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Ensaios-->SUPORTE REFERENCIAL DE SUPERAÇÃO -- 24/01/2007 - 17:13 (Délcio Vieira Salomon) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SUPORTE REFERENCIAL DE SUPERAÇÃO

- SURS –

a aventura
em busca do segredo
da própria superação


NOTA DE ESCLARECIMENTO: Este ensaio é reprodução de quase todo o capítulo 3 de meu livro A MARAVILHOSA INCERTEZA - Ed. Martins Fontes. A pedido de alguns amigos/leitores fiz esta transcrição para atender tanto aos que tem necessidade de escolher tema para seu trabalho acadêmico (monografia, dissertação, tese etc) e tomar decisão de como abordá-lo como também a todos aqueles que precisam resolver problemas pessoais, os mais diversos, sobretudo os de ordem emocional e se sentem envolvidos de tal modo que se queixam de não saber como fazer.


No começo era o Topos. E o Topos indicava o mundo, pois era lugar; não estava em Deus, não era Deus, pois Deus não tem lugar e jamais o teve. E o Topos era o Logos, mas o Logos não era Deus, pois era o que tem lugar. O Topos, na verdade, eram poucas coisas: a marca e a re-marca (LEFEBVRE, 1969, p.34)




A descoberta do suporte referencial de superação – SuRS - se deu durante o processo de elaboração de minha tese de livre-docência. Considero tal descoberta de suma importância, enquanto pensada como ferramenta psico-epistemológica a ser empregada com eficácia metodológica no próprio processo da produção do conhecimento científico.

Talvez esta relevância ficou acentuada diante do fato de que devo ao SuRS, a partir do momento de sua revelação, todo o resultado do empreendimento – já em si verdadeira ousadia, por tratar-se de tese em nível de doutorado, numa instância metacientífica, como a Metodologia, onde jamais tinha tido notícia de outro trabalho congênere, justo por tratar-se de um campo de conhecimento, onde abundam manuais, tratados e ensaios, não, porém dissertações científicas, menos ainda teses propriamente ditas.

Colegas e amigos que tiveram acesso ao achado e se dispuseram a fazer uso do SuRS, com as devidas adaptações, encorajaram-me a dele ocupar-me com mais detalhamento. Motivo por que torna-se o objeto deste capítulo.

De maneira didática procurarei aqui mostrar o que é o suporte referencial de superação – como, quando, porque surgiu e o alcance de seu emprego (ou a potencialidade e riqueza de sua aplicação). A sigla SuRS foi criada por motivo de economia: para facilitar a comunicação.


1 Como surgiu o SuRS

Didaticamente julgo que a melhor maneira de começar não é respondendo à pergunta ‘o que é SuRS?’, mas reproduzindo o momento de seu surgimento no processo de elaboração da tese. A partir de determinado ponto desta exposição o leitor perceberá a natureza e a importância do SuRS, vivenciando-o com o autor.

Conforme é dito na introdução da tese: a consciência do suporte referencial de superação como resposta ao conflito de pensar o próprio conflito se deu quando estava procurando resolver a questão do fato e do problemático (objeto do próximo capítulo).

Quando se parte da constatação de que a pesquisa científica como processo visa a atingir o conhecimento e este não é mero produto de uma elaboração simplesmente lógica ou fruto de uma operação apenas formal, temos de admitir: a) que o próprio processo é um fato; b) que o conhecimento procurado é conhecimento de fatos ou de um fato específico.

Estava tentando comunicar, sobretudo, que, na análise do processo de conhecer, mesmo sob a ótica de uma lógica reconstruída, quando não se coloca como referencial o fato, nosso esforço fatalmente cai numa lógica ontológica ou metafísica ou mesmo num exercício idealístico de explicação da ‘captação da realidade’ (a essência do conhecer): esta realidade assim ‘captada’ passa a ser uma realidade outra - a abstraída da legítima realidade que é a fática. Constatação que me reportava naquele momento à provável motivação que levou E. Nagel, por estar filiado (ou apesar de estar filiado?) ao positivismo lógico, a escrever um tratado de Lógica, com o título de Lógica sem metafísica (Logic without Metaphysics).

Vislumbrara há muito, e naquela hora esta intravisão emergia aos poucos com força de pensamento convincente, que todos os autores, que através dos tempos defendiam para a metodologia da pesquisa o assentamento de uma lógica reconstruída a comandar o processo da pesquisa, tinham como suporte referencial a concepção aristotélica do “zoón ékon lógos” (homem animal racional), em que racional se referia não à totalidade da razão humana, mas a uma de suas expressões: a razão demonstrativa formal convertida em a Razão. Não podemos esquecer que o ‘hilemorfismo’ aristotélico com sua teoria da causalidade impregnou fortemente não só a Lógica, de que é o criador, como, particularmente, a cultura ocidental.

O âmago da questão que me levava a aprofundar a reflexão não era outra senão a que me trouxe ao próprio empreendimento da tese ou seja: quando tive que descer ao patamar metodológico (afinal a tese se realizava enquanto pesquisa neste terreno) deparou-se-me a ‘questão do fato’ contraposta à ‘questão de método’.

Após o ‘achado’ do SuRS tive tranqüilidade de enfrentar aquilo com que estava entalado, desde o dia em que, nos textos de metodologia da pesquisa, surgiu-me a questão dos pressupostos filosóficos da ciência (e em decorrência da pesquisa científica) ou seja ‘os postulados ou princípios que os cientistas aceitam, mas que não podem ser provados’. Afinal, se são pressupostos hão de funcionar como suporte referencial para o próprio processo que é a pesquisa. Em minha tese ocupei-me exaustivamente da leitura crítica desses pressupostos, justo porque sua formulação sempre revelou para mim um fundo ideológico. O dos filósofos da ciência em relação aos cientistas propriamente ditos, a ponto de serem colocados como necessidade para estes aceitarem sem discussão e sua formulação como dever de ofício daqueles.(ver BUNGE, 1973, p. 253 – 325).

O problema, como frisei, não era deixar de aceitar ou não estes postulados, mas o fato de que à formulação de certos postulados por este ou aquele autor de metodologia da pesquisa científica precedia, na minha percepção, uma postura ideológica ou filosófica. Por isso têm sempre um endereço certo.

Já tinha notado há muito que os autores dialéticos não se preocupam com este problema. Mas, ao contrário, os positivistas e sua versão mais moderna - os positivistas lógicos - fazem questão de reforçar a exigência.

Não resta dúvida de que a doutrina de tais autores continua presa à filosofia aristotélica, à sua lógica, sobretudo à sua teoria do conhecimento e à sua teoria da causalidade universal.

O início de todo processo do conhecimento, seja em que setor for, seriam sempre as ‘premissas universais’, umas intuídas como evidentes, outras já demonstradas como verdadeiras, das quais deveriam proceder dedutivamente todas as formas de conhecimento.

Só conseguimos detectar o que leva autores a determinarem tais pressupostos, quando descobrimos o ‘suporte referencial’ que está por trás de suas formulações.

E para superar o conflito entre o que pensamos e o que tais autores afirmam, temos de estabelecer nosso SuRS. Por exemplo, diante do “pressuposto da realidade do mundo externo”, se estabelecermos um SuRS dialético e problematizante, somos levados a superar o conflito entre ‘real e não-real’, entre ‘ser e existir’. Pois logo de início indagamos: - trata-se de quê? de discutir ou de constatar? de encontrar ou de provar? de distinguir palavras e seus sentidos ou de distinguir palavras como forma e palavras como conteúdo?...

Vieram-me à mente, com a força da clareza, as críticas que a dialética, desde Engels e Marx, faz ao racionalismo e que Larroyo (filósofo mexicano, cujo trabalho sobre lógica e metodologia da ciência acabara de ler na época) sintetizou, ao escrever: “o pensamento científico começa com perguntas, com dificuldades, não com premissas, como acreditava o velho racionalismo” (LARROYO, 1975, p.210).

Usando um SuRS adequado foi-me possível rejeitar a formulação de determinados pressupostos científicos. Nessa época tinha consciência clara de que somos bloqueados na expressão de nosso pensamento pelo medo: medo de errar sobretudo. Ao abordar na tese a questão dos pressupostos científicos, tive ocasião de refletir sobre o quanto me ajudou a descoberta do SuRS para vencer o medo de pensar com independência. Importa recapitulá-la:

Para esclarecimento do leitor, devo adiantar, neste momento, que o SuRS foi descoberto (dentro do ‘cogito’ a que a tese de livre-docência me fez viver) como propriedade de cada um de nós, seres pensantes e problematizadores. Portanto, do ser humano intuitivo como discursivo, ou seja, autenticamente racional, porque genuinamente ‘irracional’ (o mesmo que não definido como ‘racional’). Justamente porque se dispõe, por um propósito inicial, a não aceitar como ponto-de-partida a chamada ‘racionalidade humana’ hipostasiada e a pairar sobre o mundo como única e absoluta (ou seja, historicamente, a racionalidade descoberta por Parmênides e sistematizada por Aristóteles). Um propósito, portanto, de rompimento, ao impor a problematização a esta racionalidade ou, ao menos, por colocar em dúvida se esta racionalidade foi ou não uma invenção grega. Julgo ser a atitude de um ser humano que se encontrou como tal. Só isso. Seu propósito é encontrar. Não demonstrar. Um SuRS que surge quando o propósito é ir ao fundo do poço. De enfrentar o ‘cogito’ sem medo e que de repente se descobre no meio do ‘cogito’. Estava alí simples, claro: o fundo do poço é só medo (medo que até na herança biológica foi ‘racionalizado’ e polarizado na morte em contraposição à vida, e em seguida institucionalizado em termos de ‘erro’, ‘inverdade’, ‘falsidade’, ‘írracionalidade’, ‘absurdo’, ‘ilógico’, ‘não científico ’ ‘imoral’, ‘condenável’,.... etc, etc. No exercício do magistério, então, tenho constatado que freqüentemente aceitamos ou rejeitamos contribuições teóricas (filosóficas e científicas), sem tempo e coragem de as enfrentarmos, não as problematizamos desde o início. Às vezes, por não termos condições de entendê-las a fundo, temos medo de contrapor-nos a elas. E, quem sabe, acabamos por aceitá-las por causa da força do modismo!...

Como tinha estabelecido para a pesquisa e minhas reflexões adotar a atitude interdisciplinar, de modo que me introduzisse no terreno da lógica, da filosofia, da epistemologia, da psicologia, da sociologia e da história da ciência, não me aprisionando estaticamente no terreno da metodologia científica, procurei fundamentos e elementos descritivos do SuRS de maneira interdisciplinar. Por isso é que tenho necessidade de expor a seguir os fundamentos psicológicos e epistemológicos do SuRS.

Antes de apresentar estes fundamentos importa lembrar ao leitor que todo pensador, seja ele cientista, pesquisador, autor, ao propor uma teoria ou sua visão de determinado problema, tem sempre um suporte referencial em sua mente e funciona como tal para que ele possa desenvolver suas idéias e ao fim estruturá-las. Esta observação ficou corroborada diante da seguinte síntese de Raymond Aron em Les Etapes de la Pensée Sociologique, ao referir-se ao mesmo tempo a três grandes pensadores que marcaram o século XIX:

'Augusto Comte, Marx e Tocqueville formaram seu pensamento na primeira metade do século XIX. Tomaram como tema de sua reflexão a situação das sociedades européias, depois do drama da Revolução e do Império, e se esforçaram em apreender o significado da crise que acabara de se realizar e a natureza da sociedade que nascia. Mas essa sociedade moderna era definida segundo os três autores de maneira diferente: aos olhos de Augusto Comte, a sociedade moderna era industrial; para Marx, capitalista; para Tocqueville, democrática. A escolha do adjetivo revela o ângulo sob o qual cada um deles via a realidade de seu tempo'. [sem grifo no original](ARON, 1967, p. 307)

Como pode notar o leitor, não se tratava de mero ‘ângulo’ como aponta Aron. Era epistemológica, psicológica, filosófica e até ideologicamente falando, algo mais forte e mais denso. Legítimo suporte referencial que surge na mente para enfrentar o conflito do pensar reflexivo e superá-lo.

É sabido, por exemplo, que Aristóteles descobriu sua célebre teoria da causalidade e a relação de matéria e forma, tanto quanto a teoria do ato e da potência, enfim o hilemorfismo, observando os escultores na praça de Atenas. Numa surpreendente intuição delineou na mente sua concepção filosófica: o mármore era a causa material, o escultor a causa eficiente, a idéia da estátua (fosse uma coluna ou a imagem de Vênus ou de Apolo) a causa formal, o cinzel, o martelo e demais instrumentos, a causa instrumental, o motivo ou o objetivo a alcançar (fama, recompensa financeira etc) a causa final ... enfim ‘o fazer a obra’ respondia aos interrogativos (o que é? como? por quê? onde? para quê? etc) que, por sua vez, originaram os ‘categoremas’ aristotélicos. Hoje posso interpretar que Aristóteles construiu deste modo e com tais elementos sua teoria, porque adotou mentalmente um ‘suporte referencial’ ou seja um SuRS.



2 Fundamentos psicológicos e epistemológicos do SuRS


2.1 Os fundamentos psicológicos do SuRS encontram-se na “psicologia do pensar reflexivo” ou, como preferem certos psicólogos americanos, “psicologia do ato completo de pensar”.

No capítulo 5 será mostrado como várias teorias psicológicas descrevem o processo do pensamento reflexivo. Aqui vou apenas sintetizar o que há de comum entre elas, pois justamente este elo comum é que fundamenta psicologicamente o SuRS.

Hoje, ao rever, ou melhor, reviver aqueles momentos de meditação, tomo consciência de um fato relevante que há de ser interpretado dialeticamente, pois não se pode concebê-lo como causa ou como efeito (como o motivador ou como o resultado da procura), mas fruto da interação do ato do pensar reflexivo voltado para seu próprio conteúdo. Refiro-me à problematização colocada como objeto da reflexão. Ela se localiza no início do processo-de-conhecer (por isso no do pensar) e funciona como seu ponto de partida e seu suporte. Constatação a que se chega quer pensemos este processo metodologicamente, quer o pensemos epistemologicamente ou psicologicamente como estou tentando mostrar aqui e agora.

Desde Dewey os psicólogos têm observado que o ato completo do pensamento ou o pensar reflexivo é um processo que se inicia com um problema ou dificuldade e se desenrola em fases objetivando justamente a solução do problema.

Um problema é uma situação que, por algum motivo, detém os esforços do organismo em alcançar algum objetivo. Na prática o problema contém - freqüentemente mas não sempre - fatores contraditórios entre si, que têm de ser superados.

Alguns pesquisadores chamam de ‘constrangimento’ (= força, aperto, compulsão), o elemento ativo que caracteriza situações-problema. A partir da tomada de consciência de determinada situação-problema o ser humano pensante desenvolve uma série de atividades direcionadas desde o início para superar este conflito ou o problema. A direção é sugerida de acordo com a visão que o indivíduo tem da própria situação-problema e de sua motivação, agindo muitas vezes por ensaio-e-erro.


2.2 Quanto à teoria do conhecimento, sob o enfoque epistemológico e visando aos fundamentos do SuRS, há de se destacar sinteticamente os seguintes pontos:

• Independente do tipo de filosofia ou mesmo de ideologia, em que se venha a formular uma teoria do conhecimento, creio poder assinalar como elementos comuns a todas essas visões que o conhecimento se dá no pensamento, através de uma relação de sujeito - objeto (mesmo não aceitando a hipostasia do sujeito e do objeto feita pelos idealistas, nem a separação radical e absoluta dos dois elementos feita pelos lógicos formais). De fato, apliquemos uma “epoqué”:

- O que queremos dizer quando dizemos ‘conhecimento’, haja ou não conhecimentos no mundo, possa ou não havê-lo, seja ele ou não possível, desligando portanto, o conhecimento de sua existência e historicidade, ou seja, colocando-o entre parênteses ou entre aspas?

