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Ensaios-->Obstáculos à modernização do Exército -- 29/03/2007 - 11:51 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OBSTÁCULOS À MODERNIZAÇÃO DO EXÉRCITO

Oliveiros S. Ferreira

Conferência proferida em 27/03/2007 no Centro de Estudos Estratégicos do Exército - Brasília


Agradeço ao Centro de Estudos Estratégicos do Exército a oportunidade — que para mim é uma honra — de discutir com tão distinto auditório problemas que aparentemente dizem respeito apenas ao Exército Brasileiro, mas que, na realidade, concernem a todos nós, cidadãos. Minha conferência limitar-se-á a responder aos quesitos que o Centro considera importantes para a continuação de seus estudos. Aquilo que se poderia entender por “visão acadêmica” envolve a consideração de tantos outros aspectos que, para expô-los, seria obrigado a tomar todo o vosso tempo por mais de uma tarde.

Antes de procurar responder ao questionário que me foi enviado, creio necessário esclarecer alguns problemas semânticos, para que possamos nos entender.

Gostaria, assim, de perguntar: Que se entende por “modernização do Exército”, portanto, por “Exército moderno”? A dar ouvidos ao que se ouve nas ruas, no rádio e na TV, e ao que se lê em muitos meios de comunicação — para não dizer em alguns círculos universitários—, o Exército brasileiro deveria patrulhar as fronteiras para combater o contrabando e o tráfico de armas e de drogas, e patrulhar as ruas contra o crime organizado. Por gentileza, talvez, não é dito que deve distribuir água e cestas básicas para impedir que os políticos se apropriem desses recursos para seus fins eleitorais. A darmos ouvidos a essas vozes, para se “modernizar” o Exército mudaria de função, passando a ter novas que, a meu ver, desmotivariam oficiais e tropa e perverteriam a missão precípua do Exército. Esta missão, a meu ver, é aquela que se estabelecia já na Constituição de 1824. Permito-me lembrar dois artigos dela:

“Artigo 145 — Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independência, e integridade do Império, e defendê-lo de seus inimigos externos, ou internos”.

“Artigo 148 — Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança, e defesa do Império”.

Acrescentemos a Aeronáutica, substituamos a palavra “Império” pela palavra “Estado” e teremos definidas as funções próprias de um Exército — e também as do Exército Brasileiro.

Ao discutir a “modernização” nos termos em que muitos a colocam hoje em dia, a meu ver equivocadamente, devemos ter em conta que boa parte dessas novas funções que se pretendem sejam as do Exército faz parte do que a doutrina militar do governo dos Estados Unidos da América recomenda para os países da América Ibérica e das Antilhas (hoje chamadas de Caribe). Para que não se diga que exagero, basta ler as informações sobre a posição dos Secretários da Defesa dos Estados Unidos nas reuniões dos Ministros da Defesa (e lembro que, antes, o Brasil se representava pelo chefe do EMFA sem problema algum de precedência e protocolo). Por essa doutrina, que é bastante antiga, as Forças Armadas na América Ibérica já não teriam mais função militar, pois as guerras são consideradas obsoletas nesta parte do mundo, e assim elas deverão, sob controle do Poder Civil, dedicar-se a funções próprias de uma gendarmaria. E, no máximo, de tropa auxiliar de forças continentais ou da ONU em defesa do hemisfério ou do Ocidente.

Feita essa introdução, que é mais um esclarecimento de minha posição frente ao problema, passemos ao que vos interessa.

Quais os obstáculos exógenos ao Exército que dificultam sua modernização?

O primeiro obstáculo exógeno a vencer é ideológico. Diz respeito à função das Forças Armadas no conjunto das instituições políticas.

Há, hoje, no Brasil, quem esteja buscando elaborar uma doutrina vazia na única intenção de diminuir a presença das Forças Armadas no Estado como se fosse assim possível evitarem-se as intervenções militares na política. E, por decorrência, evitar-se a repetição de 1964. A “novidade” que essa doutrina traz é que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica deveriam subordinar-se ao Poder Civil — como se nunca tivessem estado subordinados. Por essa doutrina, as Forças Armadas teriam poucas, quase nenhuma função militar a cumprir, e aquelas que vêm executando há tempos poderão ser reduzidas — pela presunção de que não há a possibilidade de guerras externas a nos ameaçar — ou então ser passadas para o âmbito e a responsabilidade civis, custe o que custe à segurança nacional. (peço perdão por empregar palavra que hoje está no índex das palavras consideradas malditas.) A crise no controle aéreo é disso o exemplo mais significativo.

Por detrás dessa doutrina está também o empenho em mostrar urbi et orbi que as Forças Armadas não têm mais função no conjunto das instituições políticas, vale dizer, não mais função no Estado tal como tiveram no Brasil a partir de 1840, quando sustentaram o Golpe da Maioridade. Com o perdão da imagem, o Exército Brasileiro, mais que as outras Forças, encontra-se navegando entre Cila (os grupos organizados da dita Sociedade Civil nacional e agora pretendendo existir como internacional) e Caribde (os Estados Unidos da América). O perigo que o Exército corre é que a tripulação, do comandante ao grumete, decida aportar onde for mais seguro. Este é um fato, por maior que seja a crueza com que o apresento.

