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Ensaios-->Memorial do Comunismo: O Arquipélago Gulag -- 27/06/2007 - 16:20 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Arquipélago Gulag

Félix Maier

A publicação do livro “Arquipélago Gulag” (1) em Paris, em 1973, no original russo, comoveu a opinião pública mundial – exceto a opinião dos comunistas, de além e aquém-mar, obviamente. O livro de Alexandre Soljenítsin foi documentado com 227 relatos, que cobrem o período de 1918 a 1956, e trata da imensa rede de campos de trabalhos forçados soviéticos, por onde passaram cerca de 66 milhões de pessoas.

Todo esse sistema macabro era administrado pelo departamento Gulag (Administração Geral dos Campos) e seus prisioneiros viviam em numerosas “ilhas” que formavam um “arquipélago”, na grandiosa licença literária de Soljenítsin. O autor sustenta que as atrocidades e perseguições do Estado soviético começaram em 1918, não sendo uma criação arbitrária de Stalin, mas de Lênin – sim, Lênin, admirado por nosso ministro da Justiça, Tarso Genro, na juventude.

Soljenítsin, capitão de Artilharia do Exército russo em combate na linha de frente contra os nazistas, na II Guerra Mundial, foi detido no front de Koenigsberg em janeiro de 1945 e condenado, sem julgamento, a 8 anos de prisão e mais 3 anos de exílio no desterro do Gulag. A acusação baseou-se em carta enviada a um amigo, em que criticava os privilégios no Exército e a conduta de Stálin em relação à guerra. Foi expulso do Sindicato dos Escritores, viveu 6 anos como escritor clandestino e em 1970 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Após a publicação do “Arquipélago Gulag”, em 1973, Soljenítsin foi levado de avião, sob protesto, para a Alemanha Ocidental, e em 1974 escolheu a Suíça para morar. Além do 'Arquipélago Gulag', outros livros do escritor foram publicados no Ocidente, a exemplo de 'Pavilhão dos cancerosos' (durante um ano, Soljenítsin ficou internado num hospital para tratamento de câncer) e 'Agosto 1914', que circularam na URSS em edições clandestinas, ou samizdat (2).

“Numa inesperada viragem da nossa história, uma parte insignificante desse arquipélago foi dada a conhecer ao mundo. Mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora conciliadoramente as palmas e dizem: ‘Não se deve... não se deve remexer no passado!... Aquele que recorda o passado perde um olho!’ E, no entanto, o provérbio acrescenta: ‘Aquele que o esquece perde os dois’.
(...) Os onze anos que ali passei, incorporei-os não como uma desonra, nem como um sono maldito, mas quase amando aquele mundo monstruoso. E agora, tendo-me tornado por um feliz reverso a pessoa a quem foram confiadas as inúmeras cartas e relatos tardios, talvez eu saiba transmitir algo dos seus ossos e da sua carne e, para além disso, da carne ainda viva dos tritões ainda hoje vivos” (pg. 7-8).

“Quando comecei a escrever este livro, no ano de 1958, não tinha conhecimento de quaisquer memórias ou produções literárias sobre os campos de concentração. Nos anos de trabalho que decorreram até 1967, fui tomando conhecimento, gradualmente, das ‘Narrativas de Kolimá’, de Varlam Chalámov, e das memórias de D. Vitkóvski, E. Guinsburg e O. Adámova-Sliozberg, a cujos trabalhos me refiro no decorrer da exposição como fatos literários, conhecidos por todos (assim há de ser, no final de contas!).
A despeito das suas intenções e em contradição com a sua vontade, forneceram inapreciável material para o presente livro, conservando muitos fatos importantes e até números, bem como o próprio ar que respiraram: M. I. Sudrab-Látsis, N. V. Krilenko, durante muitos anos o principal procurador do Estado; e o seu sucessor A. I. Vichinski, com os seus juristas auxiliares, entre os quais não se pode deixar de destacar I. L. Averbach.
Também proporcionaram documentos para este livro trinta e seis escritores soviéticos, encabeçados por Máximo Gorki, autores de um vergonhoso livro sobre o canal do mar Branco, os primeiros que na literatura russa enalteceram o trabalho forçado” (pg. 11-12).

Segundo Soljenítsin, “Kolimá era a maior e a mais célebre ilha, o pólo da ferocidade desse assombroso país do Gulag, desgarrado pela geografia num arquipélago, mas psicologicamente ligado ao continente, a esse quase invisível, quase intangível país habitado pelo povo zek” (pg. 7).

Preso na Lubianka (3), Soljenítsin viu seu romance virar fuligem, como nos conta:

'O principal era que o meu preguiçoso comissário não se dispusesse a examinar aquela maldita carga que eu trazia naquela maldita mala - os apontamentos de um Diário de guerra', escrito com um lápis rijo, muito fino, e com letra miúda, e que começavam já a apagar-se em alguns lugares. Estes apontamentos traduziam as minhas pretensões de me tornar escritor. Eu não confiava na força da nossa admirável memória e durante os anos de guerra procurava escrever tudo o que via (isso era ainda o menor mal) e tudo o que ouvia das pessoas. Mas os relatos mais naturais do mundo na primeira linha de fogo, aqui, na retaguarda, pareciam sediciosos, e cheiravam a palha úmida aos meus camaradas da frente. E só para que o comissário não fosse transpirar sobre o meu Diário de guerra e não arrancasse dele a fibra da raça livre da frente, eu me arrependia o mais que podia e além do necessário, começando a tomar consciência de todos os meus erros políticos. Extenuava-me neste caminhar pelo fio da faca, até que percebi que não traziam ninguém para acareação, e que começavam a aparecer sintomas claros do fim da instrução do processo. Até que, no quarto mês, todos os cadernos do meu Diário de guerra foram lançados na boca infernal do fogão da Lubianka, espalhando a casca vermelha de mais um romance morto na Rússia e deixando as borboletas negras da fuligem voar pela mais alta das chaminés.

À sombra desta chaminé passeávamos nós, numa caixa de cimento, no telhado da grande Lubianka, ao nível do sexto andar. As paredes subiam ainda até a altura de três homens. Com os ouvidos escutávamos Moscou, as buzinas dos automóveis respondendo umas às outras. Mas víamos unicamente a chaminé, a sentinela de atalaia no sétimo andar e esse infeliz pedaço do céu de Deus ao qual era dado estender-se sobre a Lubianka.

Oh, aquela fuligem! Caía e caía sem cessar, nesse 1o. de maio do após-guerra. E era tanta, tanta, durante cada um dos nossos passeios, que imaginávamos que a Lubianka queimava arquivos de tempos remotos. O meu diário perdido não passou da espiral de um minuto no meio daquela fuligem' (pg. 141-142).


Abaixo, alguns trechos de “Arquipélago Gulag”:


Está preso!

“O universo tem tantos centros quantos os seres vivos que nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo, e ele se desmorona quando alguém nos sussurra ao ouvido: ‘Está preso!’
(...) A detenção é isto: o brusco som noturno da campainha ou a brutal pancada na porta; a brava investida dos briosos agentes com as botas sujas; a assustada testemunha que os segue. (E para que essa testemunha? As vítimas não ousam pensar nessa questão, os agentes não a concebem, mas são assim as instruções, e é preciso que a testemunha esteja sentada toda a noite e pela manhã ponha a sua assinatura. Para as testemunhas que levantaram da cama isso é também uma tortura: noite após noite seguem ajudando a prender os vizinhos e conhecidos.
(...) Nada existe de sagrado na busca do domicílio! Quando prenderam o maquinista ferroviário Inóchin, encontrava-se no quarto o corpo de uma criança que acabara de morrer. Os ‘juristas’ tiraram o corpo da criança e o revistaram também. Eles dão safanões nos doentes de cama e tiram as ligaduras que lhes cobrem as feridas.
E bem pode acontecer que, no prazo de meio ano, o próprio preso responda ou eles digam: ‘Não tem direito a cartas’. E isso significa desde logo que é para sempre. ‘Não tem direito a cartas’ é quase certo querer dizer: ‘Foi fuzilado’ ” (pg. 15 a 18).

“As prisões políticas no nosso país singularizaram-se durante décadas precisamente pelo fato de serem detidas pessoas em nada culpadas e, por isso mesmo, de modo nenhum preparadas para oferecer resistência. (...) Não é qualquer pessoa que, como Vânia Levitski, compreende logo aos catorze anos de idade: ‘Toda pessoa honrada deve passar pelo cárcere. Agora está preso o meu pai, e, quando eu crescer, prender-me-ão a mim’ (Ele foi preso aos vinte e três anos.)” (pg. 22, 23 e 24).

“Em 1921, quando prenderam a jovem Evguênia Doiarenko, de dezenove anos, e três jovens tchequistas revolveram a cama dela, a sua cômoda, ela permaneceu tranqüila: ‘Não há nada, nada encontrarão’. E, de repente, eles tocaram no seu diário íntimo, que a moça nem à mãe podia mostrar: a leitura dessas linhas por rapazes estranhos e hostis afetou-a mais do toda a Lubianka com as suas grades e celas” (pg. 25).

“ ‘A resistência! Onde esteve a vossa resistência?’ é a recriminação que fazem hoje os que sofreram àqueles que escaparam à repressão. Sim, a resistência devia ter começado a partir daqui, do início da detenção. Mas não teve começo” (pg. 26).


Morte aos espiões

“Onze dias após a minha detenção, três parasitas da contra-espionagem Smerch (abreviatura de ‘Morte aos Espiões’), mais preocupados com quatro pesadas malas, cheias na sua maior parte de troféus de guerra, do que comigo (durante o longo caminho tinham já ganho confiança em mim), conduziram-me à estação da Bielo-Rússia, em Moscou. Eles tinham a denominação de ‘escolta especial’, mas na realidade as espingardas automáticas lhes causavam estorvo para arrastar as quatro pesadíssimas malas com objetos de valor roubados na Alemanha por eles e pelos seus chefes da contra-espionagem da Segunda Frende da Bielo-Rússia. Sob o pretexto de me servirem de escolta, levaram esses objetos para as famílias que tinham ficado na pátria. Eu transportava, sem vontade nenhuma, a quinta mala, em que iam os meus diários e os meus escritos: as provas contra mim.
Nenhum dos três conhecia a cidade, e era eu que devia escolher o caminho mais curto para o cárcere, era eu mesmo que devia conduzi-los à Lubianka, em que eles nunca tinham estado (e eu a confundia com o Ministério dos Negócios Estrangeiros” (pg. 27).


Por que permaneço calado?

“Eu guardei silêncio na cidade polaca de Bródnitsa (talvez ali não compreendessem o russo). Não proferi palavra nas ruas de Bielostok (podia ser que isso não interessasse aos polacos). Não soltei nem um som na estação de Volkóvisk (havia lá pouca gente). Como se nada sucedesse, caminhei acompanhado desses bandoleiros pela estação de Minsk (mas a estação estava ainda em ruínas). E agora levo atrás de mim esses agentes da contra-espionagem, sob a cúpula branca do vestíbulo superior da estação do metrô radial da Bielo-Rússia inundada de luz elétrica, e subindo de baixo, ao nosso encontro, vêm as duas esteiras paralelas das escadas rolantes, repletas de moscovitas. Parece que todos olham para mim! Numa fila interminável, emergindo da profundidade do desconhecido, deslizam, sob a cúpula resplandecente, na minha direção, como se solicitassem uma palavra de verdade. Por que é que então eu permaneço calado?!...
(...) Mas eu, eu guardo silêncio ainda por outro motivo: porque esses moscovitas que cobrem as duas escadas rolantes são poucos para mim – poucos! O meu clamor seria ali ouvido por umas duzentas ou quatrocentas pessoas – e os restantes duzentos milhões? Eu sonho confusamente em que haverei alguma vez de gritar a duzentos milhões...
Por enquanto, não abro a boca e a escada rolante arrasta-me irreprimivelmente para o inferno.
E na estação de Okhótni-Riad hei de guardar ainda silênciao.
Não gritarei perto do ‘Metropol’.
Não agitarei os braços na Praça da Lubianka, no Gólgota...” (pg. 28-29).


A detenção

“Eu tive, certamente, a espécie mais fácil de detenção que se possa imaginar. Ela não me arrancou dos braços de familiares, não me separou da vida doméstica que nos é tão grata. Num cinzento dia de fevereiro europeu arrebataram-me do nosso estreito corredor que dá para o mar Báltico, onde cercávamos ou íamos cercados pelos alemães, e fui apenas privado da divisão a que estava habituado e do espetáculo dos três últimos meses de guerra.
O chefe da brigada chamou-me ao posto de comando, pediu-me sem eu saber por que a pistola, entreguei-a sem a mínima suspeita – e de repente, do meio dos oficiais imóveis e tensos, saltaram dois agentes da contra-espionagem, atravessando o quarto em dois pulos, agarrando-me com as quatro mãos a estrela do boné, os galões, o cinturão e a bolsa de campanha, e gritando em tom dramático:
- Está preso!!!
Todo vermelho e inerte dos pés à cabeça, nada mais de razoável achei para perguntar do que:
- Eu! Por quê?!... “(pg. 29).


Começa a “canalização” para o Gulag

“A torrente de 37 e 38 não foi a única, nem sequer a principal, mas só talvez uma das três mais importantes que invadiram os tenebrosos e fedorentos tubos da nossa canalização carcerária.
Antes dela tinha havido a torrente dos anos 29 e 30, semelhante à do bom rio Obi, arrastando para a tundra e a taiga a pequena quantidade de quinze milhões de mujiques (se não foram mais). Mas os mujiques são pessoas privados do dom da palavra e da escrita, não redigiram protestos nem memórias. Em relação a eles, os juízes de instrução não trabalharam afanosamente noites e noites, com eles não gastaram processos verbais: bastaram as resoluções dos sovietes da aldeia. (...)
E depois houve a torrente dos anos de 1944 e 1946, semelhante à do bom rio Ienissei: pelos seus canos de esgoto foram expulsas nações inteiras, e ainda milhões e milhões de homens que ficaram (por nossa culpa!) prisioneiros na Alemanha e que regressaram depois. (...)
Entretanto, a torrente do ano 37 atingiu e levou ao arquipélago pessoas de alta posição, com um passado no Partido, com cultura, e em torno delas houve inúmeros feridos que ficaram nas cidades, muitos deles sabendo manejar uma pena, e todos agora juntos escrevem, falam e recordam o ano trigésimo sétimo. O Volga da amargura popular.
Mas ide falar aos tártaros da Criméia, aos calmucos ou aos tchetchênios (*) do ‘ano trigésimo sétimo’, e eles limitar-se-ão a encolher os ombros. E a Leningrado, o que é que lhe diz o ano 37, quando havia antes o ano 35? Para os reincidentes ou para os habitantes da região do Báltico não foram mais penosos os anos 48-49? E se os guardiães do estilo e da geografia me censurarem por ter ainda omitido na Rússia alguns rios, assim como algumas torrentes não mencionadas, que eles me dêem papel! Outras torrentes formariam outros tantos rios.
É sabido que qualquer órgão que não se exercita se atrofia.
Assim, pois, se soubermos que os ‘Órgãos’ (é com esta nojenta palavra que eles se denominam a si próprios) celebrados e exaltados deviam ser mantidos bem vivos, para que não perecesse um só tentáculo, mas ao contrário crescesse e se fortalecesse a sua musculatura, é fácil adivinhar que eles se exercitavam permanentemente.
(*) Povos sacrificados em massa em 1944-45, por pretensa ‘colaboração’ com os alemães (N. do T.)” (pg. 35-36).


