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Ensaios-->A revolução documental -- 23/03/2007 - 09:43 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A revolução documental

por Carlos I. S. Azambuja (*) em 22 de março de 2007

Resumo: O colapso do sistema comunista provocou quase que instantaneamente uma revolução documental com a abertura dos arquivos e com a liberdade de palavra dada às testemunhas que, até então, acreditavam estar obrigadas ao ‘sigilo partidário’.

© 2007 MidiaSemMascara.org


“Em 9 de novembro de 1989 caiu o Muro de Berlim, mas ele continua em pé em muitas cabeças. No Leste e sobretudo no Ocidente, a crença continua viva. O luto do comunismo durará ainda por muitos anos e pesará sobre o trabalho dos historiadores que analisam o que foi o Estado-defunto” (O Livro Negro do Comunismo).

O colapso do sistema comunista provocou quase que instantaneamente uma revolução documental com a abertura dos arquivos e com a liberdade de palavra dada às testemunhas que, até então, acreditavam estar obrigadas ao ‘sigilo partidário’.


Durante quase três quartos de século, os únicos documentos dos quais dispunham os observadores do sistema comunista mundial eram somente as fontes públicas do comunismo – jornais, publicações oficiais, discursos dos líderes, literatura e cinema dirigidos -, bem como os relatos dos dissidentes e as fontes da polícia e dos serviços de informações, quando disponíveis. O trabalho era ainda dificultado pela mania de segredo própria de todos os partidos e regimes comunistas, o que significa dizer que os analistas do sistema comunista trabalhavam de modo semelhante aos paleontólogos que reconstituem a imagem de um dinossauro a partir de um fêmur ou de um maxilar. Hoje em dia, no entanto, os historiadores têm à sua disposição todo o esqueleto.


A despeito da penúria das fontes, todos fizeram o melhor que podiam, expondo-se à crítica permanente, irônica e hipócrita dos colegas comunistas e também aos desmentidos arrogantes dos apparatichiks, que consideravam: a responsabilidade soviética no massacre de Katyn – propaganda nazista; milhões de mortos na grande fome ucraniana de 1932-1933 - propaganda capitalista; as negociações entre Otto Abetz - general alemão, governador da cidade de Paris durante a ocupação nazista – e o PCF, de junho a agosto de 1949 – pura imaginação; a direção do PCF, posta de 1931 a 1939 sob a tutela de um judeu eslovaco chamado Clément, cujo verdadeiro nome era Eugen Fried – tolices; centenas de milhares de fuzilados pelo Grande Terror de 1937-1938 – afirmações anti-comunistas primárias; a colocação sob vigilância de todos os cidadãos da RDA pela Stasi – calúnia dos revanchistas de Bonn. Essa litania poderia ser declinada indefinidamente.


Mas depois de 1991-1992, esses críticos se calaram. A cada dia, os documentos retirados dos arquivos dos países do Leste Europeu vêm aniquilando todas essas denegações, trazendo luzes inéditas para a tragédia do comunismo.


Annie Kriegel, uma intelectual comunista francesa que nos anos 70 abandonou o partido, falecida em 1995, após examinar os arquivos de 1991 a 1994, tinha o ponto de vista de que, para muitos, o que nos traz a abertura dos arquivos é, em primeiro lugar, a possibilidade de verificar, de controlar e de reunir provas que confirmem, aprimorem ou desmintam nossas análises e conclusões passadas. Assim, ela retorna à sua própria conceituação de sistema comunista mundial para corrigir seu aspecto estático: por um lado, o sistema abriga, de maneira articulada e cada vez mais interativa e orgânica, um Estado (e, mais tarde, uma comunidade de Estados) e, por outro lado, um movimento. Isso significa dizer que são igualmente falsas tanto a tentativa de fazer do movimento apenas um apêndice do Estado ou de seus interesses, quanto a de fazer do Estado somente uma referência longínqua do movimento.


O certo é que desde 1993 os historiadores já se viam confrontados com uma revolução documental que fundava uma nova história do comunismo, na qual cada evento e cada figura histórica deviam ser revistos sob a luz dos arquivos (1). Essa história baseia-se num revolução da prova documental: a materialidade de inúmeros fatos históricos é, a partir de então, estabelecida sem contestação possível, pondo um ponto final, dessa maneira, nas intermináveis polêmicas que se multiplicara nos 70 anos de história do comunismo. Todavia, nem todos os fatos são conhecidos, mas aqueles que o são foram estabelecidos com um grau de exatidão aceitável.