Os primeiros elementos do conhecimento que surgem nesta descrição são: um sujeito cognoscente e um objeto conhecido, pois todo conhecimento o é de um sujeito sobre um objeto. Esse par ou essa dualidade é essencial em qualquer conhecimento. Trata-se, entretanto, de uma dualidade que é uma relação - uma relação dupla, de ida e de volta, pois o sujeito só é sujeito para o objeto e este só é objeto para o sujeito. Mais do que uma relação: há um correlação. E uma correlação irreversível. Uma correlação como esquerda e direita, acima e abaixo, polo sul e polo norte são reversíveis, pois além de um desses elementos não significar nada a não ser em contraposição ao outro, a esquerda se torna direita, o abaixo se torna o acima e o polo sul se torna polo norte, quando invertemos as posições. Mas isso não se dá com sujeito e objeto: não existe possibilidade de que o sujeito se torne objeto, nem de o objeto se tornar sujeito. Aprofundando a relação, constatamos que para se dar o conhecimento o sujeito faz algo. Este algo consiste em ‘sair de si’ para captar o objeto. O sujeito capta o objeto mediante o pensamento. Como lembra Morente: “o pensamento, visto do sujeito, é a modificação que o sujeito produziu em si mesmo ao sair de si para apossar-se dele, e visto do objeto é a modificação que o objeto, ao entrar, por assim dizer no sujeito, produziu nos pensamentos deste” ( MORENTE, 1964, p.144).

• A esta descrição fenomenológica importa acrescentar a descrição dialética. De acordo com a “Lógica Formal/Lógica Dialética” de H. Lefebvre, esta descrição há de partir da constatação de que o conhecimento é um fato, pois desde a vida prática imediata e mais simples nós conhecemos objetos, seres vivos, seres humanos. Citando-o:

Em termos filosóficos, o sujeito (o pensamento, o homem que conhece) e o objeto (os seres conhecidos) agem e reagem continuamente um sobre o outro; eu ajo sobre coisas, exploro-as, experimento-as; elas resistem ou cedem à minha ação, revelam-se; eu as conheço e aprendo a conhecê-las. O sujeito e o objeto estão em perpétua interação; essa interação será expressa por nós com uma palavra que designa a relação entre dois elementos opostos e não obstante, partes de um todo, como numa discussão ou num diálogo; diremos por definição, que se trata de uma interação dialética” (LEFEBVRE, 1975 p.49).

O que caracteriza a descrição dialética do conhecimento e a distingue das demais é que ela firma três propriedades do conhecimento enquanto fato: a) a praticidade (todo conhecimento é prático, pois antes de elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento começa pela experiência, pela prática, pois somente esta nos põe em contato com as realidades objetivas; b) a socialidade (o conhecimento humano é social: na vida social descobrimos outros seres semelhantes a nós e eles agem sobre nós, nós agimos sobre eles e com eles, estabelecendo relações mais ricas e complexas; a própria linguagem com que nos comunicamos torna-se condição de conhecimento); c) historicidade (o conhecimento humano tem um caráter histórico, enquanto se dá no tempo (como diriam os existencialistas, no 'aqui e agora') e todo conhecimento é adquirido e conquistado, uma vez que o conhecimento parte da dificuldade, da ignorância e segue sua trajetória mediante esforço: não é imediato nem revelado - supõe um suporte referencial como ponto de partida e método para se conseguir realizar o processo de conhecer para se atingir o resultado, o produto (= o ‘conhecimento enquanto produto’ ou ‘conhecimento produzido ou adquirido’).

Dialeticamente o pensamento (onde se opera o conhecimento) é movimento pendular entre dois polos. Esses dois polos opostos são o sujeito e o objeto (sob um prisma descritivo) ou forma e conteúdo - real e não-real - existente e não existente - teórico e prático etc (sob outros prismas descritivos). E quando se fala ‘sob este ou aquele prisma’ evidentemente se está supondo a existência de um suporte referencial.

Nesta perspectiva, importa sublinhar: tanto o pensar reflexivo como a pesquisa a) são processos, b) se iniciam com perguntas, com problemas (e não por premissas), c) ao formular-se tais perguntas, tais problemas há necessidade de se estabelecer um suporte referencial, para, no mínimo aclarar a natureza do problema e contextualizar a questão.


2.3 Se restringirmos nossa análise à ‘lógica do problema’, encontraremos nesta análise fundamentos lógicos para o SuRS.

Como irei dedicar um capítulo inteiro à lógica (dialética) da formulação do problema, aqui desejo apenas resumir a abordagem de Bunge (que não é dialético!) feita em La Investigación Científica, a partir da página 195:

O termo ‘problema’ designa uma dificuldade que não se pode resolver automaticamente, mas através de pesquisa conceitual ou empírica. Portanto é o primeiro momento de uma cadeia: problema-pesquisa-solução. Os problemas humanos são problemas de ação ou de conhecimento ou de avaliação ou de comunicação; nas ciências fatuais encontram-se estas quatro classes de problemas, mas é claro que os centrais são os de conhecimento. Qualquer que seja a natureza de um problema humano podem distinguir-se nele os seguintes aspectos: 1) o próprio problema, considerado como objeto conceitual diferente de um enunciado, mas epistemologicamente da mesma família 2) o ato de perguntar (aspecto psicológico) e 3) a expressão do problema mediante um conjunto de sentenças interrogativas ou imperativas em alguma linguagem (aspecto lingüistico). O estudo do perguntar é próprio da psicologia (incluída a da ciência), enquanto que o estudo das perguntas como objetos lingüísticos (sentenças que, na escrita espanhola, começam e terminam com sinais de interrogação) pertence à lingüística. Aqui nos interessam os problemas como classe de idéias bastante desprezada neste aspecto (mais ainda: a mais ignorada) analisáveis com a ajuda de outras idéias. (BUNGE, 1973, p. 195)

Para Bunge, em todo problema aparecem idéias de três classes: o fundo (do problema) - o gerador do problema e a solução, se existir. E todo problema pode considerar-se como engendrado por um conjunto definido de fórmulas, tanto quanto outro conjunto de fórmulas determina sua solução. O fundo é previamente constituído pelo conhecimento preexistente e, em particular, pelos pressupostos específicos do problema. Os pressupostos do problema são as afirmações que estão de algum modo implicadas, porém não postas em julgamento pela formulação do problema e na pesquisa por ele desencadeado. O gerador do problema é a função proposicional que dá o problema ao aplicar a tal função o operador “?” uma ou mais vezes.

A lógica da formulação do problema consistirá, pois, em estabelecer as condições técnico-conceituais para manter esta estrutura (de fundo - gerador - solução) e, ao fim, conseguir-se solucionar o problema formulado, com o recurso a estas técnicas e suas regras derivadas e pela própria lógica encontradas. A lógica formal é limitada diante desse propósito, somente o alcança a lógica dialética.

O que Bunge denomina ‘fundo’ e ‘gerador’ do problema funciona como o suporte referencial em nossa proposta do SuRS, mas não se identifica integralmente com este fundo e gerador, porque é dialético, por isso dinâmico: por si mesmo passa a funcionar em continuidade ao que o gerador promove: reação - direção - decisão etc até atingir a superação e nesta instância converter-se em novo fundo e gerador.




3 Em que consiste o SuRS


3.1 Pelo exposto, espero ter conseguido transmitir que a fundamentação do SuRS é dialética (ou melhor, lógico-concreta) e psicológica (enquanto se refere à psicologia do conhecimento). Só pode ser entendido no contexto em que se coloca e se defende a Lógica Concreta em oposição à Lógica Formal tradicional, absolutizada e a certas teorias lógicas recentes, fundadas em estudos de ciências isoladas, especialmente experimentais, arvoradas em Lógica Suprema para a prática da pesquisa.

Dois são os motivos - realmente muito simples - surgidos em minha percepção metodológica: não ser a Lógica Formal (e qualquer lógica dela derivada) eficaz e por ser ela absolutizante em formalizar; identificando-se por isso com a ontologia(1).

A Lógica Concreta, ao contrário, por ser dialética, se identifica ao mesmo tempo com o processo e com o produto do conhecimento. Na acepção tradicional de “produto de conhecimento” (por ela não congelado em forma absoluta) desde Marx e Engels está sendo sempre elaborada e reelaborada por especialistas. Mas sem a preocupação de sistematizar e muito menos de tomar como modelo de tratamento a Lógica Formal, como tenho registrado. Suas regras (evidentemente toda lógica é normativa) se fundamentam em princípios que, por sua vez, são encontrados na realidade e na própria concepção dialética da realidade.(2)

Poderíamos dizer que são práticas derivadas, mais proximamente, dos princípios e do próprio processo social, enquanto visto como processo social do conhecimento humano, com a preocupação de evitar o historicismo e o sociologismo, tanto quanto o ontologismo e o psicologismo.

Se deriva do processo, então está como ele também em contínua-descontínua transformação.

Tais práticas são ferramentas de trabalho, porque conhecer e produzir conhecimento através da pesquisa e da reflexão é trabalhar e não demonstrar sabedoria (o que em última instância significa demonstrar ‘erudição’).

Adotamos em toda sua abrangência, tanto para a lógica, para a metodologia, como para qualquer ramo do conhecimento, a interdisciplinaridade.(3)

Partimos do princípio: a Ciência como processo é uma só (o próprio processo), mas como esse processo é concreto e não formal, simplesmente não há ciência absolutizada no vazio do formalismo - há ciências - práticas de saber. (4)

Por serem práticas, sob este referencial (eis-me já aplicando o SuRS, mesmo sem dizer em que consiste), não há que distinguir conhecimento - linguagem - pensamento - ação... Quando o distinguimos, será apenas para efeito de exposição, tática ou estratégia para conhecer etc. Mas logo que obtenhamos as idéias claras ou resolvamos aquele problema imediato, então abandonamos a distinção. Assim não transformamos as distinções em categorias formais absolutas. E isso é válido para toda operação que herdamos da lógica tradicional ou da lógica formal.

Lefebvre foi muito feliz quando escreveu: “A Lógica Formal não tem sentido fora do conteúdo, mas assume todo seu sentido e todo seu alcance quando nosso pensamento negligencia expressamente uma grande parte de seu conteúdo e dirige-se para o limite, para o ponto em que o conteúdo se desvanece e em que resta quase que somente a forma”(LEFEBVRE, 1969, p.83).

O SuRS freqüentemente é suporte de conteúdo e forma, ao mesmo tempo, em um momento dado do processo de conhecer. Justamente porque não estamos dizendo que a forma não existe, que não existe o pensamento formal; antes, estamos querendo dizer que a forma do pensamento é diferente do conteúdo, embora ligado a ele. Mas como lembra Lefebvre: “entre forma e conteúdo se operam uma interação e um movimento incessantes (LEFEBVRE, 1969. p. 83).

3.2 Questão que deixei para esta seção, mas que poderia ter sido abordada quando tratei dos fundamentos epistemológicos do SuRS é a da verdade e da relatividade do conhecimento.

Morente termina sua descrição fenomenológica do conhecimento com a questão da verdade. Segundo ele a verdade do conhecimento consiste em que o conhecimento concorde com o objeto; ou melhor dito, consiste em que na relação do conhecimento, o pensamento formado pelo sujeito em vista do objeto concorde com o objeto. Esta concordância do pensamento com o objeto foi e é muitas vezes considerada na filosofia por muitos pensadores como critério da verdade. Na realidade, admite Morente: “não é bem critério da verdade mas a definição da verdade. (...) Não há verdadeiro conhecimento, senão o conhecimento verdadeiro. Isto quer dizer que o conhecimento falso não é conhecimento. Quando o conhecimento não concorda com a coisa não é que tenhamos um conhecimento falso: é que não temos conhecimento (MORENTE, 1969, p.145).

Adianta que o critério surge quando nos dá “a certeza de que o pensamento concorda com efeito com o objeto. E esse é um problema que não está compreendido dentro da descrição fenomenológica do conhecimento (...) Critério ou seja modo, método para descobrir se um conhecimento é verdadeiro, isso poderá havê-lo de diferentes classes e espécies ou talvez não haver nenhum. Se existem e quais sejam descobri-lo-á, oportunamente, a teoria do conhecimento”. (MORENTE, 1969, p. 146).

Para a Lógica Formal, sobretudo depois que foi reconstruída pela escolástica a partir da Idade Média, a verdade sempre foi definida como “adequatio intellectus et rei” (adequação do intelecto ou do pensamento ao objeto ou à realidade ). Trata-se da verdade formal ou verdade lógica. Seria o caso de indagar-se: adequação de quê ? - do pensamento à realidade seria a resposta (pois a adequação da realidade ao pensamento só cabe ao poder divino, acrescentariam os escolásticos metafísicos). Mas quem ou o quê operaria a adequação (uma vez que adequação é ação, operação de adequar)? O pensamento? A própria realidade? A resposta final foi sempre tirada num passe de mágica. Para não dizer Deus (senão iriam responsabilizá-Lo de tanta falsidade, mentiras, sofismas, erros, absurdos....) colocavam como critério último a própria lógica. Mas qual lógica ? a do senso-comum? A lógica-em-uso naquele “aqui e agora”? Não; pois não se tinha despertado para a diferença entre lógica-em-uso e lógica reconstruida, nem a fenomenologia tinha aparecido. A única lógica que existia era a aristotélica - a lógica formal. Então era essa que haveria de decidir.

A partir, porém, do aparecimento da Lógica Concreta, a resposta e a libertação da verdade são dadas no próprio processo e conteúdos objetivos, históricos, práticos e sociais do conhecimento e no tipo de distinção e ao mesmo tempo interação de forma e conteúdo já feitas. A nosso ver, é a solução encontrada para se evitar o formalismo. Assim :

a - condições do pensamento verdadeiro: análise histórica do conhecimento
b - o conhecimento, por ser “contato com o real” é operação e processo e não uma imagem na mente espelhando passivamente a realidade; nem é também uma criação apriorística ou inata; por isso o pensamento em interação com a própria realidade exterior a ele forja os instrumentos e as formas objetivas do conhecimento: “as formas do imenso conteúdo da vida”( Lefebvre).
c - “a correspondência do pensamento com o seu objeto representa a condição geral ‘formal’ (necessária) do pensamento verdadeiro” (LEFEBVRE , 1975, p.85).
Se de um lado há de se aceitar a evidência como o grande critério para que um conhecimento seja considerado verdadeiro, por outro lado, temos de convir que onde a evidência não surge como o “fulgor veritatis” a arrebatar o assentimento da mente humana (como pensavam os escolásticos), a verdade de nossos conhecimentos, por mais científicos que sejam, continua sendo uma verdade fatual, uma verdade parcial e provável. Somos vocacionados para a historicidade, portanto para conviver com a relatividade da verdade e a de nossos conhecimentos; não com a possibilidade de atingir a verdade absoluta, eterna.(5)

Com esta introdução creio ser possível agora responder à questão: em que consiste o SuRS?


3.3 É possível pensá-lo como recurso metodológico, como topos, mas também como estratégia ou mesmo como tática: visa a ajudar a operar o processo do pensamento, do conhecimento, da pesquisa, do discurso, da exposição e até da ação.

