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Ensaios-->A POESIA DRAMATIZANTE E INTIMISTA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO -- 29/01/2008 - 22:34 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A POESIA DRAMATIZANTE E INTIMISTA DE MÁRIO DE SÁ CARNEIRO
João Ferreira
29 de janeiro de 2008


Mário de Sá Carneiro(1890-1916) é indubitavelmente um dos três pilares de sustentação do modernismo literário português, ao lado de Fernando Pessoa(1888-1935) e de Almada Negreiros(1893-1970).
O interesse que continua despertando entre pesquisadores e críticos literários está documentado de múltiplas formas e em numerosa bibliografia. Em 1960 Maria da Graça Carpinteiro lhe dedicou uma tese universitária na Faculdade de Letras de Lisboa intitulada “A novela poética de Mário de Sá Carneiro”, que mereceu de João Gaspar Simões judiciosa crítica em Literatura-Literatura-Literatura. A professora Maria de Lourdes Belchior Pontes escolheu “A confissão de Lúcio” para tema de estudo do Curso de Férias da Faculdade de Letras de Lisboa no verão de 1970. Fernando J.B. Martinho publicou em 1990 Mário de Sá Carneiro e o(s) outro(s). Em 1995 a Nova Aguilar do Rio de Janeiro lançou edição da Obra completa num total de 1101 páginas em papel bíblia, que colocou Sá-Carneiro ao alcance de todos os estudiosos(1). Esta edição Nova Aguilar tem uma introdução de qualidade assinada por Alexei Bueno. Além de uma tábua biográfica organizada cronologicamente, acrescida de importante documentação iconográfica e fotográfica., o leitor poderá encontrar uma listagem bibliográfica selecionada. De um lado, a produção de Mário de Sá Carneiro, dividida em “obras em colaboração” e “obras individuais”. Depois vem uma relação de “obras publicadas em periódicos” (prosa, poesia e correspondência). A listagem continua com “antologias e edições várias” da obra de Mário de Sá-Carneiro. Passa em seguida às “Obras sobre Mário de Sá Carneiro” subdivididas em: a) estudos unitários (livros, teses e separatas); b) fotobiografia; c) catálogos de exposições; d) textos e estudos em publicações diversas. Os estudos críticos são assinados por grandes nomes da literatura e da crítica literária. Entre eles: Fernando Pessoa, Antônio Quadros, Maria Aliette Galhoz, João Gaspar Simões, Pierre Hourcade, Cleonice Berardinelli, Oscar Lopes, Massaud Moisés, Vitorino Nemésio, Urbano Tavares Rodrigues, Arnaldo Saraiva, Beatriz Berrini, Dieter Woll, João Alves das Neves e outros.
Sá-Carneiro foi para Paris em 1913, beneficiando de uma mesada dada pelo pai, alto funcionário do Estado em Moçambique.. Matriculou-se em Direito na Universidade da Sorbonne. Foi lá que compôs os poemas da “Dispersão”. Numa carta escrita a Fernando Pessoa, com data de 21 de janeiro de 1913, falava de sua “psicologia deveras emeandrada”, ou seja, um eu com seus meandros. Este detalhe será explorado nesse mesmo ano em “Dispersão”!
A participação de Sá-Carneiro no lançamento do Sensacionismo Modernista Português - que Álvaro de Campos define como “atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida, pela Matéria e pela Força”- é claramente lembrada em “Páginas Íntimas e de auto-interpretação” por Fernando Pessoa. É preciso o testemunho de Álvaro de Campos sobre sua participação na fundação do movimento: “O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Provavelmente é difícil destrinchar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente inútil determiná-lo. O fato é que ambos lhe deram início”.
Apesar de Mário de Sá Carneiro ter uma tônica simbolista em sua primeira fase poética, não devemos esquecer sua rápida evolução estética a partir do paulismo e da formação do grupo de Orpheu e sobretudo depois de seus contatos vanguardistas em Paris e de sua evolução até ao modernismo e futurismo, muito claro no segundo número de Orpheu com “Manicure”(1915). Na verdade Mário de Carneiro é o grande elemento de ligação direta com as vanguardas literárias européias. Em Paris conheceu Marinetti, Max Jacob e outros vanguardistas.