Assim, a partir de 1991 e graças à revolução documental, os segredos mais bem guardados do comunismo foram revelados. O protocolo secreto adicional ao Pacto Germano-Soviético de 23 de agosto de 1939, cuja existência era negada havia meio século, foi tornado público. Encontrou-se até mesmo o mapa no qual os compadres nazistas e soviéticos tinham demarcado a partilha do Leste Europeu, com a rubrica triunfal de Stalin ornando sua parte oriental. A ordem de 5 de março de 1940 determinando o assassinato de 25.700 oficiais e dirigentes poloneses, assinada pelo conjunto dos membros do Politburo soviético, foi retirada em 1992 de seu envelope timbrado e transmitida por Boris Yeltsin a Lech Walessa. Os dossiês elaborados em Moscou sobre os dirigentes comunistas em todo o mundo, índice do controle político e policial que Stalin sempre exerceu sobre o conjunto do Komintern, passaram a ser acessíveis em Moscou, e os escritos mais homicidas de Lenin, ocultados por tantas décadas, apareceram. A partir de 1994, surgiram inúmeras publicações que utilizaram os arquivos de Moscou, de Praga e de outros países comunistas. As obras sobre a URSS se multiplicaram, especialmente na França, Rússia, EUA e Alemanha.


E com o presumido fim da guerra fria, alguns países ocidentais também abriram certos arquivos. Os EUA divulgaram os documentos Venona, retirados da decodificação das mensagens de rádio dos serviços secretos soviéticos durante a guerra (2), o que possibilitou uma melhor compreensão de vários episódios obscuros, como o caso Rosenberg.


A abertura dos arquivos – com maior ou menor grau de generosidade – foi acompanhada pela liberação de palavra concedida a certo número de atores e de testemunhas, de vítimas ou de carrascos, obrigados a manter o sigilo partidário ou silenciados por ameaças.


O próprio funcionamento do sistema comunista, na URSS, no interior do Komintern, dentro dos partidos comunistas, o papel preciso dos diversos atores, tudo que, por tantas décadas, tinha sido mantido sob ‘sigilo partidário’, enfim, a face imersa do iceberg – ou, como chamam outros autores, ‘a face oculta da lua’ – começou a aparecer. Os locais, as modalidades e os canais de transmissão das decisões, todos esses dados elementares, bem conhecidos para todos os outros sistemas políticos e, até o momento, misteriosos no que dizia respeito ao comunismo, tornaram-se parcialmente disponíveis. Esses dados permitiram o aprimoramento do foco sobre o tema e que um novo quadro, bem mais verídico e muito menos contestável, fosse estabelecido.


Muitos julgaram conveniente desdenhar. Afinal eram arquivos policiais, arquivos falsificados, etc. Ora, esses desiludidos dos arquivos evitaram, na maior parte das vezes, a consulta a esses documentos e, quando o fizeram, retiveram apenas os aspectos mais anódinos. É certo que a abertura dos arquivos conheceu suas vicissitudes: na Rússia, alguns se fecharam rapidamente e outros, mais importantes, ainda não foram abertos. Na Bulgária e na Romênia, dez anos após a mudança de regime, o acesso aos arquivos permanece difícil. Na ex-Iugoslávia, em Belgrado, o acesso aos arquivos de Tito acabam de ser permitidos, mas permanecem totalmente fechados na Coréia do Norte, no Vietnã, em Cuba e na China. A despeito desses obstáculos, a história do comunismo está caminhando.


O momento mais intenso e mais inesperado dessa primeira reavaliação histórica do comunismo, provocada pela conjunção da mudança no ambiente intelectual e pela revolução documental foi, sem dúvida, a publicação na França do Livro Negro do Comunismo, em 7 de novembro de 1997, exatos 80 anos depois da Revolução de Outubro (publicado no Brasil em 1999). Essa obra foi concebida para demonstrar uma das dimensões do comunismo: a dimensão criminosa. Apenas no que diz respeito ao assassinato de pessoas, os autores se ligaram a três fenômenos principais.


Em primeiro lugar, os assassinatos diretos. Dos anos pré-revolucionários na Rússia e da fase inicial do comunismo, até a morte de Lênin. No decorrer dos dias e semanas que se seguiram ao Golpe de Estado bolchevique, no qual grande quantidade de pessoas – malfeitores libertados das prisões, soldados desertores, o populacho – seguiu o slogan de Lênin – ‘afanar os afanadores’ – e praticou uma violência selvagem contras os ‘burgueses’, roubando, pilhando, violentando e matando sem qualquer ponderação. Depois, nos cinco anos seguintes, nos quais os bolcheviques, em nome de sua ideologia, da pretensa legitimidade da sua visão histórica, da vontade de conservar o Poder a todo custo, praticaram um terror de massa sistemático contra seus inimigos reais ou supostos: o massacre dos ‘brancos’, na maior parte burgueses, comerciantes, membros da intelligentsia, oficiais, sacerdotes, camponeses, operários assassinados em massa pelo Exército Vermelho e pela Cheka entre 1918 e 1921 – sem esquecer da primeira experimentação de genocídio de classe contra os cossacos do Don em 1919-1920. E depois, as 690 mil vítimas do Grande Terror de Stalin em 1937-1938, cuja lista exaustiva ainda está sendo estabelecida pela associação russa Memorial. E depois... e depois...


