DECLARAÇÃO DE AMOR
Délcio Vieira Salomon
Esta reflexão nada tem de pessoal. É sobre caso fictício, mas que acontece com frequência nas relações entre profissionais da área da saúde e seus clientes.
Enfoco a seguinte possibilidade: um senhor casado e bem casado está encantado com sua médica, mulher nova, bonita, atraente. Ela é também casada e bem casada.
De exemplos de profissionais que não entendem ou não conseguem se comportar eticamente em tais situações, o noticiário está repleto. Quem não se recorda do médico estuprador paulista - Roger Abdelmassih, 65, - que para não ser condenado, fugiu e refugiou-se no Líbano?
Este caso fictício escolhido – objeto desta reflexão não se situa neste trágico contexto.
Em minha imaginação é possível acontecer com frequência cena do tipo retratado.
Começo por levantar o problema-ponto de partida: - Há algum mal fazer declaração de amor a uma pessoa casada, sobretudo quando esta declaração parte de outra pessoa também casada?
Ao responder, surgem várias hipóteses. Vou me restringir a apenas duas.
1ª.hipótese – A resposta depende do tipo de declaração.
Se a declaração se encaixa na categoria do amor-paixão, como a história da humanidade e a literatura de todos os países estão repletas, diante de tantos fatos desta natureza, óbvio: quem a faz deve arcar com as consequências de seu ato.
Entre elas a recusa da pessoa a quem se declara. O que obviamente gera frustração em quem tomou a iniciativa. Superar ou não tal frustração e o que ocorre em seguida fogem ao propósito deste texto.
Outra, a mais frequente: o ciúme do marido ou o da esposa de quem recebeu a declaração. Além de igual ou semelhante reação do par da pessoa declarante, ao saber do ocorrido.
Explorar tais reações tem sido matéria fértil para romancistas e para a imprensa sensacionalista, pois geralmente a situação importa tragédia, por sua vez repleta de atos criminosos (assassinatos para lavar a honra, vingança sangrenta, suicídios, além de tantos atos criminosos da mesma esteira. Quem não se recorda da morte de Euclides da Cunha?).
Lembremos dois grandes momentos literários: o caso de Otelo e Desdémona e, por que não, o retratado genialmente por Machado de Assis em Dom Casmurro: o ciúme de Bentinho em relação a Capitu.
Verdade que, ao apontá-los, estou enfocando o ciúme em si e não propriamente o ciúme provocado por declaração de amor no contexto colocado acima.
Entendo, entretanto, que não faz diferença, pois, sendo ciúme, com ou sem declaração, leva às mesmas reações.
Recorrendo a texto da Wikipédia, Otelo, o general mouro de Veneza é prisioneiro da cor de sua pele. Por seus dotes militares, é tolerado, mas não aceito pelos venezianos, que nutrem com relação a ele sentimentos racistas. Otelo está ciente desse preconceito e se sente inseguro.
Para dissimular sua insegurança, comporta-se de modo grosseiro e impulsivo, a ponto de intimidar sua própria mulher, Desdêmona.
A insegurança de Otelo faz com que seja receptivo às intrigas de Iago, que desperta seus ciúmes, insinuando um romance entre Desdêmona e Cássio. O ciúme se intensifica ao longo da peça e culmina com o assassinato de Desdêmona pelo marido.
A Wikipédia termina com frase curiosa, que extrapola o próprio texto narrativo: "Em Otelo se encontra a mais genial, e certamente a mais popular definição de ciúme: ciúme é um monstro de olhos verdes".
Quanto ao Dom Casmurro, há de registrar que se trata da maior obra clássica sobre o ciúme em nossa literatura brasileira.
Até hoje se discute se Capitu traiu ou não o marido, Bentinho, com seu melhor amigo, Escobar.
Conforme bem lembrado pela Wikipédia, a questão, no fundo, é irrelevante, pois para entendermos o perfil psicológico de Bentinho, basta sabermos que ele acredita ter havido adultério.
No despertar do ciúme, teve papel preponderante o sentimento de culpa que carregava Bentinho, por não cumprir a promessa de sua mãe, de tornar-se padre e daí o ressentimento inconsciente contra Escobar, que o ajudara a dissuadir a mãe de seu intento, permitindo seu casamento com Capitu.