Outro fator exógeno é de origem externa, internacional mesmo, que, tudo indica, já produziu efeitos na organização do Exército brasileiro. Após o fim da Guerra Fria, ganhando contornos mais definidos depois dos atentados de 11 de setembro, criou-se nova situação internacional na qual o Brasil se vê envolvido: a relevância que vem assumindo as chamadas missões de paz das Nações Unidas. A situação afeta diretamente os Estados Unidos, cujo governo se preocupa com o fato de que poderá ser chamado, quando não decide intervir por vontade própria, a projetar poder ou intervir militarmente em determinadas regiões do globo em que sua segurança territorial não está imediatamente ameaçada. O problema, que se colocou para o Governo dos Estados Unidos depois da crise na Somália, é que decidiu que só realizará essas intervenções caso lhe seja confiado o comando total das operações que, não nos esqueçamos, sempre, se darão sob a bandeira da ONU. Essa preocupação não é apenas dos planejadores militares. É, hoje, objeto da atenção de pensadores civis, que já cuidam de elaborar o que chamam de “novo mapa do Pentágono”. Nele, o inimigo número 1 não é a China nem a Rússia, mas o que chamam de “países desconectados” — os que não flutuam no mainstream da globalização (produção, comércio, finanças, telecomunicações) — que alguns chamam há tempos de “Estados falidos”. Esses são países em que não se encontra a forma estatal que nos habituamos a ver no Ocidente e em países da Eurásia ou da Ásia, mas que se apresentam, apesar disso, como um arremedo de Estado e são reconhecidos como Estado pelas Nações Unidas. Os “Estados falidos”, registre-se para fins de análise, nada têm a ver com os “párias” a que se refere o presidente George W. Bush. Entre os “países desconectados”, podemos ver, neste novo mapa, alguns andinos e, caso típico, o Haiti. Ao examinar a situação que se cria a partir da premissa da “falta de conexão”, há quem sustente que não faz sentido, num mundo globalizado, pensar no princípio do uti possidetis — o que nos afetará, uma vez que sobre este princípio, não outro, a diplomacia brasileira demarcou parte de nossas fronteiras.

São muitos — e não preciso mencioná-los todos — os casos de “Estados falidos” ou em crise política interna nos quais as Nações Unidas têm realizado intervenções a pretexto de salvaguardar a paz e a segurança internacionais. Essa situação não é nova, tanto no que diz respeito às razões que levam as Nações Unidas a intervir, quanto no que se refere a quem intervém. Convém discernir entre “razões” e “sujeitos agentes” para que possamos ter idéia clara do que pretendo afirmar.

O primeiro tipo de intervenção é aquela em que as Nações Unidas guarnecem uma zona desmilitarizada, uma zona tampão, entre forças militares estatais. Se a memória não me trai, a primeira vez em que tropas da ONU foram mobilizadas para separar forças militares antagônicas foi no fim da guerra da Coréia, quando colocaram-se na zona desmilitarizada para isolar as forças combatentes. Depois, em 1956, foram de novo mobilizadas para separar forças de Israel e do Egito após a guerra de Suez. Dessa vez, o Brasil já participou.

O segundo tipo de intervenção é para realizar missão de apaziguamento da tensão causada pelo conflito entre forças paramilitares, ou a tensão entre elas e forças governamentais que disputam internamente o poder de Estado, ou então para cumprir missões como as que foram realizadas em Angola. A justificativa que o Conselho de Segurança encontrou para essas intervenções foi de que elas se realizavam para garantir a paz e a segurança internacionais. As intervenções foram sempre aprovadas desde que não afetassem os interesses das potências com direito de veto no Conselho de Segurança. As grandes potências, vale dizer as potências nucleares, nunca participaram dessas operações, seja para manter, seja para estabelecer a paz. Para cumprir a missão digamos civilizadora, as Nações Unidas convocaram terceiros Estados. Pensando na “conexão” atrás estabelecida, ouso dizer que foram chamados aqueles “Estados conectados”, que poderíamos denominar, por analogia, “Estados sipaios da globalização”, conforme já me referia em artigo* em que refletia sobre a morte do General Bacellar no Haiti. Por “sipaio”, entenda-se, como consta de dicionário português, soldado natural da Índia a serviço dos ingleses durante o período em que a Índia era a Jóia da Coroa britânica.

Em que medida esse tipo de operação sob a bandeira da ONU é um obstáculo à modernização do Exército brasileiro?

Tenho plena consciência de estar enveredando por campo minado ao dizer que a participação do Exército Brasileiro nessas missões de paz, que são missões fundamentalmente policiais, apenas serve para fragilizar os esforços em potenciar a idéia básica de que a missão do Exército é militar. Peço-vos que raciocinem comigo, pensando na extremidade lógica das ações e das intenções.

Ao participar das missões de paz, o Exército Brasileiro não se engaja em eventuais ações contra forças militares estatais. Realiza apenas, quando necessário, operações policiais em meio urbano. Operações de risco, mas ainda assim policiais no caráter, no planejamento e na ação. Alguém poderia argumentar que, participando das operações de paz, o Exército cumpre missões que permitem que esteja preparado para “prováveis conflitos”, assim aperfeiçoando e desenvolvendo “a doutrina das operações de resistência”, considerando, também, “as ações em ambiente urbano, pois são decisivas para os objetivos da Estratégia de Resistência” tal como estabelecido na Diretriz Geral do Comandante do Exército de 2003.

Não cabe aqui discutir se a chamada estratégia de Resistência é Ofensiva ou Defensiva, ou Defensivo-ofensiva, como deve ser a de qualquer Exército quando pensamos na defesa do Estado contra seus inimigos externos. Mas uma análise mais aprofundada do que vem ocorrendo e do que poderia significar essa Estratégia da Resistência nos levaria à conclusão de que o Exército Brasileiro corre o risco de estar se especializando em ações contra inimigo interno, com capacidade de planejamento, organização e ação que o torne decisivamente superior no ambiente urbano.

Ora, no momento em que organizações militares antes voltadas para sua ação especificamente militar — inclusive a de dissuasão no ambiente urbano — se transformam em organizações para Garantia da Lei e da Ordem, aceita-se (como diria um psicólogo, ativamente) a doutrina de que as Forças Armadas podem ser uma gendarmaria e para tal se preparam nas missões de paz da ONU. E aceita-se também que as Polícias Militares serão superadas por adversários superiores na sua precípua função de garantir a ordem pública. E caberia ainda nos indagar quem seria exatamente esse inimigo interno superior contra o qual o Exército Brasileiro deve estar preparado para agir.

