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Ensaios-->Herética -- 17/09/2006 - 15:40 (Nelson Maia Schocair) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Capítulo I - do romance Herética

Abril de 1974

Giordana Avelar, brasileira em visita de férias a Portugal, passeia tranqüila pela Baixa Pombalina, inebriada pela arquitetura esotérica da Praça do Comércio ou Terreiro do Paço, construída no lugar do Palácio Real após sua destruição no século XVIII. As 52 colunas, 26 de cada lado, representando os arcanos maiores e as 22 colunas em frente, os menores, impressionam por sua imponente beleza arquitetônica. A restauradora, mineira de São João Del Rei, jamais viu tão de perto, antes só em slides e fotos de revistas especializadas em cultura e arte, a magnitude que o poder real português exercia sobre tudo e sobre todos à época da expansão e conseqüente consolidação ultramarina.

(...)

Seu passeio começara nas ruas da bucólica Alfama, em deliciosos “elétricos” ou bondes, até o Castelo de São Jorge, onde almoçou demoradamente a vislumbrar seus belos jardins interiores e a paisagem exuberante do Rio Tejo, de onde saíam e chegavam as naus comerciais e exploradoras. Demorou-se mais na Torre do Tombo (ou Torre do Arquivo), devido – talvez – à curiosidade histórica, pois ali eram armazenados os documentos oficiais do Reino Português, bem como os do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, entre 1378 e 1755, quando ocorreu o grande terremoto de Lisboa. À iminência da destruição, foi transferido para o Mosteiro de São Bento. Apesar das perdas provenientes de incêndios, terremotos, saques ou envio para o exterior, quando da transferência da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, farto material das Idades Média e Moderna repousa, ainda à espera de turistas curiosos e estudiosos do mundo inteiro. “História Viva” – exultava.

Após o almoço, até a Baixa Pombalina passando pela Casa dos Bicos, construção espetacular do século XVI, cuja fachada é feita com pedras pontiagudas, por isso seu pitoresco nome, e foi ter à Praça do Comércio. Diante da estátua do rei Dom José I, começou a sentir-se íntima de tudo aquilo, pareceu-lhe saber que esteve ali, reconhecia cada palmo do que a princípio soava como prosaica novidade.

(...)

Fotografou a Rua do Ouro; já o fizera na Rua da Prata, do lado oposto. Registrava cada passo dessa viagem que se tornaria épica, bem ao feitio dos exploradores lusitanos nos séculos XV e XVI. Passou sob o impressionante arco, decorado com estátuas de personalidades históricas, como Vasco da Gama e Marquês do Pombal.

Parou alguns minutos no café mais antigo de Lisboa: o “Martinho da Arcada”. Um misto de temor e excitação invadia-lhe e escapava, num vaivém incompreensível. Seria um lapso de memória? Um sonho acordado? Uma volta ao passado? Desconversou de si e continuou sua caminhada até a Rua Augusta. Lá compraria lembranças aos amigos e parentes brasileiros.

Ao chegar ao Rossio, principal ponto de parada de sua viagem, surgiu imponente a Praça dos Restauradores. Vale ressaltar que seu nome tem relação direta com a catástrofe do século XVIII, terremoto, seguido de tsunami, que destruiu toda a parte baixa, onde estão erigidas as duas praças – do Comércio e dos Restauradores –, e ainda alguns bairros da parte alta. A arquitetura que lá se vê é monumento vivo à memória do Marquês de Pombal, que foi quem deu início aos trabalhos de reconstrução de Lisboa.

Durante caminhada pela Praça, Giordana, outra vez, sentiu-se estranhamente em casa. Estranha é o adjetivo mais simplório que me ocorre para descrever-lhe o torpor. Misturavam-se sensações: contemplação e tristeza; regozijo e dor; majestade e saudade. Por quê?

— Gio?

Não houve resposta.

— Giordana?

— Sim... ah... olá Guiomar!?

Tão absorta estava em seus delírios que quase não reconheceu a colega portuguesa, restauradora como ela, com quem mantinha contato por cartas, trocadas mensalmente, após breve encontro no Brasil.

— Pensei que não viesses mais, estava preocupada, tu marcaste às quatorze horas e já são dezesseis e trinta...

— Acho que me perdi. – respondeu-lhe sem convicção.

— Mas não te passei o mapa cá do centro? Pegaste o elétrico para outro lugar... Já sei: viste um bonitão e...

— Não, amiga. Dá aqui um abraço.

Um forte abraço afetuoso selou o encontro das amigas depois de quase seis anos apenas virtuais. Giordana sentiu-se aliviada e passaria a relatar à Guiomar Nunes de Vaz o que vinha acontecendo.

— Vamos à minha casa, lá conversamos com calma.

— Tudo bem, vamos.

O elétrico não estava cheio, havia alguns lugares vazios. Enquanto aguardavam sua partida, um súbito choro convulso irrompeu dos olhos negros de Giordana, ensopando-lhe as pontas dos cabelos compridos. Seu belo rosto tornou-se circunspecto e aterrorizado. As lágrimas teimosas, à feição de cachoeira caudalosa, lavavam-lhe a face ora lívida, denotando uma tristeza ao mesmo tempo misteriosa e surpreendente. Sua alma perdeu a luz e cobrou seu quinhão de dor. Os assentos vagos passaram a ser ocupados por uma legião de corpos carbonizados. Intentou fechar os olhos, não podia, não havia forças capazes de mantê-los assim. Guiomar falava, tentava consolá-la, entretanto, não obtinha sucesso. O cheiro de carne queimada, as mãos estendidas dos mortos-vivos, a falta de vida no olhar, um vazio tétrico no lugar dos olhos, horrendas vozes guturais lhe pedindo ajuda, clemência, misericórdia, implorando por sua piedade.

Quis levantar-se várias vezes, no entanto, mãos ossudas, descarnadas e enegrecidas puxavam-na de volta para o assento. Finalmente, quando deixou a Praça dos Restauradores, a visão, o som, o cheiro, cessaram todos.

— Guiomar, estou enlouquecendo.

— Giordana, estou a lhe falar faz tempo, tu não me ouvias, só choravas... O que está a acontecer?

— Não sei... Os corpos... Os mortos...

— Corpos, mortos? Não existem mortos cá no elétrico... Que corpos, amiga?

— É.. É isso que estou tentando lhe dizer. Havia dezenas aqui no bonde... Todos... Todos me pedindo algo... Não compreendo amiga...

O bonde chega ao seu destino, mas o de Giordana Avelar estaria apenas revelando suas nuances de sinestesia.

Loucura ou verdade?
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