Situando-o assim, julgo relevante resumir aqui uma página de Lefebvre, quando fala do método dialético, pois o SuRS se encaixa perfeitamente como estratégia ou tática eficaz (e conforme o caso até como pré-condição)(6) para a utilização das etapas que constituem na prática o método dialético apontado por Lefebvre. Diz ele:

Podemos resumir do seguinte modo as regras práticas do método dialético:

a) Dirigir-se à própria coisa. Nada de exemplos exteriores, de digressões, de analogias inúteis; por conseguinte, análise objetiva; b) Apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus aspectos; o desenvolvimento e o movimento próprios da coisa;
c) Apreender os aspectos e momentos contraditórios; a coisa como totalidade e unidade dos contraditórios; d) Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada); e) Não esquecer - é preciso repeti-lo sempre - que tudo está ligado a tudo; e que uma interação insignificante, negligenciável em determinado momento, pode tornar-se essencial num outro momento ou sob um outro aspecto; f) Não esquecer de captar as transições; transições dos aspectos e contradições, passagens de uns nos outros, transições no devir. Compreender que um erro de avaliação (como, por exemplo, acreditar-se estar mais longe no devir do que o ponto em que se está efetivamente, acreditar que a transição já se realizou ou ainda não começou) pode ter graves conseqüências; g) Não esquecer que o processo de aprofundamento do conhecimento - que vai do fenômeno à essência e da essência menos profunda à mais profunda - é infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido. “Naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda” (Hegel). Pensamento admirável, ao qual objetaríamos, todavia, que apenas um “espírito” se satisfaz; e que um homem digno desse nome não conhece nem a satisfação nem a vã inquietação e a angústia dos “espíritos”; h) Penetrar, portanto, mais fundo que a simples coexistência observada; penetrar sempre mais profundamente na riqueza do conteúdo; apreender conexões de grau cada vez mais profundo, até atingir e captar solidamente as contradições e o movimento. Até chegar-se a isso, nada foi feito; i) Em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se superar: modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo - retomar seus momentos superados, revê-los, repeti-los, mas apenas aparentemente, com o objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas anteriores e, por vezes, até mesmo rumo a seu ponto de partida, etc. O método dialético, desse modo, revelar-se-á ao mesmo tempo rigoroso (já que se liga a princípios universais) e o mais fecundo (capaz de detectar todos os aspectos das coisas, incluindo os aspectos mediante os quais as coisas são ‘vulneráveis à ação’). (LEFEBVRE, 1975, p. 240-1)

Vem-me à lembrança um momento curioso durante a defesa de minha tese de livre-docência. Um dos examinadores rotulou o SuRS de socrático e ao mesmo tempo de rousseauniano, pois estava defendendo a ‘irracionalidade’ espontânea do ‘beau sauvage’. Aceitei a objeção, mas com esta condição: que o mestre-examinador naquele ‘aqui e agora’ tivesse por trás de sua objeção o mesmo SuRS que eu estava utilizando na tese. Apesar de o rótulo em si nada significar, concordaria com o caráter socrático, enquanto devemos a Sócrates a descoberta da dialética como processo dialógico e crítico do pensar reflexivo e como mestre nos ensinou a pensar a partir das contradições e não a partir de premissas aceitas de acordo com a doutrina que mais tarde viria a defender Aristóteles. E visto que este modo de proceder mentalmente é o oposto da racionalidade aristotélica, aceitava também a rotulação de ser o SuRS ‘irracional’ ou ‘rousseauniano’ (assim apelidado por ele). Para argumentar que era possível descobrir os SuRSs usados por Sócrates em seu pensar interativo com o interlocutor em seus diálogos, referi-me a uma passagem da vida doméstica de Sócrates narrada por Xenofontes em seu Memoráveis, como podia utilizar qualquer dos diálogos que Platão registrou.

É sabido que Sócrates era um desprendido e, para escândalo dos atenienses, abraçou convictamente a pobreza como virtude. Isso provocou a ira e o constante mau humor de Xantipa, sua mulher, que tinha em casa três filhos para criar. Certo dia Sócrates surpreendeu seu filho altercando com a mãe e sentiu-se na obrigação de intervir. Eis o relato de Xenofontes aqui reproduzido e extraído de Sócrates e a Consciência do Homem de Micheline Sauvage (1959), com destaques em itálico para chamar a atenção do leitor de como Sócrates vai usando e trocando seus SuRS:

Apercebendo-se um dia de que seu filho mais velho Lamproclés estava irritado contra a mãe, fez-lhe a seguinte pergunta: ‘Dize-me, meu filho, sabes muito bem que há pessoas a quem costumamos chamar de ingratas? - ‘Certamente’, responde o jovem. - ‘Pois bem, já notaste o que elas fazem para merecer tal nome?’ - ‘Sim’, contesta, ‘chamamos de ingratos àqueles que, havendo recebido benefícios, não dão nenhuma prova de gratidão podendo fazê-lo’ - ‘Não vês também que classificamos entre os ingratos os homens injustos?’ - ‘Sim’ redargüi. - ‘Já formulaste alguma vez este problema: assim como é injusto vender os próprios amigos como escravos e justo vender seus inimigos, também é injusto ser ingrato para com os amigos e justo proceder desta forma a respeito dos inimigos?’ - ‘Seguramente’, confirma o moço, ‘parece-me mesmo que, seja qual for o homem que nos tenha prestado um favor, amigo ou inimigo, é uma injustiça não procurar retribuí-lo’. -‘Então assim sendo, a ingratidão é simplesmente uma injustiça?’ No que ele igualmente concordou. - ‘Daí se depreende, portanto, que, quanto mais consideráveis forem os favores prestados tanto mais injusto é não testemunhar reconhecimento?’ Nisto também conveio. - ‘E agora’ ajuntou Sócrates, ‘dize-me onde poderemos encontrar pessoas que tenham recebido de outrem benefícios mais consideráveis que os filhos de seus pais? Pois graças aos pais os filhos passaram do nada à existência, graças a eles podem ver tantas coisas belas e participar de todos os bens que os deuses concedem aos homens, bens esses de valor tão elevado a nossos olhos que todos nós tememos acima de tudo neste mundo sermos forçados a abandoná-los, razão pela qual os Estados estabeleceram a pena de morte contra os maiores crimes, persuadido de que não existe punição que incuta maior pavor e, por conseguinte, mais adequada que esta para impedir injustiça. Não pensas, sem dúvida que seja o desejo de amor que determina os homens a procriar filhos, pois encontram-se por toda parte pessoas para satisfazê-lo: destas regorgitam as ruas e as casas de prazer. Todos sabem muito bem que procuramos para nos unir a elas e procriar, as mulheres mais apropriadas a nos dar bons filhos’. (...) ‘A mulher, por seu turno, depois de conceber, carrega o fardo que a torna pesada e põe seus dias em perigo, partilha com a criança o alimento de que se nutre e, após, ela amamenta e cuida, sem ter recebido, em troca, nenhum favor e sem que o bebê saiba quem lhe prodigaliza tais cuidados, nem possa indicar o que precisa. Ela, porém, procura adivinhar o que pode lhe ser útil e lhe causar prazer e se esforça em satisfazendo alimenta-o durante muito tempo e suporta o cansaço dia e noite sem saber que reconhecimento receberá em compensação’ (...) ‘Os pais não se contentam apenas em alimentar os filhos (...), comunicam-lhes todos os conhecimentos úteis à vida, que eles mesmos possuem (...) mandam-nos para o mestre sem olhar para a despesa, e dedicam, enfim, todos os cuidados e esforços em tornar os próprios filhos os melhores possíveis’. A isto respondeu o moço: ‘Concordo que ela tenha feito tudo isso e ainda cem vezes mais; mas não existe ninguém que possa agüentar seu mau humor’. - ‘Crês, porventura’, perguntou Sócrates, ‘que o humor selvagem de um animal seja mais suportável que o de tua mãe?’ - ‘Sim, eu o creio’, disse ele; ‘pelo menos de uma mãe como a minha’. - ‘Acaso ela te feriu alguma vez com uma dentada ou um coice, como tantos já receberam dos animais?’ - ‘Não, por Zeus, mas ela diz coisas que por nada no mundo alguém quereria ouvir’. - ‘E tu’, replica Sócrates, ‘não duvidas sequer de todas as penas e aborrecimentos que lhe causaste, dia a noite, desde o berço, com teus gritos, tuas ações e movimentos de humor e de todos os pesares quando estava doente?’ - ‘Mas redargüi o jovem, jamais lhe disse ou fiz algo que a fizesse corar’. - ‘Ora’, replica Sócrates, ‘então pensas que é mais penoso para ti ouvir o que ela te diz que para os comediantes ouvirem nas tragédias as piores injúrias que se dirigem mutuamente? Se estes as suportam facilmente é porque, eu o penso, eles não crêem quando assim falam que aquele que os critica o faça na intenção de puni-los e que quem os ameaça o faça com o fito de lhes fazer mal. E tu que sabes que não obstante tudo quanto tua mãe te disser, ela o diz sem sonhar em mal, mas que, pelo contrário, te quer mais bem que a ninguém no mundo, por que te zangas com ela? Ou crês, por ventura, que tua mãe te queira mal?’ - ‘Não, evidentemente, não creio’. - ‘Então ainda tens a coragem de achar insuportável esta mãe tão bem disposta a teu respeito que, quando estás doente toma todas as providências possíveis para te devolver a saúde e para que não necessites de nada do que precisas e que além disso roga aos deuses que te cumulem de bens e paga as promessas que fez por ti? Quanto a mim, penso que se não és capaz de suportar tal mãe, não podes suportar o que existe de bom no mundo. ‘Dize-me’, prossegue Sócrates, ‘crês que exista ainda outra pessoa a quem devas honrar, ou estás disposto a não procurar a agradar a ninguém e a não obedecer quer ao estratego, quer a outro chefe?’ - ‘Sim, por Zeus, creio-me na obrigação de obedecer’. - ‘Então’, acrescenta Sócrates, ‘queres, por exemplo, agradar a teu vizinho para que este acenda teu fogo e, em caso de necessidade, te ajude a ganhar a vida, e, se te suceder uma desgraça, te socorra como bom vizinho?’ - ‘Sim’, responde. - ‘E se estás com um companheiro de viagem ou de navegação ou com uma pessoa qualquer que encontres, acaso te é indiferente tê-los como amigos ou inimigos? Por ventura não sabes que o próprio Estado não se preocupa em absoluto com as outras espécies de ingratidão, não persegue e deixa impunes aqueles que não testemunham reconhecimento pelos benefícios recebidos, mas que se um homem falta ao respeito devido aos pais, inflige-lhe castigo e o exclui das magistraturas como indigno de exercê-las, porque os sacrifícios públicos oferecidos por tal homem desagradariam os deuses e por considerá-lo como incapaz de fazer algo de belo nem de justo, e mesmo, por Zeus, se um cidadão negligencia o túmulo de seus pais mortos, o Estado indaga a respeito no exame a que obriga os magistrados. Portanto, meu filho, se fores sábio rogarás aos deuses que te perdoem tua falta de respeito para com tua mãe a fim de que também eles não te olhem como um ingrato e te recusem seus favores; no tocante aos homens, toma cuidado igualmente, a fim de que não venham todos a te desprezar e, em conseqüência, te encontres sem amigos por se terem apercebido que negligencias teus pais; pois se julgarem que és ingrato para com teus pais nenhum deles pensará, ao te prestar um favor, poder contar com teu reconhecimento”. (Xenofontes, Memoráveis, L.II, Cap. II. In: SAUVAGE, 1959, p. 65 - 8))

Se o leitor atentar para a maiêutica socrática, ou simplesmente para o método do diálogo empregado por Sócrates com o objetivo de levar o outro a extrair de si mesmo conceituações e argumentos e, ao mesmo tempo, raciocinar juntos, em interação, verá que este método parte de um SuRS formado: a) da constatação de um fato concreto: altercação entre mãe e filho, que, por sua vez expressa o comportamento desrespeitoso do filho e sua desobediência para com ela; b) necessidade de educar o filho para que seja respeitoso, obediente e valorize a virtude da gratidão; c) necessidade pedagógica de extrair do filho o que pensa e sabe sobre gratidão e fazer da gratidão virtude inerente à justiça e suporte da obediência; d) o exercício da dialética a fazer juntamente com o filho deverá ter sempre como suporte e referencial a realidade concreta; por isso evitará o máximo possível colocar como contexto, o teórico e o abstrato; e) enfim o SuRS de Sócrates não é sua biografia, nem seu conhecimento filosófico... Coerentemente procura fundamentar-se sempre nos fatos presenciados pelo interlocutor, ou seja, o contexto deverá ser sempre o histórico e, ao mesmo tempo, coloca-o diante da cotidianeidade ou no ‘aqui e agora’ que vinte e cinco séculos depois de Sócrates será descoberto pelos fenomenologistas.

Na primeira interrogação, Sócrates não pergunta diretamente a seu filho: - o que é gratidão? Mas, procurando ser empático, tenta fazer seu o SuRS do filho e lhe pergunta: - sabes que existem pessoas ingratas? Diante da resposta afirmativa do filho, o SuRS - ponto-de-partida já está estabelecido (ter consciência crítica do que sejam pessoas gratas e pessoas ingratas). Com este suporte referencial, Sócrates não vai indagar o que é a gratidão, mas o que fazem as pessoas para serem chamadas de ingratas. Usa assim a dialética: procurar a negação da gratidão, ou seja, para conceituar a gratidão começa por seu oposto: a ingratidão, mas de maneira concreta: as pessoas ingratas ... Consegue a resposta que gostaria receber: são as que não reconhecem os benefícios que outra pessoa lhes confere, quando poderia reconhecer.

Tendo este suporte referencial, avança o pensar reflexivo a dois através do diálogo, ora fazendo do SuRS um estímulo, ora uma reação; ora um juiz ou avaliador do pensamento expresso, ora um crítico. Ora o SuRS assume o papel de técnica operacional, ora o de associação, ora de método indutivo, ora de método analógico ... Repare também o leitor que nesta sucessão de SuRS, Sócrates consegue fazer seu filho raciocinar aproximando gratidão de justiça, para atingir o ponto que desejava neste confronto “quanto mais consideráveis forem os favores prestados tanto mais injusto é não testemunhar reconhecimento”. O SuRS descritivo de Sócrates de repente se vê diante do problema: o conflito do amor carnal que faz o homem procurar uma mulher e vice-versa e o amor de esposo-esposa que almejam a procriação. Leva o filho a perceber que diante desse conflito, a superação da possível contradição do pai ter procurado sua mãe para fazer amor e o fazer amor com outra mulher, inclusive a prostituta, está justamente na intenção do ato: “todos sabem muito bem que procuramos, para nos unir a elas e procriar, as mulheres mais apropriadas a nos dar bons filhos”. Assim leva-o a ver que ele é visto pela mãe e pelo pai como ‘bom filho’, o que metodológica e pedagogicamente é garantia para usar de aqui para frente um SuRS mais compreensivo. O filho já está convencido de que tem de ser grato para com os pais, até por questão de justiça. Mas como adolescente, sente que sua mãe o humilha e reage não por ingratidão e injustiça, mas automaticamente contra seu mau humor. É o momento de substituir novamente o SuRS. E Sócrates o faz, tendo em vista que está num contexto pedagógico (afinal o mau humor de Xantipa era recriminado também por Sócrates, por não compreender sua própria imprevidência e falta de atenção na manutenção da casa). Então leva o filho a fazer nova associação: a do mau humor da mãe com a fúria dos animais selvagens. Nesta comparação o jovem conclui que sua mãe nada tem em comum com as feras. Aproveita Sócrates para levar o filho a tomar consciência de que ‘mesmo dizendo coisas que ninguém gostaria de ouvir’, ela o faz pelo bem do filho e não por querer-lhe mal. E assim prossegue até conduzi-lo para a reflexão final de que o filho não pode restringir sua vida à sua casa, mas, por outro lado, o comportamento dele em casa reflete em sua conduta como cidadão na sociedade e nesta jamais serão bem vindos e bem sucedidos os filhos ingratos e desobedientes e que desprezam os próprios pais.

3.4 Para efeito didático vamos separar o suporte - o referencial - a superação. O ideal seria poder comunicar o todo como estrutura total.