Quais os principais atores que interferem nesse processo — o de criarem-se obstáculos à modernização?

Talvez seja mais prático, para os efeitos da exposição, enumerá-los e tecer alguns comentários, quando necessário. Mais adiante veremos que um Exército moderno, num país como o Brasil (extensão e posição territoriais) não pode restringir seu planejamento a uma equação semelhante a essa: Modernização = Material moderno.

Vamos agora aos atores.

1. O Governo, nessa figura entendido Executivo e o Legislativo.

Não devo afirmar, porque não me consta ser um fato, que o Executivo pretenda reduzir as Forças Armadas a uma simples gendarmaria nas funções e equipamento, além de procurar separar, a título não se sabe do quê, a Reserva da Ativa.

Se isso não for uma verdade, mas apenas mera suposição, seremos obrigados a interpretar que os responsáveis pela condução da Política de Defesa não são capazes de considerar a importância das Armas no Estado e o papel que desempenharam ao longo da História como fatores de modernização de diferentes aspectos da vida social. A relação entre o Governo e as Armas deve ser repensada para que não voltemos à Idade Média, quando o Rei podia dizer que aquilo que lhe aprazia era lei.

2. o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, através de pressão nem sempre clara.

3. Os meios de comunicação que difundem, pelas mais variadas maneiras, a Idéia-Frankenstein segundo a qual o apetrechamento adequado do Exército é incompatível com a crise social que o País atravessa, e

4. as Organizações não-governamentais que atuam na Amazônia, para quem a adequação e a presença do Exército na área vão contra seus interesses.

Quais os aspectos da cultura organizacional são percebidos como entraves à modernização do Exército?

Pelo que aprendemos nas escolas, os Estados Maiores trabalham com o que chamamos de “planejamento estratégico”. Para que o planejamento seja o quanto possível coerente com os dados da realidade, é indispensável que o grupo encarregado de elaborá-lo não esteja enquadrado naquilo que chamo de Führerprinzip, o Princípio do Chefe: “Não duvidar, não discutir, não divergir”. A leitura de livros sobre o planejamento da guerra de 2003 contra o Iraque mostra até que ponto a prevalência das opiniões do Secretário da Defesa, impondo-se burocraticamente às opiniões militares divergentes, por pouco não comprometeu a operação militar no Iraque, mas comprometeu toda o processo de ocupação após a queda de Bagdá (conforme pode ser conferido em Ricks, Thomas E. – FIASCO, The Penguin Press, Nova Iorque, 2006).

Se faço esta referência ao Iraque, é para dizer que o Exército Brasileiro corre risco semelhante, isto é, o de ancilosar-se ao fazer do Princípio do Chefe a norma da elaboração das ordens e decisões estratégicas. Diria que esse mal — pois do ponto de vista organizacional isto é um mal, mais que um erro — remonta às decisões dos Ministros Militares que, em 1969, exerciam a Presidência da República e, no exercício dessa função, editaram o Ato Institucional nº 17, estabelecendo em seguida as normas para a renovação do quadro de Oficiais. Essas ações consolidaram o Princípio do Chefe, desestimularam a crítica construtiva e reforçaram o caráter burocrático das Armas. Com isso, feneceu aquilo que até então era conhecido como Disciplina Intelectual, que consistia na possibilidade de, no quadro de Oficiais, os subordinados colocarem em dúvida a exatidão das ordens, embora as cumprissem.

À pergunta seguinte — “Como tem sido percebida a resposta do EB aos entraves à sua modernização” — responderia que não se percebe essa resposta, se é que ela existe.

Quais as opções estratégicas do EB para superar esses obstáculos?

Vamos por partes, abusando da Disciplina Intelectual.

1. Procedendo a um doloroso exame de consciência que lhe permita ver até que ponto a modernização desejada atende às funções que o Exército deve desempenhar nessa quadra difícil de nossa história interna e das relações com nossos vizinhos. Essa funções, diria agora, são político-militares.

Para que possa elaborar a estratégia que permita atingir os fins colimados, é preciso definir exatamente quais possam ser fins desejados e joeirar os desafios para distinguir os fundamentais dos secundários. Um deles é o seguinte: o Governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva quer que o Exército incorpore 30 mil recrutas (tomemos pelo valor de face, necessariamente válido para quem examina situações) para ensinar-lhes uma profissão civil e não mais aprender a combater. “Das intenções não julga o Pretor”, diziam os romanos. Mas um sociólogo da velha escola diria que esse número obrigará o Exército a desviar-se de sua missão essencial. Como o recrutamento é anual, o desvio de objetivo será permanente e, em poucos anos, o espírito militar desaparecerá. A decisão presidencial não pode ser questionada. O problema é como acatá-la sem que se alterem a função e a missão do Exército.

Em 1962 ou 1963, escrevi artigo — que, com outros, deu origem ao livro “As Forças Armadas e o desafio da Revolução” — em que abordava justamente esse problema e lhe dava solução a meu ver compatível com a missão político-militar do Exército. Vivíamos então o começo do fim da República Risonha e Franca de 1946. Essa solução consistia numa mudança radical do que eu chamava de doutrina política do Exército. Previa que a Força de Terra assumiria a função de incorporar os desamparados ao processo civilizatório. Como? Dando-lhes primeiro o Livro, depois o Arado e finalmente a Espada. Para isso, havia necessidade de que, ao lado de um Exército altamente móvel e tecnicamente moderno, houvesse outra estrutura institucional que cuidasse dessa missão civilizadora.

O que eu propunha era muito mais do que o Presidente da República parece hoje desejar. Porque, com o Livro, o Arado e, em seguida, a Espada, integrava os desassistidos ao processo civilizatório que estava em marcha. E ainda seria tempo de deter a desarticulação provocada pelo êxodo rural e pela inflação que se avolumavam sob o olhar complacente do Estado.