Fuzilamento por listas

“No mesmo ano de 1919, após ter-se lançado uma ampla rede em torno de verdadeiras e falsas conspirações (a do Centro Nacional, a do Complô Militar), em Moscou, em Petrogrado e noutras cidades, fuzilava-se por listas, isto é, apanhavam-se pessoas em liberdade para um fuzilamento imediato, e varria-se pura e simplesmente para as prisões a intelectualidade, considerada próxima dos cadetes. E que significava ‘próxima dos cadetes’? Não monárquica e não socialista, ou seja: todos os círculos científicos, todos os universitários, todos os valores artísticos e literários, todo o corpo de engenharia. À exceção dos escritores extremistas, dos teólogos e dos teóricos do socialismo, toda a restante intelectualidade (uns oitenta por cento dela) era ‘próxima dos cadetes’.
(...)
Se, no verão de 1920, quando a guerra civil ainda não terminara completamente em todos os lugares, mas já em todo o caso no Don, foi enviado desta região de Rostov e de Novotcherkassk um elevado número de oficiais Arkhanguelsk, e dali em barcas a Solóvki (diz-se que algumas delas foram afundadas no mar Branco, assim como aconteceu também no Cáspio), deverá relacionar-se tudo isso com a guerra civil ou com o início da construção pacífica? Se, nesse mesmo ano, em Novotcherkassk, foi fuzilada uma mulher de um oficial que estava grávida, por esconder o marido, em que categoria incluir isso?” (pg. 42-43).


Pior que o czarismo

“Que inteligência tão previdente era essa que planejou tudo isso? Que mãos tão cuidadosas eram essas que, sem perder um instante, manipulavam as fichas? Aquele que tinha cumprido três anos era tirado de um monte dessas fichas e colocado suavemente noutro. Aquele que tinha estado numa central era enviado para o desterro (e o mais longe possível). Aquele que já estava no desterro era desterrado para outro lugar e depois novamente transferido para uma central (já outra). (...) E assim, imperceptível e inflexivelmente, se preparava a destruição daqueles que noutros tempos se enfureciam nos comícios de estudantes; daqueles que com orgulho faziam retinir os grilhões czaristas (*).

(*) Em 29 de junho de 1921, Korolenko escrevia a Gorki: ‘A história registrará, um dia, que a revolução bolchevique reprimiu os revolucionários e os socialistas autênticos empregando os mesmos métodos que o czarismo, isto é, métodos puramente policiais’. (N. do A.)” pg. 46).


Igreja massacrada na Rússia

“N primavera de 1922, a Comissão Extraordinária para a Luta contra a Contra-Revolução e a Especulação, que acabava de ser cognominada GPU, decidiu intervir nos assuntos religiosos. Faltava ainda levar a cabo a ‘revolução eclesiástica’: substituir a hierarquia e colocar em seu lugar outra que estendesse uma só orelha para céu e a outra para a Lubianka. Os clérigos da Igreja Viva (*) tinham prometido que seria assim, mas sem ajuda exterior eles não podiam dominar o aparelho religioso. Por essa razão foi preso o Patriarca Tíkhon e montaram-se dois ruidosos processos, seguidos de fuzilamentos: em Moscou, o dos propagadores do apelo do patriarca; em Petrogrado, o do Metropolita Veniámin, que punha obstáculos à transmissão do poder religioso aos partidários da Igreja Viva. Nas províncias e distritos, aqui e acolá, foram presos os metropolistas e os bispos, e logo a seguir aos peixes gordos chegou como sempre a vez dos miúdos: os arciprestes, monges, diáconos, acerca dos quais já a imprensa nada noticiava. Todos aqueles que não prestaram juramento de fidelidade ao impetuoso movimento renovador da Igreja Viva eram detidos.
Os sacerdotes eram parte obrigatória de todas as levas anuais de prisioneiros, e os seus cabelos grisalhos brilhavam, de quando em quando, no caminho rumo a Solóvki.
Nos primeiros anos da década de 20 caíram também seitas de teosofistas, místicos, espiritistas (um grupo como o do Conde Pahlen fazia relatórios das suas conversas com os espíritos), sociedades religiosas e filosóficas do círculo de Berdiaiev. Entrementes, foram presos e desbaratados os ‘católicos orientais’ (discípulos de Vladimir Solóviov), assim como o grupo de A. I. Abrikóssova. Quanto aos simples católicos e aos sacerdotes polacos, entregavam-se à prisão eles mesmos.
No entanto, o extermínio radical da religião no nosso país, ao longo dos anos 20 e 3-, tendo sido um dos objetivos importantes do grupo GPU-NKVD, só poderia ser conseguido com a detenção em massa dos próprios ortodoxos. Apanhavam-se, encarceravam-se e deportavam-se de modo intensivo os frades e freiras, que tanto enegreciam a vida russa. Detinham-se e julgavam-se os círculos de fiéis particularmente ativos. Estes círculos ampliavam-se sempre e logo eram varridos os crentes, que eram pessoas idosas, sobretudo mulheres, mais obstinadas na sua fé, às quais, durante os longos anos de deportação e de campos de concentração, se passou também a chamar ‘freiras’.
Considerava-se, é certo, que todos eram presos e julgados, ao que parece, não pelo seu credo, mas por manifestarem convicções em voz alta e por darem uma educação às crianças nesse espírito. Como escreveu Tânia Khodkévitch:
Podes orar livremente
Mas... de modo que só
Deus te escute.
(Por este verso ela foi condenada a dez anos.) As pessoas convictas de possuírem a verdade espiritual deveriam oculta-la dos... seus filhos!!! A educação religiosa das crianças, nos anos 20, passou a ser qualificada como um delito, abrangido pelo artigo 58-10, isto é, como agitação contra-revolucionária! É certo que no tribunal havia ainda a possibilidade de abjurar da religião. Embora não fosse freqüente, casos havia em que o pai abjurava e permanecia para criar os filhos, enquanto a mãe ia para Solóvki (durante todas estas décadas as mulheres revelaram uma grande firmeza de convicção). Todas as religiosas pegavam ‘dez anos’, que era então a condenação mais longa.
(Ao limpar as grandes cidades para a sociedade pura que se avizinhava, foram misturadas nesses mesmos anos, especialmente em 1927, as freiras com as prostitutas, também enviadas a Solóvki. Às aficionadas à pecadora vida terrena reservava-se uma leve condenação de ‘três anos’. O ambiente das levas, as expedições e a própria Solóvki não as impediam de ganhar a vida na sua alegre profissão, com os chefes e os soldados da escolta, regressando ao cabo de três anos, com as suas pesadas malas, ao ponto de partida. Quanto às ‘religiosas’, era-lhes vedada a possibilidade de um dia regressarem às suas crianças e à sua terra natal”.

(*) A ‘Igreja Viva’, ou ‘Renovada’, foi criada em 1922, em oposição ao Patriarca Tíkhon, defendendo uma colaboração estreita com o poder soviético, sem ter contudo um grande êxito. (N. do T.)” (pg. 47-48).


A culpa é dos engenheiros!

“Sejamos claros: nós nunca depositamos confiança nos engenheiros, esses lacaios dos antigos patrões capitalistas. Desde os primeiros anos da Revolução que os colocamos sob um são controle, submetidos à desconfiança da classe operária. (...) ... mais claro se tornava a natureza sabotadora do velho Corpo de Engenharia, a sua falsidade, astúcia e venalidade. A Sentinela da Revolução franzia mais os sobrolhos e para onde quer que olhasse com os olhos franzidos logo descobria um ninho de sabotagem.
Este trabalho de saneamento pôs-se em marcha no ano de 1927 e logo foi mostrando ao proletariado todas as causas dos nossos fracassos econômicos e das nossas carências. No Comissariado do Povo dos Transportes (dos ferroviários) havia sabotagem: por isso era difícil conseguir passagens nos trens e se sucediam as interrupções na distribuição de mercadorias. Na União Estatal das Centrais Elétricas de Moscou havia sabotagem: por isso se verificavam cortes de luz. Na indústria petrolífera havia sabotagem: por isso não se conseguia querosene. Na indústria têxtil havia sabotagem: por isso as pessoas que trabalhavam não tinham o que vestir. Na indústria do carvão havia sabotagem colossal: por isso gelávamos de frio! Na do metal, na da guerra, na da construção de maquinaria, na da construção de barcos, na química, na do ouro e da platina, na de irrigação – por todo lado havia abscessos purulentos de sabotagem! Por todos os lados surgiam inimigos com réguas de logaritmos! (...) Soube-se dos casos de paltchinski, de Von Mekk, de Vilitchko (*) e de tantos outros anônimos. (...) E que refinados malfeitores eram esses velhos engenheiros, com que diversidade de manhas satânicas sabiam sabotar! Nikolai Karlóvitch von Mekk, do Comissariado do Povo dos Transportes, fingia-se muito devotado à construção da nossa economia, falando longa e animadamente acerca dos problemas econômicos da construção do socialismo e gostando de dar conselhos. O pior dos seus conselhos foi este: aumentar as composições de mercadorias, não temer que fossem muito carregadas. Por intervenção da GPU, Von Mekk foi desmascarado (e fuzilado), pois visava ao desgaste das linhas férreas, dos vagões e das locomotivas, de modo a deixar a República, em caso de intervenção, sem estradas de ferro! Entretanto, passado pouco tempo, quando o novo comissário do povo dos Transportes, o Camarada Kaganóvitch, decidiu precisamente autorizar o carregamento das composições de mercadorias com pesadas cargas, até duas ou três vezes mais pesadas (tendo por essa descoberta, ele e outros dirigentes, recebido a Ordem de Lênin), os maldosos engenheiros intervieram, agora já no papel de ‘limitadores’ (clamavam que isso era demasiado, que desgastava ruinosamente o material rolante, e foram justamente fuzilados pela sua falta de confiança nas possibilidades dos transportes socialistas).

(*) A. F. Vielitchko, oficial engenheiro, antigo professor da Academia Militar, e general-chefe do Ministério da Guerra czarista, onde dirigia a administração dos transportes. Foi fuzilado! Ah! Quanta falta nos fez em 1941! (N. do A.) (pg. 54-55).


Depois dos engenheiros, a culpa é das Minas e da Indústria

“Em 1928 tem lugar em Moscou o sensacional Processo Judicial das Minas. Sensacional pela publicidade que lhe é dada pelas estonteantes confissões e pela autoflagelação dos acusados (embora ainda não todos). Ao cabo de dois anos, em setembro de 1930, são julgados com enorme estrépito os ‘organizadores da fome’ (São eles! São eles! Ei-los!): quarenta e oito sabotadores da indústria alimentícia. Em fins de 1930 realiza-se, mais sensacionalmente ainda, e já impecavelmente ensaiado, o julgamento do Partido Industrial: aqui, todos os acusados, do primeiro ao último, lançam sobre si mesmos qualquer absurda abjeção, e eis que, perante os olhos dos trabalhadores, como um monumento cujo véu caiu, se eleva a maior e mais engenhosa construção de todas as sabotagens jamais descobertas, atribuídas numa diabólica ligação de Miliúkov, Riabúchinski, Deterding e Poincaré. (...)
A primeira prova foi tirada por Stálin a propósito dos ‘organizadores da fome’ – e como é que essa prova não seria concludente, quando todos passavem fome na farta Rússia, quando todos perguntavam por toda parte por onde é que extraviara o nosso rico pão? E eis que, em fábricas e instituições, antecipando-se às decisões do tribunal, os operários e os funcionários votam com cólera a favor da pena de morte contra os infames réus. E quando do julgamento do Partido Industrial realizaram-se já comícios e manifestações de toda a população (mobilizando os alunos das escolas). Eram milhões de pessoas marcando passo e gritando atrás das vidaraças do edifício do tribunal: ‘À morte! À morte! À morte!. (...)
Tanto quanto sabemos, a classe operária, de bigodes já brancos, aprovou essas execuções. Também tanto quanto sabemos, desde os fogosos Komsomóis até os chefes do Partido e os chefes dos exércitos lendários, toda a vanguarda foi unânime na aprovação dessas execuções. Célebres revolucionários, teóricos e dirigentes sindicais, sete anos antes da sua morte sem glória, saudavam esse bramido da multidão, sem adivinhar que o seu tempo também estava chegando, que bem depressa os seus nomes seriam arrastados nesse bramido, aos gritos de ‘imundície’ e de ‘canalhas’ ” (pg. 57 a 59).


Depois da Indústria, o culpado é o Partido Camponês do Trabalho

“No Processo do Partido Industrial já havia sido mencionado o Partido Camponês como tendo sido apanhado e sendo bem conhecido. O aparelho de investigação da GPU atuava sem falhas: já ‘milhares’ de acusados tinham ‘confessado’ pertencerem ao Partido Camponês do Trabalho, bem como os seus fins criminosos. Ao todo tinham-se indicado duzentos mil ‘membros’. ‘À cabeça’ do partido destacavam-se o economista agrário A. V. Tchaiánov; o futuro ‘primeiro-ministro’ N. D. Kondrátiev; L. N. Makárov; Aleksi Doiarenko, professor da Academia Timiriázev, futuro ‘ministro da agricultura’ (pg. 60).


A vez dos Nepmen e “a corrida do ouro”

“A partir do ano de 1928 é a hora do ajuste de contas com os restos da burguesia – os ‘nepmen’ (comerciantes e negociantes que desenvolveram a sua atividade durante a Nova Política Econômica). O mais freqüente é que lhes imponham contribuições cada vez mais elevadas e por fim superiores às suas possibilidades, até o momento em que se negam a pagar, sendo logo detidos por insolvência e confiscados os seus bens. (Os pequenos artesãos – barbeiros, alfaiates, consertadores de fogareiros a óleo – apenas são privados da licença.)
No engrossamento da torrente dos ‘nepemen’ há um interesse econômico. O Estado necessita de bens, necessita de ouro, e a Kolimá ainda não existe. Com o ano de 1929 começa a célebre ‘febre do ouro’. Só que a febre ataca não aqueles que o buscam, mas aqueles de quem é extorquido. A particularidade desta nova torrente ‘do ouro’ consiste em que todos esses infelizes não são acusados pela GPU propriamente de nada, estando esta disposta a não envia-los para o país do Gulag, desejando apenas arrancar-lhes o ouro pelo direito do mais forte. É por isso que os cárceres estão repletos e os comissários instrutores extenuados, as expedições, as prisões de trânsito e os campos de concentração recebem um reforço proporcionalmente menor.
Quem é que é preso nesta corrente ‘do ouro’? Todos aqueles que, alguma vez, nos últimos quinze anos, tiveram algum ‘negócio’, comércio, ou trabalharam por sua conta, ‘podendo’ ter guardado ouro, segundo pensa a GPU. Mas, justamente, acontecia com muita freqüência que eles não tinham ouro algum: os seus bens, móveis e imóveis, tudo se derretera, tudo fora confiscado pela Revolução, nada mais restando. Com enorme esperança são detidos, naturalmente, os joalheiros e relojoeiros. Através da denúncia, pode-se ter conhecimento da existência de ouro nas mãos mais inesperadas: um operário típico, não se sabe como, conseguiu arranjar e guardar sessenta moedas de ouro de cinco rublos cada, dos tempos czaristas; o conhecido guerrilheiro siberiano Muraviov chegou a Odessa trazendo consigo uma bolsinha de ouro; os cocheiros de cavalos tártaros de Leningrado, todos eles têm ouro escondido. Se isso é verdade ou não, só é possível esclarece-lo na prisão. E já não pode servir de atenuante nem a condição de operário, nem os méritos revolucionários daquele sobre quem caiu a sombra da denúncia do ouro. Todos são detidos, metidos em celas da GPU, em quantidades que até hoje pareceriam impossíveis – mas assim é melhor, mais depressa o hão de ‘dar’! Chega-se até à promiscuidade de pôr mulheres e homens nas mesmas celas, fazendo as necessidades uns diante dos outros num balde!
(...) Um desses cocheiros tártaros resistiu a todas as torturas: ‘Não tenho ouro!’ Então prenderam a mulher e torturaram-na, mas o tártaro insistia na sua declaração: ‘Não tenho ouro!’ Prenderam a filha: o tártaro não resistiu e deu cem mil rublos. Então libertaram a família e infligiram-lhe uma condenação. As mais grosseiras aventuras da literatura policial e das operações de bandoleiros foram levadas à prática na escala de um grande Estado” (pg. 62 a 64).