3.4.1 SUPORTE

O SuRS é topos, estratégia e tática ao mesmo tempo. É técnica conceitual e operacional simultaneamente. Não deve ser entendido como causa ou produtor. Simplesmente uma ferramenta (um “tool” como chama Madge aos instrumentos de pesquisa: técnicas de experimento - de observação - de coleta de dados etc).9 Um instrumento a ser adotado. Para sua maior eficácia exige-se consciência do problema e decisão para adotá-lo. Não há como defini-lo formalmente: devemos assumi-lo como forma e conteúdo ao mesmo tempo. Aceitá-lo como um recurso que se concebe - real e operatório - que conforme a situação enfrentada, o problema, há de ser realmente colocado como pré-condição, ponto-de-partida, contexto e mesmo conhecimento preexistente ou, como no caso do processo de uma pesquisa, corpo de conhecimento disponível - enfim suporte referencial para se operar o processo de superação de conflitos ou situações problemáticas. Enquanto suporte o SuRS funciona também como o topos do processo do pensar e do discurso. A respeito do topos, importa lembrar que ele precede a fala (mesmo a fala interna identificada com nosso pensamento). Assim se há de entender Lefebvre quando diz:

No começo era o Topos. E o Topos indicava o mundo, pois era lugar; não estava em Deus, não era Deus, pois Deus não tem lugar e jamais o teve. E o Topos era o Logos, mas o Logos não era Deus, pois era o que tem lugar. O Topos, na verdade, eram poucas coisas: a marca, a re-marca. Para marcar, houve traços, dos animais e de seus percursos; depois, sinais: um seixo, uma árvore, um galho quebrado, um cairn. As primeiras inscrições, os primeiros escritos. Por pouco que fosse, o Topos já era ‘o homem’. Assim como o sílex seguro pela mão, como a vara erguida com boa ou má intenção. Ou a primeira palavra: o Topos era o Verbo; e algo mais: a ação, ‘Am Anfang war die Tat’, algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado. Assim, o Verbo não se fez carne, mas lugar e não-lugar (LEFEBVRE, 1975, p. 34).

Aproveitando a paráfrase que Lefebvre faz do início do Evangelho de São João (in principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per ipsum facta sunt, et sine ipso factum est nihil, quod factum est), podemos ver que ontologicamente a palavra ou a fala (o Verbo - o Logos) não é o princípio de tudo (o ‘fiat’ da criação) pois para haver o verbo há de haver o ‘topos’.(7) Afinal, se há o verbo, ele implica a existência de seu emissor num determinado espaço e num determinado tempo; e há de haver a intenção de dizê-lo, a marca e a re-marca que lhe dá o sentido, a direção.

Como nos mostra em seguida Lefebvre, todo discurso parte “do lugar, mental e social, lugar da identidade e da diferença, lugar marcado (logo destacado) e nomeado (lugar dito), logo ligado e religado - a direção e a orientação o trajeto e o percurso, vão de um lugar para outro’.(LEFEBVRE, 1975, p.34). Por conseguinte, pode-se inferir que por trás de todo pensamento, de todo discurso, de todo processo de conhecer haverá sempre um topos, que no SuRS se identifica com o suporte. É ele que dá a direção do processo de pensar e agir, do próprio discurso e até da problematização.

Como o termo ‘suporte’ indica, é ele a escora e a segurança do ponto-de-partida do processo. Na prática identifica-se por um momento com o conjunto de conhecimento tido e a nosso dispor bem como com o cabedal de perceptos que guardamos em nossa mente e que diante de uma situação nova brotam ao nível da consciência (ao menos é o que se deseja: que o SuRS seja sempre consciente). Brotam estimulados pela situação nova que se enfrenta, no ato da contrastação. Donde se conclui: o suporte faz parte e é a garantia da própria problematização.


3.4.2 REFERENCIAL

- porque o suporte se refere a (ao problema em questão - ao tema - ao sujeito - ao objeto - ao ouvinte - ao leitor - à fonte - ao contexto etc) - faz referência (uma vez que o suporte é operação de lógica concreta) - toma um contexto - um aspecto - uma perspectiva - um momento no tempo - um lugar físico - um topos lógico etc como referentes. No diálogo com o outro ou com nós mesmos (no caso da reflexão, da auto-análise) temos necessidade de estabelecer um referencial, para saber de que se trata, o que importa e em relação a quê - para definir objetivos a alcançar - enfim para assumirmos o processo de maneira concreta, clara e definida.(8) Exemplifiquemos:

Eis-nos diante dum discurso : “a Razão promove a passagem do homem de animal para ser consciente e dominador da Natureza”.

Reações nossas possíveis : - Um pensamento? Um enunciado? Um enunciado verdadeiro? Logicamente verdadeiro? Realmente verdadeiro (verdade fática)? Uma verdade universal? Uma proposição científica? filosófica? ontológica? psicológica? antropológica? Afirmação de Aristóteles? de Kant? etc, etc

Mil perguntas que exigiriam do autor (do pensador - do expositor - do pesquisador etc) ou do leitor ou do ouvinte uma série de operações, quando não adota o SuRS adequado. E tais operações, como as do tipo A (“sob tal ou qual aspecto”) ou do tipo B (“a origem dessa idéia...”) ou do tipo C (“opinião de”- “meu ponto de vista” - “conclusão a que cheguei”) etc são operações que revelam: 1 - a dependência do nosso pensamento a algo além do compromisso de ser pensamento; 2 - a riqueza operacional do pensamento que pensa, formaliza, dirige, manifesta, analisa conclui etc numa velocidade imensa, mas também numa vagareza imensa e por causa dessa dimensão operacional também confunde, atrapalha, retarda, não se torna claro, vai, volta, se detém, recomeça, salta... 3 - revelam especificamente a falta de algo que, desde o início do processo, fosse, ao mesmo tempo, e provisoriamente: situador do pensamento, orientador do pensamento, legislador do pensamento, promotor do pensamento, controlador do pensamento, julgador do pensamento... fosse ao mesmo tempo, e provisoriamente : psicologia, lógica, sociologia, anatomia, fisiologia, metodologia enfim do pensamento (que põe o problema e o ajuda a resolver).

Estabeleçamos agora mentalmente o SuRS para se ter aquele pensamento, enunciado da seguinte maneira:
1 - situação (ou SuRS 1): demonstração do pensamento
2 - contexto (ou SuRS 2): lógico - adotado o tradicional ou formal do tipo aristotélico
3 - novo contexto (ou SuRS 3): ontológico = pensar o homem como entidade abstrata (“o homem” - “o ser humano”)
4 - relações (ou SuRS 4): todos os elementos do discurso serão pensados como abstratos e relacionados em obediência às leis e operações lógicas
5 - objetivo ou SuRS 5): demonstrar
6 - meio (ou SuRS 6): pelo silogismo.

Se nosso SuRS for este, aquele enunciado não vai ser pensado em termos históricos ou psicológicos ou antropológicos etc, indevidamente, mas nos termos do SuRS do autor, agora adotado pelo leitor. Talvez agora dentro e por meio deste SuRS comum, o enunciado passa a ser claro, aceito, demonstrado ... ou o contrário de tudo isso; mas este “contrário” já será uma decisão do próprio autor ou leitor em função de um SuRS crítico ou analítico etc

É preciso ficar claro que o SuRS não está arvorando para si o lugar da lógica, apenas momentaneamente ele funciona como operador de lógica, inclusive de determinada lógica (no exemplo: da lógica aristotélica) como pode funcionar como operador de psicologia, de antropologia, de lingüística etc.

Se aquele enunciado formulado pelo autor com um SuRS X (digamos, como no exemplo, lógico formal) e lido por um leitor, cujo SuRS seja Y (digamos materialista-dialético), então o enunciado seria falso ou sem-sentido.

Há de observar-se que o SuRS não é apenas o aspecto, sob o qual se pensa, se enuncia etc, nem o objeto formal aristotélico (em oposição ao objeto material).(9) É algo muito diferente e muito mais rico. Por quê? Porque o SuRS é como toda realidade que descobrimos, concreta. Sendo concreta, é plural. Ele não é aspecto, são aspectos. Não é forma, porque é conteúdo e forma - conteúdos e formas. Sempre em interação.

Arrisco-me a mais um exemplo.

Trata-se de um fato que presenciei como ouvinte durante um concurso para titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.

O candidato defendia uma tese sobre Althusser e um dos examinadores não era nem filósofo, nem marxista. Um antropólogo que, no máximo, poderia ser rotulado de funcionalista.

Em sua argüição, intencionalmente ou não, aventurou-se a entrar no campo “metafísico” e levou a discussão com o examinando sobre o materialismo e deste para o problema da existência de Deus.

Aos ouvintes se patenteava nitidamente que, para o candidato, o conceito de materialismo implicava uma postura filosófica e ideológica em contraposição a idealismo (nesta concepção materialista do mundo o problema da existência de Deus passa a ser um falso problema); ao passo que para o antropólogo, o sistema filosófico era pensado como “materialismo crasso”, pelo qual toda a realidade se reduz à matéria bruta e aos três estados do sólido, líquido e gasoso.

Um espetáculo evidentemente acadêmico, mas que tangenciava à hilaridade: um pensava e falava de uma coisa, o outro de outra, embora ambos estivessem usando o mesmo vocabulário. Dentro de nosso contexto: um tinha assumido um SuRS X e o outro, um SuRS Y.


3.4.3 de SUPERAÇÃO


Antes de qualquer esclarecimento, convém recorrer a Lefebvre a respeito da superação:

“A palavra “superação”, ainda que expresse mal o dúplice processo que abole um termo ou um ser superado, mas para elevá-lo a um nível superior, essa palavra é preferível ao termo “síntese”, que sabe a ecletismo e a mecanicismo; a “síntese” é obtida pela mistura dos ingredientes, ou por uma construção ideal, a partir deles, de sua unidade. A superação exige, ao contrário, o confronto mais intenso, mais agudo, mais real das teorias ou dos seres” (LEFEBVRE, 1975, p. 231). (10)

Pela teoria dialética do conhecimento, a superação é um movimento do pensamento encontrado em cada uma das etapas de nosso progresso lógico. Um termo que irrompeu no vocabulário filosófico a partir de Hegel. Podemos dizer que hoje até se vulgarizou. Mesmo um leigo pensa ser absurdo surgir uma etapa nova na história, uma nova escola, se o que é chamado de novo não superou o antigo. A influência da dialética neste campo laico se nota até quando se ouve uma recomendação como esta: “tomar de cada doutrina o que ela tem de bom e superá-la”. O perigo está justamente aqui: sair do dogmatismo e cair no ecletismo. Acaba-se fazendo uma salada. Ou como dizia meu antigo professor de filosofia: “o ecletismo é como lata de lixo; tem um pouco de cada coisa”.(11)

Segundo Lefebvre, na superação, o que é superado é abolido, suprimido, num certo sentido. Não obstante, em outro sentido, o superado não deixa de existir, não recai no puro e simples nada; ao contrário, o superado é elevado a nível superior. Justamente porque serviu de etapa, de mediação para a obtenção do resultado superior: “Certamente, a etapa atravessada não mais existe em si mesma, isoladamente, como ocorria num estágio anterior, mas persiste no resultado, através de sua negação. Assim a criança continua no adulto, não tal qual foi, não ‘enquanto criança’, mas na lembrança e na memória de um adulto, em seu caráter; pode-se encontrar - superadas - a criança e a vida de criança (LEFEBVRE, 1975, p. 231).

Por ser instrumento (= suporte referencial), o SuRS o é de superação. Aliás só é concebível como um suporte e um referencial porque se visa à superação do conflito, da oposição encontrada no bojo de uma situação-problema.

O SuRS é instrumento (de conhecimento - ação - linguagem - comunicação - avaliação) de operar a superação das contradições, muitas vezes a própria síntese (quando se pensa na tríade dialética de tese-antítese-síntese). Funciona como dissolutor de conflitos no nível do pensar, do agir e da linguagem. Resolve ou dissolve ou complementa ou incrementa ou concilia... tudo depende de que elemento existe nele, no momento de sua colocação, que se identifique com objetivo preestabelecido. Isso realmente pode ocorrer. Não dizemos que sempre ocorra e que para pensar ou discutir há sempre, atrás de todo pensar ou agir, um objetivo. Inclusive, porque a “teoria” do SuRS rejeita este sempre categórico. Recomenda-se muito cuidado com as palavras, com as generalizações, com a falta de SuRS antes das conclusões.

Quem pensa dialeticamente não se permite pensar a natureza, a vida, o pensamento, a não ser como movimento, como processo e como espiral. Ou seja, não se permite pensá-los como algo linear ou circular. Pensa-os como espiral. Na vida como na reflexão, argutamente lembra-nos Lefebvre: “passamos novamente por cima das etapas anteriores, dominando-as, reencontrando-as; mas num nível superior (...) Assim a superação revela o superado e imerge mais profundamente que ele no imediato, embora o superado tenha sido o primeiro imediato”. (LEFEBVRE, 1975, p. 232).

Para a Dialética - como lógica e como método - a superação revela-se como movimento ao mesmo tempo lógico e concreto (psicológico, histórico, social etc) de importância decisiva.

Encampo para defender a importância do SuRS e mostrar sua aplicabilidade, as regras práticas de superação apontadas por Lefebvre :

• Numa discussão, desconfiar do ecletismo sem contorno, sem rigor, sem força.
• Aprofundar as teses, aguçar as diferenças, com o objetivo de rejeitar a ambas (e não aceitá-las ambas ao mesmo tempo), tomando o conteúdo delas. Dar toda força ao confronto, aprofundá-lo até a contradição (até descobrir a raiz da contradição), de modo tal que, nesse ponto, as teses “convertam-se uma na outra”, ao invés de conservarem-se exteriores e opostas a partir de fora, descubram seu conteúdo no movimento que as atravessa e se superem nesse movimento.
• Se o fim de um progresso reencontra o seu começo, não temos aqui um círculo vicioso, mas uma superação real, na condição de que o progresso do pensamento seja efetivo e consista num aprofundamento do ponto de partida (LEFEBVRE, 1975, p. 233).

Evidentemente até aqui temos pensado no conhecimento, no pensamento, na ação, dialeticamente, como processos. Temos pensado, sobretudo, no processo discursivo. Não saberia precisar se o SuRS funcionaria também para as intuições, no nível artístico. Apenas acredito que sim, pois posso garantir que o SuRS funciona para o nível criativo do pensamento (onde se dá um tipo específico de intuição ou de inspiração) e da ação conjuntos, mesmo quando este nível não for, naquele momento, o nível científico. Terei ocasião de mostrá-lo quando for abordado o tema da problematização e criatividade(capítulo 10). É oportuno esclarecer que o SuRS não se opõe ao intuitivo no discurso científico, justo porque é SuRS. Apenas deixa a questão em suspenso. Não há como pensar no SuRS e agir como o cientista radical adepto, por exemplo, do experimentalismo oitocentista, que nega peremptoriamente a intuição como recurso científico. Já firmamos nossa posição genuinamente dialética de nada negar e de nada afirmar de modo absoluto. Em situação como esta, se o pensador se surpreende no umbral do absoluto, deverá desconfiar ou do SuRS adotado ou da direção que tomou seu pensamento.

3.4.4 - Suporte - referencial - superação: três elementos de uma mesma estrutura intimamente relacionados e que merecem ser usados no processo do pensar e do agir, notadamente objetivando superar problemas ou quando corremos o risco de sofrer o que os estruturalistas chamam de ‘bloqueio da mente’. Este acontece quase sempre quando tentamos a solução, mas ao mesmo tempo a avaliamos. Por causa de nossa tradição cultural e nossa educação, somos freqüentemente bloqueados na hora de criar e a principal causa é ter que utilizar duas funções ao mesmo tempo: a de criar e a de julgar. Não só na hora de criar (no sentido de descobrir ou de inventar ou de inovar), mas também quando se tem de tomar uma decisão.

