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Ensaios-->Interdisciplinaridade em Educação e Saúde -- 15/05/2008 - 16:02 (Ana Lúcia Magela) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
INTERDISCIPLINARIDADE EM EDUCAÇÃO E SAÚDE

Ana Lúcia Magela
Introdução

A interdisciplinaridade já foi uma palavra nova e, como tal, virou modismo para designar uma coisa curiosa, bizarra, uma forma revolucionária de trabalho em equipe. Mas logo a perplexidade veio substituir o entusiasmo, gerada pelas distorções conceituais do termo e falta de ancoragem das propostas ao mundo real. Hoje, com um pouco mais de cautela e concretude, retornamos às características vigorosas da idéia de interdisciplinaridade. É preciso compreender que ela não é garantia apriorística de saída para a crise do pensamento moderno, mas sim construção, árdua e generosa, na busca da superação dos esquemas de pensamento compartimentalizados.
O esforço que fazemos, por meio desta interlocução, é no sentido de buscar refletir sobre que tipo de profissional é reclamado pela atitude interdisciplinar. Isso porque não vemos a interdisciplinaridade apenas como uma estratégia de ação, mas sim, como condição existencial do ser humano e do cientista, pois, não há conhecimento que não seja também auto-conhecimento. Como se situará, no mundo da produção de saberes interdisciplinares, particularmente, em educação e saúde, o profissional?
Posto este questionamento, buscamos ajuda em estudiosos da temática que clarearam nosso caminho, situando suas compreensões da caminhada epistemológica das ciências, seus equívocos, seus avanços e suas expiações.
O percurso do senso comum ao sensocomunizar é uma estrada marcada por todas as imperfeições humanas, e por isto mesmo fascinante. Retornar o saber científico, nascido e produzido, a partir do senso comum, enriquecido pela sistematização e lógica científica, ao mundo concreto da vida, é a ruptura epistemológica às avessas. Sensocomunizar é converter o conhecimento gerado pelas descobertas científicas em conhecimento disponível ao senso comum. Para tal, é necessário a generosidade de saber compor com a diferença de outras formas de conhecer e descrever o mundo, nem melhores nem piores que a científica, apenas diferentes e assumir, humildemente, o saber científico como incompleto e sempre em busca da completude utópica.

Da disciplina à interdisciplinaridade

Para encaminhar a nossa compreensão do que seja a interdisciplinaridade é necessário voltar a um momento anterior que impregnou os conhecimentos humanos com a idéia de ordem – a disciplina, de onde deriva a palavra interdisciplinar, que é o objeto de nossa discussão. Disciplina pode significar “a observância de preceitos ou normas (...) ou um regime de ordem imposta ou livremente consentida” (FERREIRA, s.d.), ou ainda um conjunto de conhecimentos que se organizam num dado ramo do saber científico. Estes são apenas alguns dos significados que o termo pode ter, chegando também a designar castigos corporais. Há, todavia, em todas as suas conotações, uma permanente ligação com rigor e perseverança para enfrentar dificuldades.
A indisciplina, enquanto antônimo, denota moralmente um defeito de conduta. Diz-se de alguém que não segue as regras, que é disperso, que gasta tempo e energia com o que não redunda em proveito, em benefício.
A palavra disciplina tem origem latina, em discipulus que se opoe a magister e era dito daqueles que seguiam um mestre, ou uma escola, ou uma maneira de pensar, aqueles que se iniciavam numa doutrina, num método. Daí passou a ser referida como uma dada matéria ensinada, já com a organização das universidades no século XIV (ALMEIDA FILHO, 1997, p. 9).