O passaporte interior

“A introdução do sistema de passaporte interior, no limiar dos anos 30 (*), trouxe consideráveis reforços aos campos de concentração. Tal como Pedro I simplificou a estrutura da população, varrendo todas as frinchas e interstícios entre as categorias sociais, assim procedeu o nosso sistema socialista do passaporte: ele varreu precisamente os insetos intermediários (**), atingindo a parte da população mais astuciosa, sem domicílio e sem base de apoio. E de início as pessoas cometeram muitos erros com esses passaportes: aqueles que não registravam nem notificavam a sua mudança de domicílio iam parar no arquipélago, ainda que fosse por apenas um ano.

(*) Para fixar residência os soviéticos devem obter a chamada propiska (autorização policial). E, para mudar de residência, têm de pedir a vipiska (igualmente uma autorização da polícia). Com o passaporte ‘interior’, os soviéticos podem viajar por todo o país, mas ao chegar a qualquer localidade, inclusive de férias, devem comunicar o fato, obrigatoriamente, no prazo de vinte e quatro horas, à polícia local. Por essa permanência onde não têm residência fixa, pagam um tanto em dinheiro. (N. do T.).

(**) Alusão irônica e metafórica à definição leninista de intelectuais como ‘classe intermediária’, ‘sem personalidade econômica’. (N. do T.)” (pg. 64).


A torrente dos kulaks (4) e dos cortadores de espigas

“Assim iam borbulhando e manando as torrentes, mas por cima de todas elas rolou e precipitou-se nos anos de 1929-30 essa leva de milhões e milhões de ‘deskulakizados’. Como era desmedidamente grande, não podia conter-se sequer na já desenvolvida rede de cárceres (que, além disso, estava superlotada com a torrente do ‘ouro’), mas contornou-a, indo parar imediatamente nos campos de trânsito, nas expedições de prisioneiros, no país do Gulag. Desbordando de uma só vez com sua enchente, essa torrente (este oceano!) extravasava para lá dos limites de tudo o que se pode permitir um sistema judiciário e carcerário, mesmo de um Estado enorme. Não havia termos de comparação em toda a história da Rússia. Tratava-se de uma migração de povo de uma catástrofe étnica. Mas os canais da GPU-Gulag estavam tão judiciosamente traçados que as cidades nada teriam notado, se não tivessem estremecido com uma estranha fome de três anos, uma fome sem seca e sem guerra.
Esta torrente diferenciava-se ainda de todas as precedentes pelo fato de que neste caso não havia demasiadas preocupações em agarrar primeiro o chefe de família e ver depois o que se havia de fazer ao resto da prole. Pelo contrário, aqui não se reduziam num ápice a cinzas senão lares completos, não se agarravam senão famílias inteiras e valava-se mesmo zelosamente para que nenhuma das crianças de catorze, de dez ou de seis anos escapasse: todos deviam ir para um mesmo local, a fim de conhecerem uma exterminação comum. (Esta foi a primeira experiência deste tipo em toda a história moderna. Hitler repetiu-a depois com os judeus e outra vez Stálin com as nações infiéis e suspeitas.)
Esta torrente englobava só uma parte insignificante daqueles kulaks cujo nome foi utilizado para desviar a atenção. Um russo chama kulak ao mesquinho e desonesto traficante rural, que enriquece não com o seu trabalho, mas através da usura e do comércio. Em cada localidade, até a Revolução, eles eram casos isolados e a Revolução privou-os em geral do terreno em que podiam exercer a sua atividade. Mas logo depois do ano de 17, por uma transferência de significado, passou-se a designar por kulak (na literatura oficial e de agitação, daqui deslizando para a linguagem usual) todos aqueles que em geral empregavam trabalhadores agrícolas assalariados, mesmo devido a insuficiências temporárias das suas famílias. Não percamos de vista que depois da Revolução era impossível que qualquer trabalho desses não fosse pago na sua justa medida: os interesses dos assalariados eram salvaguardados pelos comitês de camponeses pobres e pelo soviete da aldeia; ai daquele que tentasse lesar a diária de um trabalhador agrícola! O trabalho assalariado, pago com justiça, é permitido ainda hoje no nosso país.
Mas a dilatação do fustigante termo kulak procedeu-se irresistivelmente, e em 1930 designavam-se já através dele todos os camponeses economicamente fortes: e não só fortes quanto à exploração, mas fortes quanto ao trabalho e até simplesmente quanto às suas convicções. O termo kulak era utilizado para quebrantar a força. Recordemo-nos e recobremos os espíritos: tinham decorrido apenas doze anos desde o grande Decreto da Terra, esse mesmo sem o qual o campesinato não teria seguido os bolcheviques nem a Revolução de Outubro teria triunfado. A terra foi distribuída por um certo prazo e por igual. Havia só nove anos que os mujiques tinham regressado do Exército Vermelho e se tinham lançado sobre a terra conquistada. E de repente começou a falar-se de kulaks e de camponeses pobres. De onde provinha isso? Às vezes da composição afortunada ou não da família. Mas não seria, antes de mais nada, da tenacidade e da capacidade de trabalho? E eis que estes mujiques que produziam o pão que a Rússia comia no ano de 1928 foram arremetidos e desarraigados dos seus lugares pelos camponeses fracassados e pelos que chegavam das cidades. Enfurecidos, perdendo todo o conceito de ‘humanidade’ elaborado ao longo de milênios, estes puseram-se a cercar os melhores fazendeiros, juntamente com as suas famílias, tirando-lhes os bens, e lançando-os nus às tundras e às taigas desabitadas do norte.
Esse movimento de massa não podia deixar de se complicar. Era necessário livrar também a aldeia daqueles camponeses que simplesmente não manifestavam desejo de entrar no kolkhoz, que não revelavam inclinação para a vida coletiva, a eles desconhecida, suspeitando (sabemos agora com que fundamento) que ela traria o poder dos preguiçosos, o trabalho compulsivo e a fome. Era necessário desfazer-se também daqueles camponeses (por vezes nada ricos) que, pela sua audácia, força física e espírito de decisão, pelo calor da sua intervenção nas assembléias e pelo seu amor à justiça, gozavam da consideração dos seus conterrâneos, tornando-se, pela sua independência, perigosos para a direção do koklhoz (*). E em cada aldeia havia também aqueles que pessoalmente levantavam estorvos aos ativistas locais. Por ciúmes, inveja ou despeito, era esse o momento mais propício para um ajuste de contas. Para designar todas essas vítimas era necessária uma nova palavra e ela surgiu. Nela já nada havia de ‘social’, nem de econômico, mas soava magnificamente: ‘Você é íntimo dos kulaks’, isto é, ‘considero que você é um auxiliar do inimigo’. E isso basta! Até ao mais andrajoso trabalhador agrícola era inteiramente possível incluí-lo entre os íntimos dos kulaks! (**).
Foi assim que, com duas palavras, foram atingidos todos aqueles que constituíam a essência da aldeia, a sua energia, a sua viva inteligência e capacidade de trabalho, a sua resistência e consciência. Eles foram afastados e a coletivização levada a cabo.
Mas na aldeia coletivizada fluíram também novas torrentes:
- a torrente dos sabotadores da agricultura. Por todos os lados se começaram a descobrir agrônomos sabotadores, que tinham trabalhado toda a vida, até esse ano, honradamente, mas que então faziam crescer premeditadamente nos campos russos ervas nocivas. (Bem entendido, por indicações do Instituto de Moscou, agora completamente desmascarado. Tratava-se precisamente daqueles mesmos duzentos mil membros do Partido Camponês do Trabalho que não foram presos!) Certos agrônomos não cumprem as diretrizes profundamente inteligentes de Lissenko (5) (foi uma torrente assim que no ano de 1931 foi enviado para o Casaquistão o ‘rei’ da batata, Lorch). Outros cumprem-nas com pouca sutileza e revelam com isso a sua estupidez. (Em 1934 os agrônomos de Pskov semearam linho na neve, justamente como tinha ordenado Lissenko. As sementes incharam, cobriram-se de bolor e morreram. Vastos campos permaneceram incultos durante um ano. Lissenko não podia dizer que a neve era kulak, ou que ele próprio era idiota. Acusou os agrônomos de serem kulaks e de terem tergiversado na aplicação da sua tecnologia. E os agrônomos foram levados para a Sibéria. De resto, em quase todas as Estações de Tratores e Máquinas Agrícolas se descobriram sabotadores dos tratores e assim eram explicados os fracassos dos primeiros anos kolkhozianos!);
- a torrente ‘por perdas da colheita’ (mas estas ‘perdas’ eram calculadas relativamente aos números arbitrários estipulados na primavera pela ‘Comissão de Determinação da Colheita’);
- a torrente ‘pelo não cumprimento das obrigações de entrega de cereal ao Estado’ (o Comitê de Zona do Partido comprometeu-se, mas o kolkhoz não cumpriu: prisão com ele!);
- a torrente dos cortadores de espigas. O corte manual noturno de espigas no campo tornou-se um aspecto completamente novo de ocupação agrícola e um tipo inédito de ceifa das searas! Não foi uma torrente nada pequena, muitas foram as dezenas de milhares de camponeses, freqüentemente não homens nem mulheres, mas rapazes e moças, garotos e garotas, que os adultos mandavam pela noite a cortar espigas, porque não tinham esperança de receber do kolkhoz nada pelo seu trabalho diário. Por esta ocupação, amarga e pouco tentadora (nos tempos de servidão os camponeses não chegaram a tal necessidade), os tribunais aplicavam penas pesadas: dez anos por atentado perigoso à propriedade socialista, nos tempos da famosa lei de 7 de agosto de 1932 (em linguagem da prisão, lei de sete do oito).

(*) Este tipo de camponês e o seu destino está retratado de modo imortal por Stepan Tchaussov na novela de S. Zalíguin (N. do A.).

(**) Recordo-me que esta palavra, na nossa juventude, nos parecia inteiramente lógica e nada confusa (N. do A.).
(Pg. 64 a 68).


A torrente continua: Kírov e outros “riachos”

“Pois é! Começou a torrente Kírov, de Leningrado, onde a tensão foi considerada tão grande que se instalaram quartéis-generais da NKVD em cada comitê executivo dos sovietes de bairro, pondo-se em vigor um procedimento judicial ‘mais acelerado’ (anteriormente ele já não primava pela lentidão) e sem direito a apelo (anteriormente tampouco se apelava já da sentença). Calcula-se que uma quarta parte da população de Leningrado foi limpa em 1934-35. Esta apreciação, que a desminta aquele que tem em seu poder os números exatos, e que os forneça. (Aliás, essa torrente não se limitou a Leningrado, repercutindo da forma habitual por todo o país, embora de maneira incoerente: foram despedidos do aparelho aqueles que ainda se mantinham aqui e ali: os filhos de sacerdotes, as mulheres da antiga nobreza e as pessoas que tinham familiares no estrangeiro.)
Nessas espraiadas torrentes, que inundavam tudo, perdiam-se sempre modestos e invariáveis riachos que não se precipitavam com estrépito, mas iam fluindo, fluindo sem fim:
- os austríacos membros do Schutzbund (*) que perderam as lutas de classe em Viena e vieram, para salvar-se, refugiar-se na pátria do proletariado mundial;
- os esperantistas (essa gente nociva era dizimada pro Stálin nos mesmos anos em que Hitler o fazia);
- os fragmentos que restavam da Sociedade Filosófica Independente, dos círculos de filosofia ilegais;
- os professores que discordavam do ensino avançado pelo método das brigadas de laboratórios (em 1933 Natália Ivánovna Bugaienko foi detida pela GPU de Rostov, mas ao fim do terceiro mês de instrução do processo houve uma resolução declarando que este método era vicioso e ela foi libertada);
- os colaboradores da Cruz Vermelha Política, que graças aos esforços de Ekaterina Péchkova (**) ainda defendia o direito à sua existência;
- os montanheses do Cáucaso setentrional, insurgidos em 1935; as nacionalidades continuam a fluir, vindo de um extremo ou outro do país (na construção do canal do Volga publicam-se jornais nacionais em quatro idiomas: tártaro, turcomeno, usbesque e casaque. Há pois quem os leia!);
- e de novo os crentes que não querem trabalhar aos domingos (tinha sido introduzida a semana de cinco dias (***); os kolkhozianos eram sabotadores, ao não trabalharem nos dias de festas religiosas, como estavam habituados nos tempos do trabalho individual);
- ainda sempre os que se negavam a ser informantes da NKVD (aqui eram abrangidos os padres que guardavam o segredo da confissão: os ‘Órgãos’ compreenderam rapidamente quão útil seria para eles saberem o conteúdo das confissões, a única coisa para que servia a religião);
- as seitas religiosas, que são detidas cada vez em maior número;
- e a Grande Paciência dos socialistas continua a mudar as cartas.
Finalmente havia a torrente do Décimo Parágrafo, que não foi mencionada uma só vez, mas que flui constantemente, intitulada aliás KRA (Agitação Contra-Revolucionária), ou ainda ASA (Agitação Anti-Soviética). Talvez seja ela a mais estável de todas, pois não estancou nunca, e nos períodos das outras grandes torrentes, como nos anos 37, 45 ou 49, cresceu mesmo em vagas particularmente caudalosas (****).

(*) Movimento de fevereiro de 1934 (N. do T.)
(**) Esposa de Maxim Gorki (N. do T.)
(***) Era uma semana de cinco dias de trabalho, repousando-se ao sexto, independentemente do dia da semana (N. do T.)
(****) Esta torrente atingia qualquer pessoa em qualquer instante. Mas, para os intelectuais conhecidos, nos anos 30, cozinhava-se às vezes algum delito infamante, como o de homossexual; por exemplo, o Prof. Pletniev, ao ficar a sós com as pacientes, morde-las-ia nos seios. Isto era escrito num jornal central. Que se experimentasse refuta-lo! (N. do A.)”.
(pg. 68 e 69)


O Grande Artigo 58

“Grande, potente, abundante, ramificado, diversificado, devastador, o artigo 58 é um mundo completo, não só na formulação dos seus parágrafos, mas quanto à sua interpretação ampla e dialética.
Quem dentre nós não sofreu na sua carne o seu sempre envolvente abraço? Na realidade, não existe debaixo dos céus infração, intenção, ação ou inação, que não possa ser castigada pela mão de ferro do artigo 58.
Formulá-lo tão amplamente era impossível, mas tornou-se possível interpreta-lo assim amplamente.
O artigo 58 não faz parte, no código, do capítulo respeitante aos delitos políticos e em lugar está escrito que seja ‘político’. Não. Ao lado dos crimes contra a ordem governamental e do banditismo, ele se encontra incluído no capítulo dos ‘crimes contra o Estado’. Assim, o Código Penal começa por se negar a reconhecer que no nosso território haja delinqüentes políticos, estipulando que há unicamente criminosos.
O artigo 58 constava de catorze parágrafos.
Pelo primeiro parágrafo sabemos que se considera como contra-revolucionária qualquer ação (e pelo artigo 6º do Código Penal pode tratar-se de inação) tendente... a debilitar o poder...
‘A partir de uma interpretação ampla resulta que a recusa, num campo de concentração, de ir trabalhar, quando se está faminto e extenuado, tende a debilitar o poder. E isso acarreta fuzilamento. Como o fuzilamento dos que recusavam o trabalho durante a guerra’.
(...) ‘Nós não fazemos diferença entre a intenção e o próprio delito e nisto reside a superioridade da legislação soviética sobre a burguesa(*).