Essa é uma missão nacional. Quadros para executá-la não faltam: quantos Oficiais com longa vivência de enquadrar pessoas, ensinar-lhes disciplina e exigir atenção ao que fazem — além de amor à Pátria — não vão para a Reserva todos os anos? Um Exército de Professores altamente qualificados sem um projeto de Destino a cumprir.

2. Nenhum planejamento pode desconhecer a revolução no armamento.

O planejamento de um Exército moderno consiste em planejar para a guerra em tempo de paz. No caso brasileiro, o custo da guerra deve ser considerado, especialmente tendo em vista as restrições orçamentárias a que as Forças Armadas brasileiras estão sujeitas e o problema estrutural que enfrentam que é a relação Orçamento/Despesas com Pessoal.

Há, nos Estados Unidos, quem diga que o contribuinte não poderá sustentar, por muito tempo o custo das forças armadas norte-americanas. Esse custo é relacionado com a eficácia do armamento. É, cinicamente falando, uma relação Eficácia / Custo, em que eficácia é a letalidade do armamento empregado e a probabilidade de que não seja destruído ou sua ação neutralizada em virtude da distância que se encontra do alvo. Não é, porém, uma equação simples, diríamos de primeiro grau; ela é parte de um sistema em que se acrescenta uma outra equação, Custo Total de Operação com armamento convencional ou de tecnologia inferior / Custo Total de Operação com armamento mais sofisticado, ambos com potencial de letalidade semelhante. Armas inteligentes demonstraram sua superior eficácia na campanha da guerra contra o Iraque em 2003 a baixo custo relativo.

Nesse novo quadro, em que há uma revolução que poderíamos chamar de geopolítico-tecnológica em curso, na medida em que os efetivos progressos nesse campo de alta tecnologia dão-se nos Estados Unidos, convém atentar para algumas considerações feitas por autores norte-americanos:

a). Ameaçando a utilidade das armas tradicionais, as novas armas ameaçam fazer uma revolução na guerra, que corre paralela à revolução geopolítico-tecnológica atrás mencionada. De fato, as novas armas reforçam a mudança geopolítica em curso colocando o poder em algumas mãos e o retirando de outras. As novas armas têm em si a possibilidade de transformar o próprio sentido do poder geomilitar. O que significa, segundo esses autores, que Estados pequenos como Israel e Cingapura, mas com grande base tecnológica de duplo uso, civil-militar, podem ser relativamente poderosos desde que acompanhem o sentido dessa revolução nos armamentos — embora o poder efetivo se desloque sempre, hoje, para os Estados Unidos.

b). Parafraseando Mackinder — quem controlar o Coração da Terra controlará a Ilha do Mundo, quem controlar a Ilha do Mundo controlará o Mundo — George e Meredith Friedman assim resumem a análise que fazem da revolução tecnológica no campo dos armamentos: “Quem controlar o espaço, controlará os oceanos do mundo. Quem controlar os oceanos controlará os padrões do comércio global. Quem controlar os padrões do comércio global será o poder mais rico (wealthiest power) no mundo. Quem for o poder mais rico no mundo terá condições de controlar o espaço” (Friedman, George & Meredith — The future of the war (Power, technology and American world dominance in the 21st century), St. Martin’s Griffin, New York, 1998).

Gostaria, agora, de tirar algumas conclusões heterodoxas sobre tudo o que disse.

De acordo com o que aprendemos nas escolas, os Estados Maiores devem trabalhar com o que chamamos de “planejamento militar em tempo de paz”. Além de não poder subordinar-se ao Princípio do chefe, o esforço básico e primordial no planejamento militar em tempo de paz será definir o Inimigo Número 1. Se o inimigo for uma mera construção intelectual, ainda assim deverá ser considerado no planejamento sob pena de o Estado, em qualquer emergência interna ou externa, não ter como se defender. É, portanto, necessário estabelecer como o inimigo agiria contra quem planeja — e para tal faz-se mister conhecer (ou estabelecer a priori) seus objetivos políticos, de que armamento dispõe e qual sua doutrina de emprego. Será preciso que o grupo que planeja tenha presente, também, em que quadro político-diplomático esse inimigo será suposto agir e quais alianças fará. O planejamento militar em tempo de paz é planejamento defensivo que poderá ser defensivo-ofensivo conforme a batalha evolua e tenda ou não aos extremos.

Temos, o Brasil, um Inimigo Número 1? Terminada a primeira fase da Guerra Fria — aquela em que o Ocidente enfrentava o Comunismo solidamente ancorado na União Soviética e com ramificações em Cuba — já não temos inimigo externo, a menos que consideremos provável e, portanto, merecedor de atenção, o planejamento para enfrentar a1. um eventual ataque dos Estados Unidos; a2. um eventual ataque de um de nossos 10 vizinhos.

O planejamento, na primeira hipótese, deverá ser eminentemente defensivo e de guerra não-convencional como se verifica, hoje, no Iraque, podendo tender à “guerra prolongada” preconizada por Mao Tse-tung. Se essa hipótese for considerada válida, será preciso, dentro das limitações orçamentárias, repensar o equipamento requerido para enfrentar uma ameaça que se configurará em diferentes partes do território nacional ao mesmo tempo, pela ação de divisões aerotransportadas e divisões de fuzileiros navais atacando onde melhor lhes parecer ao abrigo da supremacia do Poder Aéreo e do controle do Espaço. Nessa hipótese, dever-se-ão considerar, também, as alianças possíveis do agressor com nossos vizinhos, o que tornará a defesa ainda mais problemática no quadro da atual doutrina de emprego e do armamento disponível ou a ser adquirido em função de velhas hipóteses.

