A DELICADA TRAMA DO LABIRINTO
JFLÁVIO
O velho Clarimundo adentrara o próprio outono, com a suave placidez dos mais recônditos regatos . Na juventude levara vida agitada . Órfão ainda na adolescência, como primogênito, teve que cedo procurar maneiras de sustentar um ninho repleto de filhotes barulhentos e gulosos. De feirante, terminou por firmar-se num pequeno negócio de venda de tecidos. Do meio de panos e retalhos, labirintos e bicos , foi que arrancou, a fórceps, a linha que o ajudou a nutrir os irmãos e a mãe. Só na meia idade, já quarentão, foi que casou com D. Generosa que justificava o adjetivo do nome nas atitudes e também no peso. As filhas , num total de três, nasceram em três anos seguidos e , a partir daí, D. Generosa levantou postura. Por mais que o velho Clarimundo tenha feito diligência no sentido de gerar um rebento macho, para tomar de conta do Armarinho Gouveia, não foi possível. O desapontamento inicial pela falta do patriarca herdeiro, foi compensado, com o tempo, pela aplicação das filhas nos estudos. As meninas eram compenetradas, estudiosas e terminaram o Curso Normal, por volta dos 20 anos, quando se tornaram todas professoras respeitadas na pequena Vila. As moças eram de finíssima educação e tanto escolheram pretendentes à altura, naquelas tórridas brenhas, que, o frescor da juventude se foi e findaram por ficar na prateleira, se tornando as coroas mais respeitáveis daquele fim de mundo.
Seu Clarimundo, vendo tantas promissórias em casa, sem possibilidade nenhuma de passar para diante, voltou a entristecer. Sua árvore genealógica fora cortada, pelo destino, pela segunda vez consecutiva: nem Filho Homem e nem netos. Beirando os setenta anos, Clarimundo teve que enfrentar mais uma barra: D. Generosa , com o peso que os anos lhe foi acumulando, teve uma súbita apoplexia que a tolheu em poucos dias. O esposo sentiu intensamente aquela falta, mais pela simples presença física do que por qualquer outros sentimentos mais nobres, que terminaram por arrefecer com o passar dos anos. D. Generosa deixou, de repente, de compor a paisagem que servia de cenário à história do Seu Clarimundo e , com isso, ele sentiu que seu mundo morria um pouco junto com a passagem da esposa. O certo é que aquela ausência, com o passar dos dias, tornou-se mais uma rotina na vida do velho e ele foi se agarrando aos poucos liames que ainda o mantinham vivo aqui na terra.As filhas se desdobravam em cuidados e mimos: levavam-no ao médico, cuidavam rigorosamente da alimentação: era como se cuidassem do filho que não tiveram. É certo que tantos cuidados e roteiros sistemáticos a seguir, terminaram por limitar excessivamente a vida de Seu Clarimundo que já não suportava tanto: Tá na Hora de jantar! Hora do remédio! Papai não suba aí! Ta sentindo alguma coisa? O Senhor não quer descansar um pouco?Venha tomar seu mingau de Aveia Quacker!
Não bastasse tudo isso, praticamente o tiraram do papo na praça com os amigos.Cobriram-no de atividades religiosas e para-religiosas: praticamente não tirava a opa do Santíssimo. Fazia catequese, dava comunhão nas missas e era uma espécie de “couver”de coroinha. Quando uma vizinha trouxe a terrível notícia pois, as filhas não acreditaram. Certo que tinham notado o pai mais alegre e feliz nos últimos tempos, mais cuidadoso com as roupas, pintando o cabelo e usando mais perfume do que habitualmente. Mas era simplesmente impossível: o velho Clarimundo, um poço de placidez, homem temente a Deus, que tinha calo nos joelhos de tanto se ajoelhar em igreja, aquilo era uma infâmia, um falso testemunho terrível! O certo é que a vizinha manteve a versão cabeluda e as filhas resolveram investigar, até descobrir a inimaginável verdade: o velho tinha uma amante que já tinha dois filhos: uma menina com o blasfêmico nome de Generosa e um rebento (afinal!) que levou o épico nome de Clarimundo Júnior.
À noite as filhas chorosas se reuniram com o pai. Queixaram-se da atitude dele, que terminava por manchar indelevelmente a memória da mãe. Quando a mais exaltada, entre um soluço e outro perguntou:
--- Papai! Por que o Senhor fez isso, nós não lhe demos tudo que o senhor precisava? O Senhor não já tinha o pão-de- cada-dia assegurado? Por que fez isso?
O Velho Clarimundo, com a placidez ainda irretocável, respondeu:
---- Minha Filha, é que tava faltando o pão-de –cada noite!
Crato, 27/10/00
|