O perigo do bloqueio mental é que naquele momento em que surge, somos geralmente levados a sentir o mundo desabar a nossos pés: o ‘desabamento da totalidade das estruturas’ como apontam os estruturalistas. Uma situação fatalmente acompanhada de medo (medo de tornar-se ridículo, dos comentários dos outros, de que seu problema é único e não tem solução etc). O medo, de acordo com a psicologia, impede a solução racional ou a mais indicada. Surgem soluções negativas, filhas do apavoramento.

Diante da possibilidade do ‘bloqueio mental’ importa lembrar sempre, como afirmam os estruturalistas, que todo problema é conseqüência de defeito, de falha verificada, donde decorre o desejo de fazer a situação melhorar, de levar a estrutura considerada a um estado diferente. Ou, então, decorre da necessidade lógica que todo indivíduo tem de fazer corresponder seu campo interior ou as estruturas mentais ao campo exterior. O segredo está em conseguir usar o SuRS - como mecanismo de autoconsciência - e através dele constatar que existem dois reais: um externo ou real propriamente dito e outro interno que se chama ‘Eu’. E este real interno é uma estrutura bastante complexa, mas está sujeita às mesmas operações do real externo.





4 Homenagem ao rabino Nilton Bonder

Ao encerrar este capítulo não posso deixar de prestar uma homenagem e ao mesmo tempo registrar meu agradecimento ao rabino Nilton Bonder pelo belíssimo presente com que nos brindou ao publicar O Segredo Judaico de Resolução de Problemas - livro que vim a conhecer há dois anos (1996) já em sua 3a. edição.(12) Por considerar que o texto tem muito a ver com o SuRS, sinto-me na obrigação intelectual e moral de comentá-lo, à guisa de uma ‘resenha crítica’. Através de oportunas extrações e detectando momentos em que o pensamento de Bonder se aproxima do meu no que tange à escolha consciente de um suporte referencial de superação para resolver problemas, vou tentar compor, à imitação de Barthes, ‘fragmentos de um discurso metodológico’. Julgo ser uma forma de prestar minha homenagem ao autor (para mim infelizmente desconhecido) por seu trabalho realmente extraordinário: já pertence à galeria dos documentos destinados não somente ao especialista, voltado para suas pesquisas científicas, como ao leigo, sobretudo o que já se convenceu de que a vida é o grande problema, cuja solução depende de cada um de nós. O objetivo do livro, vê-se desde logo pelo título e pelas primeiras páginas, é bem amplo: ensinar não só a resolver problemas de qualquer natureza, como a tirar proveito de toda situação problemática, seja qual for o setor da vida ou da existência humana.

Se o leitor prestou atenção ao que escrevi, já deverá ter percebido que minha preocupação foi inicialmente com o processo da problematização em função do pesquisar e do pensar, mas acabou se estendendo ao processo de criar, de agir e até do viver. Ao enfocar a problematização, limitei-me inicialmente ao ‘ problema do problema’: - o que leva o homem a interrogar e a problematizar? E qual a extensão e a função da problematização?

Mas deixei implícita durante todo o desenvolvimento do trabalho a preocupação com a resolução do problema. Neste capítulo 3 é que minha atenção voltou-se para este ponto, isto é, para o efeito da problematização, ou seja, para a resolução do problema, a resposta à pergunta, a superação do conflito. Desde o início estava convencido de que mais importante que a resposta é a interrogação, pois aquela depende de como esta é feita. Por isso rendo tributo de reconhecimento a Bonder, por sentir que assim também pensa. Já no frontispício de seu trabalho estampa esta sábia frase que resume toda esta nossa comum maneira de ver e entender a problematização: “O que torna uma resolução tão difícil é não sabermos o que queremos e o quanto queremos” (BONDER, 1995, p. 5).

O SuRS ponto-de-partida, que motiva Bonder a escrever e o acompanha durante as 168 páginas é a tradição judaica -“tradição muito antiga que experimentou encrencas e dificuldades de todas as sortes”- o que leva a todos os povos oprimidos a “fazer da necessidade a mãe das resoluções”.Ainda que o autor diga que sua intenção não é comunicar um método, nem uma sabedoria, mas o “acúmulo de ‘massa crítica’ mínima de problemas necessária para instaurar um processo existencial voluntário de questionamento do impossível”, temos de convir que existe a comunicação duma sapiência milenar e duma metodologia acima de qualquer especificação - fruto que é do saber viver.

O principal móvel deste comentário é que o autor transmite ao leitor lições existenciais de como enfrentar até o impossível, justamente porque desde o início assume tranqüilamente o entendimento de que “a impossibilidade é uma condição momentânea e quem sabe disto não desiste. E nenhuma outra postura é tão instigadora de criatividade e intuição quanto o ‘não desistir’. O simples fato de permanecer no ‘jogo’ abre opções que, fora dele, ao se ‘jogar a toalha’, obviamente não existem” (BONDER, 1995, p. 10).

Atualizando a tradição dos antigos sábios, Bonder comunica suas lições através de provérbios, estórias, anedotas, apólogos, alegorias, fábulas.

O primeiro grande momento em que detectei forte analogia de sua ‘metodologia de resolução de problemas’ com o SuRS dá-se quando fala da recontextualização. Evoca o episódio do judeu que na Idade Média se safa da condenação à morte, apesar de enfrentar verdadeira ordália (a sentença já estava proferida antes do julgamento!)(13), portanto superando uma situação impossível. Como comenta Bonder “com um pouco da sagacidade da necessidade, foi possível recriar um contexto onde as chances do acusado de superar a adversidade saltaram de 0% para 100%. Ou seja, a simples recontextualização da mesma situação permitiu a reviravolta da realidade” (BONDER, 1995, p. 11) [sem grifo no original].

Como se nota, Bonder, ao atribuir a solução do problema à recontextualização, recorre ao que estou chamando de SuRS. A elasticidade do SuRS e sua flexibilidade, inclusive, de troca por outro, coloca-nos em condições de superar as dificuldades, até as que parecem impossíveis. Importa frisar o que diz Bonder: “os segredos da recontextualização estão implantados no próprio âmago da concepção judaica de observação cautelosa da realidade. Desde tempos muito antigos, a tradição cabalística afirmava que a realidade existe em camadas, como uma cebola. Desfazer uma a uma estas camadas permite dissecar a realidade com índices de eficácia muito maior do que sua percepção reduzida a uma única dimensão” (BONDER, 1995, p. 12) [sem grifo no original].

A realidade desafiadora do homem problematizador é vista por Bonder como formada de quatro dimensões, sugeridas pelo rabino Schneur Zalman de Ladi (1745): o aparente do aparente - o oculto do aparente - o aparente do oculto - o oculto do oculto. Ao enfrentar problemas típicos de cada uma dessas quatro dimensões da realidade, Bonder aponta recursos que eqüivalem ao SuRS, se considerado em toda sua abrangência.

A primeira dimensão se refere ao óbvio e ao concreto e revela de forma inquestionável a existência de uma incógnita ‘completamente dominada e conquistada’. Mas ronda-lhe um perigo: a da perda da compreensão de que o aparente do aparente venha a ser a representação de uma redução quando não percebido através da perspectiva da existência. Inclusive, nesta primeira dimensão, Bonder lembra que um simples problema de aritmética, encarado dentro desta dimensão pode ter mais de uma solução, por exemplo o do menino que comprou seis maçãs e quando chegou em casa só tinha duas. À pergunta ‘quantas maçãs perdeu?’ pode ter, além da resposta quatro (aritmeticamente ‘óbvia’), praticamente todas de 0 a 6, por exemplo: três, porque perdera realmente três e comera uma; ou seis, porque estavam todas tão maduras que não eram comestíveis e levou duas como amostra; ou duas, pois teria comprado as maçãs com 50% de desconto’... O leitor confere que tudo depende do contexto e do referencial que a pergunta com o verbo ‘perder’ provoca (ou seja depende do SuRS colocado naquele ‘aqui e agora’). Somente a resposta quatro revela o reducionismo do problema (exigido pela concepção universal de aritmética). Mas, conforme o contexto, pode ser a resposta mais desprovida de informações, portanto a pior resposta...

Nesta primeira dimensão é enfatizada a necessidade de saber ler no simples e no concreto à luz do que está oculto, a fim de que consigamos revelar várias das ignorâncias que circundam o tosco e o primário. Por ser o aparente do aparente a ferramenta humana fundamental para descobrirmos nossas ignorâncias esta dimensão está situada no ponto de contato da quarta, ou seja, a do próprio oculto do oculto. Afinal os extremos se tocam.

Ainda nesta primeira dimensão Bonder aborda a relação ‘pergunta - resposta’, mostrando sobretudo como freqüentemente uma pergunta eqüivale a uma resposta. É preciso aprender a não trocar uma boa pergunta por uma resposta qualquer. Toma como máxima a seguinte afirmação: “uma das maneiras mais seguras de proceder diante de uma pergunta é com outra pergunta”, pois “saber é propositadamente não querer ver até que o que seja visto possa contribuir e adicionar, em vez de diminuir” (p. 34)

Pertence a esta primeira dimensão o saber distinguir o texto do contexto e saber situar um no outro. Há ainda a questão dos receptáculos a ser levada em conta, pois é nesta instância que se dá a relação das formas com a essência. Segundo Bonder, todas as essências que conhecemos são retiradas das formas que nos cercam. Nossos problemas diários se concentram em gerar mais formas a partir do que aprendemos das formas. “O mundo das formas é um mundo que se multiplica em formas, porque ao surgir a primeira se definiram todas as demais formas possíveis” ( p. 26). Nossos receptáculos estão envolvidos por aquilo que eles não contêm. “É este o valor de um texto (enunciado): ser uma forma que permite outras e que por exclusão define a essência.”(p.26)

Se há um momento na abordagem do ‘aparente do aparente’ em que o pensamento de Bonder parece exposto para justificar o SuRS é no breve capítulo, em que trata dos ‘bolsões de resistência mental’. Basta esta extração:

É a partir da maneira que formatamos nossa cabeça que esta vê, ouve e entende. (...) Da mesma forma que precisamos de terapia para romper com padrões de atitude, os condicionamentos mentais só são ultrapassados quando descobrimos que são os maiores produtores de ignorância (...) Mesmo os ingênuos ou irracionais são menos ignorantes que aqueles que percebem a realidade através dos desvios de seus condicionamentos. É como diz o ditado ídiche: ‘Um relógio que parou é melhor que um relógio com defeito que atrase ou adiante; isto porque um relógio parado pelo menos mostra a hora certa duas vezes ao dia’. (BONDER, 1995, p. 35 - 6)

Irmão gêmeo dos ‘bolsões de resistência mental’ está o que o autor chama de ‘bloqueios estéticos’ ou a dificuldade de exercitar a ignorância.

Neste mesmo ritmo Bonder penetra na segunda dimensão: a do ‘oculto do aparente’. Isso se dá diante do fato de que o aparente encontra-se encoberto por algo que também é de natureza aparente, mas numa condição de oculto. Geralmente gera a surpresa :- como não o percebi antes?... Corresponde à atitude de quem procura o diferente nas semelhanças ou a busca das semelhanças onde há confusão - “um instrumento fundamental da pesquisa e da cognição”(p. 58). Nesta incursão Bonder invoca novamente a recontextualização: “A recontextualização é muito importante na resolução de problemas, já que ela expõe elementos ocultos do óbvio. (...) O ato de contextualizar é uma forma subversiva de tratar a realidade. É em geral uma sublevação à unanimidade ou ao consenso. Dizia Walter Lippman: ‘Quando todos pensam igual, ninguém está pensando”(BONDER, 1995, p. 62 - 65).

Seu capítulo sobre Transparências é verdadeira síntese da propalada ‘análise do discurso’ tão em voga na pesquisa em ciências humanas e sociais. Nesta mesma direção situa-se o capítulo, em que trata das ‘intervenções paradoxais’ ou recontextualização pelo oposto, em que se recoloca o sujeito na situação de sujeito ativo: indo muito além de uma resposta, age com “crítica mordaz de um comportamento em particular por seu caráter ‘ressonante’ em que permanece em nossos pensamentos’ (p. 81) Além do uso do paradoxo, sublinha o valor da ironia, da qual Sócrates já nos deixou verdadeiro discurso metodológico em função da obtenção do conhecimento. Termina a abordagem da segunda dimensão fazendo considerações sobre as ‘previsões’ ou a capacidade de certas pessoas em fazer prognósticos derivados da possibilidade de ler a realidade com bastante clareza e sensibilidade, de modo a ver o que outros não conseguem ver.
Com o tratamento da terceira dimensão - o aparente do oculto - Bonder proporciona-nos curiosas investidas no terreno do aparentemente absurdo ou como ele mesmo diz: “um mundo estranho, onde o absurdo é um elo importante entre lógicas à primeira vista desconexas; um mundo em que a meia-sapiência é um estorvo, uma ignorância que impede a legitimação destas impressões e impactos ocultos. Um território onde o tolo, desde que plenamente tolo, revela aspectos inusitados do saber; onde a reversibilidade do saber o expõe de maneira mais contundente, fazendo com que ‘para cada resposta possa surgir uma boa pergunta” (BONDER, 1995, p. 100).

O problema das várias lógicas foi um dos mais relevantes, quando tentei situar a eficácia do SuRS, para facilitar a compreensão do outro e de seu discurso. Mais um argumento de que ‘a metodologia de resolução de problemas’ de Bonder revela, sob outra maneira de apresentar, o valor e a eficácia do SuRS.

Ao penetrar na última dimensão - o oculto do oculto - Bonder recorda a célebre frase de Shakespeare: há razões que a própria razão desconhece. Do mesmo naipe da de Pascal : o coração tem razões que até a mesma razão desconhece... O território do ‘oculto do oculto’ é “destituído de qualquer presença de elementos aparentes. Tudo é oculto e para além do saber”. Mas pode ser revelado e é acessível ao ser humano. “Seu acesso, no entanto, só é possível através da ação e não da razão”. Recorrendo a uma região fora do mistério, Bonder alude ao fato de que “o oculto resolve respostas dinâmicas em constante mutação, distintamente do nível aparente que considera situações sempre em condições estáticas”. Para corroborar sua afirmação aponta a descoberta científica do DNA. Segundo ele a comunidade científica ficou surpresa ao constatar que a forma pela qual o DNA foi engendrado permite a constante geração de erros no processo de criar réplicas de sua molécula. O grande problema portanto, era: - como compreender esta estrutura fundamental como algo eficaz, se constantemente produz erros? Pesquisando a resposta a este problema os cientistas chegaram à conclusão de que o DNA “encontrou a ‘perfeição’ para lidar com os limites do mundo físico, impondo-se um sofisticado sistema de “efeitos que podem ser consertados, a fim de que a partir deles atinja novas formas mais desenvolvidas de ‘dar certo’ ” (p. 148).

Aqui novamente a sabedoria milenar judaica se faz ouvir: “Aprende de teus maus julgamentos os teus bons julgamentos” ou seja “fazer primeiro, para depois ouvir e julgar”(p.149). Donde extrai uma espécie de máxima: “Sair pelo mundo enfrentando as próprias tolices (erros) é um método muitas vezes mais apropriado de derivar do que saber através de livros e de conceitos teóricos. ‘A sabedoria daquele que ultrapassa o peso de seus atos não se preservará. No entanto, aquele cujos atos ultrapassam a medida de sua sabedoria - sua sabedoria se preservará” diz a Ética dos Ancestrais” (BONDER, 1995, p. 149).
Se no ‘aparente do aparente’ importa ao analista identificar o que não é dito no que foi dito e a partir daí compreender o problema, no oculto do oculto, o importante é “conhecer o erro - o não dito da ação - para melhor compreender e identificar o acerto”. Donde a conclusão: “O erro circundante na ação está para a cognição do oculto assim como a ignorância circundante à informação está para a compreensão do aparente” (BONDER, 1995, p. 149).