(*) Das prisões às instituições educativas – coletânea do Instituto de Política Penal, redigida sob a direção de Vichinski, Editora Legislação Soviética. Moscou, 1934, página 36. (N. do A.)”.
(pg. 70 e 71).


Prisioneiros soviéticos, ao retornar à pátria, eram fuzilados

“A partir de 1934, quando nos foi devolvido o termo ‘pátria’, foi aqui que foram inseridas as alíneas de traição à pátria: 1-a, 1-b, 1-c, 1-d. Segundo estas alíneas, as ações realizadas em prejuízo do poder militar da União Soviética são castigadas com o fuzilamento (1-b), e só no caso de circunstâncias atenuantes e tratando-se de civis (1-a) com dez anos.
Fazendo uma leitura ampla: quando os nossos soldados, ao constituírem-se prisioneiros (com prejuízo do poder militar!), pegavam só um total de dez anos, isso era um gesto humanitário que ia contra a lei. De acordo com o código stalinista, à medida que regressavam à pátria deveriam ser todos fuzilados


A torrente dos imigrados e a “presunção de espionagem”

“O quarto parágrafo referia-se à ajuda (fantasiosa) prestada à burguesia internacional.
Aparentemente, quem pode ser incluído aqui? Fazendo uma leitura ampla, com a ajuda da consciência revolucionária, encontrava-se facilmente toda uma categoria de pessoas: todos os emigrados que, tendo abandonado o país anteriormente a 1920, ou seja, uns anos antes da redação desse mesmo código, fossem apanhados pelas nossas tropas na Europa ao fim de um quarto de século (1944-45) viram-lhes aplicado o 58-4: dez anos, ou o fuzilamento. Pois que faziam eles no estrangeiro senão prestar ajuda à burguesia mundial? (Outro exemplo dessa ajuda nós já conhecemos: o de um grupo musical dentro da própria URSS>) Podiam também presta-la todos os socialistas-revolucionários, todos os mencheviques (a isso se destinava precisamente o artigo) e, mais tarde, os engenheiros do Plano Estatal e do Conselho Econômico de Toda a União Soviética.
Parágrafo quinto: incitação a que um Estado estrangeiro declare guerra à URSS.
Um caso que se deixou passar em branco: alargar o campo de aplicação deste parágrafo a Stálin e ao seu círculo diplomático e militar, nos anos de 1940-41. A sua cegueira e insensatez foi a isso que conduziram. Quem senão eles arrastou a Rússia para vergonhosas e nunca vistas derrotas, sem comparação com as derrotas da Rússia czarista nos anos de 1904 ou 1915? Derrotas como as que a Rússia não conhecia desde o século XIII (*)?
Foi interpretado com tal amplitude que, se se contassem todos os que por virtude dele foram condenados, seria possível chegar à conclusão de que, nos tempos de Stálin, a subsistência do nosso povo não se apoiava na agricultura, nem na indústria, nem em qualquer outra coisa, senão na espionagem estrangeira, vivendo-se do dinheiro provindo das informações. A espionagem era algo de muito cômodo pela sua simplicidade e compreensível tanto para o delinqüente pouco evoluído como para o jurista culto, o jornalista e a opinião pública (**).
A amplitude da interpretação consistia também em que não se julgava alguém diretamente por espionagem, mas sim por:
PE – presunção de espionagem (ou espionagem não provada, o que dava lugar à aplicação fatal da pena!). E até por: END – espionagem não demonstrada.
Ou seja, por exemplo, o fato de uma amiga de uma amiga da sua mulher mandar fazer um vestido na mesma modista (naturalmente colaboradora da NKVD) que a esposa de um diplomata estrangeiro.
E estas categorias do 58-6, PE (presunção de espionagem) e END (espionagem não demonstrada) eram categorias contagiosas, que exigiam um regime severo, uma vigilância atenta (pois os serviços de informação estrangeiros podiam estender os seus tentáculos aos seu protegido até ao interior do campo de concentração), implicando a proibição da escolta em grupo. Em geral, todos estes artigos-siglas, isto é, não propriamente artigos mas assustadoras combinações de maiúsculas (neste capítulo ainda iremos encontrar outras), arrastavam constantemente consigo um halo de mistério. Era impossível compreender se se tratava de ramificações do artigo 58 ou de algo independente e muito perigoso. Os detidos ao abrigo de artigos-siglas eram mais perseguidos, em muitos campos, do que os do artigo 58”.

(*) Época das invasões mongólicas (N. do T.)
(**) É possível que a mania da espionagem não fosse só uma estreiteza mental de Stálin. Ela tornou-se cômoda para quantos desfrutavam de privilégios. Passou a ser a justificação natural da política do segredo, que já amadurecia, da proibição da informação, do sistema da porta fechada, do passa das datchas vedadas e dos centros secretos de distribuição. O povo não podia penetrar através das defesas blindadas da mania de espionagem, nem observar como a burocracia se arranjava para errar, comer e divertir-se (nota de rodapé)”
(pg. 72 a 74).


O amante assassino era do Partido? Estava frito! Por quê?

“Se o marido matava o amante da sua mulher, e acontecia não ser este do Partido, era uma sorte para o marido, pois aplicava-se-lhe o artigo 136: tratava-se de um criminoso comum, socialmente próximo, e podia ser deixado sem escolta. Mas se o amante fosse do Partido, o marido convertia-se num inimigo do povo e era julgado segundo o artigo 58-8.


Maiakovski canta a Revolução Russa

“E aquele que hoje não canta conosco,
Esse
É contra
Nós!...
(Maiakovski)”
(pg. 76)


Ainda o Artigo 58: por que Stálin também não foi fuzilado?

“O décimo terceiro parágrafo, que pelo visto já tinha perdido há muito o seu objetivo, abrangia os que tinham pertencido ao serviço de informação da Okhrana, polícia secreta czarista (*). Um serviço análogo seria mais tarde considerado, pelo contrário, como de valor patriótico.
O décimo quarto parágrafo punia ‘o não cumprimento consciente de determinadas obrigações ou a negligência premeditada no seu cumprimento’, punição que podia ir, sem dúvida, até o fuzilamento. Resumindo: isso tinha o nome de ‘sabotagem’ ou ‘contra-revolução econômica’.
Delimitar o premeditado e o impremeditado, só o comissário instrutor podia faze-lo, com base no seu sentido revolucionário do direito. Este parágrafo aplicava-se aos camponeses que não entregavam os fornecimentos. Aos kokhozianos que não tinham trabalhado o número suficiente de dias. Aos reclusos dos campos de concentração que não cumpriam a norma de trabalho. E, por tabela, depois da guerra, aos delinqüentes que fugiam dos campos, o que quer dizer que se considerva, por extrapolação, a fuga do delinqüente não como um impulso para a doce liberdade, mas como um atentado ao sistema dos campos de concentração.
Esta era a última vareta do leque do artigo 58 – leque que envolvia dentro de si a existência humana.
Após este exame resumido do grande artigo teremos menos ocasião de nos surpreender, no prosseguimento do livro. Quem diz lei, diz crime.
O aço adamascado do artigo 58, já experimentado em 1927, logo após ter sido forjado, e depois temperado em todas as torrentes da década seguinte, foi de novo aplicado com enorme estrépito e amplitude no ataque movido pela lei contra o povo nos anos 1937-38.

(*) Há fundamentos psicológicos para suspeitar que Stálin cairia também sob a alçada jurídica deste parágrafo do artigo 58. Muitos dos documentos referentes a este tipo de serviços não sobreviveram a fevereiro de 1917 e poucos foram tornados públicos. V. F. Djunkóvski, antigo diretor do departamento da polícia, morto em Kolimá, afirmava que o fogo posto apressadamente aos arquivos da polícia, nos primeiros dias da revolução de fevereiro, se deveu a um impulso unânime de certos revolucionários interessados nisso (N. do A.)”.


Stálin brincalhão...

“No outono, quando para o vigésimo aniversário da Revolução de Outubro se esperava com fé uma grande anistia geral, o brincalhão Stálin acrescentou ao Código Penal duas novas e inauditas penas de quinze e vinte anos (*).
Não há necessidade de repetir aqui, sobre o ano 1937, tudo quanto já foi amplamente escrito, e será ainda repetido inúmeras vezes: assestou-se um golpe demolidor nos escalões superiores do Partido, da administração soviética, do comando militar e das próprias GPU-NKVD (**). É duvidoso que tenha havido alguma região em que se conservasse o primeiro-secretário do Comitê do Partido ou o presidente do Comitê Executivo dos Sovietes. Stálin escolheu outros que lhe eram mais convenientes.
Olga Tchavtchavadze relata como isso se passou em Tbilíssi: no ano de 1938 foram detidos o presidente do Comitê Executivo dos Sovietes da cidade, o seu substituto, todos os chefes de seção (onze), os seus adjuntos, todos os chefes de contabilidade, todos os diretores dos serviços econômicos. Outros foram designados. Decorreram dois meses. E de novo foram detidos: o presidente, o substituto, todos os chefes de seção (onze), todos os chefes de contabilidade, todos os diretores dos serviços econômicos. Em liberdade ficaram apenas os simples contabilistas, as datilógrafas, as mulheres da limpeza e os mensageiros...

(*) A pena de vinte e cinco anos foi nas vésperas do trigésimo aniversário, em outubro de 1947 (N. do A.).
(**) Agora, ao observar a Revolução Cultural chinesa (que teve também lugar dezessete anos depois da vitória definitiva), podemos suspeitar com toda a probabilidade tratar-se de uma lei do desenvolvimento histórico. E o próprio Stálin começa a aparecer-nos apenas como um executor superficial e cego (N. do A.).
(pg. 78)


Nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir...

“Eis um pequeno quadro daqueles anos: está decorrendo (na região de Moscou) a conferência do Partido da zona. É dirigida por um novo secretário, em substituição ao recentemente detido. No fim da conferência é aprovada uma mensagem de fidelidade ao Camarada Stálin. Como se compreende, todos se põem de pé (do mesmo modo que no decorrer da conferência todos saltavam da cadeira cada vez que era mencionado o seu nome). Na pequena sala ressoam ‘tempestuosos aplausos que se transformam em ovação’. Passam três, quatro, cinco minutos e são cada vez mais tempestuosos os aplausos, redundando numa ovação. Mas afinal começam a doer as mãos. Fatigam-se os braços levantados, já vão sufocando as pessoas idosas. Aquilo passa a ser estúpido até para aqueles que sinceramente admiram Stálin. Entretanto, quem é o primeiro que se atreve a parar? Poderia faze-lo o secretário da zona, que se encontra de pé na tribuna e acaba de ler essa mesma mensagem? Mas ele está ali há pouco tempo e encontra-se no lugar do recentemente detido, tendo ele próprio medo! Na verdade, na sala estão também de pé, aplaudindo, os membros da NKVD e eles observam quem é o primeiro que se atreve a parar!... E os aplausos na pequena e desconhecida sala, ignorada pelo chefe, prolongam-se por seis minutos! sete minutos! oito minutos!... eles sucumbem! Estão todos perdidos. Não podem parar, enquanto não tombarem com os corações despedaçados? Ainda no fundo da sala, no meio do aperto, pode-se ludibriar um pouco, aplaudir mais devagar, não tão forte, não tão furiosamente, mas que fazer no Presidium, à vista de todos? O diretor da fábrica local de papel, uma personalidade forte, independente, faz parte do Presidium e compreende toda a falsidade, todo o beco sem saída da situação, mas aplaude! - Decorre o nono minuto! O décimo! Ele olha aborrecido para o secretário do partido da zona, mas este não se atreve a parar. É uma loucura! Uma loucura geral! Olhando-se uns aos outros, com uma débil esperança, mas fingindo êxtase nos rostos, os dirigentes da zona aplaudiram até cair. Até que fossem levados em macas! E, até esse momento, os restantes não vacilaram!... O diretor da fábrica de papel, no décimo primeiro minuto, fingindo-se atarefado, deixa-se cair no seu lugar, no Presidium. E, oh! maravilha! Esvaiu-se então o incontível, indescritível entusiasmo geral? De repente pararam no meio do mesmo aplauso e se sentaram todos de uma vez. Estão salvos! O esquilo teve a idéia de sair da roda!...
Entretanto, é dessa forma que se conhecem as pessoas independentes. E é dessa forma que são postas de lado. Nessa mesma noite, o diretor da fábrica é preso. Com facilidade aplicam-lhe por outro motivo dez anos. Mas depois da assinatura do 206 (documento que conclui as investigações) o comissário instrutor recorda-lhe:
- Nunca seja o primeiro a deixar de aplaudir!
(Que fazer, pois? Como pararmos então?...)
Eis o que é a seleção segundo Darwin. Eis o que é o cansaço pela estupidez”.
(pg. 78 e 79)


O mito de 1937. A nova missão: completar a lista!

Mas hoje cria-se outro mito. Qualquer relato publicado, qualquer menção na imprensa referente ao ano de 1937 é invariavelmente o relato da tragédia dos dirigentes comunistas. E já nos convenceram, e nós inconscientemente deixamo-nos influenciar, que o ano das detenções de 1937-38 consistiu apenas no encarceramento dos grandes comunistas, e, segundo parece, em nada mais. Mas, dos milhões então presos, não deviam poder fazer parte mais do que dez por cento dos dirigentes destacados do Partido e do Estado. Mesmo nas filas dos cárceres de Leningrado, para entrega de pacotes, se viam na sua maioria mulheres simples, com o aspecto de camponesas.
A composição dos detidos desta enorme torrente, levados meio mortos para o arquipélago, era tão díspar, extravagante, que aquele que desejasse definir cientificamente a sua conformidade com alguma lei estouraria os miolos. (Quanto mais para os contemporâneos. Ela deveria ser para eles incompreensível.)
Mas a verdadeira lei que regia as detenções daqueles tempos era constituída pelo número estabelecido pelas diferentes categorias e pela sua distribuição. Cada cidade, cada distrito, cada unidade militar recebia uma cifra determinada, e devia cumpri-la no prazo estabelecido. O resto dependia da habilidade dos agentes.
O antigo tchekista Aleksandr Kagánov recorda como recebeu em Tachkent um telegrama, dizendo: ‘Enviem duzentos!’ Eles tinham acabado de fazer uma incursão e quase não havia mais quem deter. É verdade que tinham trazido do distrito meia centena de delinqüentes. Tiveram uma idéia! Todos os gatunos presos pela milícia foram levados, incursos no artigo 58! Dito e feito! Ora, a milícia não sabia o que fazer dos ciganos que numa das praças da cidade insolentemente instalaram um acampamento. Tiveram uma idéia! Cercaram-nos e levaram todos os homens de dezessete a sessenta anos, como incluídos no artigo 58! E cumpriram o plano!
Outro caso: aos tchekistas de Océtia, segundo relata o chefe de milícias Zabolóvski, foi dada a tarefa de fuzilar nessa República quinhentas pessoas. Eles pediram para aumentar o número e permitiram-lhe que fuzilasse ainda mais duzentos e trinta.
Esses telegramas, ligeiramente cifrados, eram transmitidos pelo telégrafo normal. Em Temriuk, a telegrafista, na sua santa singeleza, transmitiu ao PBX da NKVD: ‘Enviem amanhã a Krasnodar duzentas e quarenta caixas de sabão’ – e teve uma suspeita! Na manhã seguinte, soube que numerosas pessoas foram presas e levadas da cidade. Contou a uma sua amiga como era o telegrama. Prenderam-na imediatamente.
(Seria completamente casual que uma pessoa fosse cifrada como caixa de sabão? Ou conhecia-se o que era a saponificação?...)”
(pg. 80 e 81).