Consta da narrativa que, apesar de inúmeras tentativas, Capitu não conseguia ter filho. Depois de muitos anos, ela surge grávida e nasce o filho Ezequiel. Foi o motivo fatal para o ciumento Bentinho julgar que o filho era de Escobar.
Escobar morreu afogado e as lágrimas de Capitu pelo morto deixaram Bentinho transtornado: pensou em suicidar-se, matar a esposa e, por fim, decidiu se separar dela. Mandou-a para a Suíça com o filho, onde ela morreria. Adulto, Ezequiel voltou ao Brasil, mas Bento não conseguia ver nele senão o retrato de Escobar.
2ª. hipótese – A declaração de amor se dá num clima de admiração (que pode ser até recíproca), mas sem paixão ou erotismo.
Óbvio que, neste caso, há o vulgarmente chamado amor platônico. Todos o conhecem. Por isso não cabe deter-me a refletir sobre ele.
Amar no abstrato um ser amado pode acontecer até em convento. Alguém me contestaria? Bastaria ler os poemas de Santa Tereza de Jesus ou de São João da Cruz.
Mas há uma admiração que surge, por exemplo, diante da beleza feminina ou diante de outras qualidades, tanto de um como de outro, mas sem o desejo erótico e assim a admiração cabe naquilo que Descartes dizia que “a admiração é a primeira de todas as paixões da alma” (não esquecer que paixão para os filósofos antigos corresponde mais ou menos ao que hoje chamamos de sentimento)".
Segundo ele, quando o primeiro contato com algum objeto (ou pessoa, acrescento) nos surpreende e o consideramos novo ou muito diferente do que conhecíamos antes ou, então, do que supúnhamos que ele devia ser, isso faz que o admiremos e fiquemos espantados com ele.
E como tal coisa pode acontecer antes que saibamos de alguma forma se esse objeto nos é conveniente ou não, a admiração parece a Descartes ser a primeira de todas as paixões. E ela não tem contrário, porque, se o objeto que se apresenta nada tiver em si que nos surpreenda, não somos emocionados por ele e o consideramos sem paixão.
Este tipo de admiração a mim sempre pareceu ser, não só a mesma que levou Platão a colocá-la como condição primeira para pensar filosoficamente (o thaumatzein colocado na boca de Sócrates no Teeteto), como também a identifico com a serendipidade proclamada por cientistas americanos, notadamente Walter B. Cannon (fisiólogo) e Robert King Merton (sociólogo) como a atitude de assombro que leva o pesquisador a mudar o rumo de sua pesquisa, ao deparar com fato anômalo, que acaba por ser mais importante que o objeto inicial da própria pesquisa.
Para os autores acima citados, descobertas como o reflexo condicionado de Pavlov, as contribuições de Spearman, Guilford, Torrance, Taylor, Smith, Ghiselin, Terman e dezenas de outros pesquisadores no campo das ciências humanas e sociais, se deram, sob o efeito do aproveitamento da serendipidade.
Desta admiração me ocupei exaustivamente em A maravilhosa incerteza, editado pela Martins Fontes.
O que tento expor é este tipo de admiração voltado para outra pessoa, não para simples objeto, e que brota como reação diante da beleza feminina ou de qualidade existente na pessoa admirada, capaz de causar arrebatamento, entusiasmo e ao mesmo tempo desejo (de ficar junto, de posse do outro, mas sem a conotação de relação que objetiva a vulgarmente chamada "transa". A esta admiração, sem preocupação com o rigor científico psicológico, ouso chamar de amor thaumático.
Neste momento sinto a necessidade de reproduzir o que escrevi num pretenso romance filosófico intitulado Thauma (espero um dia publicá-lo).
O cerne da narrativa é o encontro de dois professores mineiros – Orestes e Thauma – na Sorbonne, para fazer o pós-doutoramento em filosofia antiga. Os dois já foram casados, e, naquele momento são divorciados.
Desconhecidos, até então, um do outro, eis que surge, na troca de olhares, a recíproca atração. Na verdade surgiu primeiro em Orestes. Arrebatado pela beleza e pelos olhos de Thauma, ele não suporta a admiração amorosa, que culmina fortalecida, quando descobre que ela se chama Thauma.