Note-se que as armas de última geração foram planejadas para ser ofensivas, permitir que o C3I seja otimizado e evitadas ao máximo baixas humanas — o que não exclui possibilidade daquelas de primeira geração, ou mesmo de última geração da Era anterior à Revolução Tecnológica nos Armamentos serem empregadas defensivamente. Nessa hipótese, os planejadores deverão, antes, resolver aquele sistema de equações que apresentei.

Na segunda hipótese, de o Inimigo Número 1 estar no ambiente circundante, é necessário definir se a doutrina será ofensiva ou defensiva. A preocupação com um dispositivo de dissuasão parece ser a diretriz hoje vigente, como se lê na Diretriz Geral de 2003: “O EB do futuro: preponderância relativa da Estratégia de Dissuasão, com incremento da participação na Projeção de Poder”. Ainda que esta estratégia seja correta e leve em conta a diversidade geográfica nas diferentes fronteiras, é preciso levar sempre em conta que qualquer eventual inimigo poderá dispor para sua defesa de armas de última geração da Era da Revolução Tecnológica ou da última geração da Era anterior, o que colocará a força atacante em situação difícil.

Na verdade, o Exército — as outras Forças, igualmente — está diante de uma situação curiosa (além de navegar entre Cila e Caribde como mostrei atrás): o jogo constitucional, para não dizer a correlação de forças que se estabeleceu na sociedade política a partir de 1979, quando os Atos Institucionais perderam eficácia, coloca-o diante de uma disjuntiva que definirá o que ele é e representará para a Nação e o Estado Brasileiros. Precisa decidir se aceita passivamente ou não aceita ser excluído enquanto Instituição das decisões concernentes ao futuro do Estado Brasileiro.

Não aceitando, apoiado em uma organização eficiente para o cumprimento de sua missão e em um planejamento que leve em conta a geopolítica tecnológica do armamento e os atuais constrangimentos orçamentários, poderá reivindicar a volta ao status que vigorou de 1840 a 1969 (quando foi baixado o Ato Institucional nº 17 para disciplinar as Forças Armadas).

Apartado das decisões que concernem ao Estado e tendo em vista a pretendida projeção internacional do País o caminho que se abre para o planejamento do Exército é conformar-se com servir apenas como componente da força militar dos Estados Sipaios que a idéia de Globalização vem criando sob égide da ONU para resolver problemas em Estados falidos.

Por fim, uma grave questão envolvendo a Soberania brasileira: a situação atual na Amazônia.

Poucos países no mundo possuem tantos vizinhos quanto nós. Até anteontem, essa realidade era mero fato geográfico e eram poucos a apontar as decorrências geopolíticas e geoestratégicas dele. Orgulhosamente, como Euclides da Cunha, voltávamos as costas para essas “republicolas” e nos preocupávamos com o juízo que de nós fariam Europa e Estados Unidos. Até 1960, a Amazônia não era motivo de preocupação, pois era tida como Região Amortecedora — na nossa Geopolítica e na de alguns pensadores norte-americanos.

Para nós, civis, a Amazônia apenas passou a ser algo mais do que uma região ocupada por uma densa floresta tropical em 1986, quando milhares de cidadãos suíços assinaram documento que foi submetido ao Congresso constituinte no Brasil com a clara intenção de que fosse incorporado ao texto da Carta Magna que estava sendo elaborada, dando às tribos indígenas o status de Nação. Concomitantemente, ou talvez já antes, a ONU passou a discutir em Genebra, no silêncio aprazível daquela cidade, o estatuto a ser conferido internacionalmente aos índios. A chamada “emenda suíça” não foi levada em consideração, mas a ONU prosseguiu silenciosamente seus estudos — discussões, diga-se de passagem, abertas a quem se interessasse por elas. E éramos poucos, muito poucos.

O Exército, antes do que nós civis, talvez tenha tido consciência de que não vivíamos mais na Idade de Ouro. No governo Sarney, antes da reunião da Constituinte em 1987, cuidou-se de criar a Calha Norte. Bastou a presença de pelotões de fronteira em alguns pontos considerados vitais para que o Governo recebesse das organizações da dita Sociedade Civil, especialmente da CNBB — que guarda pouca ou nenhuma relação com a sociedade civil, já que seus membros são nomeados pelo Papa — crítica ardorosa como se o Exército tivesse por missão assustar as tribos indígenas. Depois vieram as demarcações de territórios indígenas contínuos sem que se atentasse para as necessidades das populações não-indígenas que viviam nos Estados membros da União que perdiam jurisdição sobre boa parte de seu território. Muito menos se cogitou da segurança do Estado Nacional quando foi doado a uma tribo um território que elimina a fronteira brasileira com a Venezuela. A Amazônia deixou, assim, por pressão interna e decisão de nossos governos pós-1985, de ser a tranqüila Região Amortecedora para ser considerada res nullius por chefes de Estado ou de Governo estrangeiros e por muitas ONGs que agora dizem fazer parte da dita Sociedade Civil Internacional.

A demarcação das terras indígenas desatenta à segmentação territorial dela decorrente e desprezando o perigo que corre a unidade do Estado brasileiro, coloca em risco a segurança nacional. Digo isso pensando na extremidade lógica de todos os atos dos que consideram aquela área res nullius ou de interesse mundial, além dos esforços da ONU para dar o status de Nação às coletividades indígenas. Nesse quadro, seria o caso de repensar os prós e os contra da incorporação ao Exército, por curto período, de índios de etnias diferentes, às quais é conferido o direito de manterem seus costumes e idioma próprios. A presença de ONGs estrangeiras na Amazônia, repetidas vezes denunciada sem que haja reação efetiva dos órgãos decisórios governamentais, poderá abrir caminho para que, um dia, uma tribo dessas proclame suas prerrogativas de “nação” e recorra à ONU para ver reconhecidos seus direitos “nacionais”.

Esse é o problema com o qual as Forças Armadas, especialmente o Exército, terão de se defrontar em seu planejamento, pesando os riscos que corre a soberania nacional e os perigos da eventualidade de um julgamento por um tribunal faccioso como seria o Conselho de Segurança da ONU ou a própria Assembléia Geral.