A torrente dos intelectuais

“Em parte alguma foi indicado que era preciso procurar deter o maior número de intelectuais, mas se não os esqueciam nunca nas torrentes anteriores, agora tampouco os esquecem. Basta uma denúncia estudantil (a associação destas palavras deixou há muito de soar de maneira estranha), segundo a qual o professor da sua escola superior cita pouco Lênin e Marx e de modo geral não cita Stálin – e o professor já não comparece à conferência seguinte. E se ele não faz nunca citações? Todos os orientalistas de Leningrado, das gerações média e jovem, são presos. Todos os membros do Instituto do Norte (exceto os do serviço secreto) são presos. Não desdenham nem mesmo os professores das escolas primárias e secundárias. Em Svérdlov, monta-se o processo de trinta professores das escolas secundárias, encabeçados pelo seu inspetor provincial de ensino, Pereliem. Entre as terríveis acusações figura a de instalarem árvores de Natal para incendiar as escolas (*)! E sobre a cabeça dos engenheiros (já da geração soviética, já não ‘burgueses’) abate-se o bordão com a cadência do pêndulo. Ao topógrafo de minas Nikolai Merkúrievitch Mikov, pelo fato de que, devido a uma alteração nos estratos, estes não coincidiram com duas galerias de uma mina que deviam encontra-se, aplica-se o artigo 58-7: vinte anos! A seis geólogos (do grupo de Kotóvitch), ‘por ocultação premeditada de reservas de estanho no subsolo’ (ou seja, por não as terem descoberto!), ‘na perspectiva da chegada dos alemães’ (segundo denúncia), é aplicado o artigo 58-7: dez anos de reclusão.

(*) Cinco dentre eles foram torturados nos interrogatórios, morrendo antes do julgamento. Vinte e quatro morreram em campos de concentração. O trigésimo, Ivan Aristaulóvitch Púnitch, voltou reabilitado. (Se tivesse perecido também, teríamos deixado passar estas trinta pessoas, como deixamos passar milhões.) As numerosas ‘testemunhas’ do seu processo vivem agora em Svérdlov, prosperamente: são funcionários de ‘nomenclatura’, com reformas a título pessoal. A tal seleção de Darwin (N. do A.).”
(pg. 82)


Língua de pau: “10 anos sem direito a correspondência” = morte

“Indo juntar-se ás principais torrentes, havia ainda as torrentes especiais: a das esposas (membros da família). Ela engloba as mulheres dos destacados dirigentes do Partido e, em certos lugares (Leningrado), de todos quantos pegaram ‘dez anos sem direito a correspondência’, isto é, daqueles que já não existem. Em regra, todas pegam oito anos de reclusão. (Em todo caso, a pena é mais suave do que a das da torrente do kulaks, e as crianças ficam no continente.)
Montões de vítimas! Montanhas de vítimas! Ofensiva frontal da NKVD contra a cidade:
- numa mesma onda, mas por ‘causas’ diferentes, S. P. Matvêieva vê prenderem o marido e três dos seus irmãos (dos quatro só um regressou);
- a um técnico eletricista, quebrou-se no seu setor um cabo de alta tensão. 58-7 para ele: vinte anos;
- o operário Novikov, de Perm, é acusado de preparar a explosão de uma ponte sobre o rio Kama;
- Iujakov, também de Perm, foi detido de dia e foram buscar-lhe a esposa de noite. Apresentaram a ela uma lista de pessoas e exigiram-lhe que assinasse, indicando que todos eles visitavam a sua casa, onde realizavam reuniões de mencheviques e de socialistas-revolucionários (como é de se supor, não havia tais reuniões). Por isso, prometeram-lhe deixa-la com os três filhos pequenos que tinha. Ela assinou, e perdeu-os a todos, ficando ela própria presa;
- Nadieida Iudenitch foi presa devido ao sobrenome. É verdade que, nove meses depois, ficou estabelecido que não era da família do general do mesmo nome e foi posta em liberdade (mas, por uma tal estupidez, durante esse tempo morreu a sua mãe de desgosto);
- em Stáraia Russa era exibido o filme Lênin em Outubro. Alguém prestou atenção à frase: ‘Isto deve sabe-lo Paltchinski!’ – e Paltchinski era um defensor do Palácio de Inverno. ‘Esperem, nesse lugar trabalha uma enfermeira que se chama Paltchínskaia! Apanhem-na!’ E prenderam-na. Tratava-se efetivamente da mulher, que depois do fuzilamento do marido se ocultava num lugar afastado;
- os irmãos Boruchko (Pável, Ivan e Stepan) tinham chegado da Polônia no ano de 1930, ainda crianças, para se reunirem à família. Agora, já adolescentes, são condenados a dez anos por suspeita de espionagem;
- uma condutora de bondes de Krasnodar, ao regressar tarde da estação, a pé, passou nos subúrbios, para desgraça sua, diante de um caminhão, perto do qual se movia gente. Ora, o caminhão estava repleto de cadáveres: as pernas e os braços apareciam por baixo do oleado. Perguntaram-lhe o nome. No dia seguinte foi detida. O comissário instrutor perguntou-lhe o que tinha visto. Ela reconheceu honestamente o que vira (eis a seleção de Darwin). Propaganda anti-soviética: dez anos;
- um encanador desligava o aparelho de rádio do seu quarto sempre que transmitiam intermináveis cartas a Stálin (*). Um vizinho denunciou-o (onde estará agora esse vizinho?) como elemento socialmente perigoso: oito anos;
- um padeiro semi-analfabeto gostava nas suas horas livres de assinar o seu nome, o que o elevava perante si mesmo. Não havendo papel branco, servia-se do jornal. Os vizinhos descobriram um desses jornais, com assinaturas sobre o rosto do Pai e Mestre, no cesto dos papéis da latrina coletiva. Agitação anti-soviética: dez anos.
Stálin e os seus colaboradores mais chegados gostavam muito dos seus retratos, cobrindo com eles os jornais, reproduzindo-os em milhões de exemplares. As moscas tinham pouca consideração pela sua santidade, e, depois, era uma pena não utilizar os jornais – e quantos desgraçados não foram condenados por isso!
(...)
Sete anos antes disso, a cidade tinha assistido à exterminação do campo e achado isso muito natural. Agora era o campo que poderia observar como arrasavam a cidade, mas era demasiado ignorante para isso, e de resto continuavam também a assestar-lhe golpes:
- o agrimensor (!) Saunin foi condenado a quinze anos... pela morte de gado (!) no seu distrito e pelas más colheitas (!) (e os líderes do distrito foram todos fuzilados pelo mesmo motivo);
- um secretário do Partido chegou à aldeia para recensear a lavra dos campos, e um velho mujique perguntou-lhe se ele sabia que em sete anos os kolkhozianos não tinham recebido pelos dias de trabalho nem um grão de cereal, mas unicamente palha, e, mesmo esta, pouca. Por esta pergunta condenaram esse velho a dez anos de reclusão, por agitação anti-soviética;
- outro foi o destino de um mujique pai de seis filhos. Por essas seis bocas matava-se de trabalhar nas tarefas do kolkhoz, sempre esperançado de que receberia algo. O que de fato aconteceu. Deram-lhe uma condenação, que lhe foi entregue numa reunião onde se pronunciavam discursos. Na sua resposta, o mujique comoveu-se e disse: ‘E se em lugar dessa condecoração me dessem uma arroba de farinha! Não poderá ser?” A assistência rebentou em gargalhadas ferozes e o novo condecorado foi enviado com as suas seis bocas para a deportação.
Haverá que reunir agora todos estes casos e explicar que se detinham inocentes? Mas nós nos esquecemos de precisar que o próprio conceito de culpa foi suprimido pela revolução proletária, e no começo dos anos 30 foi declarado oportunismo de direita (**)! Não podemos continuar, pois, a especular com esses conceitos antiquados de culpa e inocência.

(*) Quem se recorda delas? Durante horas eram estonteantemente iguais! Certamente que o locutor Leviatan se deve lembrar bem: ele as lia com grandes inflexões, com muito sentimento (N. do A.)
(**) Cfr. Coletânea Das prisões..., página 63 (N. do A.)”.
(pg. 82 a 84)


Massacre de Kátin: fato encoberto pela URSS e pela Inglaterra

“”E quem viu os trinta mil tchecos que deixaram no ano de 1930 a Tchecoslováquia ocupada pela querida pátria eslava, a URSS? Não era possível garantir que algum deles não fosse um espião. Mas foram todos enviados para campos de concentração do norte (é de lá que parte, em tempo de guerra, o ‘corpo tchecoslovaco’). Mas, permitam ainda, não foi em 1939 que estendemos a mão em ajuda dos ucranianos ocidentais, dos bielo-russos ocidentais, e depois, em 1940, dos habitantes da região do Báltico, bem como dos moldávios? Aconteceu que os nossos irmãos não eram completamente limpos, e daí fluíram as torrentes da profilaxia social. Foram presos os que eram demasiado abastados e influentes, os que se destacavam pela sua independência, inteligência e notoriedade. Nas antigas prisões da Polônia foram presos sobretudo muitos polacos (foi então que encontraram as vítimas do massacre de Kátin (*) e que nos campos de concentração do norte se reuniram os membros do futuro exército de Sikorski-Anders). Por toda parte se detinham os oficiais. E assim se condicionavam as populações, reduzindo-as ao silêncio, privando-as dos possíveis dirigentes da resistência. Assim eram chamados à razão, esfriando-se as antigas relações, as antigas amizades.
A Finlândia deixou-nos um istmo sem população, mas em compensação na Carélia e em Leningrado procedeu-se à extração e à transplantação de todas as pessoas de sangue finlandês. Nós nem sequer demos por esse pequeno riacho: não temos sangue finlandês” (pg. 86).

(*) Massacre de Kátin: ‘Em setembro de 1939 a Polônia foi derrotada, depois de ter sido invadida simultaneamente pelos nazistas, a Oeste, e pelos aliados destes, os comunistas, a Leste. Como recompensa a seus amigos soviéticos pela preciosa ajuda, Hitler lhes outorgou então uma zona de ocupação de duzentos mil quilômetros quadrados. A partir da derrota da Polônia, os soviéticos massacraram nessa zona, sob as ordens escritas de Stálin, vários milhares de oficiais poloneses prisioneiros de guerra - mais de 4 mil em Katyn (perto de Smolensk), local onde foi descoberto posteriormente um dos mais famosos ossários, além de outros 21 mil em vários locais. Deve-se adicionar a essas vítimas cerca de 15 mil prisioneiros soldados comuns, provavelmente mortos por afogamento no Mar Branco. Perpetrados em poucos dias segundo um plano preestabelecido, esses assassinatos em massa de poloneses vencidos, exterminados pelo simples fato de serem poloneses, constituem indiscutíveis crimes contra a humanidade, e não apenas crimes de guerra, já que a guerra, para a Polônia, havia terminado’ (Carlos I. S. Azambuja, in “Mídia Sem Máscara”, 27/09/2003).
‘O Colossus foi a primeira máquina programável e digital da história, construído na Inglaterra em 1943 como parte do projeto militar do país para decodificação das mensagens nazistas criptografadas pela máquina “Enigma”. Permitiu iludir Hitler de que o desembarque dos Aliados seria em Calais e não na Normandia (Operação Overlord) e impediu o Marechal Rommel de chegar ao Egito. O “Colossus” foi parte fundamental da Máquina Universal de Turing, projetada por Alan Turing (O ENIAC, desenvolvido na Universidade da Pensilvânia, EUA, em 1946, é erradamente considerado por muitos como o primeiro computador da história). Assista o filme “Enigma”, de Michael Apted (2001), em que um matemático corre contra o tempo para decifrar o código secreto utilizado pelos nazistas durante a II Guerra Mundial. Este filme mostra a interceptação e a decifração de uma mensagem nazista, quando tropas de Hitler descobriram as ossadas em Katyn – fato escondido do público, na ocasião, porque os Aliados precisavam da ajuda soviética para combater o Reich’ (Félix Maier, in “Arquivos ‘I’ – uma história da intolerância”, www.usinadeletras.com.br)”.

Obs.: É claro que Roosevelt poderia ter jogado mais duro com os russos, pois os EUA eram o único país, então, a possuir a bomba atômica. Era só ameaçar de jogar uma delas sobre Moscou, que o Camarada Stálin logo recolheria seus bigodes ao Kremlin. Aliás, convém lembrar que a mulher do 'camarada' Roosevelt era amante de um espião soviético.

Churchill queria que o desembarque dos Aliados se realizasse nos Bálcãs, não na Normandia. Ele sabia muito bem que por onde passasse o trator comunista, nada seria devolvido aos habitantes desses países, do Leste europeu, como de fato ocorreu.

Além do Massacre de Kátin, fato encoberto pela Grã-Bretanha e EUA, outro crime cometido pelos Aliados ocidentais foi terem entregue cerca de meio milhão de pessoas à sanha de Stálin, como escreveu Alexandre Soljenítsin em 'Arquipélago Gulag' (F. Maier):

'Em todo o período de 1945 a 1946, avançou para o arquipélago, enfim, uma grande torrente de verdadeiros inimigos do poder (os homens de Vlassov, os cossacos de Krasnov, os muçulmanos das unidades nacionais criadas por Hitler), uns convictos e outros forçados.

Juntamente com eles foi capturado nada menos de meio milhão de refugiados, que tinham fugido ao poder soviético: civis de todas as idades e de amos os sexos, que tinham conseguido esconder-se no território dos Aliados, mas foram perfidamente devolvidos nos anos de 1946-47, pelas respectivas autoridades, aos soviéticos.

Surpreendentemente, apesar de no Ocidente ser impossível guardar segredos políticos por muito tempo, pois acabam inevitavelmente por ser divulgados, o segredo dessa traição conheceu um sorte diferente, sendo guardado ciosamente pelos governos britânico e americano. Na verdade, deve ser, se não o último segredo da Segunda Guerra Mundial, um dos últimos. Tendo encontrado inúmeras vezes pessoas dessas nas prisões e nos campos, custava-me acreditar que neste quarto de século a opinião pública do Ocidente nada soubesse dessa entrega, grandiosa pelas suas proporções, de gente simples da Rússia, pelos governos ocidentais, à repressão e à morte. Só em 1973 (no Sunday Oklahoma de 21 de janeiro) saiu um pequeno artigo de Julius Epstein, a quem daqui me atrevo a transmitir o meu agradecimento, em nome da massa de mortos e dos poucos vivos. Trata-se de um breve documento incompleto acerda do ocorrido e oculto até o presente, entre os muitos volumes a escrever sobre a repatriação forçada para a União Soviética. Tendo vivido dois anos nas mãos de autoridades britânicas, com um falso sentimento de segurança, os russos foram apanhados de surpresa, nem compreendendo sequer que os repatriavam... Eram na maioria simples camponeses, com um rancor pessoal contra os bolcheviques. As autoridades inglesas portaram-se com eles como se se tratasse de criminosos de guerra , entregando-os contra sua vontade às mãos daqueles de quem não se pode esperar um julgamento justo . Foram enviados todos para o extermínio, para o Gulag.

Um certo número de polacos, membros do Exército nacional de Kráiova, partidários de Mikolajczyk, passou pelas nossas prisões em 1945, antes de seguir para o Gulag.

Havia também uns tantos romenos e húngaros.

A partir do fim da guerra e por longos anos foi escorrendo a abundante torrente dos nacionalistas ucranianos (os partidários de Bandera).

Sobre o pano de fundo de toda essa gigantesca transplantação de milhões de pessoas no pós-guerra, poucos foram os que observaram torrentes tão pequenas como:

- a das moças que namoravam estrangeiros (1946-47), ou seja, que se deixavam cortejar por estrangeiros. Elas eram marcadas com o rótulo do artigo 7-35 (socialmente perigosas);

- a das crianças espanholas, essas mesmas que tinham sido expatriadas durante a Guerra Civil, mas que já se tinham convertido em adultas depois da Segunda Guerra Mundial. Educadas em internatos nossos, elas adaptavam-se entretanto mal à nossa vida. Muitas tentaram regressar a casa Eram também marcadas com o rótulo 7-35 (socialmente perigosas), e as mais obstinadas com o do artigo 58-6 (espionagem em proveito... da América)' (Arquipélago Gulag, Difel, São Paulo, 1975, pg. 94 e 95).