Bonder termina seu livro com considerações sobre o pomar e a intenção que o levou a incursionar por seu território:

proporcionar um tour pelos territórios do pomar. Nosso guia foi uma tradição muito antiga que muitas vezes se voltou para o pomar com perguntas. A natureza destas perguntas, por sua vez, revela aquilo que o pomar tem de mais importante para contribuir. Não foram perguntas de curiosidade que levaram à descoberta do pomar, mas perguntas que ansiavam por sentido. E qual é o sentido? Na plenitude da volta pelo pomar, ele não é expresso por conceito. O sentido é uma composição de discernimento e compromisso, entre pensar e fazer, entre ter maestria e ser. Nos limites, no que é apreensível do sentido, ele é indistintamente discernimento e compromisso ao mesmo tempo (...) Neste mundo não-evidente, o visível é o caminho para compreender o invisível - a luz serve para compreender a luz existente ocultamente na luz. ) [sem grifo no original] BONDER, 1995, p. 167-8

Independente de este final conter ou não sabor de religiosidade, entendo que o que faz o sentido e a fecundidade da resposta (ou da resolução do problema) é o sentido e o alcance da pergunta e esta depende sempre do SuRS que está por trás de sua formulação.


5 Exemplos didáticos


Seguem exemplos didáticos de como funciona e de como fazer funcionar mentalmente o SuRS.


5.1 Suponhamos que se queira resolver o seguinte problema: - há alguma relação entre a psicanálise e o conhecimento científico? Ou: - é a psicanálise uma ciência?

Eis como didaticamente poderia representar a presença e a função do SuRS em minha mente ao debruçar-me sobre o problema formulado:

1 - Operador 1 de SuRS: que psicanálise? a teoria psicanalítica? a teoria psicanalítica de Freud e segundo seu modo de pensar? ...
2 - SuRS - reação 1: a teoria psicanalítica ortodoxa, freudiana
3 - Operador 2 de SuRS: e o que lhe quer dizer “conhecimento científico”?
4 - SuRS - reação 2: o conhecimento científico institucionalizado com o nome de ciência, que desde o século XVI surge em oposição, de um lado, ao conhecimento vulgar, do senso comum e, de outro lado, em oposição ao conhecimento filosófico, teológico e matemático e ao conhecimento dogmático, baseado na autoridade
5 - Operador 3 de SuRS: ciência é uma abstração, forma: só se torna claro, se for revelado seu conteúdo ou ao menos seu modo de existir ou de ser no tempo, no espaço, concretamente. Há ciências. Não há a ciência. Só há a ciência numa concepção momentânea, como forma de um conteúdo identificado.
6 - SuRS - reação 3: estou entendendo claramente, embora como início do processo: o conteúdo refere-se às práticas, às realizações científicas que se chamam ciências humanas e sociais, entre as quais estão a psicologia, a sociologia, a história, a economia, a antropologia etc. Embora entenda que isso são rótulos, sei que funcionam como sinais de seus referentes, como conjunto até certo ponto organizado da prática social de conhecer e produzir conhecimentos, e como produtos provisórios do processo histórico e social de conhecer ...
7 - SuRS - operador 4: quanto ao nível de conhecimento científico há ciência e ciência, ou seja, há de se levar em conta o patamar deste conhecimento: se simplesmente descritivo (como é o caso de uma anatomia, de uma psicologia evolutiva); se interpretativo (em que se insere grande parte das teorias das chamadas ciências humanas e sociais); se explicativo - preditivo (onde é possível formular legítimas leis científicas, como acontece com as ciências físicas e químicas)...
8 - SuRS - reação 4: Realmente a Psicanálise jamais teve a pretensão de colocar-se no nível explicativo-preditivo, com objetivo de formular leis para o comportamento humano. Ocupa um espaço epistemológico entre a filosofia e a medicina psiquiátrica, contentando-se em elaborar teorias descritivas e interpretrativas dos processos que regem a relação mente-corpo...

E assim o SuRS teria se introduzido para ir orientando, aclarando, dando pistas, direções, avaliando, corrigindo... operando o pensamento no processo, sendo ao mesmo tempo processo-produto, produto-processo etc.
Estabeleceria normas lógicas de validade. Seria a própria norma lógica assumida como algo concreto pelo pesquisador.

Além dessa técnica operacional de emprego do SuRS, poderia recorrer à técnica do relógio vista atrás. No caso começaria com a pergunta: 1) – o que é? [a) ciência – b) psicanálise?]; em seguida iria para a pergunta 2) – a) qual tipo de conhecimento é a ciência? ou b) quantos tipos há de ciência -c) qual destes tipos de conhecimento se refere à psicanálise? E assim sucessivamente.
No nível do pensamento como processo, o SuRS é, sob certo aspecto, ou modo de falar, o problema - o método - a teoria. Mas com uma grande propriedade, da qual não se poderia prescindir sem destruir o próprio SuRS : ele não pode ser absolutizado. Do contrário ele renasceria como a Razão Suprema, a Lógica Suprema, a Verdade Absoluta. Ou então como o Fato Absoluto, o Método Absoluto ou Universal.

5.2 - Este segundo exemplo, mais didático do que o anterior, surgiu da leitura do jornal ‘Estado De Minas’. Há nesse periódico uma seção, em que se faz um determinado tipo de pergunta e entrevistam-se 06 pessoas e suas respostas são reproduzidas debaixo de fotografia 3x 4 de cada entrevistado.
Aqui se pode observar claramente que, ao ser perguntado, quem cria o contexto é o entrevistado e no contexto, seu SuRS. Vou reproduzir a referida seção do dia 27.11.96.

Pergunta do jornal: - O mineiro é careta?

1) Resposta de M. M - 37 anos - funcionário público - Centro: “Não de jeito nenhum, se você entender careta num sentido pejorativo - de cafona, boboca. Agora, que é conservador, é”.
2) Resposta de R.. S. - 23 anos - Secretária - Esplanada: “Não, a maioria dos mineiros, não. Cada um tem um ponto de vista. Eu, por exemplo, não sou nem um pouco careta”.
3) Resposta de E. C. - 40 anos - engenheiro - Sta. Teresa: “Não. O mineiro é um povo que estuda bastante, ao contrário do carioca e do paulista. Mas o mineiro é - ainda - bastante conservador”.
4) Resposta de C. T. A - 24 anos - corretor de seguros - Vera Cruz: “Não. Porque o mineiro, hoje em dia, está-se libertando dos preconceitos, principalmente nas relações entre homens e mulheres”.
5) Resposta de S. S. - 53 anos - Educadora em Saúde Pública - Sion: “Prefiro dizer que é conservador nos valores e costumes. O preconceito que há por aí é de que o mineiro só reproduz valores e costumes, sem inovar”.
6) Resposta de Z. M. O - 33 anos - dona de casa - Cidade Nova: “Eu acho o mineiro careta, machista e meio quadrado em vários assuntos e na maneira de se comportar, sobretudo no que se refere à mulher”.

Seria interessante ainda observar que na formação do SuRS por ser também, herdado e formado culturalmente, exercem forte influência os fatores idade, sexo, ocupação e/ou profissão, lugar de residência e os valores defendidos pelas pessoas. Tudo revela-se no seu pronunciamento, apesar do SuRS estar latente.

O SuRS de cada um diferiu dos demais, embora tenham entre si alguns elementos comuns. Antes, porém, importa lembrar que o SuRS surge antes e durante o conflito do pensar. Toda pergunta provoca no interlocutor um conflito interno, ou seja, a “oposição entre dois polos” (um que afirma - outro que nega). No caso, o principal conflito é: “ser careta - não ser careta”. Este conflito vai se desdobrar entre os sentidos do termo “careta”. Há latente também o conflito entre “entender por mineiro o ‘povo’ ou o ‘cidadão’ ou o ‘homem (masculino) mineiro’ ”

1) SuRS do 1º entrevistado: de certo modo chega a explicitar um componente essencial do SuRS - o de conceituar o termo - razão da pergunta, no caso “careta”. Ele distingue sentido comum e sentido pejorativo. No sentido comum, “careta” significa, sobretudo, conservador. No sentido pejorativo: boboca, cafona. Parece que assumiu “mineiro” como “o(a) cidadão(ã) mineiro(a)”, não o identificando nem com “povo”, nem com “o homem (masculino) mineiro”, como aconteceu com o SuRS de outros entrevistados.

2) SuRS do 2º entrevistado: entende ‘careta’ como ‘rígido’ ou que pensa de forma única ou igual a todas as pessoa’ (talvez ‘de forma estereotipada’). Além disso ela faz questão de dizer que considera ‘mineiro’, ‘a gente mineira’ e faz questão de se incluir explicitamente na resposta (“não sou nem um pouco careta”).


3) SuRS do 3º entrevistado: identifica ‘mineiro’ com o ‘povo mineiro’ e o faz em contraste apenas com ‘paulista’ e ‘carioca’ ( não ‘paulista’ e ‘fluminense’ ou ‘paulistano’ e ‘carioca’, se mantivesse uma classificação correta). A idéia de ‘careta’ para ele está ligada a ‘ignorante’ (“o mineiro é um povo que estuda bastante”). Como outros fizeram, também ele distingue entre ‘careta’ e ‘conservador’.

4) SuRS do 4º entrevistado: ‘careta’ para ele tem conotação com ‘preconceituoso’ (“o mineiro hoje está se libertando dos preconceitos”). Entre os preconceitos prioriza a do homem em relação à mulher.


5) SuRS do 5º entrevistado: além de colocar como referencial a oposição entre ‘careta’ e ‘conservador’, nega que o mineiro seja careta, mas afirma ser ele conservador. E conservador quanto a valores e costumes. Interessante que o SuRS desta entrevistada parece situar-se fora de si mesma, pois sem responder diretamente: - “o mineiro não é careta, mas é conservador”, diz: - “o preconceito que há por aí (perguntaríamos: onde? fora de Minas?...parece que seja este o lugar a que se refere!) é de que “o mineiro só reproduz valores e costumes, sem inovar”. Em seu SuRS acrescenta-se ainda mais um elemento: “conservador é aquele que não inova”.

6) SuRS do 6º entrevistado: o SuRS desta entrevistada restringe o conceito de careta a ‘preconceituoso’ com conotação com ‘machista’, ‘quadrado’ e acrescenta a estes conceitos o referencial: “em relação a vários assuntos e na maneira de se comportar”. O termo ‘mineiro’ para esta entrevistada está identificado com ‘homem (masculino) mineiro’.

Estes seis flagrantes de SuRS servem também para corroborar alguns pontos colocados no texto sobre o SuRS, alguns de maneira implícita :

1º) Diante dos conflitos que surgem no processo do pensar e do conhecer, tanto quanto no de tomar decisões e agir, todos, mesmo inconscientemente, estabelecemos um SuRS (ou vários).

2º) Nossa convivência com as pessoas revela-nos, que ao se comunicarem e, sobretudo, ao externarem opiniões, todos usam SuRS próprios e mutáveis. Cabe a nós descobri-los, se realmente queremos ter uma convivência sadia e produtiva. Freqüentemente os conflitos surgem entre as pessoas, porque um ignora o SuRS do outro e não se dispõe a descobri-lo, nem, muito menos, a compreendê-lo. Exemplificando: se o entrevistado n.º 1 estivesse debatendo com a entrevistada n.º 6, haveria uma discussão calorosa, com possibilidade de não chegarem a um acordo (o que aconteceria certamente se não tomassem consciência da divergência entre os SuRS assumidos).

3º) O SuRS é dinâmico, não é um mero contexto passivo, um mero pano de fundo para o discurso. Como foi dito, ele é simultaneamente assumido como suporte, como referencial e como superação. Como o pensar, o conhecer, o agir, o comunicar-se são processos, o SuRS está constantemente atuando dentro deste processo, mesmo quando alguma fase já foi superada (momentaneamente, é claro!).

5.3 Há alguns anos deparei numa revista acadêmica publicada por alunos de Psicologia da antiga Universidade Católica de Minas Gerais - hoje PUC-MG - com um artigo sobre Grafologia, escrito por um professor de Filosofia no referido curso (posteriormente fiquei sabendo tratar-se de um ex-seminarista à época recém-saído do seminário, após ter cursado os três anos de Filosofia que precede, na formação do sacerdote, os quatro de Teologia).

Vou transcrever um trecho do referido artigo, para que o leitor possa de imediato identificar o SuRS escolástico, tomista, todo impregnado de ontologismo e formalismo (fruto do estudo rigoroso da Lógica Formal no curso de Filosofia na formação de um padre):

Fundamento filosófico da grafologia

Todo ser é idêntico a si mesmo. Se nenhum ser não pode ser idêntico senão a si mesmo, segue-se que todo ser se distingue um do outro. Ora, o homem é um ser, logo se distingue um do outro. E se um homem é distinto um do outro, distintas das do outro serão, igualmente, suas ações e atividades. Ora, o grafismo é uma atividade pertinente a cada homem, logo não se pode identificar com o de nenhum outro. Não se podendo identificar com o de nenhum outro, é ele seu privativo, e como tal lhe traduz o caráter.

Alguém pode objetar que o exemplo é por demais caricatural. Mas é real, garanto (não cito nome do autor nem a fonte, por motivos éticos). Sem considerá-lo apenas como o que não deve ser imitado, sobretudo na construção de um tratamento escrito de natureza científica, seria interessante atentar para a força do SuRS latente neste discurso sobre grafologia.

O título do artigo ‘fundamento filosófico da grafologia’ mostra que o autor iria apenas indicar filosoficamente em que se fundamenta uma realidade por todos observada: o grafismo. Ou em colocação mais singela: o fato real de que todos temos uma caligrafia própria, cada uma diferente em relação a dos outros, e que tal caligrafia deve revelar provavelmente a personalidade de cada um.

Para um filósofo escolástico, formado pela lógica formal e pelo tomismo, a filosofia é uma só - a filosofia perene - e esta é que deve servir de suporte e de referencial para pensar. O método a empregar é o silogismo - expressão máxima do método dedutivo-demonstrativo.

Seu SuRS primeiro, por trás de todo o discurso é a teoria metafísica ou ontológica da não-univocidade do ser. Tanto assim que o autor do artigo escreve logo no início, fazendo eco ao princípio de identidade que rege a Lógica Formal: “todo ser é idêntico somente a si mesmo”.

Desta premissa universal (aceita como verdadeira) deduz todo seu discurso, pouco se preocupando com a correspondência ou não de tal discurso à realidade. Nem ao menos, coloca em dúvida ou como problema a ser pensado se realmente fundamento filosófico é o mesmo que fundamento ontológico e se só existem a ontologia, a metafísica aristotélicas, baseadas na concepção parmenídica do ‘ser absoluto’.

Evidentemente esta deformação mental e filosófica jamais poderá entender que a realidade é movimento, nunca é, e está sempre sendo.

Resultado: somos testemunhas de um discurso tautológico que não acrescentou nada ao conhecimento.

Como faz falta em tantas pessoas que foram deformadas intelectualmente um SuRS crítico e problematizante!

5.4 - Este quarto exemplo corresponde a um episódio em sala-de-aula ocorrido com um colega de magistério, quando professor do Curso de Formação de Professoras do Ensino Primário do Colégio Municipal de Belo Horizonte, no começo da década de 60.

A formação deste meu colega era eminentemente filosófica. À época estava lecionando Psicologia Educacional para uma turma de segundo ano do curso.

O fato aqui relembrado foi por ele mesmo a mim narrado logo depois de terminada sua aula de psicologia daquela tarde.