Foi por esta ocasião que os conhecimentos primitivos pareceram desorganizados, um acúmulo de crendices, ignorâncias e superstições, a um grande pensador - René Descartes. Foi ele quem fez o apelo racionalizado através de sua famosa frase - Cogito ergo sum. Propôs-se a analisar a sociedade humana e a criar um método, que acreditava, levaria a humanidade a organizar, racionalizadamente, os conhecimentos. Através do Discurso do método a razão passou a ser extremamente valorizada e os conhecimentos vulgares, de senso comum, as crenças, foram descartados como lixo histórico. Seu método racionalista e sua concepção da natureza e dos homens tiveram seguidores e são difundidos até a contemporaneidade. Acreditava-se que a partir do Método a humanidade alcançaria sua maioridade, libertando-se do cativeiro das superstições primitivas. Ocorria o que se pode chamar de uma primeira ruptura epistemológica, ou seja, a quebra de uma forma, até então estabelecida, de conhecer os fundamentos lógicos e os seus valores de alcance para agir no mundo. Rompia-se uma antiga ligação do homem com a natureza que passava a ser vista como coisa externa. As certezas não mais se originariam das crenças, da intuição. As verdades seriam explicáveis, porque viriam do intelecto.
O Método cartesiano alicerçava-se em quatro princípios, denominados por Descartes de preceitos:
'jamais aceitar como exata coisa alguma que eu não conhecesse a evidência como tal (...) dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las (...) pôr em ordem meus pensamentos, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos (...) fazer enumerações tão exatas e revisão tão gerais que estivesse certo de não ter esquecido nada' (DESCARTES, 1975 {1637}, p. 27/28).
Ficam evidenciados, nestes preceitos cartesianos, a preocupação da ordem e da disciplina na produção do conhecimento.
Nesta perspectiva, o método para um conhecimento racional exigia uma série de decomposições do objeto a ser explorado. Este procedimento de análise produzia o fracionamento deste objeto, reduzindo-o às suas partes mais simples. Conhecer implicava na destruição da coisa, enquanto conjunto, enquanto inteireza, para que se pudesse explicá-la, através de suas partes. Só assim, o objeto se tornava possível de ser conhecido. Procedia-se a uma simplificação reducionista, ou seja, “a dificuldade” a ser conhecida, não o podendo ser em sua complexidade, era reduzida a partes, as mais simples possíveis, “fáceis de serem conhecidas” que eram então “resolvidas”. Este processo de análise, de decomposição simplificadora, é, seguramente, enfatizado por Descartes em seu Método como axioma do paradigma da explicação. A complexidade do mundo real era traduzida em modelos simples.
A estratégia decorrente deste raciocínio desenvolveu-se baseada na especialidade. Assim, aqueles sábios antigos, que reuniam atividades de literato, político, artista e que compuseram o ideário da Renascença, cediam lugar ao indivíduo que passava a deter muito conhecimento mas numa só área do saber – o especialista. Os campos do conhecimento estreitaram-se e aprofundaram-se, tornando-se mais rigorosos e demarcados. Conseqüências dos saberes especializados produzidos foi a “arena científica” (ALMEIDA FILHO, 1997), onde a especialização torna-se mais e mais valorizada e competitiva e a criação de campos disciplinares institucionais, com múltiplas subdivisões internas nos sistemas formadores. Japiassú, em 1962 já alertava para o fato de que:
Essas '‘ilhas’ epistemológicas, dogmáticas e acriticamente ensinadas, são ciumentamente mantidas pelas instituições do saber, por esses reservatórios ou silos do conhecimento, que são as universidades, às voltas com o problema da distribuição de suas fatias de saber, pequenas rações retiradas de um estoque de saber geralmente mofado, armazenado nessas penitenciárias centrais da cultura que são as universidades, onde ainda prevalece o espírito de concorrência e de propriedade privada epistemológica. '(p. 84)
Esta “educação por migalhas” (FAZENDA, 2001) fez do especialista um grande conhecedor de um saber cada vez menor e que, na ironia de Japiassú (1992, p. 83), vai terminar por “saber tudo sobre o nada”.
Se por muito tempo acreditou-se que a produção do conhecimento científico estava atrelada à especialização crescente e que a especialização era o permanente esforço para assegurar prestígio dentro da comunidade científica, hoje já não se tem tanta certeza quanto ao mérito destes saberes fragmentados.