As torrentes continuam fluindo – Soljenítsin salvo, momentaneamente, do Gulag

“Na retaguarda, a primeira torrente da guerra foi a dos espalhadores de boatos e semeadores de pânico, segundo os termos de um decreto especial à margem do código editado nos primeiros dias da guerra (*). Tratava-se de uma sangria experimental para manter a disciplina geral. Todos eram condenados a dez anos, mas não se consideravam como abrangidos pelo artigo 58 (e aqueles poucos que sobreviveram aos campos de concentração dos anos de guerra foram anistiados em 1945).
Depois houve a torrente dos que não entregavam os aparelhos de rádio ou as suas peças sobressalentes. Por uma válvula de rádio encontrada (por denúncia) pegavam-se dez anos.
E logo veio a torrente dos alemães: os da região do Volga, os colonos da Ucrânia e do norte do Cáucaso, enfim, todas as pessoas de origem alemã, qualquer que fosse a zona da União Soviética donde viessem. O sintoma determinante era o do sangue, e até heróis da guerra civil e velhos militares do Partido, desde que se tratasse de alemães, eram desterrados (**).

(*) Estive a ponto de experimentar esse decreto na minha própria pele. Pus-me na fila de uma padaria. Um miliciano chamou-me e levou-me para completar número. Teria começado pelo Gulag, em vez da guerra, se não fosse essa feliz interrupção (N. do A.)”.

(**) E o sangue era determinado a partir do sobrenome. O engenheiro constutor Vassíli Okorokov (da palavra okorok, presunto), achando incômodo assinar com esse nome os seus projetos, mudou nos anos 30, quando isso ainda era possível, para Robert Stekker, que soava bem, aperfeiçoando a sua assinatura. Agora não tinha tempo de provar nada e foi preso como alemão. ‘É este o seu verdadeiro nome? De que tarefas foi incumbido pela espionagem fascista?’ E outro habitante de Tambov, Kaverzniev (da palavra kaverzni, intrigante), que já em 1918 tinha mudado o seu pouco melodioso sobrenome pelo de Kobe, quando será que compartilhou o seu destino com o de Okoroko? (N. do A.).
(Pg. 87 e 88)


A torrente dos “cercados”: traidores da pátria porque conseguiram sobreviver aos tanques nazistas

“A partir do verão de 1941, e mais ainda no outono, precipitou-se a torrente dos que tinham ficado cercados. Tratava-se daqueles mesmos defensores da pátria de que meses antes as nossas cidades se tinham despedido com fanfarras e flores, e a quem, depois disso, coube em sorte apanhar os golpes mais duros dos tanques pesados alemães, tendo-se encontrado, no meio do caso geral, e de maneira nenhuma por culpa sua, não na situação de cativos, mas durante algum tempo dispersos em grupos de combate no interior do cerco alemão, e conseguindo rompe-lo, no fim de contas. Ora, em lugar de serem abraçados fraternalmente no seu regresso (como teria procedido qualquer outro Exército do mundo), deixando-os repousar, visitar a família e incorporarem-se depois à sua unidade, foram conduzidos, debaixo de suspeitas e dúvidas, em destacamentos desarmados e privados de direitos, para centros de verificação e de classificação, onde os oficiais dos Serviços Especiais começavam por ter desconfiança sobre cada palavra sua, até sobre se eram quem diziam ser. E os métodos de verificação eram os interrogatórios, as acareações e as declarações de uns sobre os outros. Depois da verificação, uma parte dos cercados era integrada, com o nome anterior, grau e confiança, em novas unidades militares. Outra parte, menor, por enquanto, compunha a primeira torrente de traidores da pátria. Era-lhes aplicado o artigo 58-1, mas, no princípio, até a elaboração da norma, pegavam menos de dez anos”.
(pg. 88).


A verdade sobre Leningrado: o Pai Querido nunca é culpado, apesar de ter trucidado engenheiros e oficiais das forças armadas!

“Nas altas esferas ia fluindo também, por si só, a torrente dos culpados do recuo (não era, evidentemente, o Grande Estrategista o sulpado disso!). Foi uma torrente pequena, de meia centena de pessoas, a torrente dos generais, detidos nos cárceres de Moscou, durante o verão de 1941 e em outubro desse ano, em levas. Entre os generais, a maioria da aviação, figuravam o Comandante-em-Chefe da Força Aérea Smuchkévitch, o General E. S. Ptúkhin (o qual dizia: ‘Se eu soubesse, teria bombardeado em primeiro lugar o nosso Pai Querido, e só depois iria para a prisão!’) e outros.
A vitória na zona de Moscou deu origem a uma nova torrente: a dos moscovitas culpados. Agora, após uma análise tranqüila, pôde-se verificar que esses moscovitas não fugiram nem foram evacuados, mas ficaram intrepidamente na capital ameaçada e abandonada pelas autoridades. Eis que já deles se suspeitava: quer de solaparem o poder das autoridades (58-10); quer de terem esperado os alemães (58-1-a, com referências ao artigo 19: esta torrente alimentaria os comissários de instrução de Moscou e de Leningrado até o ano de 1945).
É evidente que o 58-10, ASA (Agitação Anti-Soviética), nunca deixou de ser aplicado e durante a guerra satisfez às necessidades da retaguarda e da frente. Era aplicado aos evacuados, se relatassem os horrores da retirada (segundo os jornais, é claro que o retrocesso se fazia de acordo com um plano); aos que na retaguarda espalhavam calúnias, dizendo que o racionamento era pouco; aos que na frente proferiam difamações, dizendo que os alemães possuíam uma técnica forte; e no ano de 1942, por toda parte, àqueles que caluniosamente afirmavam que em Leningrado, então bloqueada, as pessoas morriam de fome.
Nesse mesmo ano, após o insucesso registrado na zona de Kertch (cento e vinte mil prisioneiros), na zona de Kharkov (ainda mais), no decurso da grande retirada do sul para o Cáucaso e para o Volga, foi ainda aspirada uma torrente mais importante de oficiais e de soldados, que não desejavam resistir até a morte e retrocederam sem licença: aqueles mesmos a quem, segundo os termos da imortal ordem do dia de Stálin nº 227, a pátria não podia perdoar pela vergonha. Esta torrente não chegou, porém, ao Gulag: submetida ao regime acelerado, pelos tribunais de divisões, foi empurrada para as companhias disciplinares e reabsorvida sem deixar vestígios na areia vermelha das primeiras linhas. Tal foi o cimento sobre que se fundaram os alicerces da vitória de Stalingrado, mas não entrou na história geral da Rússia, ficando confinado à história específica das canalizações.
(...)
A partir de 1943, quando da reviravolta da guerra a nosso favor, começou a tornar-se mais abundante, de ano para ano, até 1946, a torrente de muitos milhões provindos dos territórios ocupados e da Europa. Os dois afluentes mais importantes que a compunham eram:
- os cidadãos que tinham vivido nos territórios sob o domínio alemão ou na Alemanha (pegavam dez anos, sendo catalogados com a letra ‘a’: 58-1-1);
- os militares que tinham sido feitos prisioneiros (pegavam também dez anos, sendo catalogados com a letra ‘b’: 58-1-b)”.
(pg. 89 e 90).


Falar sobre a “engorda sueca” pode levar a 9 gramas de chumbo na nuca

“Isto se torna evidente pelo fato de inflexivelmente serem tratados como prisioneiros de guerra os internados (civis levados para trabalhar na Alemanha). Nos primeiros dias da guerra, por exemplo, um grupo de marinheiros nossos foi dar ao litoral da Suécia. Durante toda a guerra viveram livremente nesse país, com tanto conforto como nunca tinham vivido até então nem nunca mais viveriam no futuro. A URSS retrocedia, avançava, atacava, morria e passava fome e esses canalhas iam comendo o pão da neutralidade. Depois da guerra a Suécia no-los devolveu. A traição à pátria era indubitável, mas havia algo que não encaixava certo. Deixaram-nos partir e separar-se, e depois aplicaram a todos eles uma pena por agitação anti-soviética, em razão dos aliciantes relatos que faziam sobre a liberdade e a abundância que constataram na Suécia capitalista (Grupo Kadenko) (*).

(*) Com este grupo verificou-se um caso anedótico. No campo, tinham já calado a boca sobre a vida na Suécia, temendo receber por isso uma nova condenação. Na Suéica, porém, soube-se por qualquer meio desse caso e foram publicadas notícias caluniosas na imprensa. Entretanto, os rapazes já estavam dispersos por diversos campos. De repente, por ordem especial, foram levados todos para a prisão de Krest, em Leningrado. Durante dois meses alimentaram-nos para a engorda e deixaram-lhes crescer o cabelo. Depois vestiram-nos com sóbria elegância, industriaram cada um sobre o que devia fazer, advertiram-nos de que se qualquer um deles cometesse a canalhice de falar de outra forma apanharia ‘nove gramas’ de chumbo na nuca, e enviaram-nos para uma conferência de imprensa, na presença de jornalistas estrangeiros convidados e de pessoas que conheciam bem o grupo da Suécia. Os ex-internados mantiveram-se muito animados, relataram onde viviam, estudavam, trabalhavam e indignaram-se com as calúnias burguesas que recentemente tinham lido na imprensa ocidental (pois ela vende-se aqui em cada quiosque!). Trataram de escrever uns aos outros e puseram-se de acordo, indo a Leningrado (a questão das despesas de viagem não perturbou ninguém). Com o seu aspecto vistoso e fresco eles constituíram o melhor desmentido ao boato dos jornais. Os jornalistas partiram envergonhados, indo escrever desculpas. Para a imaginação ocidental era inimaginável explicar de outra forma o sucedido. E os protagonistas da conferência de imprensa dali mesmo foram levados ao banho, tendo-se-lhes cortado o cabelo e vestido os velhos farrapos e enviado para os mesmos campos. Levando em conta que todos eles se portaram bem, não lhes aplicaram condenação (N. do A.)”.
(pg. 91 e 92)


A torrente dos “filhos vingativos”

“E daí vai o Autocrata apercebeu-se de que não bastava prender os que tinham sobrevivido ao ano 37! Os filhos desses seus inimigos jurados, também esses, era necessário prendê-los! Pois eles cresceriam e poderiam pensar em vingança. (Talvez depois de ter ceado bem tivesse tido um mau sobre essas crianças.) Depois de feitos os cálculos e efetuadas as prisões, constatou-se que eram ainda poucos. Tinham prendido os filhos dos chefes do Exército, mas os dos trotskistas, nem todos! E a torrente dos filhos vingativos arrastou-se. (Entre eles encontrava-se Lena Kossariova (*), de dezessete anos, e Elena Rakóvskaia, de trinta e cinco anos.)
Depois do grande deslocamento europeu, Stálin conseguiu, até 1948, reconstituir um reduto fechado, bem sólido, com o teto mais baixo, e nesse espaço assim delimitado tornar mais espessa a antiga atmosfera de 1937.
E foram-se arrastando as torrentes, durante os anos de 1948, 49 e 50:
- as dos espiões imaginários (dez anos antes eram germano-nipônicos, agora anglo-americanos);
- a dos crentes (desta vez, sobretudo as seitas);
- a dos geneticistas e selecionadores que não tinham sido detidos, partidários das teorias de Vavílov e de Mendel;
- a dos simples intelectuais e homens de pensamento (com especial rigor para os estudantes), que não tinham ficado suficientemente assustados com o acidente. Era moda dar-lhes: VAT – por enaltecer a técnica americana; VAD – por enaltecer a democracia americana; PZ – por venerar o Ocidente.
As torrentes eram idênticas à de 1937, mas não as sentenças: a norma, já não era os dez anos patriarcais, mas o novo quarto de século stalinista. Agora, dez anos era coisa de criança...
Uma torrente considerável foi, então, originada pelo novo ukaze sobre divulgação de segredos de Estado (e consideravam-se como segredos: as colheitas dos distritos; qualquer estatística epidemológica; o tipo de produção de qualquer oficina ou fabriqueta; a menção de qualquer aeroporto civil; as zonas do transporte urbano; o nome de um recluso que se encontrava no campo de trabalho). Por esse ukaze a pena atribuída era de quinze anos.

(*) Filha de A. V. Kossariov, que foi secretário do Comitê Central do Komsomol até 1937 (N. do T.)”.
(pg. 99 e 100)


Tortura Sempre! Por que as esquerdas querem o monopólio da Tortura?

“Se aos intelectuais das peças de Tchekhov, sempre fazendo conjeturas sobre o que seria a vida dentro de vinte, trinta ou quarenta anos, tivessem respondido que na Rússia se torturariam os acusados durante a instrução do processo, que se lhes apertaria o crânio com um anel de ferro (*), que se submergiria uma pessoa num banho de ácidos (**), que se ataria um homem nu para o expor às formigas e aos percevejos, que se lhe introduziria uma baioneta em brasa pelo orifício anal (‘a marca secreta’), que se lhe comprimiriam lentamente com uma bota os órgãos sexuais e que, como tratamento mais suave, se torturaria alguém durante uma semana, sem o deixar dormir, nem lhe dar de beber, espancando-o até deixar-lhe o corpo em carne viva – nem uma só dessas peças teria chegado até o fim e todos os seus heróis teriam ido parar no manicômio.
(...)
Mas não será mais terrível ainda que, trinta anos depois, nos venham dizer: não se deve falar disso! Recordar o sofrimento de milhões de pessoas é deformar a perspectiva histórica! Tratar de descobrir a essência dos nossos costumes é obscurecer o progresso material! Que se fale antes dos altos-fornos que foram acesos, ou dos trens de laminação, ou dos canais que foram abertos... Não, dos canais também não é conveniente falar... Antes do ouro de Kolimá... Não, também isso é conveniente. Enfim, pode-se falar de tudo, mas desde que se saiba faze-lo, glorificando-o...
Será então incompreensível que amaldiçoemos a Inquisição? Acaso, além das fogueiras, não havia ao mesmo tempo serviços religiosos solenes? Veja-se, não se proibiam os camponeses de trabalhar todos os dias... Eles podiam celebrar o Natal com canções, pela Trindade as moças teciam coroas...
(...)
Já no ano de 1919 o método principal de instrução era o de pôr o revólver sobre a mesa.
(...) Eis o assustador revólver posto sobre a mesa e às vezes apontado contra você, e o comissário instrutor não perde tempo nem feitio para descobrir do que você é culpado, repetindo: ‘Fale, você já sabe do que se trata!’ Era o que no ano de 1927 o Comissário Khaikin exigia de Skripnikova; e era o que no ano de 1929 exigiam de Vitkóvski. E nada mudou, decorrido um quarto de século. No ano de 1952, à mesma Anna Skripnikova, que cumpria a quinta detenção, o chefe da seção de instrução da Segurança do Estado de Ordjonikidze, Sivakov, declara: ‘O médico da prisão entregou-nos uma nota dizendo que a sua pressão arterial é de 24/12. Isso é pouco, canalha (ela ia a caminho dos sessenta anos). Fá-la-emos chegar até 34, para que estrebuche, sua víbora, sem necessidade de nódoas roxas, de espancamentos, nem fraturas. Basta que não a deixemos dormir!’ E se Skripnikova, após os interrogatórios noturnos, durante o dia fechava os olhos na cela, o vigilante irrompia, berrando: ‘Abra os olhos, senão arrasto-a pelos pés e prego-a à parede!’
A partir de 1921 os interrogatórios passaram a ser na sua maioria noturnos. Nessa época utilizavam-se já os faróis de automóveis para iluminar o acusado (Tcheká de Riázan, Stelmakh). E em 1926, na Lubianka (testemunho de Berta Gandal), era utilizado o sistema de ar condicionado da fábrica Anossov para as celas, o qual expelia ora ar frio, ora ar fedorento. E havia uma cela revestida de cortiça, sem ventilação, onde, para cúmulo, se sufocava de calor. Parece que o poeta Kliuiev esteve numa cela desse gênero e aí permaneceu Berta Gandal. O participante da insurreição de Yaroslavl, de 1918, Vassíli Alksándrovitch Kacianov, contava que essa cela era aquecida até ao ponto em que os poros do corpo sangravam; observando ocultamente os efeitos, nesse ponto colocavam então o preso numa maca e levavam-no para assinar o processo verbal. São conhecidos os métodos quentes (e ‘salgados’) do período de ‘ouro’. Na Geórgia, em 1926, queimavam as mãos dos presos com cigarros; na prisão de Metekha empurravam na escuridão os presos para dentro de um tanque cheio de imundícies.
Eis a relação simples entre todos esses fatos: já que é necessário acusar de qualquer maneira, são inevitáveis as ameaças, as violências e as torturas, e quanto mais fantasiosa for a acusação, mais cruel deve ser a investigação, para obrigar às confissões. E uma vez que as acusações eram sempre inventadas, havia sempre violências, o que não foi pois atributo do ano de 1937, mas sim um sintoma prolongado, de caráter geral. Por isso se torna estranho ler agora, em algumas das recordações de antigos zeks, que ‘as torturas foram permitidas a partir da primavera de 1938’ (***). Não existiram nunca quaisquer limites morais e espirituais capazes de refrear os ‘Órgãos’ na aplicação das torturas. Nos primeiros anos depois da Revolução, discutia-se abertamente no Semanário da Tcheká, na Espada Vermelha e no Terror Vermelho o problema de saber se a aplicação de torturas era admissível do ponto de vista do marxismo. A julgar pelas conseqüências, a resposta foi positiva, embora não universal.
(...)
Em 1950, no campo de Kuibíchiev, encontrei-me com um ucraniano de Dniepropetróvsk a quem, para obterem ‘ligações’ e nomes de pessoas, tinham torturado por métodos diversos, inclusive o castigo que consistia em só o deixarem dormir com uma vara para apoio, quatro horas por dia. Depois retiravam-lhe a vara. Depois da guerra, também torturaram Levina, membro correspondente da Academia das Ciências, pelo fato de ela ter conhecidos comuns com a família de Alilúiev.
Seria inexato atribuir ao ano de 1937 a ‘descoberta’ segundo a qual a confissão da culpa pelo acusado é mais importante do que todas as provas e fatos. Essa prática tinha-se estabelecido nos anos 20

