual, especialmente sua importância em períodos de transição política. Na tradição liberal, no entanto, o ritual político tem sido visto com suspeita, identificado com irracionalidade e associado ao perigo da multidão. A herança de um passado de ignorância que é preciso deixar para trás o mais rápido possível. Na tradição intelectual marxista, o ritual político é igualmente tratado com condescendência, associado com o aparato envolvido na criação da falsa consciência23.

Como nos mostra o caso italiano, não pode existir política sem simbolismo, e na construção e disputa dos símbolos, o ritual exerce um papel central. Proporciona um meio de tornar palpável aquilo que, de outro modo, não pode ser visto. Fornece um mecanismo potente para produzir legitimidade e solidariedade e ajuda-nos a construir a realidade política do que, de outro modo, apareceria como o caos.



Referências

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Tradução de Valéria Aydos Rosário
Revisão técnica de Carlos Alberto Steil
1 Uma versão em inglês deste artigo está programada para publicação em 2001 (Cheles; Sponza).
2 Um completo exame do papel do simbolismo no nascimento do PCI, pode ser encontrado em Kertzer (1996).
3 Para uma discussão mais completa da definição de ritual utilizada aqui, ver Kertzer (1988). Para uma revisão recente dos conceitos de ritual, ver Bell (1992). Para uma análise de ritos comunistas em nível local, na Itália, no início dos anos 1970, ver Kertzer (1980).
4 Entre outros trabalhos recentes sobre ritual político, ver Rivière (1988), Cannadine (1987), Wilentz (1985).
5 Rapaport (1975) coloca o problema desta maneira: 'participação em ritual demarca uma fronteira... entre processos privados e públicos... A participação é o resultado de uma escolha dicotômica.'
6 Biondi (1973).
7 Sobre a visita malograda de Príncipe Umberto a Milão, ver Delzell (1961, p. 547).
8 Durkheim (1974). Ver também a discussão da teoria ritual de Durkheim e o papel da solidariedade em Kertzer (1988, p. 61-67).
9 Para uma posição clássica sobre o uso dos ritos na produção de solidariedade sem consenso, ver: Fernandez (1965, p. 902-929).
10 Sobre o feriado chinês de Berlinguer, ver Urban (1986, p. 338).
11 Guermandi (1990, p. 8).
12 Smagiassi (1990, p. 12).
13 Meletti (1990, p. 7).
14 Mastrogiacomo (1990, p. 9).
15 Meletti (1990, p. 1).
16 Armeni (1990, p. 5).
17 Participei de ambos: XIX Congresso do PCI, em Bolonha, em 1990 e o XX, em Rimini, em 1991. As descrições destes congressos, neste capítulo, estão baseadas, em boa parte, nesta observação direta. Para um exame mais detalhado do simbolismo utilizado no XIX Congresso do PCI, ver Kertzer (1992, p. 69-82).
18 Este é o maior ritual político do Partido. Infelizmente eu não posso entrar.
19 L`Unità (1990, p. 1).
20 Esta descrição dos ritos fúnebres de Pajetta está baseada em Marroni (1990, p. 9) e L`Unità (1990, p. 7).
21 Para mais informações sobre o MSI, ver Ignazi (1989).
22 Uma análise de alguns dos símbolos do MSI pode ser encontrada em Cheles (1995, p. 41-90).
23 Nos trabalhos de Antonio Gramsci, no entanto, há um reconhecimento, pelo menos implicitamente, da importância política do ritual. Para discussão de algumas destas questões, ver Kertzer (1979, p. 321-328).


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