Este modelo racionalizante e disciplinar de pensamento, que Japiassú (1976) denominou de “patologia do saber”, perpetua um infindável ciclo vicioso de recortes especializados de conhecimentos, que produzem especialistas de óticas minimalistas que, por sua vez, continuam a demandar e produzir conhecimentos científicos parcelados e que se fecham em si mesmos, em áreas estanques e não demonstram nem competência nem apetência para a interação.
O artificialismo da facilidade de analise de um objeto complexo, decomposto em partes, começa a ser revisto pelos cientistas que se deparam com a questão da complexidade. Mauss (1950) já dizia que: “É preciso recompor o todo” e para Morin (2000, p. 37): “O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo”. Daí ser preciso enfrentar a questão da complexidade, mesmo correndo o risco de não resolvê-la, sendo melhor que mutilar o complexo pela incapacidade de apreendê-lo. É, de novo Morin quem nos alerta: “Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (...) a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade” (op. cit, p. 38).
No afã de dissecar para conhecer, a ação disciplinar da especialidade promoveu e sofreu de um excesso de disjunções (MORIN, 1986, 1986-b, v. III), exercendo uma lógica linear, mecânica, empobrecendo o objeto que se queria conhecer, explicando-o pelo que ele tinha de mais preciso. Ao relegar a imprecisão, o indemonstrável, o fortuito, como resíduo desprezível, tomou a parte pelo todo, ignorando, soberbamente, que o todo sempre é maior e mais complexo que a parte, mesmo do que à soma das partes. A idéia de simplicidade já não pode ser levada a sério, e como nos lembra Prigogine (1984, p. 164), “a simplicidade não é a marca do fundamental (...) não pode ser atribuída ao resto do mundo (...) a transformação de nossas concepções nos mostram daqui para a frente a estabilidade e a simplicidade como excepcionais”.
O preceito cartesiano da divisão, que teve na disciplina e na especialização seus mecanismos realizadores, já não se mantém hegemônico. A insatisfação dos cientistas com os resultados de suas investigações se deve ao próprio avanço do conhecimento produzido pelo modelo cartesiano, demonstrando a relatividade das previsões, a impossibilidade de um rigor absoluto e da completude, o reconhecimento de que o saber produzido por este modelo ganha em rigor e perde em riqueza. Foi então preciso que ocorresse um desencantamento com a racionalização científica para que se superasse o império dos saberes compartimentalizados.
O Simpósio sobre “As ciências e as fronteiras do conhecimento”, realizado em Veneza, em 1986, já decorrência de movimentos surgidos na França e Itália na década de 60 e também precedido do projeto apresentado à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura), por Gusdorf em 1967, são as marcas precursoras da preocupação com a
interdisciplinaridade.
Numa tentativa de síntese, as propostas destes movimentos pela interdisciplinaridade defendiam, como pressupostos que: a interdisciplinaridade é uma atitude científica que assume a produção do conhecimento como resultante de permanentes sínteses sucessivas e parciais na busca de uma totalidade; é processo e não produto e este caráter dinâmico possibilita que se desenvolva, permanentemente, a dialética entre o conhecimento e a ação; reconhece a incompletude do conhecimento disciplinar e a postura disciplinar como reducionismo; propõe-se a ultrapassar a disciplina a partir da consciência da necessidade de composição com a diferença e, para tal, busca a convergência e a troca. A idéia central do movimento pela interdisciplinaridade é a interdependência, a mutualidade.

O reconhecimento da alteridade e a consciência da incompletude


A diferença pode ser vista como o atributo que une os humanos, sem que isto se coloque como paradoxo. Rodrigues (1989, p. 23) propõe a necessidade de conciliação de três vetores:
A universalidade da pergunta o que é o homem? (...) a multiplicidade e a diversidade das respostas a que a ela são fornecidas; e a impossibilidade de lhe oferecer solução única e cabal, ainda que científica (...) uma das mais marcantes e universais características do humano é a diferença.