Vanguardista e futurista de talento criativo em “Manicure” aparece com “Três Poemas” em 1917, já post-mortem , no Portugal Futurista . Esses três Poe mas são de 1913 e pertencem à fase de “Disprsão” animados por um tom de requinte fragmentário e psicanalítico com toques de linguagem dramática expressiva..
Independentemente da categoria estética da corrente ou do movimento em que se insere, a poesia de Sá-Carneiro tem um tom frequentemente dramático e psicologicamente fragmentarista e subjetivista. Esta dramaticidade é introspectiva, revolvente, narcisista, cheia de solidão, existencialista, e até saudosista, por vezes.Está nela embutido um sentimento de profunda solidão. Sempre se revolvendo num infinito labirinto de meandros inextricáveis. Percebe-se um Sá-Carneiro jovem abalado, existencialmente obrigado a viver e a conviver com um processo de profunda carência. Sua poesia, de muita autenticidade autobiográfica e subjetiva traduz em cada verso uma fatalidade existencial de enorme solidão afetiva, onde há uma marca gravada em alma pela orfandade fatal que teve aos dois anos de idade, quando sua mãe faleceu. Fica à mostra toda a subjetividade de Sá-Carneiro transferida para a poesia. Autobiograficamente é apenas um órfão adulto totalmente carente que aos 23 anos deixará a pátria para ir matricular-se em Direito na Sorbonne e viver em Paris. Na realidade será mais do que tudo um poeta exilado da fruição dos estados normais da vida. Um jovem que sente a privação dos afetos maternos de infância e que agora, solitário, vive longe de seu pai, seu laço afetivo mais direto e que está ausente em Moçambique, na costa oriental da África. Sua poesia nunca deixará de ter uma marca autobiográfica de profunda carência. Mas é simultaneamente uma poesia de profundidade analítica que oferece a seus leitores variados tons de sua psique insatisfeita e agitada.
Muito significativa como espelho de alma é a poesia contida no livro “Dispersão”. Ela nos revela um poeta possuído por uma “alma nostálgica de além”, destemida, buscando quimeras, tentando “suscitar cores endoidecidas”, “ser garra imperial enclavinhada/ e numa extrema-unção de alma ampliada/ viajar outros sentidos, outras vidas”(Obras completas, p. 55-56). No poema “Escavação” há uma manifesta procura de alma: “Numa ânsia de ter alguma coisa/ divago por mim mesmo a procurar”. Uma procura idealista que logo será substituída por profunda desilusão: “Mas a vitória fulva esvai-se logo.../E cinzas, cinzas só, em vez de fogo.../Onde existo que não existo em mim?”. O poema “intersonho” que faz parte de “Dispersão” acentua a intermitência da alma: “Numa incerta melodia onde a minha alma se esconde.”.O poema “Álcool” exprime a dualidade e oscilação na procura de caminhos: “Quero reunir-me e todo me dissipo/ Luto, estrebucho..Em vão! Silvo para além.../Corro em volta de mim sem me encontrar”(Álcool, ib., 59).A tônica central é a dispersão. Traduzida por uma palavra mais em voga em psicologia, diríamos fragmentação. Tudo está sintetizado no poema “Dispersão”, datado de maio de 1913, que passa a conter a idéia-chefe de toda a fragmentação: “Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto/ E hoje quando me sinto/ É com saudades de mim!” (Dispersão, ib., 67). Há no poema um descompasso ou uma quebra de confiança entre o ideal e a vida real. Estamos analisando poemas de um jovem poeta de 23 anos, bloqueado existencialmente: “Para mim é sempre ontem/ Não tenho amanhã nem hoje”(Ib.67). “Sou estrela ébria que perdeu os céus (Estátua falsa, Ib. 64). No traço trágico da poesia autobiográfica está sempre presente a carência afetiva. O poema ”Como eu não possuo” é revelador: “Olho em volta de mim. Todos possuem/ Um afeto, um sorriso ou um abraço/ Só para mim as ânsias se diluem/ E não possuo nem mesmo quando enlaço” (Ib., 67)[...]”Castrado de alma e sem saber fixar-me/ Tarde a tarde na minha dor me afundo/ serei um emigrado dentro do mundo/ que nem na minha dor posso encontrar-me?