Em segundo lugar, o fenômeno examinado foi o dos campos de concentração estabelecidos a partir do verão de 1918 por Lênin e por Trotsky. Depois de terem servido de locais de extermínio para inimigos políticos, esses campos se tornaram, a partir de 1928-1929, um sistema generalizado de exploração de trabalho forçado, Gulag, que se estendeu progressivamente à totalidade dos países comunistas. Esses campos eram alimentados por gigantescas deportações em massa: dezenas de milhões de homens, mulheres e até mesmo crianças, dos kulaks da coletivização soviética às populações conquistadas por Stalin de 1939-1941 (poloneses, estonianos, lituanos, letões e bessarábios), dos prisioneiros civis e militares de 1944-1945 (ainda poloneses, húngaros, romenos, alemães, coreanos e japoneses) aos ex-prisioneiros de guerra soviéticos pervertidos por sua visão do Ocidente, dos trabalhadores forçados do canal do Danúbio romeno às vítimas da lavagem cerebral do laogai chinês, dos campos norte-vietnamitas às cidades transformadas em campos de concentração dos khmers vermelhos. Em todos os casos, as condições de trabalho, de alimentação, de alojamentos de saúde eram destinadas a rentabilizar ao máximo a força de trabalho do detento até o esgotamento total. Exceto qualquer compromisso feito com os carrascos, somente a sorte permitia salvar a própria pele.


O terceiro fenômeno recenseado pelo Livro Negro do Comunismo foi o da fome, em alguns casos provocada pelo voluntarismo ideológico e pela incompetência do regime. Assim, a fome soviética de 1921-1923 que provocou a morte de cerca de cinco milhões de pessoas deveu-se à decisão do Politburo de avaliar a colheita em mais de um terço do que fora previsto por seus próprios estatísticos, ordenando requisições proporcionais a esse cálculo, o que levou os camponeses à morte. Morte por fome! No caso dos alemães do Volga, instalados na Rússia desde o século XVIII, as requisições de trigo destinadas a alimentar o partido e o Exército Vermelho – quando os alemães já estavam à beira da penúria alimentar – provocaram a morte de pelo menos 100 mil pessoas – morte por fome! - numa comunidade de cerca de 450 mil, e nas condições mais assustadoras, inclusive antropofagia. A fome chinesa de 1959-1961, provocada pelas aberrações do ‘Grande Salto pra Frente’, obedeceu às mesmas causas.


Outras fontes foram deliberadamente suscitadas pelo poder comunista: Pol Pot provocou assim a morte de 800 mil cambojanos. Stalin organizou a fome ucraniana de 1932-1933 para exterminar a elite social e para sujeitar um campesinato e uma nação rebeldes. Dois jornalistas ucranianos, Lydia Kovalenko e Volodymyr Maniak, decidiram estabelecer um Livro-Memorial da Fome e lançaram um apelo por testemunhas para que os últimos sobreviventes contassem suas histórias. Mais de seis mil respostas chegaram até eles e 450 das mais significativas foram reunidas e uma seleção desses relatos foram publicadas na França. Os testemunhos publicados traçam um quadro apocalíptico dessa guerra de extermínio contra a fração mais dinâmica e mais independente do campesinato, recordando que naquela época 80% dos ucranianos eram camponeses.


Essa evidência mais do que clara da utilização sistemática da fome como arma pelos poderes comunistas remete à visão que Lênin mantinha da sociedade comunista na qual toda a produção e toda a distribuição deviam estar nas mãos do Poder, único habilitado a fornecer alimento, alojamento, aquecimento e saúde aos ‘kamaradas’ e àquela parte da população considerada como ‘politicamente correta’. Um paradoxo espetacular: a fome, utilizada como método de controle, de repressão e de extermínio das populações recalcitrantes e dos camponeses, aqueles que produzem os alimentos. Todos levados a morrer de fome pelo poder soviético preocupado com uma utopia igualitária.




O texto acima é um resumo da matéria em epígrafe, publicada nas páginas 31 a 41 do livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.


(1) Stéphane Courtois, Arquivos do Comunismo: Morte de uma Memória, Nascimento de uma História. Artigo em Le Débat, novembro-dezembro de 1993.

(2) Thierry Wolton, O Grande Recrutamento, Paris, Gasset, 1993.

(*) Carlos I. S. Azambuja é historiador.





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