Esta é uma reflexão indispensável para se pensar a interdisciplinaridade: muito mais do que procurar valorizar a semelhança, interessar-se pela problematização da alteridade. Para Laplantine (1987, p. 22) “aquilo que os seres humanos têm em comum é a sua capacidade para se diferenciar uns dos outros”.
Como profissionais da educação e da saúde, procuramos a semelhança quando estipulamos normas e medidas racionalizadas, quer seja na administração das instituições ou no atendimento de nossos alunos ou clientes. Assim, eles são apreendidos, numa visão macro-objetiva, como ignorantes, portadores de deficiências, patologias, ocupantes de certos leitos, destinatários de palestras de educação em saúde, enfim, uma massa informe e anônima.
Para Maffesoli, (1984, p. 32):
“o igualitarismo significa achatamento, redução ao mínimo denominador comum: o outro idêntico não pode mais ser objeto de desejo (ou de ódio), porque a paixão vige numa estrutura contrastada e diferencial. Instrutiva é, a esse respeito, a relação amorosa, que perde todo o vigor quando o outro foi reduzido ao sentido estrito do termo; a paixão só pode viver no solo da diferença”.
A homogeneização e a conseqüente exclusão social, em maior ou menor grau, a que são submetidos os indivíduos diferentes, ou aqueles que não se adequam à pretendida uniformidade, resumem o ser a um conceito e não o situa para além daquele atributo que o define. A diferença rompe com a harmonia social que acreditamos haver - nosso saudosismo de um paraíso perdido, daí acreditarmos na uniformização, mesmo que artificial, como uma busca de retorno a harmonia rompida. Assim, numa forma higienista, livramo-nos do incômodo de conviver com a alteridade(REZENDE, 1999).
Ora, se esta convivência pode significar dificuldade, ela é também uma enorme possibilidade de aprendizado e crescimento social. Engendra potencialidades de negociação, de mudança de valores, de respeito às diferenças, enfim, de fragilização das barreiras.
No conjunto mais amplo da sociedade, o diferente tem a chance de se saber diferente, reconhece e sabe-se reconhecido. Sabe, também, que pela razão de sua própria diferença, pode produzir mudanças no comportamento social. É no conjunto social que desabrocha sua alteridade e educa a consciência da diferença.
Levinas (1997, p. 38) nos dá uma importante visão de como, dentro de um conjunto, é necessário definir-se e derivar-se:
A totalidade em que se situa um ser pensante não é uma adição pura e simples de seres, mas a adição de seres que não fazem número uns com os outros. É toda a originalidade da sociedade. (...) colocar-se, por um lado, em uma totalidade de maneira a fazer parte dela - em definir-se, ou seja, em situar-se em relação às outras partes - em derivar sua identidade do que o distingue das outras partes com as quais se compromete; mas, ao mesmo tempo, consiste em permanecer fora - em não coincidir com o seu conceito; em derivar sua identidade não de seu lugar no todo ( de seu caráter, de sua obra, de sua herança), mas de si - em ser eu.
O que parece fundamental pontuar é como o reconhecimento da alteridade inaugura uma importante ruptura epistemológica com a postura racionalizadora, cujo estatuto científico tanto nos fascinou. Reconhecer, não a inutilidade, mas a insuficiência de um paradigma racionalista, para a compreensão do homem, é o nosso propósito.
Numa perspectiva interdisciplinar constata-se que é preciso aprender a conviver com a diferença e é ela que promove a reversibilidade e a troca em virtude de sua incompletude. Não se gira numa solidão comum porque nada é pleno e se busca a complementariedade, sempre fugidia. “Aquilo que é completo, não tem necessidade de alteridade, e o exemplo mais significativo disso é o Deus do monoteísmo. É quando existe incompletude que a relação se torna necessária” (MAFFESOLI, 1984, p. 37). Isto implica numa harmonia instável, pois ela se funda na diferença, todavia é a única possível, pois o completo não tem o que trocar.