O assunto da aula era ‘bases biológicas da personalidade’. Inevitavelmente teria que falar sobre a influência das glândulas endócrinas na formação do temperamento de uma pessoa. Lá pelas tantas ele se surpreende dizendo o seguinte para as alunas normalistas: - ‘as glândulas endócrinas, por serem pequenas bolsas formadas de células que exercem a função de secreção e excreção de substâncias, denominadas hormônios, na corrente sangüínea, logicamente possuem um receptor e um canal para conduzir a secreção e a excreção’. Mal acabou de pronunciar estas palavras, teve uma reação imediata : - ‘Perdão! Esqueçam o que acabei de dizer: é lógico, mas não é correto cientificamente, pois justamente o que caracteriza e define uma glândula endócrina é o lançamento de sua secreção diretamente na corrente sangüínea. Não têm canal como as glândulas exócrinas.’ E com bom humor, rindo do eqüívoco cometido em nome da lógica, arrematou sua conversa comigo: - ‘não deixa de ser um exemplo, embora caricatural, de que nem sempre o que é racional e lógico é científico’.

Acredito que o leitor já adiantou mentalmente meu comentário: - o professor, ao começar a falar sobre glândulas endócrinas, devido a sua formação filosófica predominante sobre seus conhecimentos de psicologia e de biologia, tinha estabelecido naquele momento, inconscientemente, um SuRS filosófico e lógico, notadamente de lógica formal, onde evidentemente haveria de dominar a simetria do silogismo: se A é um ponto (= glândula endócrina) e B o outro ponto (a corrente sangüínea), então para haver ligação entre A e B, deverá haver um terceiro elemento C que os liga ( no caso este elemento C seria o canal). Mas em tempo soube substituir um SuRS falso por outro - crítico e situador correto do problema.


5.5 No meu tempo de adolescente sempre me encantavam as histórias contadas por Malba Tahan em seu O homem que calculava - título que realmente eqüivale a o homem que sabia resolver problemas quase sempre de matemática (ou de aritmética). Depois de ter encontrado o SuRS percebo claramente que a habilidade do homem que calculava era justamente a de usar um SuRS diferente daquele que estava sendo empregado pelas pessoas que lhe propunham o problema.

5.5.1 A título de ilustração tomemos o caso dos 35 camelos que tinham de ser distribuídos por herança entre 3 irmãos na seguinte proporção: o mais velho receberia a metade; o segundo irmão a terça parte e o mais novo a nona parte. Os irmãos estavam brigando porque a divisão era impossível e cada um se julgava prejudicado. Até que apareceu o Homem que Calculava e resolveu o problema. Ele acrescentou seu camelo aos 35 obtendo assim 36 camelos. O irmão mais velho recebeu 18 camelos e ficou satisfeitíssimo porque iria receber 17 e meio. O segundo, também, porque recebeu 12, quando deveria receber 11 e fração de camelo. Finalmente o terceiro não poderia mais se queixar, pois recebeu 4 camelos, ao invés de 3 e tanto de camelo. A soma 18+12+4 resultou em 34 camelos. Sobraram dois camelos: o do calculista e outro que lhe foi dado de presente, por ter solucionado o grande problema da herança.

Em Apêndice o autor mostra qual foi o suporte referencial de superação do problema. Pelo testamento do pai se teria, obedecendo a ordem dos irmãos: 35: 2 = 17 ½; 35: 3 = 11 2/3; 35: 9 = 3 8/9. Mas a soma dessas frações mistas daria 33 1/18. Há uma sobra correspondente a 1 camelo e 17/18 de camelo. Esta fração corresponde a soma das pequenas sobras, ou seja : ½ +1/3 + 1/9 (= 17/18). Na verdade foi o aumento das respectivas sobras em relação a 34 que resultou no aumento de um camelo para cada herdeiro. O SuRS do pai e dos filhos continha um erro de aritmética, ou seja, o de que a soma de ½ de 35 + 1/3 de 35 + 1/9 de 35 fosse igual a 35 ou em outras palavras, o testador pensava que a metade de um todo mais um terço desse todo mais um nono desse todo fosse igual ao todo. O que não é verdade, pois se fizesse a partilha como estava no testamento haveria sobra de 1 camelo e 17/18 de camelo. Bastou ao homem que calculava recolocar um SuRS diferente para que a solução do problema brotasse clara e insofismável. Por ter percebido onde estava o erro do testador, acrescentou 1 ao dividendo e assim obteve a divisão exata.

Ao receber a herança o SuRS dos três irmãos era idêntico ao do pai (35 seria divisível por 2, por 3 e por 9). No momento da partilha o SuRS dos três irmãos já mudara em parte, pois perceberam que 35 não era divisível por 2, 3 e 9 simultaneamente, mas não sabiam como resolver o problema, uma vez que seu novo SuRS não mostrava a solução. Foi necessário o SuRS do homem que calculava para que surgisse a desejada solução.

5.5.2 Ainda do Homem que Calculava vamos extrair mais um exemplo de como o SuRS funciona na problematização e na solução do problema. Trata-se do caso dos olhos pretos e azuis. Ao homem que calculava é proposto pelo Emir dos Árabes o seguinte quebra-cabeça: Tenho cinco lindas escravas compradas de um príncipe mongol. Dessas cinco, duas têm olhos negros e as três restantes os têm azuis. Quando interrogadas, as de olhos negros respondem sempre a verdade, mas as de olhos azuis só respondem mentindo. Elas vão aparecer com as cabeças cobertas por espesso véu que impede ver sua fisionomia. Terá que descobrir e indicar sem a menor possibilidade de erro quais as raparigas de olhos negros e quais as de olhos azuis. Só poderá interrogar três das cinco escravas e não será permitido fazer mais do que uma pergunta a cada uma. A solução do problema se dará com apenas estas três respostas.

Ao propor o problema o SuRS do Emir poderia ser assim sintetizado:

Operador 1 do SuRS - a existência de 5 escravas, sendo que 2 - as de olhos negros - falam sempre a verdade e 3 - as de olhos azuis - falam sempre mentira. O problema consiste em descobrir quais as de olhos negros e quais as de olhos azuis, sem poder ver seus olhos e apenas fazendo três perguntas a elas, uma para cada uma das 3 escolhidas. Dentro deste contexto insinua-se que as perguntas serão sobre a cor dos olhos. Provavelmente a mesma pergunta (qual a cor de teus olhos?) para cada uma.

Reação 1 do SuRS: hipótese 1: serão escolhidas as 2 de olhos negros e 1 de olhos azuis - hipótese 2: serão escolhidas 2 de olhos azuis e 1 de olhos negros - hipótese 3: serão escolhidas as 3 de olhos azuis.

Operador 2 do SuRS: se perguntar ‘qual a cor de teus olhos?’ para cada uma, não terá solução do problema em nenhuma das hipóteses acima, pois não saberá se estão dizendo a verdade ou se estão mentindo. Não há o suporte referencial de que necessita o solucionador para resolver (ou superar) o problema.

O autor do O Homem que Calculava expressou este mesmo SuRS com outras palavras. Diz ele: “Vamos supor que o calculista interrogasse uma delas. A pergunta devia ser de tal natureza que só a escrava interrogada soubesse responder. Obtida a resposta, continuaria a dúvida. A interrogada teria dito a verdade? Teria mentido? Como apurar o resultado se a resposta certa não era por ele conhecida?”

Mas o homem que calculava percebe que com este SuRS ele jamais solucionaria o problema. Utiliza outro SuRS como se verá. Diz Malba Tahan: “Ao calculista seria facultada a liberdade de argüir três das cinco raparigas. Como, porém iria descobrir, pelas respostas, a cor dos olhos de todas elas? Qual das três deveria ele interrogar? Como determinar as duas que ficariam alheias ao interrogatório?” É possível entrever nestas palavras que o calculista começa o emprego de seu SuRS corretamente, uma vez que o primeiro passo é tomar consciência da natureza do problema e formulá-lo com precisão.

Conforme o texto, o calculista escolheu como primeira escrava a ser interrogada a que estava no extremo da fila e perguntou-lhe: - De que cor são os teus olhos? Ela respondeu em chinês de forma que o calculista nada entendesse. Restavam apenas duas perguntas. Voltou-se para a segunda escrava e interrogou-a: - Qual foi a resposta que sua companheira acabou de proferir? Disse-lhe ela: - As palavras dela foram: ‘Os meus olhos são azuis’. Aparentemente esta resposta nada esclarecia. Teria esta segunda escrava dito a verdade? E a primeira? Então foi interrogada a terceira escrava: - De que cor são os olhos dessas duas jovens que acabo de interrogar? A esta última pergunta a escrava respondeu: - A primeira tem os olhos negros e a segunda olhos azuis.

De posse desta resposta e após alguns minutos de reflexão, o calculista resolveu o enigma: a primeira escrava interrogada tem os olhos negros; a segunda os tem azuis; a terceira, olhos negros e as duas não interrogadas tem olhos azuis. Eis como resolvi o problema: - ao formular a primeira pergunta eu sabia que a resposta só poderia ser ‘os meus olhos são negros’, pois se falasse a verdade seriam negros; se falasse mentira, seriam negros também. Por isso, pela resposta da segunda, percebi que ela mentia, logo seus olhos eram azuis. Pela resposta da terceira e tendo como suporte referencial minha conclusão parcial até aqui deduzi que ela disse a verdade, pois afirmou que a primeira tinha olhos negros e a segunda, azuis. Logo ela tinha os olhos também negros. Como são duas apenas de olhos negros, as outras três teriam de ter os olhos azuis.

Como o leitor facilmente pode ter percebido, o Homem que Calculava usou um SuRS bem diferente do proponente do problema. O ponto-de-partida estava completamente fora do contexto do SuRS do Emir, pois, era de que qualquer que fosse a resposta, a primeira teria que responder à pergunta ‘qual a cor de teus olhos?’ -‘ tenho os olhos negros’. Obtida esta base como certa, as demais perguntas para atingir a solução final do problema deveriam ser feitas em função desta resposta.
Evidentemente o autor do Homem que Calculava não levanta outras hipóteses que poderiam ser utilizadas pelo calculista, como a da resposta da segunda escrava ter sido: - ‘ela declarou que seus olhos são negros (no caso desta hipótese, esta segunda escrava teria os olhos negros, pois disse a verdade). Nem a da terceira escrava ter mentido (‘a primeira e a segunda têm olhos azuis). Em hipóteses como estas, o problema estaria solucionado do mesmo jeito.

Em termos de lógica e matemática, nota-se nitidamente que o calculista usou o método da exclusão, o qual, como se vê, se incorporou em seu SuRS.


5.6 Termino esta série de exemplos didáticos de como funciona o SuRS transcrevendo trechos de carta recebida de uma professora que estava fazendo o mestrado numa das UNESP (cidade, nomes e datas são omitidos por motivos éticos). Nesta ocasião acabara de ministrar um minicurso de dez dias, com oito horas diárias, sobre metodologia da pesquisa em ciências humanas e sociais, com o objetivo de atender à necessidade da dissertação científica daqueles alunos. Ao término do curso, os mestrandos tinham que me apresentar um ‘paper’, cujo tema seria livremente escolhido por eles, mas dentro do programa de metodologia desenvolvido. Tinham dois meses para sua elaboração e deveriam mandar-me o trabalho pelo correio, o qual, junto com a avaliação era devolvido à Secretaria daquela unidade da UNESP. Eis os principais momentos da carta:

Prezado Professor

Estou lhe enviando meu trabalho de metodologia. Como poderá perceber, sou formada em Letras, por isso resolvi abordar a questão do Marco Teórico de Referência na Pesquisa, enfatizando o uso do “SuRS - suporte referencial de superação”, dentro da minha especialização e ao mesmo tempo de minha vivência como professora de Lingüística na Faculdade onde trabalho.

Nesta carta, porém, não vou falar sobre como fiz meu trabalho. Sei que foi muita ousadia minha tomar como assunto aquilo que, conforme percebi durante suas aulas, deve ter sido a descoberta mais importante de sua vida intelectual. Mas, talvez por causa de seu entusiasmo em comunicar-nos seu achado, talvez por empatia, talvez porque estivesse realmente precisando... o certo é que seu texto sobre o SuRS me foi de valia enorme diante do pior momento que estava passando em minha vida.

Se o senhor se lembrar de mim, terá percebido que devo ter manifestado, pelo modo de participar do seu curso, não estar legal naqueles dias. Não me recordo, mas é possível que alguma vez tenha até dado a entender que estava deprimida e chorando... Mas sua última aula para mim foi a coisa mais importante e inesquecível. Justamente quando distribuiu o texto sobre o “SuRS” e o comentou. Veio para mim como uma verdadeira terapia e vou lhe contar o motivo. Faço-o, abusando de sua confiança e generosidade, porque o senhor nada tem a ver com meus problemas pessoais. Mas, por outro lado, a necessidade de confessar quanto o senhor me foi útil, leva-me a tomar esta liberdade. Meu propósito era ser sucinta, mas a necessidade de mostrar-lhe o quanto me ajudou fez com que me alongasse mais do que devia. Peço perdoar-me por mais este abuso de sua paciência.

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Estava em crise conjugal e com enorme medo de separar-me de meu marido. Professora de cidade do interior, com prestígio na comunidade, depois de doze anos de casada e com um advogado, que fora meu primeiro namorado, com três filhos ... estava completamente “pirada” desde quando meu marido me revelou que nosso relacionamento não estava nada bom, que o amor tinha acabado e que o melhor para nós dois era a separação.

Dentro de minha “viseira” não havia lugar para aceitar a separação sem mais nem menos. Tinha consciência de que não dera motivo, apesar de meu gênio extrovertido e por ser uma pessoa muito comunicativa. Afinal, pensei, não seria por ciúme dele, nem muito menos também poderia ser por tê-lo algum dia desrespeitado. De início suspeitei de que ele tinha outra mulher em nosso caminho. Mas logo tirei esta idéia da cabeça, porque X , apesar de ser uma cidade desenvolvida, é bastante provinciana. Se estivesse sendo traída, em pouco tempo saberia. Ademais era ele que estava pedindo a separação e não eu. Imaginava, portanto, que caso houvesse motivo de sua parte, eu é que seria a primeira a pedir o “desquite” e não ele. No momento em que ouvi dele o desejo de separar, levei um grande choque. Minha reação foi simplesmente de espanto. Nos primeiros minutos fiquei sem reação, não disse nada. Olhava para meu marido com olhos estupefactos. Até que vendo que ele também estava constrangido em conversar, perguntei: - Por certo, ainda não tomaste a decisão e falaste-me em separação como quem diz: estou pensando que nosso relacionamento não está bom e precisamos conversar sobre isso. Estou certa? Ele me respondeu: - Em parte sim. A parte correta é que precisamos conversar. Evidentemente não estou tomando uma decisão isolada e impondo-a a ti. Afinal começamos a namorar e depois nos casamos, nunca a partir de uma decisão unilateral, apenas de minha parte. Houve um consenso entre nós dois. Portanto, na hora de separar, a decisão tem de ser comum. - Sim - retruquei - precisamos conversar e muito. E vamos começar esta longa conversa agora.

Ele anuiu. A partir daquele dia nossa conversa era à noite e freqüentemente se estendia até de madrugada. E quanto mais se prolongavam nossos diálogos ia me sentindo culpada e com medo, sem saber o motivo (hoje sei: era o tipo de “suporte referencial” que estava usando para pensar e agir...).
Meu marido é uma personalidade muito forte e usa de argumentações contra as quais eu não tinha como opor-me, de tal forma que quase sempre me convencia. Mas desta vez tinha consciência de que estávamos vivendo uma crise e seus argumentos não me pareciam tão racionais como ele pensava. Por outro lado, sentia que estava perdendo terreno ou melhor que o terreno me fugia debaixo dos pés.
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Queria conversar com alguém e ao mesmo tempo temia fazê-lo. Quem escolheria para confidente: minha mãe (meu pai falecera há alguns anos)? meus dois irmãos? alguma amiga?...Sinceramente não conseguia desabafar-me com ninguém, embora percebesse que todos ao meu redor notassem que estava acontecendo algo de grave comigo. Além disso meu marido me pedira desde o início que a separação era assunto nosso e que ninguém deveria se intrometer entre nós dois.
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O senhor pode imaginar como a atmosfera carregada pesava sobre minha cabeça. Como suportei tanta angústia, tantas noites sem dormir... só Deus sabe!