/Como eu desejo a que ali vai na rua/ tão ágil, tão agreste, tão de amor.../Como eu quisera emaranhá-la nua/ Bebê-la em espasmos de harmonia e cor/ Desejo errado... Se a tivera um dia/ Toda sem véus, a carne estilizada/ Sob o meu corpo a carne transbordada/ Nem mesmo assim- ó ânsia –eu a teria.../Eu vibraria só agonizante/ Sobre o seu corpo de êxtases dourados/ Se fosse aqueles seios transtornados/ Se fosse aquele sexo aglutinante.../De embate ao meu amor todo me ruo/ E vejo-me em destroço até vencendo/ É que eu teria só, sentindo e sendo/ Aquilo que estrebucho e não possuo./(Ib.,68).
Os primeiros versos do poema “Dispersão”são reveladores: “Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto”. Aprofundando a leitura topamos uma dupla caminhada na alma do poeta: de um lado, a insatisfação do eu e, do outro, os objetivos estéticos. Não há dúvida que os dois objetivos são perseguidos com dedicação, Mas enquanto na parte estética não se manifestam frustrações, contrastivamente são grandes as decepções e frustrações do eu insatisfeito e perdido.
O espírito do sensacionismo e do paulismo atua vivo no coração de vários poemas do livro “Dispersão”. “Partida”, por exemplo parece ser um poema onde a análise existencial se explicita: “Ao ver escoar-se a vida humanamente/ Em suas águas certas eu hesito/ E detenho-me às vezes na torrente/ Das coisas geniais em que medito”. Bem no seu estilo, Sá-Carneiro não busca as coisas fáceis e certinhas, mas sim, por vezes, na torrente a emoção do viver... O idealismo no poema é forte e o ideal pede ao poeta que salte na bruma e corra no azul à busca de beleza... que suba suba além dos céus...que parta sem temor contra a montanha cingido de quimera e de irreal... porque ao artista compete “ suscitar cores endoidecidas/Ser garra imperial enclavinhada/E numa extrema unção de alma ampliada/ viajar outros sentidos, outras vidas” (Poema “Partida”, Ib., 55).
No poema “Dispersão”, o aspecto mais importante a assinalar. é o recurso bem sucedido que o Poeta faz à metáfora do labirinto para designar a problematicidade e a complexidade da interioridade psíquica: “Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto”( Poema Dispersão, Ib., 61). Estes versos sugerem uma “caverna íntima” de grandes segredos e complexidade. No poema “Escavação”(Ib., 57) detectamos uma busca e ânsia de superar o vazio interior. A divagação interior é sua forma de busca e apesar de apelar para uma catábase em profundidade, o poeta continua se achando vazio: “Numa ânsia de ter alguma coisa/ Divago por mim mesmo a procurar/ Desço-me todo em vão sem nada achar/ E minha alma perdida não repousa” (Ib., 57). Parece que nesta insatisfação e busca há a novidade interessante de o poeta não se entregar: e quando a busca se traduz em nada, a saída é “criar”!!! “Nada tendo decido-me a criar” (Ib., 57). É algo de interessante e surpreendente numa psique labiríntica que a todo o instante se mostra desencantada e frustrada encontrarmos essa decisão de “criar”. Isso mostra que a continuada catábase termina por dar seus efeitos. Primeiro, a vantagem de descer até ao fundo da alma, refletir, pensar, dialogar, intuir, tentar uma saída! Isto porque da análise nasce a luz e o conhecimento. E porque o contato iluminador da catábase pode gerar essa vontade e capacidade de criar. “Criar é preciso”. Quando o pensamento não dá soluções para o homem, o sonho pode tornar-se num alargamento psicológico necessário ao reajuste da alma consigo própria. Sá-Carneiro realimenta a realidade da psique como labirinto. O labirinto proporciona todo o movimento da descida, da análise de sentimentos favoráveis e contrários,de iluminação, de iniciação e de regresso. A catábase pode ser em si uma etapa de uma anábase bem sucedida na reentrada do mundo catabático para o mundo real. Horcus de múltiplas experiências noturnas e trágicas, o labirinto pode ser um símbolo de auto-análise e de auto-conhecimento.