O uso analítico que, na psicanálise, J. Lacan fez do nó borromeano pode encaminhar nossa reflexão sobre a impossibilidade da completude. Na figura do nó Lacan localizou os três estruturantes do inconsciente - o real, o simbólico e o imaginário. Para cada laçada do nó formar outra, é preciso que haja um vazio no centro, por onde a laçada se dá. Tanto este vazio, ou furo, é necessário para a modulação do nó, como pela própria constituição dele é que o furo se mantém.
A psicanálise considera que o homem está marcado pela falta, esta falta é fundante e inominável, objeto perdido e proibido, irrecuperável que ocorre no chamado complexo de castração. Para Motta (1996, p. 18-19)
'o conhecimento da diferença, o golpe na sua onipotência narcísica, aponta(ndo) que o seu corpo tem limites (...) Dessa forma, não se pode reduzir o significado do complexo de castração a uma ameaça de amputação dos órgãos genitais. Ele é muito mais radical, por trazer em si o caráter de restrição do desejo, a interdição ao objeto amado, o esburacamento de uma imagem plena.(...) A condição de estar ligado a um outro o faz um ser marcado pela perda e pela falta. Esta marcas determinam a sua condição de ‘desamparo’ na cultura, acompanhada pela angústia que essa posição sustenta.(...) A castração portanto, interdita a criança, instala a falta e possibilita a negociação com a cultura'
Portanto, não é sem dor que o ser humano passa do estado de assujeitado para atingir o estado de sujeito. Para isto, é fundamental o interdito que lhe desvela sua incompletude e permite que a ressignificação ocorre. É esta idéia da falta, desenvolvida na psicanálise, que procura-se aqui reconhecer para barrar o sentimento de onipotência da ciência. Se a incompletude é uma experiência dolorosa, com a qual é preciso aprender a conviver, convém lembrar que a completude, a fusão simbiótica, o prazer total e perene, implicaria numa também total descarga de energia, numa lassidão e Garcia-Roza (1983, p. 51) diz: “É essa concepção que fará Freud perguntar de si para si, vinte e cinco anos depois, se o princípio de prazer não estaria a serviço da pulsão de morte, já que a ausência completa de tensão só é possível com a morte.”
Nesta incompletude é que se localiza o desejo e é ele que dirige o ser humano, vale dizer, nós vivemos pela falta. A demanda é pela completude, mas o furo central é que nos põe em comunicação com o exterior. Obliterar a falta, pela nossa obsessão por uma verdade completa, é reduzir nosso saber a um discurso psicótico que caracteriza-se pela certeza irredutível. “Só se pode ter um saber sobre a verdade e não uma verdade sobre o saber “(LEITE, 1992, p. 82). Daí, ser necessário lidar com a falta e reconhecer a importância da alteridade. Lidar com a falta significa gerenciar, sem muita angústia, a incompletude.
Correndo o risco de uma audácia desmedida, a partir do uso nó borromeano proposto por Lacan, entendemos que a proposta da interdisciplinaridade pode ser aproximada com seus componentes estruturantes – a alteridade, a convergência e a troca, assegurando-se que o furo sempre permanecerá, que a interdisciplinaridade viverá deste furo – a incompletude e será por ele que ela se estruturará, pois ele é que será capaz de barrar a arrogância da produção de conhecimentos enclausurados. O interdito que se coloca, como exigência para que a interlocução não cesse, serão as sínteses, sucessivas e parciais a fazer lembrar que ainda não está completo, na busca utópica de totalidade, sempre fugidia.