Caberia, ainda, discorrer sobre a situação internacional e a possibilidade de o Brasil em conflitos em que estejam em jogo nossos interesses nacionais. A exposição desse cenário requereria um tempo de que não disponho. Aos que se interessarem, deixo, como se fora um anexo, as considerações que fiz juntamente com o teor desta conferência em um disquete que ora entrego à mesa**.

O planejamento subseqüente à escolha de um dos partidos de ação decorrentes dessas opções enumeradas no decorrer desta palestra não deve, ao contrário do que nos ensinaram, começar pela escolha do Inimigo. Deve, isto sim, ter como ponto de partida os pontos vulneráveis, os pontos fracos, os do Estado. Eles podem ser observados desde as críticas dirigidas aos Governos pela inércia em matéria de segurança pública à paulatina perda da consciência da importância da segurança do território para segurança do Estado. E na campanha silenciosa para desmoralizar as instituições que garantem a unidade do Estado. Preparar-se para equacionar quais são esses pontos vulneráveis, ver como interagem com o Estado, debilitando-o, determinar quem se aproveitará do enfraquecimento do Estado — entes externos ou internos, governamentais ou privados, indivíduos ou grupos que militam contra o projeto nacional do Estado Brasileiro (desde que haja um Estado nacional com projeto, diria o General de Gaulle) — é a tarefa que, em meu entender, vos espera.

Em 1946, o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro escrevia a dr. Sobral Pinto, dizendo o quão triste era o espetáculo do Brasil de “dez milhões de analfabetos e semi-alfabetizados que compõem a vida cívica”. E acrescentava: “É certo, porém, que ordenar o Brasil, dar saúde a seus milhões de doentes, vítimas do impaludismo, sífilis, amarelão, nutrição minguada e errônea, des-higiene, ignorância e apatia, não é tarefa de somenos (...) tudo isso é obra dificultosa, esmagadora e tétrica para o governo. O Brasil letárgico e imoto não despertou à madrugada; preguiçoso chegou ao meio-dia e se assim se detiver até o entardecer do século, não poderá sustentar-se de pé”.

Se trago à lembrança e à consideração essas linhas tão amargas, não é para vos dizer que chegamos preguiçosos ao alvorecer deste novo século; é para assinalar que ainda não encontramos resposta para os desafios que o século XX já nos colocava como Nação. Hoje, quando doenças consideradas já vencidas voltam a nos preocupar e outras tantas novas, aliadas às mazelas morais, tendendo a epidemias, passam a fazer parte do drama cotidiano; quando o Tribunal Superior Eleitoral aponta a alta, diria mesmo altíssima porcentagem de analfabetos e semi-alfabetizados no Corpo Eleitoral, as palavras de Góes Monteiro permanecem atuais. E devem servir de orientação especialmente àqueles que buscam planejar um Exército que seja capaz de enfrentar os desafios externos e internos que ameaçam a segurança do Estado. Para o que a densidade e o volume do Exército e das armas irmãs devem corresponder à grandeza territorial e à complexidade dos problemas do País.

Trago-as de volta aqui também para deixar claro que, depois de 1945, infelizmente, reincidimos nas journées de dupes que o condestável do Estado Novo tanto temia viessem a se repetir depois daquelas vividas em 30 e 37. O desafio com que hoje nos defrontamos é escolher entre ser uma potência que corresponda à geografia que a história até hoje nos garantiu, ou não ser potência, e não tendo o que oferecer às gerações futuras, arriscar-nos a nada ser.

Muito obrigado

* - “UMA VISÃO CURIOSA SOBRE O HAITI” de 15/01/2006 (cf. em “artigos”)

** - O anexo se encontra na página anterior (cf. em “artigos”)

http://www.oliveiros.com.br/ie.html

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ANEXO à Conferência “Obstáculos à modernização do Exército”

Centro de Estudos Estratégicos do Exército, Brasília, 27/03/2007


Para que o planejamento estratégico do Exército possa ater-se às realidades geoestratégicas, será necessário, a meu ver, considerar também o panorama global. Sem preconceitos. Abaixo, busco fazer um retrato da atual configuração mundial. Pela exigüidade de tempo, não me seria possível fazer essas considerações na exposição geral. Deixo-as como um anexo.

Como se caracteriza o cenário internacional, hoje? Pela existência de uma megapotência que tem como princípio fundante de sua política externa o rebus sic stantibus, isto é, que os acordos são respeitados desde que as circunstâncias de hoje sejam as mesmas de quando foram assinados. A adoção (ainda que na prática e não declaradamente) desse princípio pelos EUA, leva, na sua extremidade, a que o governo norte-americano se oriente pela máxima quod principi placuit habet vigorem, vale dizer, “o desejo do príncipe é lei”. Esta é, podemos dizer, uma política de Estado sobre a qual o Brasil (ou até mesmo uma grande potência) não tem condições de intervir nem de contribuir para alterá-la. Essa posição diante do Direito Internacional já era visível no governo Clinton — com a diferença de que não se lhe apresentou situação alguma em que o princípio Pacta sunt servanda — os pactos devem ser respeitados — pudesse ser violado. Não podendo intervir para alterar, cabe-nos registrar que a política externa dos Estados Unidos é orientada pela defesa e afirmação de seus interesses, de sua segurança e de seu comércio e ter esses fatos presente quando da elaboração de qualquer plano estratégico nacional. O que implica não se debruçar sobre a guerra do Iraque como se fosse o único fato importante depois do desaparecimento da União Soviética — sem, no entanto, esquecer a lição do que representa para um exército a falta de planejamento político-militar e uma política que coloca as razões do Civil acima das razões do General, subordinação que Clausewitz já condenara.

O que deve merecer atenção, pois, é o quadro geoestratégico geral de que fazem parte, evidentemente, os Estados Unidos e sua política.