Há um momento em que ela sente a necessidade de justificar por que se chama Thauma.
Eis a passagem a que me refiro:
- Parti, por causa do meu nome (Thauma), justamente em referência àquele texto do Teeteto de Platão. Estava fascinada pela frase de Sócrates, ao dirigir-se ao filósofo Teodoro, dizendo que "não era mau genealogista quem disse que Íris (a mensageira do céu) é filha de Thauma (a Admiração, a Maravilha)". (...) Por que fui escolher logo a carreira de filósofa? (...) Existiu, de fato, este personagem? Os gregos endeusavam nossas virtudes, nossos vícios, nossas paixões, nossos valores, enfim o Bem e o Mal e todas as expressões que surgem entre estes dois grandes conceitos ou categorias, entre esses dois extremos, como a ocupar um lugar, um topos, dentro duma imensa gama de nuances do comportamento humano, de suas aspirações, de suas volições. Mas quem garante que, na Antiguidade, eles não acreditavam vivamente na existência real desses mitos, como entidades sobrenaturais? Se sim, deveriam existir, ora como deuses, ora como demônios, ora como titãs ou super-homens, ora como despossuídos, oprimidos e escravos, enfim seres por eles inventados ou criados ou a eles revelados. Criados pela imaginação ou revelados, nenhuma diferença faz. A revelação só pesa, quando se tem fé. Portanto está banida da reflexão racional e do pensamento filosófico. Então os antigos acreditavam nesses seres sobrenaturais como entidades que comandavam suas vidas e o comportamento de cada um. Por que não estariam certos? A certeza brota em nós como a crença. Julgo até possível que eles acreditavam também, com a mesma convicção dos que hoje proclamam verdades em nome de sua fé, que estes seres do outro mundo se encarnavam em seres humanos. Além do mais, apesar de minha formação, na infância e adolescência, ter sido católica, acredito piamente na reencarnação.
(...)
No dia seguinte, já impressionado com tanta transparência de sua colega, Orestes sente necessidade de participar daquela revelação. Surge, então, o depoimento a seguir:
- Tirei da pasta e lhe entreguei cópia de pretenso poema, que passei a ler em voz alta, enquanto ela lia, simultaneamente, a escrita:
Thauma
Thauma: - que nome e que mulher!
Não era mau genealogista quem disse
que Íris - o mensageiro do céu –
é filho de Thauma (Admiração, Maravilha)“
- frase pronunciada por Sócrates -
(Teeteto de Platão – Theiat. 155 D)
Voando juntos
à procura de Thauma
Thauma e eu.
Mistério de viagem
de inquirição
enigma
maior que o mundo:
Thauma presente
E Thauma se procura.
Thauma – visão
da Thauma real
da Thauma mulher.
Deusa Admiração
filha do assombro
irmã gêmea da duplicidade
Mãe de Íris – mensageiro da paz.
Flecha da felicidade
a varar-me o destino
a penetrar
o infinito do céu
a imensidão do próprio pensar.
No princípio era Thauma
- a deusa.
E Thauma se fez mulher
- amor
dentro de mim.
Na fusão do bom – belo – admirável
nos tornamos
o arcano de três em um.
Hoje
ao contemplar-te
com a luz de meu olhar
prenhe de admiração
te visto mulher.
Tua força
me prostra
arrebatado
a teus pés.
Thauma
te quero
te desejo
te adoro
te amo
thumaticamente
Thauma
- deusa
mulher.
......................
Dei este título ao texto, justamente para reproduzir o que penso dum amor diferente do amor carnal e, ao mesmo tempo, do mero amor platônico, como vulgarmente é concebido.
Não sei se consegui retratar meu pensamento: para mim é possível existir amor entre duas criaturas, sem ser simplesmente platônico muito menos carnal. Um misto dos dois.
Insisto: um tipo de amor que independe da vontade dos envolvidos, mas, o que ambos sentem, e estão atentos para não comprometer a situação de cada um. Tanto o admirador, quanto o admirado continuarão na sua, sem ninguém prejudicar a vida de ninguém.
Parênteses: insisto em dizer que estou me referindo a um estado emocional existente em determinado momento, independente se, com o tempo, o relacionamento tenha prosseguimento ou se metamorfoseie em amor carnal.