Estava de tal forma sufocada, sem saber como sair daquela situação, que temi muito por minha saúde. Cheguei a perder em um mês cerca de doze quilos e o pior é que não sentia prazer em nada, nem mesmo na comida. Evitava a todos e a tudo. E fui me enclausurando em mim mesma como uma larva em seu casulo. Exato: sentia-me uma larva e sem força para sair de minha prisão. Prisioneira de mim mesma.
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Foi quando comecei a freqüentar seu curso de metodologia. Só consegui levá-lo até o fim, porque era uma oportunidade rara, provavelmente a última, para ter coragem de começar minha dissertação. Já tinha o tema, mas não sabia como montar o projeto.

Eis que chegou o último dia do curso e o senhor tinha que dissertar sobre o “marco teórico de referência no processo de pesquisa”. Lembro como se fosse hoje. Depois de uns vinte minutos de aula, o senhor falou: - Agora vou distribuir um texto, que considero uma das coisas mais importantes que já escrevi, porque foi de fato a coisa mais importante que ocorreu em minha vida intelectual. Trata-se de uma espécie de descoberta acontecida enquanto escrevia minha tese de livre-docência. Bem, vocês vão ler durante quinze minutos e depois quero discutir o texto com vocês.

Devo confessar-lhe que desde as primeiras linhas comecei a perceber que meu interesse pela leitura ia aumentando e me parecia que o texto fora escrito especialmente para mim. Quando cheguei naquele ponto em que o senhor se refere ao ‘fundo do poço’, tive vontade de bradar para todos me ouvirem: é isto que estava procurando e finalmente achei. Estava de tal forma identificada com o que lia, que fiz questão de sublinhar a passagem com o selecionador de textos e a transcrevo nesta carta:

“ Um SuRS que surge quando o propósito é ir ao fundo do poço. De enfrentar o ‘cogito’ sem medo e que de repente se descobre no meio do ‘cogito’. Estava alí simples, claro: o fundo do poço é só medo (medo que até na herança biológica foi ‘racionalizado’ e polarizado na morte em contraposição à vida, e em seguida institucionalizado em termos de ‘erro’, ‘inverdade’, ‘falsidade’, ‘írracionalidade’, ‘absurdo’, ‘ilógico’, ‘não científico ’ ‘imoral’, ‘condenável’,.... etc, etc. No exercício do magistério, então, tenho constatado que freqüentemente aceitamos ou rejeitamos contribuições teóricas (filosóficas e científicas), sem tempo e coragem de as enfrentarmos, não as problematizamos desde o início. Às vezes, por não termos condições de entendê-las a fundo, temos medo de contrapor-nos a elas. E, quem sabe, acabamos por aceitá-las por causa da força do modismo?...”

E com esta passagem destaquei muitas outras. Sobretudo aquela citação de Delhomme, que o senhor acrescentou ao texto junto com outras citações como ‘fragmentos de um discurso sobre a problematização’:

Quando eu me pergunto sobre a verdade de um ser-existente, esta interrogação carrega o paradoxo de uma aventura, pois compreende a totalidade e ao mesmo tempo o inacabamento, a surpresa, o acontecimento, a própria aventura (...) É impossível pensar que tudo está no passado, que o futuro não nos reserva senão uma repetição ou uma reedição do presente, que nada acontecerá mais. Porque eu e Pedro nos conhecemos tão bem, não nos surpreenderemos mais um ao outro? A verdade, se fosse assim há muito tempo toda pronta, como o passado de nosso amor, não a poderíamos refutar; mas eu espero que Pedro me surpreenda e que ele se revele por inteiro, mesmo que isso me magoe; eu aguardo o que não quero que aconteça, ainda que não o saiba, pois se não aguardasse não haveria a verdade, como não haveria mais amor; o inacabamento é essencial, com tudo o que ele tem de incerteza e de risco, de infelicidade e de felicidade, impensáveis e imprevisíveis. (DELHOMME, La pensée interrogative, p. 167-8)
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Terminei a leitura de seu texto com várias ‘certezas’ como: daquele dia em diante não deveria temer mais os problemas da vida. Antes, pelo contrário, deveria descobrir sempre o aspecto sadio de todo problema .
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Deveria encarar todo problema como um desafio e sempre que tomasse consciência de um problema, deveria aprofundar as contradições que ele traz em seu bojo.

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Como alguém que estivesse caminhando nas trevas e de repente vê brilhar diante de si a luz, assim aconteceu comigo.
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Terminada a aula corri para o hotel onde estava hospedada durante o curso e comecei a escrever sobre aquela experiência que estava vivendo naquele momento. Minha cabeça fervilhava. Sentia-me como um convertido religioso que no momento da conversão e por causa da transformação operada dentro de si sente necessidade de comunicar aos outros o que ocorreu e tudo fazer para que o ouçam e tentem experimentar a mesma coisa.
Passei a noite escrevendo. Não queria perder um só pensamento que me surgia durante todo aquele tempo em que estava meditando sobre a descoberta do meu SuRS tendo como ponto-de-partida meu casamento.
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No dia seguinte tinha de voltar para casa. Telefonei avisando que chegaria em tal hora.
Meu marido foi buscar-me na rodoviária. Quando me viu, foi logo exclamando: - Parece que o curso foi ótimo para ti. Aconteceu algum milagre. Voltaste outra. Parece até que engordaste uns quilinhos...
- Sim, respondi. Aconteceu a coisa mais maravilhosa que podia ter acontecido. Mas não vou te contar aqui no carro. Fica curioso, que quando chegar em casa vou entregar-te por escrito toda esta história.
Ao chegar ao apartamento, mal deixei a mala no quarto, corri para a sala e entreguei a ele as páginas que tinha escrito à mão junto com seu texto “xerocado”:

- Está aqui o que te prometi e depois que terminares a leitura do que escrevi, lê este outro texto.

Fiquei observando e notei que ele lia sofregamente, sem tirar os olhos do papel e sem indagar-me sobre coisa alguma.

Quando terminou, virou-se para mim com um ar que nunca notara em seu semblante - um misto de surpresa e entusiasmo de quem descobriu algo: - Simplesmente maravilhoso! Devo admitir que conseguiste numa hora o que até hoje, durante anos, não conseguiras: amadurecer. E creio que eu também começo a me sentir outro ao acabar a leitura do que escreveste, baseada no que teu professor te transmitiu.
.
................................................................................................................

Nossa conversa daquela tarde prolongou-se até alta noite. Lembro-me de que em determinado momento recitei para ele o Lema de Moreno que o senhor tinha lido em espanhol para nós durante seus comentários sobre o SuRS :

Un encuentro de dos: ojo a ojo, cara a cara.
Y cuando estés cerca arrancaré tus ojos
y los colocaré en el lugar de los míos,
y tú arrancarás mis ojos
y los colocarás en el lugar de los tuyos,
entonces te miraré con tus ojos
y tú me mirarás con los míos

E arrematei logo em seguida: - Se estás realmente convencido de que eu estou mudada é porque troquei meu modo de pensar, ou mais exatamente: substitui meu antigo SuRS por um novo SuRS e espero que também estejas convencido de que tens de mudar o teu, para que nosso diálogo daqui para frente seja realmente empático: eu me colocando no teu lugar e tu te colocando no meu. Mesmo que tu não mudes inteiramente teu SuRS, a simples mudança do meu já me salvou.

Honestamente desde que comecei a escrever aquele texto sobre o que ocorreu comigo devo confessar que naquele momento acabara de descobrir que antes estava vivendo sob o império do medo. Hoje já não tenho medo de errar, nem de pensar diferente dos outros, nem de agir contra o que os outros esperam de mim. Enfim não tenho medo de viver a minha vida, porque esta é a única coisa realmente minha e que depende de mim.
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Hoje nossa conversa continua, mas em outro nível. Adiamos a decisão de separar-nos. Acredito até que ela venha a acontecer, não sei. Mas também não me preocupo. Se vier, será sem traumas tanto para mim como para meu marido. Afinal sinto que numa hora consegui o que não tinha conseguido a vida inteira: mudei-me realmente, mas para melhor e como!

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

1 ARON, Raymond. Les étapes de la pensée sociologique. Paris: Gallimard, 1967
2 BONDER, Nilton. O segredo udaico de resolução de problemas.3.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1995
3 BUNGE, Mario. La investigación científica. 3.ed. Barcelona. Ariel, 1973
4 LEFEBVRE, Henry. Lógica formal/Lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975
5 MORENTE, M.G. Fundamentos de filosofia.São Paulo: Mestre Jou, 1964
6 SAUVAGE, Micheline. Sócrates e a consciência do homem. Rio de Janeiro: Agir, 1959
7 TAHAN, Malba. O homem que calculava. 45 ed. Rio de Janeiro: Record, 1997


NOTAS

(1) Realmente a Lógica Formal não é eficaz em relação ao processo, podendo-o ser em relação ao produto. Aliás, como lembra Kaplan, a função desta lógica se exerce justamente sobre o produto, quando, através de seu emprego, se decide se as proposições (constitutivas do conhecimento produzido pela pesquisa) estão corretas, verdadeiras ou falsas.

(2) Estou referindo-me obviamente aos princípios ou leis da dialética já encontrados: o da contradição - o da reciprocidade - o da transformação universal - o da mudança qualitativa. Ou como propõe Lefebvre: a lei da interação universal (da conexão, da “mediação” recíproca de tudo o que existe) - a lei do movimento universal - a lei da unidade dos contraditórios - a transformação da quantidade em qualidade (lei dos saltos) - a lei do desenvolvimento em espiral (da superação) (LEFEBVRE, 1975, p. 238 - 40)

(3) Uma metodologia que se preze, ao ser construída, terá de recorrer às demais metaciências: à lógica - à filosofia do conhecimento - à epistemologia - à psicologia do conhecimento - à sociologia do conhecimento e à história da ciência e não de maneira multi ou pluridisciplinar, mas interdisciplinarmente, no sentido em que Piaget definia a interdisciplinaridade.

(4) Esta colocação reflete a mesma de Sartre, quando em “Questão de método” escreveu a respeito da filosofia: “Não existe a filosofia, mas filosofias. A filosofia é a totalização do saber de uma época e seu meio cultural; determinada maneira da classe em ascensão tomar a consciência de si. Nascida da época, volta-se para ela a fim de esclarecê-la. Vencida a época, deixa de existir; nova filosofia deve tomar o seu lugar” (SARTRE, 1960, p.17)

(5) Alguém poderia refutar: existe a verdade absoluta da matemática. Ao menos esta seria um tipo de verdade absoluta a que o homem aspira. Até certo ponto procede a objeção (inclusive já foi usado o argumento taxativo da prova da existência de Deus). Mas não esqueçamos: a Matemática não tem compromisso com o concreto real e com a história. O mundo matemático é o mesmo mundo da Lógica Formal e freqüentemente se identifica com o ontológico, o metafísico. Fazendo blague: nesse mundo 2+2=4 sempre e absolutamente. Mas na vida real, nem sempre... Só para ilustrar: há pouco tempo minha neta quase adolescente, às voltas com a matemática ginasial, levantou-me um problema desta ordem: - “Vô, uma folha de papel de 7 cm de comprimento se for dividida por 3, dá uma dízima periódica (2,33333..) não é verdade? Mas a dízima é um número infinito; portanto, nunca poderia encontrar um pedaço do papel correspondendo exatamente a um terço do papel de 7cm. No entanto, eu pego a folha de papel de 7cm e a dobro em três partes iguais, a ponto de poder cortar estas três partes ... Admirado, fui tentado a responder: - Você acabou de me apresentar uma aporia matemática. Mas ela não ia entender. Apenas, para consolá-la disse: - A Matemática trabalha com o universo dos números, não com o universo concreto a que pertence a folha de papel. Mas sabia que minha resposta era uma fuga do problema.

(6) É oportuno repetir que o SuRS não constitui invenção minha. Julgo-o uma descoberta, porque não encontrei em nenhum autor passagem a respeito. Mas considero-o existente na prática, no exercício do método dialético. Freqüentemente o usamos sem saber. Do mesmo modo muita gente, sem nunca ter ouvido falar em dialética, pratica-a em muitos momentos da vida. Este o motivo por que estou afirmando ser o SuRS “pré-condição” do uso do método dialético

(7) Evidentemente estou opondo aqui ontológico a teológico. O pensar teológico, por fundamentar-se na fé e na revelação há de enfatizar a prioridade do Verbo, pois o identifica com o Pensamento Divino. Mas o pensar ontológico nos coloca o problema do ‘ser fala’ e ‘ser lugar’, pois a fala não se dá num vazio.

(8) Desde Dilthey a psicologia (sobretudo a gestáltica) assume como descoberta científica que todo ato psíquico é sempre referente a, ou seja, não existe ato psíquico absoluto (como o amor, o ódio, a percepção, o sentimento, a sensação, o pensamento, a consciência etc), mas sempre em relação a... alguma coisa : amor de ou a ... - ódio de ou contra ... - percepção de... - sentimento de ou em relação a ...- sensação de ...- pensamento de ou em ou sobre... - consciência de ... etc ... alguma coisa

(9) Não é objeto formal porque não é ‘o objeto formal’ - categoria congelada na mente e imposta ali pelo racionalista ou mesmo pelo realista ou até pelo empirista ou pelo próprio lógico. Ele pode ser ‘objeto formal’ provisoriamente, dentro de um SuRS específico (por exemplo: o aristotélico ou escolástico).

(10) Faço questão de registrar aqui o comentário do saudoso professor Roberto Lyra, examinador de minha tese de Livre-Docência, quando na sessão de defesa, ao argüir-me observou: o examinando agiu corretamente ao insistir na caracterização das três fases do processo dialético, colocando a terceira como sendo a superação e não simplesmente a síntese, como vulgarmente se difundiu a tríade hegeliana: tese - antítese – síntese

(11) Volto aqui a Lefebvre. Merece ser lembrado, pois sua observação é bem atual, sobretudo para o momento político brasileiro: “Essa idéia do compromisso eclético impeliu politicamente a democracia para a crise que iria causar sua perda. A esperança de compromisso entre o fascismo e a democracia - a segunda intenção de misturar certos aspectos do fascismo com certos princípios da democracia - foi, no plano ideológico e filosófico, uma razão da não-resistência à Alemanha hitlerista por parte de muitos democratas amantes do ecletismo político! “(LEFEBVRE, 1975, p. 229) ‘Mutatis mutandis’ estas palavras servem de reflexão quando deparamos com este ecletismo ideológico e político no poder, na conjuntura atual brasileira (socialismo com social-democracia com neoliberalismo!)

(12) Descobri o texto, por acaso, visitando uma livraria de shopping. À noite, ao deitar, li-o sem interrupção, tal o interesse que me despertou. Reli-o agora, ao rever este meu ensaio, aproveitando os destaques feitos na primeira leitura. Conclui que merecia um lugar de relevo em minhas referências neste terceiro capítulo.

(13) Ao judeu preso pelos inquisidores foi dada a chance de não ser condenado à fogueira, se tivesse “graça” ou ajuda divina, ao sortear o bilhete “inocente” ao invés de “culpado” entre dois bilhetes colocados a sua frente. Suspeitanto de que nos dois estava escrito a palavra “culpado”, o judeu escolheu um dos bilhetes e o engoliu. Pediu ao juiz que fosse lida a sentença do outro bilhete. De fato estava escrito: “culpado”. Sob a perspectiva do SuRS, o judeu na hora da decisão (escolher sua sorte), mudou seu SuRS, baseando-se na intuição de que os dois bilhetes continham a palavra “culpado”.
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