(*) Como aconteceu ao Doutor S., segundo o testemunho de A. P. K...va (N. do A.).

(**) Como aconteceu a H. S. T...e (N. do A.).

(***) E. Guinzburg escreve que a autorização para a ‘aplicação da força física’ foi dada em abril de 1938. V. Chalámov considera que as torturas foram permitidas em meados de 1938. O velho detido M...tch está convencido de que houve uma ‘ordem acerca da simplificação dos interrogatórios e da substituição dos métodos psicológicos pelos físicos’. Ivánov-Razúmnik põe em evidência que ‘por meados de 1938 teve lugar o período dos interrogatórios mais cruéis’ (N. do A.).”.
(pg. 102 a 109)


Formas de tortura na antiga União Soviética

“Começaremos pelos métodos psíquicos. Para os pobres-diabos que nunca se tinham preparado para os sofrimentos da prisão, estes métodos têm uma força terrível e mesmo aniquiladora. E mesmo para os que têm convicções, tampouco são fáceis.

1) Vejamos em primeiro lugar as noites. Por que é que o essencial do desmoronamento das almas tem lugar à noite? Por que é que desde o seu aparecimento os ‘Órgãos’ tiveram preferência pela noite? Porque, durante a noite, arrancado violentamente ao sono (e mesmo ainda não amolecido pelo sono), o preso não pode manter o equilíbrio e guardar a lucidez como de dia, tornando-se mais maleável.

2) A persuasão tem um tom de franqueza. É a coisa mais simples. Para que brincar de gato e rato? Depois de estar entre outros processados, o preso já assimilou a situação geral. E o comissário lhe diz em tom displecente e amigável: ‘Você próprio compreende que, de qualquer forma, será condenado. Mas se opõe resistência, aqui na prisão, chegará ao extremo de perder a saúde. Enquanto num campo de trabalho você terá ar, luz... O melhor para você, pois, é assinar já’. Tudo muito lógico. E todos aqueles que concordam e assinam são muito sensatos... quando se trata apenas deles próprios. Mas raramente sucede assim. E a luta é inevitável.
Outra variante é a persuasão dirigida a um membro do Partido. ‘Se no país há carência e até fome, você mesmo, como bolchevique, deve decidir: poderia admitir que o Partido seja culpado disto? Ou o poder soviético?’ ‘Não, naturalmente!’, apressa-se a responder o diretor de um centro de produção de linho. ‘Então tenha coragem e assuma as suas responsabilidades!’ E ele as assume!

3) Insultos grosseiros. É método pouco complicado, mas que pode ter efeitos seguros sobre pessoas educadas, delicadas, de natureza sensível. Conheço dois casos ocorridos com religiosos, que cederam unicamente com palavrões. No caso de um deles (em Butirki, em 1944), a instauração do processo era dirigida por uma mulher. De início, na cela, ele se cansava de a elogiar, dizendo como ela era amável. Mas um dia voltou aturdido e durante muito tempo recusou-se a repetir as palavras com que refinadamente ela o mimoseou, cruzando as pernas uma sobre a outra, despudoradamente (lamento não poder inserir aqui uma das suas frasezinhas).

4) Choque provocado pelo contraste psicológico. Assim, as mudanças repentinas: todo o interrogatório, ou parte dele, é extremamente amável, com um tratamento pelo nome, pelo sobrenome, sendo feita toda espécie de promessa. Depois, subitamente, o instrutor levanta-se, fazendo ameaças com o peso dos papéis: ‘Ah! patife! Você vai levar nove gramas de chumbo na nuca!’, e os seus braços avançam como se fosse agarrar os cabelos, como se as unhas terminassem em agulhas, a aproximar-se (contra as mulheres, este é um método muito eficiente).
Outra variante: a alternância de dois comissários, um que sempre ameaça e atormenta e outro que se mostra simpático, quase cordial. O interrogado treme cada vez que entra no gabinete, sem saber qual irá encontrar; sucumbindo ao contraste, dispõe-se, com o segundo, a reconhecer e a assinar, inclusive o que não fez.

5) Humilhação prévia. Nas célebres masmorras da GPU de Rostov (‘a casa número 33’), sob o grosso pavimento de vidro da calçada (tratava-se de um antigo armazém), os presos, antes do interrogatório, eram deixados várias horas no corredor, com o rosto contra o chão, sendo proibidos de levantar a cabeça e de fazer o mínimo ruído. Assim ficavam deitados, como os muçulmanos nas suas preces, até que o encarregado lhes tocasse no ombro e os conduzisse ao interrogatório. Aleksandra O...va não tinha feito as declarações necessárias na Lubianka. Foi transferida para Lefortovo. Ali,na sala de entrada, uma vigilante mandou-a despir-se, como se fosse do regulamento, levou-lhe a roupa e fechou-a nua num quartinho. Logo vieram vigilantes do sexo masculino que se puseram a olhar pelo postigo, a rir-se e a comentar a figura dela. Fazendo-se um inquérito ainda se podem encontrar, naturalmente, depoimentos sobre muitos outros casos. O objetivo é sempre o mesmo: criar no acusado um estado de abatimento.

6) Métodos que levam o preso a desconcentrar-se. Eis como F. I. V. Krasnogorsk, na região de Moscou (segundo me comunicou I. A. P...ev), foi interrogado. A investigadora, no decurso do interrogatório, despia-se pouco a pouco, diante dele, fazendo striptease, mas continuava a fazer perguntas, como se nada sucedesse, andava pelo gabinete e aproximava-se do preso, conseguindo que ele cedesse nas declarações. Talvez se tratasse de uma necessidade pessoal dela, ou talvez de um cálculo frio: o preso é que ficava perturbado e assinava! Quanto a ela, não corria perigo nenhum, pois tinha uma pistola e a campainha.

7) Intimidação. É o método mais fácil de se utilizar, sendo muito variado. É acompanhado freqüentemente de sedução e promessas (falsas, evidentemente). Em 1924: ‘Você não quer confessar? Terá de ir para Solovetski. Nós pomos em liberdade aqueles que confessam’. Em 1944: ‘Depende de eu indicar para que campo o enviam. Os campos são diferentes uns dos outros. Agora temos campos de trabalhos forçados. Se você for sincero, irá para um lugar suave, mas se obstinar pegará vinte e cinco anos de trabalhos forçados subterrâneos, e algemado!’ Intimida-se também o acusado com outra prisão pior: ‘Se você se mantém renitente vai para Lefortovo (no caso de se estar na Lubianka), ou para Sukhánov (no caso de se estar em Lefortovo), e lá não falarão assim com você’. Ora, você já está acostumado: nesta prisão o regime até que é razoável, enquanto lá, que torturas o esperam? E depois a transferência... Não será melhor ceder?
(...) ‘Eu fui advertida de que por falso testemunho pegarei cinco anos de prisão’ (na realidade, segundo o artigo 95, a pena é de dois anos) ‘e, por negar-me a fazer declarações, outros cinco...’ (na realidade, segundo o artigo 92, a pena não excede três meses). Aqui entra já em ação outro método, a que recorrerão constantemente:

8) A mentira. Nós, os cordeiros, não podemos mentir, mas o comissário mente constantemente e todos estes artigos não se referem a ele. Perdemos até já o hábito de perguntar: que lhe pode suceder por mentir? Ele pode colocar ante nós tantos depoimentos falsos quantos quiser, com a assinatura imitada dos nossos familiares e amigos – e isso será apenas um modo refinado de interrogatório.
A intimidação, aliada à sedução e à mentira, é o método ideal para exercer influência sobre os familiares do preso, chamados como testemunhas. ‘Se você não fizer as declarações’ (que eles exigem), ‘isso será pior para ele... Você será culpado(a) da condenação dele’ (como é que uma mãe pode ouvir isto? (*) ‘Só com a assinatura desse’ (impingido) ‘papel você pode salva-lo’ (perde-lo).

(*) Segundo as leis cruéis do Império Russo, os familiares mais chegados podiam, regra geral, recusar-se a fazer declarações. Mas se as fizessem na instrução preparatória, podiam por sua vontade retira-las e impedir que fossem utilizadas no julgamento. O conhecimento ou o parentesco com o delinqüente não eram então considerados como prova!... Coisa estranha... (N. do A.).

Obs.: Da pg. 111 à pg. 124, Soljenítsin enumera 30 formas de tortura utilizadas na URSS. Mais adiante, no livro, enumera mais algumas formas de tortura.


Comunista come criancinha. Culpa? Da Igreja ortodoxa!...

O filme Evilenko, dirigido por David Grieco, trata da história do Monstro de Rostov, em que Andrei Romanovic Evilenko ficou famoso por violentar, assassinar e devorar 55 crianças e adolescentes em várias cidades da Rússia, durante um período de 5 anos. Segundo o filme insinua, tal procedimento psicótico foi resultado da Perestroika iniciada por Gorbachev, em que o comunista ficou perdido ideologicamente, sem saber como sobreviver aos novos tempos. O resultado foi o comunista comer criancinha, uma atrás da outra.

Mas não é sobre este fato bizarro que aqui pretendo me deter. Apenas vou fazer uma transcrição de um trecho de “Arquipélago Gulag”, de Alexandre Soljenítsin, em que ele fala sobre a fome que assolou na Rússia, em que pais comiam seus próprios filhos. Ou seja, não é de todo fantasiosa a frase “comunista come criancinha”, que o próprio Kruschev uma vez quis desmoralizar um presidente americano, repetindo em público a famosa frase.

Vejamos como comunista comia criancinha na antiga Rússia revolucionária e a culpa, obviamente, não era dos 'comissários do povo', porém da Igreja Ortodoxa (Félix Maier):

“No fim da guerra civil, e como sua conseqüência natural, abateu-se sobre a região do Volga um ano de fome como nunca se tinha conhecido. Como isso não adorna muito a coroa de glória dos vencedores desta guerra, falam sobre ele entre os dentes e sem ir além de duas linhas. E no entanto essa fome chegou até ao canibalismo, até aos pais comerem os seus próprios filhos. Nunca uma fome assim tinha sido conhecida na Rússia, nem sequer no ‘Tempo dos Tumultos’ (*) (então, como testemunham os historiadores, os cereais mantinham-se debaixo da neve durante vários anos, sem serem colhidos). Um só filme sobre essa fome poderia projetar uma luz nova sobre tudo o que vimos e tudo o que sabemos acerca da Revolução e da guerra civil. Mas não há nem filmes, nem romances, nem estudos estatísticos – é algo que se procura esquecer, que não embeleza. Além disso, a causa de qualquer fome, é costume fazê-la recair sobre os kulaks. Mas quando a fome era geral, onde estavam os kulaks? V. G. Korolenko, nas suas Cartas a Lunatchárski (**), que contrariamente à promessa deste último nunca se publicaram entre nós, explica-nos as razões da fome e da ruína completa do país: elas residem na queda de toda a produtividade (as mãos trabalhadoras encontram-se ocupadas com as armas) e na perda da confiança, da esperança do camponês de poder ficar com uma parte da sua colheita para si, por menor que fosse. Mas algum dia alguém falará daqueles fornecimentos de intermináveis vagões de víveres enviados durante meses, em aplicação ao tratado de paz de Brest-Litóvski, pela Rússia, privada de vozes de protesto, mesmo das regiões que a fome ia devastar, para a Alemanha do Kaiser, que travava no ocidente os últimos combates.

Da causa ao efeito a cadeia era curta: se os habitantes do Volga comiam os seus filhos era porque nós não tínhamos outra preocupação que não fosse a de dissolver a Assembléia Constituinte.

Mas a genialidade dessa política consistia em obter êxitos a partir da própria desgraça popular. E, num golpe de inspiração, de uma só cajadada matam-se dois coelhos: que sejam agora os padres a alimentarem a região do Volga! Não são eles cristãos e bondosos?
1) Se recusam, culpamo-los de toda essa fome e esmagamos a Igreja;
2) se concordam, limpamos os templos;
3) e, num caso ou noutro, aumentamos a reserva de divisas.

Provavelmente esta idéia foi suscitada por atos da própria Igreja. Como indica o Patriarca Tíkhon, logo em agosto de 1921, quando começou a grassar essa fome, a Igreja criou comitês diocesanos e pan-russos de ajuda aos famintos, começando a angariar dinheiro. Mas permitir uma ajuda direta da Igreja às bocas esfomeadas seria minar a ditadura do proletariado. Os Comitês foram proibidos e o dinheiro confiscado a favor do Tesouro Público. O patriarca fez apelo à ajuda do papa em Roma e do deão de Canterbury, mas ainda aí lhe cortaram a iniciativa, esclarecendo-o de que só o poder soviético estava autorizado a entabular conversações com estrangeiros, e de que não era necessário semear alarma: segundo o que escreviam os jornais, as autoridades tinham todos os meios para acabar com a fome.