Prosseguindo em minha reflexão, sou levado a pensar que o amor thaumático pertence à família daquele tipo de amor que tentei reproduzir no poema "Envelhecer” , embora aqui não imagino pessoas específicas, nem o relacionamento como o imaginado no romance. Ao reproduzir o poema , vou grifar passagens não grifadas no original:
ENVELHECER
Aos setenta e sete anos
não sinto que envelheci
- sinto que me envelheço..
Não me sinto o produto,
mas o próprio processo.
Ainda não direi como Neruda:
- "confesso que vivi".
Voltado para dentro de mim
vejo que não me envelheço
para morrer
- me envelheço para viver!
Não me causa pejo confessar:
- ao envelhecer, estou descobrindo
o que é verdadeiramente viver.
Hoje me surpreendo:
- o que é envelhecer?
Apenas sei:
minha visão da vida
se alargou.
Aprendi a amar a mim mesmo
de modo diferente.
Honestamente amo muito mais o outro e o que ele faz que a mim mesmo. Sinto que estou amando muito mais a singularidade de cada um do que a totalidade do ser humano. Sim confesso: -sinto que meu amor é diferente até daquele que existe no "amai-vos uns aos outros como a vós mesmos" que emblematizou a mensagem de Cristo. Longe de mim ostentar nietzschianamente que superei o cristianismo, mas honestamente não me fazem mossa seus preceitos e seus mandamentos nem a esperança de um paraíso, se o preço for a desvalorização da Vida. Jamais me permitirei alcançar o futuro em troca da perda do presente e da serenidade que este presente metraz. Neste aqui e agora, em que vivo sinto um amor intenso, porque vivo a supressão do tempo. e a ruptura dos limites de meu lugar. Sinceramente, honestamente por não temer a morte, já não tenho medo de amar. Não me preocupa as formas do amor sua tipicidade e sua atipicidade Amo, simplesmente amo o e no presente tanto quanto amo intensamente à distância e a própria distância, certo de que na outra ponta existe alguém que realiza meu próprio amor, mesmo sem saber, mesmo se não quiser...
Sinto o amor constantemente presente.
E este presente é um momento de eternidade
- a própria eternidade
em fluxo de tranqüilidade.
É isso que está sendo
o meu envelhecer.
(04/09/2008).
Ao terminar esta reflexão, me pergunto: - valeu a pena ter escrito o que escrevi? Alguém vai ler? Se ler, vai entender? Se entender, vai dar atenção ao que está escrito?...
Afinal me pergunto: - por que escrevi?
Talvez o motivo seja o mesmo que me fez, nesta idade, a voltar-me para a poesia, escrevendo os poemas que tenho escrito, impulsionado pelo conselho de Mario Quintana: ”Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus. É preferível para a alma humana fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética é sempre um esforço de superação, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhora da alma”.
Sinto a vida hoje tão diferente do que imaginava, que, escrever sobre este assunto, está me parecendo estar distante do que realmente todo mundo pensa.
Infelizmente (ao menos para mim, este velho octogenário) o mundo mudou muito.
Além do mercantilismo que está impregnando as relações humanas, o consumismo, a quebra de tantos valores, o pisoteamento da ética, as drogas, a liberdade sexual, a violência, a pedofilia, o feminismo, a amizade colorida, o casamento aberto, a aceitação do comportamento e do casamento gay, as leis contra a homofobia e a institucionalização do casamento entre homossexuais, cotas raciais nas universidades, corrupção institucionalizada em todos os setores, notadamente na política... tudo tem acontecido tão depressa, que, sinceramente me sinto atordoado! Digo com toda sinceridade: já perdi o parâmetro do que seja normal e anormal, pois a cada dia tenho de me reconstruir e reconstruir o que penso.
Volto a indagar: hoje as preocupações são outras. Por que vão se interessar pelo que acabo de escrever?
Mas devo confessar como já o fiz em um poema:
“É uma força estranha/ que penetra nas entranhas /de meu ser / e me impele a cantar”.
Como dizem os italianos: Che si puó fare?
Em 14.07.2012
Data abençoada: a da revolução Francesa que mudou a ordem do mundo!
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