Encerrada a Guerra Fria, tendemos todos a acreditar que as tensões em que o mundo vivera de 1945 a 1981 tinham desaparecido e que a Rússia, sucessora da União Soviética, não mais representava risco para a segurança da Europa. O interregno Yeltsin apenas confirmou essa suposição, como se viu no episódio da intervenção da OTAN na antiga Iugoslávia, quando o apelo ao pan-eslavismo não motivou os russos a intervirem em defesa dos sérvios atacados pela OTAN. O fato com que nos defrontamos hoje, frustrando expectativas e aumentando receios, é que a OTAN estendeu seu manto protetor para países do ex-sistema soviético e está instalando sistemas antimíssil na fronteira leste dos países da União Européia. As últimas manifestações de Putin, estranhando mais uma vez, melhor seria dizer advertindo novamente os Estados Unidos e a OTAN dos inconvenientes (para dizer o menos) dessa política de defesa indicam que a segunda potência nuclear do mundo sente-se novamente cercada. É importante lembrar que muitos dos que analisaram as origens da Guerra Fria atribuem a posição de Stalin ao temor de que a URSS estivesse sendo cercada pelos Estados Unidos. Não deveremos, pois, estranhar, se a Guerra Fria, como um raio num dia de céu azul, voltar a governar a política externa de muitos países. É uma eventualidade para não ser desprezada. Não nos esqueçamos da lição do general Beaufre: a de que, um dia, o “acontecimento” poderá nos surpreender — seja a queda do Muro de Berlim, seja Pearl Harbour.

Na Ásia, a China aparece como potência tecnologicamente avançada no setor militar. Os últimos progressos nesse campo — a anunciada destruição de um satélite — começam a causar preocupação nos Estados Unidos. Não devemos nos esquecer de que a questão de Taiwan não está resolvida. Da mesma maneira, é preciso levar em conta a aliança estratégica Pequim-Moscou. Por outro lado, o Governo de Pequim desenvolve uma política externa que visa, em primeira instância, a garantir o fornecimento de matérias primas necessárias a manter o ritmo extraordinário de seu crescimento econômico — política de garantia de fornecimento também executada por companhias e governos ocidentais. A penetração chinesa na África, inclusive Moçambique e Angola, é fato geopolítico da maior relevância para quem pensa em fazer uma diplomacia ativa voltada à África.

O acordo nuclear Estados Unidos-Índia alterou o quadro estratégico na Ásia, na medida em que Nova Delhi poderá desenvolver sem restrições seu programa nuclear militar. Deve considerar-se, também, que a Índia é hoje um dos grandes centros de conexão da Web, o que ao mesmo tempo lhe dá poder e a torna dependente, do ponto de vista econômico-financeiro, daqueles a quem serve.

A África aparece como um continente humanitariamente perdido — exceto talvez os países situados ao Norte. Não há evidência de esforços da comunidade internacional para buscar resolver os graves problemas sanitários e de saúde que afligem a África. O êxodo ainda é um problema para a Europa, já às voltas com imigrantes vindos do Leste Europeu. As restrições européias poderão desviar o fluxo migratório. Se assim for, e considerando-se que o crime organizado explora também a miséria de seres humanos que buscam melhores condições de existência em países desenvolvidos, não será de estranhar — numa perspectiva de 15 anos — que assistamos de novo ao trágico espetáculo dos navios negreiros, em sua versão do século XXI, singrando o Atlântico Sul.

O Oriente Próximo e o Oriente Médio (convém restabelecer a antiga distinção geográfica) são grandes incógnitas. Geoeconômica e geoestrategicamente, a crise com o Irã deve merecer desde agora atenção tendo-se em vista as repercussões no Brasil e neste mundo que se diz globalizado de novo conflito de grandes proporções na região, envolvendo os Estados Unidos e os países produtores de petróleo. Essas repercussões podem afetar o abastecimento de petróleo, além de obrigar o País a atender às determinações da ONU, aplicando sanções — como já faz com equipamentos que podem ser usados em programas nucleares — econômicas e até diplomáticas. É preciso estabelecer a relação Custo/Benefício de seguir as decisões da ONU, tendo em vista a posição dos países árabes e do Oriente Médio. A Rússia continua tendo interesses na região e não veria com bons olhos que, nela, os Estados Unidos afirmassem a sua presença, desde o Paquistão até o Norte da África. A crise com o Irã, além da continuação da guerra civil no Iraque, deve merecer especial atenção dos órgãos brasileiros encarregados de planejar, especialmente no setor energético.

Os Estados Unidos são o maior mercado do mundo — 400 bilhões no mínimo de déficit na sua balança comercial. A maior potência militar do mundo. Como acentuamos, sua política externa rege-se pelo princípio de defesa do território, de sua segurança e da garantia de seu comércio com o mundo. No que diz respeito à América Ibérica, é necessário acompanhar os fatos que ocorrem na América Central e nas Antilhas e que podem, eventualmente, afetar a segurança territorial ou política dos Estados Unidos. O comércio com a América Ibérica, necessário para muitas companhias norte-americanas, não é motivo de preocupação primeira para o governo dos Estados Unidos.

Pensemos um momento na América Ibérica, especialmente a do Sul, que é o que deve interessar prioritariamente ao Exército Brasileiro no seu planejamento estratégico.