Da superespecialização ao retorno holístico

A compartimentalização do conhecimento foi a marca de um tempo e reinou como paradigma dominante. Seus sinais e demarcações estão ainda muito presentes na vida cotidiana do fazer científico. Não estamos, portanto, falando de um “passado” da ciência. Por outro lado não se pode ficar insensível a um novo tempo que corre paralelo a uma modernidade racionalizante. Este tempo contemporâneo, independentemente do rótulo que se dê a ele, evidencia o descrédito em verdades que já presidiram a caminhada dos humanos e que perdem o vigor. Na ciência também se registra a estranheza deste outro tempo. Kuhn, Souza Santos, Maffesoli, Morin, Lyotard, Baudrillard, Vattimo, Prigogine, entre tantos estudiosos das relações ciência/mundo apontam para um ceticismo nos grandes discursos, quer seja na política, na religião, na ciência ou nas artes. Tal descrença é sintoma de um “desencantamento” com que Durkheim já acenava no século XIX e que Vattimo considera como uma crise da idéia de verdade a inaugurar uma forma de pensar “frágil”, que nos educa num nihilismo necessário a um tempo onde a determinações absolutas não mais têm lugar. Esse descrédito em princípios guiadores desestabiliza toda a humanidade e, conseqüentemente, a comunidade científica que não está acima desta humanidade. A fragilidade de verdades, que até a pouco eram vigorosas e que já não dão conta da responsabilidade que portavam, parece desencadeadora de caos. Nossa disposição e formatação normativista teme o caos como desordem, esquecendo-se de que caos é a possibilidade de tudo, mas por ser algo novo, é assustador e inseguro. Prigogine (1984, p. 226) nos lembra:
Onde a ciência nos tinha mostrado uma estabilidade imutável e pacificada, compreendemos que nenhuma organização, nenhuma estabilidade, como tal, é garantida ou legítima, nenhuma se impõe por direito; todas são produtos das circunstâncias e estão à mercê delas.
É nesta ambiência de instabilidade que a ciência ensaia um movimento em direção à existência e este é um grande exercício de humildade que é o fundamento maior da interdisciplinaridade. Todavia, a exigência da interlocução entre as ciências não pode ainda ser considerada avanço ou superação de um estado fragmentário, mas apenas sintoma do mal estar gerado pela “patologia do saber”. É preciso estar atento a este fato para que não se perca em simplificações (FAZENDA, 2001).
Na maioria das vezes, onde se alardeiam práticas interdisciplinares, não se está fazendo nada mais do que justaposição de conhecimentos; diversos campos de saberes isolados e apenas aproximados por um dado tema ou objeto de pesquisa, sem cooperação sistemática entre si. Trata-se tão somente de um momento inicial de Multidisciplinaridade, importante, enquanto movimento primeiro, mas ainda rudimentar e precário.
Há uma gradação de complexidade e maturidade, que vai da Multi à Transdisciplinaridade. Utilizamos aqui as características da classificação de Almeida Filho (op. cit).
Já num processo Pluridisciplinar a justaposição permanece, em função de uma mesma área temática, há um mesmo nível de hierarquia, mas as relações entre as várias disciplinas já se processam, com algum grau de cooperação, numa perspectiva de complementariedade e com objetivos comuns.
A Metadisciplinaridade ocorre quando se desenvolvem ações entre as várias disciplinas que se põem em comum, integradas por uma área de conhecimento epistemologicamente superior, que media o processo de interlocução. O caráter desta área de conhecimento, epistemologicamente já mais organizada, não é de coordenação e sim de integração .
Na Interdisciplinaridade as relações entre as várias disciplinas conexas são estabelecidas por premissas teóricas ou políticas partilhadas em comum, a partir da posição integradora de uma destas disciplinas que também media a interlocução. O que elege a disciplina integradora é a permeabilidade que tem em relação às outras que compõem o modelo e a sua situação de generalidade em relação ao objeto de estudo. O poder tende a ser horizontalizado, há uma permanente preocupação em decodificação dos conceitos fundamentais, com recombinação dos conhecimentos, o que determina o enriquecimento mútuo das área.
Na transdisciplinaridade as disciplinas se integram com base em princípios e postulados comuns. Os objetivos destas várias disciplinas são diversificados e, todavia, se põem em comum, num sistema de vários níveis. Este modelo desenvolverá um campo novo de conhecimentos, com autonomia teórica e metodológica para a descrição da realidade (Jants-Vasconcelos-Bibeau, apud Almeida Filho,1997,13).
Esta nova forma de se produzir conhecimento é a marca de um tempo presente, como atitude e estratégia a serem tentadas para que a ciência saia do isolacionismo em que se colocou. Todavia, de nada adiantam as elocubrações metais de intelectuais bem intencionados a elaborar construtos vazios.