Entretanto, na região do Volga comiam-se ervas e solas de sapato, chegando a roer-se as ombreiras das portas. E finalmente, em dezembro de 1921, o Comitê do Estado de Ajuda às Vítimas da Fome propôs à Igreja que oferecesse os seus bens aos famintos – não todos, de resto, mas apenas aqueles que não eram canonicamente imprescindíveis para os serviços religiosos. O patriarca manifestou o seu acordo e o Comitê do Estado de Ajuda às Vítimas da Fome elaborou as instruções: todas as ofertas deviam ser voluntárias! Em 19 de fevereiro de 1922 o patriarca lançou uma mensagem autorizando todos os conselhos paroquiais a oferecer objetos que não fossem indispensáveis aos ofícios religiosos.
E assim tudo corria de novo o risco de dissolver-se no compromisso e enredar a vontade proletária, como tinha noutros tempos sido tentado com a Assembléia Constituinte e como era costume em todos os parlatórios da Europa.
Uma idéia eclodiu num relâmpago! Uma idéia, isto é: um decreto! Um decreto do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia, datado de 26 de fevereiro: confiscar todos os valores dos templos para os famintos.

O patriarca escreveu a Kalínin, mas este não respondeu. Então, em 28 de fevereiro, o patriarca publicou uma nova e fatídica mensagem: do ponto de vista da Igreja, semelhante ato constitui um sacrilégio, e nós não podemos aprovar o confisco.

A meio século de distância, é fácil hoje censurar o patriarca. Naturalmente, os dirigentes da Igreja cristã não deviam ter-se agarrado a objeções do gênero de saber se o poder soviético não tinha outros recursos, ou quem é que tinha levado a região do Volga à fome; não deviam ter-se agarrado a essas riquezas, pois não era em absoluto delas que havia de surgir (se havia) a nova firmeza na fé. Mas é preciso ter em mente a situação desse desgraçado patriarca, eleito já depois de outubro, que dirigia a Igreja há poucos anos, uma Igreja que só tinha conhecido a repressão, as perseguições, os fuzilamentos, e que lhe tinha sido confiada com a missão de a salvaguardar.

Então os jornais lançaram uma campanha contra o patriarca e todos os altos dignitários da Igreja, acusando-os de estrangularem a região do Volga com a mão descarnada da fome! E quanto mais se obstinava com firmeza o patriarca, mais fraca se tornava a sua posição. Em março desenhou-se um movimento entre o clero no sentido de ceder os valores e de chegar a acordo com o poder. Os receios que ainda subsistiam foram expressos a Kalínin pelo Bispo Antonin Granóvski, que tinha passado a fazer parte da Comissão Central do Comitê do Estado de Ajuda às Vítimas da Fome: ‘Os crentes têm receio de que os valores da Igreja possam ser utilizados para outros fins, pra fins mesquinhos e alheios aos seus corações’. (Conhecendo os princípios gerais da doutrina de vanguarda, o leitor experiente concordará em que isso era muito provável, já que as necessidades do Komintern e do Oriente, que se libertava, não eram menos agudas do que as da região do Volga.)

O metropolita de Petrogrado, Veniámin, foi tomado também de um arrebatamento que não podia ser posto em dúvida: ‘Isto é de Deus, e nós daremos tudo. Mas não é necessário fazer confiscos, a oferta deve ser voluntária”.

(...) Veníamin anunciou: ‘A Igreja Ortodoxa está disposta a tudo dar em ajuda dos famintos, considerando como um sacrilégio apenas o confisco pela violência’.

(...) O jornal Pravda de Petrogrado, a 8, 9 e 10 de março (***), confirma a conclusão pacífica e com êxito das conversações e escreve benevvolentemente, referindo-se ao metropolita: ‘No Smólni chegou-se a acordo em que os cálices e os revestimentos dos ícones sejam fundidos em lingotes, na presença dos crentes’.

Mas de novo se está tramando um compromisso! Os vapores envenenados do cristianismo empeçonham a vontade revolucionária. Tal união e tal entrega dos valores não são necessários aos esfomeados da região do Volga! É substituída a equipe invertebrada do Comitê do Estado de Petrogrado de Ajuda às Vítimas da Fome, os jornais lançam ofensas contra os ‘maus pastores’ e contra os ‘príncipes da Igreja’, esclarecendo os seus representantes: ‘Não precisamos de nenhum dos vossos sacrifícios! Nem de ter quaisquer conversações convosco! Tudo pertence ao poder e ele tomará conta do que considerar necessário’.
E começou em Petrogrado, como em todos os outros lugares, o confisco pela força, que deu origem a incidentes graves.
Agora havia fundamentos legais par dar início aos processos religiosos (****).

(*) Período que vai da morte de Boris Godunov (1605) até a ascensão do primeiro Romanov (N. do T.).

(**) Paris, 1922, e samizdat, 1967.

(***) Artigos ‘A Igreja e a fome’ e ‘Como serão confiscados os bens da Igreja’ (N. do A.).

(****) Esses dados foram por mim colhidos do livro Ensaios sobre a história dos tumultos religiosos, de Anatóli Levítin, Parte I, samizdat, 1962, e das Notas de interrogatório do Patriarca Tíkhon, tomo 5 dos atos do processo judicial (N. do A.)”.
(Arquipélago Gulag, de Alexandre Soljenítsin, Difel, São Paulo, 1975, pg. 331 a 335).


Lênin justifica o terror

“Camarada Kurski! Como complemento à nossa conversa envio-lhe um rascunho suplementar para o parágrafo do Código Penal... A idéia fundamental, espero que esteja clara, apesar de todas as deficiências do rascunho: evidenciar abertamente que se trata de uma tese de princípio, politicamente justa (e não somente do estreito ponto de vista jurídico), motivando a essência e a justificação do terror, a sua necessidade e limites.
O Tribunal não deve eliminar o terror; prometer isto seria enganar-nos a nós mesmos ou enganar os outros. Há que fundamentá-lo e legalizá-lo, claramente, sem falsidades e sem adornos. A formulação deve ser o mais ampla possível, pois só a consciência e o sentido revolucionário da justiça decidirão das condições da sua aplicação prática mais ou menos ampla.
Com saudações comunistas,
Lênin (*).

(*) Lênin, Obras escolhidas, 5ª edição, tomo 45, página 190 (N. do A.)”.
(pg. 339 e 340).

Vejamos o que diz a respeito de Lênin o atual ministro da Justiça, Tarso Genro, que promoveu recentemente a coronel o terrorista comunista, desertor e ladrão do Exército Brasileiro, Carlos Lamarca:

“Até meus 30 ou 35 anos, eu era um admirador de Lênin, que conseguiu introduzir, num país atrasado, princípios políticos e organização política modernos, que, mais tarde, se revelaram como uma Revolução Francesa tardia. Reconheço que, do modelo leninista, resultou o stalinismo, mas também resultou a formação de um estado democrático de direito originário das dores desse parto” (entrevista a Veja, páginas amarelas, 11/4/2007).

Obs.: A tautologia de Tarso Genro, fazendo girar seus pensamentos como se fossem os de um peru bêbado em véspera de Natal, não explica o que significa “estado democrático de direito”, sempre repetido por ele e demais esquerdistas, como uma eterna jaculatória. O movimento comunista não levou nenhum país a ser um “estado democrático de direito”, a não ser que Tarso Genro se refira ao terror soviético como uma conquista moderna em matéria de direito (Félix Maier).


Notas:

(1) Gulag - Glávnoie Upravliênie Láguerei (Administração Geral dos Campos): o livro “Arquipélago Gulag”, de Alexandre Soljenítsin, discorre sobre os campos de trabalhos forçados soviéticos (campos de concentração), por onde passaram cerca de 66 milhões de prisioneiros, e sobre a fome endêmica que seguiu a vários planos econômicos fracassados, levando pais a comerem seus próprios filhos (donde se originou, provavelmente, a expressão “comunista come criancinha”). “Sigla em russo de Diretório Geral dos Campos, o Gulag abrangia o complexo de prisões, centros de triagem e campos de trabalhos forçados a que eram condenados opositores do regime, suspeitos de atividades ‘anti-soviéticas’, criminosos comuns e hordas de pessoas que nunca souberam exatamente por que haviam sido encarceradas'. (“Recordações da casa dos mortos”, revista Veja, pg. 60 a 62) No “Gulag” de Vorkuta, milhões de “Zeks” e outros prisioneiros proporcionaram mão-de-obra baratíssima para a derrubada, o corte e o transporte de madeira para a mineração. Segundo afirma o economista soviético Vasily Selyunin, “a princípio, os campos eram usados para sufocar a oposição política à revolução de 1917; depois, tornaram-se um meio de resolver tarefas puramente econômicas.” O coronel Danzig Baldaiev, ex-integrante da polícia política soviética, fez chocantes desenhos sobre o Gulag, retratando estupros e mortes em massa que lembram as ossadas em um campo de concentração nazista. Esse trabalho resultou em um documentário feito pelo repórter Angus Macqueen, da BBC inglesa.

(2) Samizdat - Sistema de contrabando de manuscritos de intelectuais soviéticos para o Ocidente. Às vezes, a própria KGB estava por trás desses contrabandos, recebendo elevadas somas de dinheiro por obras proibidas na União Soviética que eram publicadas no exterior. Nesses casos, os manuscritos eram confiscados das residências dos dissidentes e remetidos ao Ocidente à revelia do autor. Em 1967, 3 livros sobre expurgos e campos de concentração tinham sido contrabandeados para o Ocidente: “Tempestade de Areia”, de Galina Serbryakova, “A Casa Abandonada”, de Lydia Chikovskaya, e “Uma Jornada ao Furacão”, de Evgenia Ginzburg.

(3) Lubianka - Em russo significa “amorzinho”. Era o nome de rua e praça de Moscou, sede das polícias políticas soviéticas (Tcheká, GPU, NKVD etc.) e da prisão famosa.

(4) Kulak - Classe média camponesa (Rússia), surgida após a Nova Política Econômica (NEP), a partir de 1921 e até 1928. A partir de 1928, essa classe foi massacrada por Stalin, junto com os Nepmen (classe de comerciantes e industriais surgida na mesma época), dando origem aos “Sovkhozes”, fazendas estatais coletivas (Gosplan). O erudito marxista Leszek Kolakowski considerou esse massacre como “provavelmente a mais maciça operação militar jamais conduzida por um Estado contra seus próprios cidadãos”. Somente no período da coletivização e eliminação de classes (1929-36), 10 milhões de homens, mulheres e crianças tiveram morte antinatural (estudo demográfico de Iosif Dyadkin, “Avaliação de mortes antinaturais da população da URSS em 1927-58”, que circulou sob a forma de samizdat). Com o fim dos kulaks, para conseguir moeda estrangeira, Stalin passou a vender secretamente, para o Ocidente, obras de arte do Museu Hermitage, Leningrado, uma coleção que levou mais de 100 anos para juntar. “Os quadros foram adquiridos por milionários do mundo inteiro. O maior foi Andrew Mellon que, em 1930-31, obteve, por US$ 6,654,053.00, 21 quadros, incluindo 5 Rembrandt, 1 Van Eyck, 2 Franz Hals, 1 Rubens, 4 Van Dyck, 2 Rafael, 1 Velásquez, 1 Boticelli, 1 Veronese, 1 Chardin, 1 Ticiano e 1 Perugino – provavelmente o tesouro da melhor qualidade jamais transferido numa única tacada e tão barato. Todas essas obras foram para a Washington National Gallery, criada virtualmente por Mellon” (Paul Johnson, in “Tempos Modernos”, pg. 226). O embaixador americano em Moscou, Joseph E. Davies, que disse sobre Stalin que ‘uma criança gostaria de sentar-se no seu colo e um cachorro caminharia a seu lado’, era subornado pelo Governo soviético para emitir falsas informações a seu país, e que por isso lhe permitia “comprar ícones e cálices para a sua coleção particular a preços abaixo do mercado” (Ib., pg. 232). “Além daqueles camponeses executados pela OGPU ou mortos em batalha, um número entre dez e onze milhões foi transportado para o norte da Rússia européia, para a Sibéria e para a Ásia Central; desses, um terço foi para campos de concentração, um terço para o exílio interno e outro terço foi executado ou morreu em trânsito” (Paul Johnson, op. cit., pg. 228). Sob Lenin, foi utilizado um pequeno número de “escravos políticos”, mas, sob Stalin esse número expandiu-se e “uma vez iniciada a coletivização forçada, em 1930-33, a população dos campos de concentração subiu para 10 milhões e, depois do começo de 1933, ela nunca caiu abaixo desse número, até bastante tempo depois da morte de Stalin” (Paul Johnson, in Tempos Modernos, pg. 230).

(5) Lissenkoísmo - Política oficial soviética do estudo da genética, que classificava as ciências como “burguesas”, de um lado, e como “socialistas” ou “proletárias”, de outro lado. As teorias mendelianas de hereditariedade, adotadas pelo principal geneticista da União Soviética, Nikolai Vavilov, eram consideradas um anátema para os dirigentes soviéticos. Como os genes, àquela época, não podiam ser “vistos”, os lissenkoístas podiam acusar os mendelianos de os haver “inventado”. O Lissenkoísmo confiava mais na criação do que na natureza, estava mais empenhado em moldar o “novo homem socialista” do que aceitar a realidade dos caracteres humanos geneticamente transmitidos e suas mutações ocasionais. A teoria genética desenvolvida por Gregor Mendel, Thomas Morgan, Hugo de Vries, August Weismann, recebeu oposição na União Soviética dos geneticistas liderados por I. V. Michurin e T. D. Lissenko, que seguiam o lamarckianismo – a crença na hereditariedade dos caracteres adquiridos – e métodos de tentar mudar os caracteres por meio de mudança do ambiente, uma concepção que se encaixava melhor nas idéias marxistas-leninistas. “A biologia soviética caiu nas mãos do extravagante e fanático T.D. Lissenko, que pregava uma teoria de caracteres adquiridos por herança, à qual chamou de ‘vernalização’: a transformação de trigo em centeio, pinheiros em abetos e assim por diante – essencialmente tolices medievais. (...) A genética foi atacada ferozmente como ‘uma pseudociência burguesa’, ‘antimarxista’, que levava à ‘sabotagem’ da economia soviética. (...) Na medicina, uma mulher chamada O.B. Lepeshinskaya, pregava que a velhice poderia ser adiada graças a lavagens intestinais de bicarbonato de sódio” (Paul Johnson, op. cit., pg. 381).

Veja, ainda, os seguintes verbetes do 'Arquivos I - Uma história da intolerância', de minha autoria, disponível em www.usinadeletras.com.br:

Campo de concentração, Charachka, Dalstroi, Desestalinização, Dissidentes, Empalação, Escolas de subversão e espionagem, GPU, Hospitais psiquiátricos, Instituto Serbsky, ITL, KGB, Kominform, Komsomol, Komintern, KPZ, KVTCH, ...lag, Lubianka, MGB, MVD, MVTU, NEP, NKGB, NKPS, NKVD, OGPU, RKP(b), PFL, Politburo, Pomgol, Promparti, Revtribunal, RKI, RKKA, RKP(b), Schutzbund, Sistema métrico da intolerância, Slon, Smerch, Smólni, SNK, SOE, Soloviétski, Sovinformburo, Sovnarkon, SVE, SVPCH, Tcheká, Tchon, TCHS, TKP, TON, Tortura, TSIK, UPK, UK, UMAP, USVITL, VAD, VAS, VAT, Verkhtrib, Vetcheká, Vikjel, Vsnkh, VTSIK e ZEK. Leia “Arquipélago Gulag” e “O Livro Negro do Comunismo”, e acesse o Museu virtual do Comunismo (www.gmu.edu/departments/economics/bcaplan/museum/musframe.htm).


Bibliografia consultada:

JOHNSON, Paul. Tempos Modernos - O mundo dos anos 20 aos 80. Biblioteca do Exército Editora e Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1994 (Tradução de Gilda de Brito Mac-Dowell e Sérgio Maranhão da Matta).

MAIER, Félix. 'Arquivos I – Uma história da intolerância'. Usina de Letras (www.usinadeletras.com.br).

SOLJENÍTSIN, Alexandre. Arquipélago Gulag. Difel, São Paulo, 1975.




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