Embora não queira voltar à “teoria do cerco” que se elaborou em alguns círculos militares no início dos anos 1970, não devemos perder de vista que o Brasil está na desagradável situação geopolítica de ter dez vizinhos. Nos círculos dirigentes e intelectuais de alguns deles, a idéia que se faz do Brasil é a do Império do século XIX, hostil, portanto. O número de vizinhos merece atenção porque há, entre eles, alguns que apresentam situações econômico-sociais, portanto políticas, se não instáveis, pelo menos preocupantes. Preocupantes no que tange ao fornecimento de energia para o Brasil. O fornecimento de energia indispensável ao consumo brasileiro, industrial e residencial, depende em cerca de 10% ou mais da política de países vizinhos: Venezuela, Bolívia, Paraguai: no Sudeste e no Centro Oeste, o fornecimento de energia elétrica ou gás para as indústrias e residências é assegurado pela eletricidade gerada em Itaipu e pelo gás que vem da Bolívia. A incerteza que acompanha o fornecimento de gás pela Bolívia é fato do nosso dia a dia. No Paraguai, os candidatos à Presidência (eleições em 2008) já levantaram a bandeira do combate ao “imperialismo brasileiro” e da necessidade de rever as tarifas de Itaipu e também de resolver o problema da dívida paraguaia com o Brasil. Igualmente grave, começam a discutir a presença de 800 mil brasileiros que cultivam a terra em regiões que dizem ser de fronteira. Quanto à Venezuela, não há ainda indícios de que a execução do acordo que fornece energia para Roraima venha a enfrentar por ora obstáculos políticos.

Outro fato que merece atenção — e diria redobrada — é que a Venezuela realiza um esforço armamentista que aparentemente não se vincula a qualquer perigo que o Estado venezuelano esteja efetivamente enfrentando — esforço diante do qual a anunciada compra, pelo Brasil, de aviões Mirage-2000C não tem qualquer sentido defensivo. Ao mesmo tempo, o ingresso da Venezuela no Mercosul criará para o Brasil situação delicada quando o bloco regional tiver de realizar, com os Estados Unidos e a União Européia, negociações cuja conclusão pode nos ser útil, mas poderá também não interessar à Venezuela — já não digo à Argentina...

É o caso de perguntar que sentido tem a política que Chávez desenvolve, que entende pela “revolução bolivariana” e qual a relação que a política e a revolução têm com os armamentos que está adquirindo na Rússia.

Há quem veja Chávez como mais um populista a perturbar o ingresso e a atuação de empresas estrangeiras na Venezuela e, se tudo der certo, na América do Sul. A maneira gentil pela qual tratou as empresas petrolíferas européias que nacionalizou indica que não quer complicações com a União Européia. Classificá-lo como populista faz dele um político como outro qualquer. Uma observação atenta de seus atos, no entanto, mostraria que estamos diante de um governante que tem uma estratégia, traçada por ele, sozinho, ou por ele mais seus assessores.

Observe-se que ele não agride os Estados Unidos naquilo que afetaria os interesses norte-americanos: o petróleo. Dir-se-ia que não o faz porque também depende do mercado norte-americano. A observação deve ser qualificada: o petróleo é uma commodity livremente negociada, como as demais commodities, no chamado mercado spot. Ele poderia colocar parte do petróleo destinado aos Estados Unidos nesse mercado, ainda que perdendo algum dinheiro — não muito dado o alto preço do barril do bruto. Não o faz porque não deseja provocar o leão com vara curta... Ao mesmo tempo, serve-se do petróleo para financiar passos da revolução bolivariana e garantir a compra de armamentos da Rússia.

Dizer que os planejadores venezuelanos não sabiam de certeza sabida que os Estados Unidos não permitiriam a venda dos Tucanos da Embraer nem dos aviões e lanchas espanholas, dizer isso a sério é passar a cada um desses planejadores um atestado de, pelo menos, ingenuidade. Para todos os efeitos de propaganda e tomada de posição em foros internacionais, a Venezuela pretendeu realizar seu esforço de reequipamento de suas forças armadas em países “ocidentais”, amigos dos Estados Unidos. Foi o “não” norte-americano — inviabilizando negócios muito proveitosos ao Brasil e à Espanha — o que levou Caracas a negociar com a Rússia. Do ponto de vista da propaganda, um passo acertado. O que leva a pensar que desde o início Chávez pretendeu armar a Venezuela nos arsenais russos.

Esse é ponto que deve ser considerado. Outro é saber a razão que o leva a reequipar a Força Aérea e a Infantaria com armas modernas, possivelmente sem equivalente nos arsenais sul-americanos. A compra de cem mil fuzis e o acordo para construir na Venezuela instalações industriais para fabricá-los indicam claramente uma intenção agressiva — ainda que o pretor não deva julgar das intenções. A hipótese, absurda, de que estaria se preparando para um ataque norte-americano só se sustenta se estiver prevendo um desembarque e preparando suas milícias para uma resistência prolongada. Essa hipótese de guerra, repito, é absurda, especialmente agora que as lições do Iraque começam a ser absorvidas pelo Pentágono. Na fronteira, a Venezuela tem um longo contencioso com a Guiana. Resolvê-lo pela força das armas desmoralizaria a “revolução” e com toda evidência faria que perdesse apoios no escol e entre os jovens de muitos países vizinhos (para não dizermos no Brasil). Se os aviões servem para garantir uma posição de força, os fuzis podem ser distribuídos a quem se habilitar usá-los contra governos constituídos. Ou, o que é mais grave, para armar milícias organizadas para secundar os esforços de governos que pretendam violentar as regras do jogo democrático e passar por cima das Forças Armadas regulares.

Por sua extensão e posição geográfica, o Brasil é o único país que pode realizar uma política efetiva de oposição aos Estados Unidos no Hemisfério. Foi tendo em vista esse fato geopolítico da maior relevância que fiz menção à “teoria do cerco”. É uma hipótese, a que levanto agora, possivelmente tão absurda quanto a dos Estados Unidos atacarem a Venezuela, mas que cabe fazer pelo menos para desencargo de consciência: o jogo Chávez-Castro-Morales-Kirchner não terá exatamente o objetivo de, num futuro não muito distante, cercando o Brasil e inviabilizando negociações frutuosas com os Estados Unidos e a União Européia, fazer do Brasil o reduto da grande rocada estratégica no Hemisfério?

Fica a pergunta.

Sub censura.


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