A pergunta que se faz é: Onde estarão os profissionais que preencherão estes modelos, lhes darão vida e dinamismo? É ainda Almeida filho (op. cit.) que propõe a metáfora mais adequada para se construir a analogia com este profissional interdisciplinar. O que este autor vislumbra, em sua noção de transdisciplinaridade é o “profissional anfíbio”. Estes novos
operadores transdisciplinares da ciência (...) serão mutantes metodológicos, sujeitos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, capazes de trans-passar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de transformação, agentes transformadores e transformantes. A formação desses agentes será essencialmente ‘anfíbia’, com etapas sucessivas de treinamento-socialização-enculturação em distintos campos científicos. (...) Não se trata obviamente de ecletismo ou hibridação, na medida em que (...) conhecemos largamente a infertilidade dos híbridos ( p.19). Ou, como propõe Nitschke (1997, p. 9), preferindo a metáfora do híbrido:
Profissionais que não se contentando com sua formação de base, pois não lhes oferece possibilidade de responder a este mundo em conjunção, buscam outras disciplinas tentando completar pelo menos um pouco mais a complexidade na qual estão inseridos (...) Ou seja, o profissional não abandona sua formação de base, mas vai, sucessivamente, integrando outros elementos no seu conhecimento e no seu agir.
Não se trata de um “vale tudo”, em que qualquer conhecimento, de qualquer ordem, possa ser carreado para uma proposta de interdisciplinaridade. Ali, o rigor do saber não se processa nas fronteiras, na repartição do saber, mas sim na complementariedade. Só pode contribuir para completar quem tem um saber diferenciado. Interdisciplinaridade não pode ser visto como “todos fazendo de tudo”.
Troca e Interação: estas parecem ser as palavras transformadoras dos saberes, dos espaços e dos relacionamentos, dentro das perspectivas da interdisciplinaridade. As ações se multiplicam neste sentido, só condicionadas pelo espírito criativo destes novos profissionais. Neste cenário, o ensino precisará contemplar uma formação profissional que valorize o espírito criativo e não só a repetição, que propicie a leveza sem detrimento da qualidade científica do trabalho, até porque não existe tal incompatibilidade!
A estes profissionais caberão a função e o desejo de criar um ambiente propício ao compartilhamento, porque o mais próximo possível à vida. Este profissional “anfíbio” terá plasticidade, sabedoria para compreender e compactuar com transgressões de regras absurdas, relativizar crises, valorizar o instante presente como único.
Esta imagem profissional transmite o valor de equilíbrio, de rigor epistemológico e não meramente normativo; seriedade, sem circunspecção; comunicabilidade sem hermetismos; paixão pela verdade, que sabe sempre parcial, portanto, sem a arrogância do absoluto.

Considerações finais

O holismo, em tempos de pós-modernidade, coloca-se como requisito desta construção de saberes e não se configura no desejo de posse e delimitação da verdade, mas na certeza de que é possível, no máximo, aspirar-se por totalizações provisórias, sempre propensas a revisões. Convergência, alteridade e troca são os desafios posto aos profissionais dedicados à produção de saberes.
A racionalidade que, um dia, em sua infância, expurgou o senso comum, enfrentou as crises de uma adolescência prepotente chega, insegura e menos arrogante, a uma maturidade. Sabe que não há mais lugar seguro para a preponderância hegemônica de formas de conhecimento. A precariedade das certezas científicas não é deficiência a ser superada, mas sim alavanca teórico-metodológica, essência de um produto humano. A ciência não tem a marca do divino absoluto, não é mais que uma construção humana na ultrapassagem dialética de erros maiores para erros menores e, nas palavras de Engels, cada vez menos absurdos. Neste permanente processo de conhecer o mundo, é preciso lembrar aos profissionais que, na aventura científica, a grandeza da troca deve ser exercício constante, que o compartilhar não é apenas magnitude de alma, mas necessidade epistemológica que, todavia se ancora no desejo.

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