Entretanto, o que mais avulta em “Dispersão” é o problematismo e a fragmentariedade que apresenta níveis de pouca acessibilidade à reunificação do eu. Fernando Pessoa com os heterônimos e Mário de Sá Carneiro com sua dialética psíquica fragmentarista situam-se dentro do mesmo parâmetro. Há neles uma mensagem para as mentalidades preconceituosas e simplistas. A realidade psíquica diz claramente que o mundo da alma não é linear e sim complexo e que o Poeta falando como representante dessa psique nem sempre carrega no poema as “verdades lineares” de muitos de seus leitores.
Ocorre lembrar que o termo “dispersão” tem duas amplitudes em Sá Carneiro. A primeira delas é a dispersão parcial. Ela se manifesta no eu labiríntico e problemático e na dissociação entre sujeito e ação, entre vivência e razão, entre vida real e sonho, entre tempos psicológicos vários. A segunda é a dispersão total representada pela morte: “E sinto que a morte, minha dispersão total/ Existe lá longe ao norte/ Numa grande capital”( Poema dispersão, Ib. 62). Toda esta problemática é reforçada num poema de grande fundo dramático que se chama “Quase”(Ib., 65): “Quase o amor, quase o triunfo e a chama/ Quase o princípio e o fim – quase a expansão/ Mas na minha alma tudo se derrama.../Entanto nada foi só ilusão!/ De tudo houve um começo...e tudo errou.../ -Ai a dor de ser quase, dor sem fim...-/Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim/ Asa que se elançou mas não voou.../”(65)[...] “Num ímpeto difuso de quebranto/ tudo encetei e nada possuí.../Hoje de mim só resta o desencanto/ Das coisas que beijei mas não vivi”(65).
Em síntese, este é o tom insistente da poesia de Sá Carneiro. De grande valor estético, este desencanto traduz em verso linguagens poéticas muito humanas que marcaram a literatura portuguesa do início do século XX.
No plano da dramaticidade, o poema “Estátua falsa” reforça a viva e múltipla fragmentação da alma do Poeta que se diz “estrela ébria que perdeu os céus”: -“Só de ouro falso meus olhos se douram/ Sou esfinge sem mistério no poente/ A tristeza das coisas que não foram/ Na minha alma desceu veladamente”(Ib.,64)”! As metáforas e os símbolos se sucedem e atingem enorme força expressiva. Há uma luta declarada entre luz e sombras, o que é deveras positivo: ”A vida corre sobre mim em guerra”.
No âmago da dramaticidade parece que toda a chave do circuito labiríntico cresce e ganha seu clímax no poema “Como eu não possuo”, que parece ser uma temática central em Mário de Sá Carneiro, a tal ponto, que a mesma irá servir de tese e nervo central da história narrada em “Confissão de Lúcio”:
“Olho em volta de mim! Todos possuem/ Um afeto, um sorriso ou um abraço/ Só para mim as ânsias se diluem/ E não possuo mesmo quando enlaço”(Ib., 67)
Se toda a busca poética encerra um contraste entre as formas materiais e as formas espirituais, o poema “Como eu não possuo” comprova este contraste, sendo importante que o leitor perceba que para Sá-Carneiro, a expressão “possuir”, em sentido total, é a posse espiritual ou anímica, que considera completa. A posse espiritual exprime o momento em que a idéia corresponde à ação ou à materialização das coisas que nos tocam ou nos seduzem.
Senhor de uma grande inteligência e sensibilidade poética e artística, Mário de Sá-Carneiro representa na Literatura Portuguesa, um dos grandes talentos de renovação literária no primeiro quartel do século XX. . Sua curta existência de 26 anos, deixou uma marca de rara percepção literária que Fernando Pessoa soube descobrir e entender e que os críticos literários continuam a prestigiar.

João Ferreira
Brasília/Sobradinho
29 de janeiro de 2008

NOTA
As citações são feitas com base em:
SÁ-CARNEIRO, Mário. Obra Completa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
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