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Ensaios-->A POESIA DO CANCIONEIRO DE PESSOA ORTÔNIMO -- 17/08/2006 - 17:02 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
HORIZONTES DA POESIA NO CANCIONEIRO DE FERNANDO PESSOA ORTÔNIMO

João Ferreira
1994/2006

Ao admitirmos uma leitura com vários horizontes na poesia do Cancioneiro de Fernando Pessoa ortônimo, recorremos a uma idéia fácil de captar. Metaforicamente colocamos de um lado o texto poético pessoano, como chão ou terra plana, e de outro, a observação e a leitura para entendê-lo no plano do horizonte, numa perspectiva real e ficcional que permite a conjunção para a unidade da aproximação e da hermenêutica.
O modelo de união entre o chão poético e a perspectiva do horizonte se apresenta no jogo da percepção e da inteligência. Mas a verdade é que além desses componentes de chão e horizonte (ou seja, de texto e de perspectiva hermenêutica), existe ainda a dimensão mitológica do horizonte-símbolo, aberto ao sentido do horizonte mítico.
Nosso intuito, aqui, será o de colocar não apenas a verdade textual haurida da leitura visual e sensacionista do poema, mas também a de criar espaço para a pergunta problematicamente inquisitiva, sobre o que existe além dos confins do mundo do texto. Uma pergunta ou questionamento metodologicamente semelhante ao modo como outrora “se procurava saber o que havia para além do ponto onde a terra acabava”! A partir da leitura dos poemas do Cancioneiro estaremos dirigindo a atenção para o sentido e os horizontes abertos pelo próprio texto, e para todos os outros que a transposição mítica e a transposição metafísica nos oferecer, incluindo os sentidos existenciais de visível espessura hermenêutica.
Usando a linguagem de Heidegger em “Arte y Poesia”, diríamos que “a projecção poética da verdade que se situa na obra, jamais se realiza no vazio e no indeterminado”. Ao contrário, a verdade na obra se projeta para os leitores, dentro de um território psicológico e de uma concretude de espaço e de tempo, que torna o grupo dos leitores num grupo humano histórico.
Podemos aplicar este raciocínio a todos nós, leitores de Pessoa. O projeto poetizante do Cancioneiro tem uma verdade literária ou artística que se patentiza no ato da leitura, existencial e histórico. A leitura do texto poético nada mais é do que a patentização, o descobrimento ou desocultação do ser. Isto é evidente dentro de um conceito filosófico grego de verdade enquanto alétheia ou desocultação.
Hermeneuticamente, a criação é vista como uma extração de formas do seio do próprio ser. Pensar é transformar o pensamento e as emoções em signos de escrita. Estas são formas dinâmicas da patentização ou revelação do ser. A criação poética é uma patentização, uma saída para o tempo e o espaço. Ela parte de um caos e se transforma em cosmos, em mundo organizado onde os signos se associam em sentidos que o leitor descobre, atualiza e patenteia. Sempre que há arte, diz Heidegger, há um começo. A partir desse começo produz-se na história um movimento dinâmico.
Lendo o Cancioneiro, vamos procurar entender como brota a poesia pessoana em sua origem. E vamos equacionar a relação dialética que há entre o poeta-criador e o leitor-concriador.
A primeira tarefa será a de tomarmos em mãos os próprios textos do Cancioneiro de Fernando Pessoa- o ortônimo. Começaremos por entender que estamos diante de uma “coleção de canções, ou cantigas”. Literalmente Cancioneiro era uma coletânea de poemas compostos para o canto. Assim eram os Cancioneiros dos trovadoresi medievais. Assim eram as composições poéticas chamadas lied, chanson, cantigas de amigo, cantigas de amor e a canzone italiana. Eram composições regulares de métrica e estavam estreitamente ligadas à música. Com o romantismo, a canção, foi liberada das leis métricas e da estrofação e passou a composição livre.
Ao construir seu Cancioneiro, Fernando Pessoa aplicou o critério moderno do descompromisso, utilizando a liberação dada pelo romantismo. Esse descompromisso consistiu em não ter que atender a forma clássica inicial da canzone nem ter que cumprir a linha temática comum que ligava a canção à proclamação do amor.
Partindo do princípio de “que todo o estado de alma é uma paisagem”,isto é, de que “todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem mas verdadeiramente uma paisagem”, Fernando Pessoa envereda por um gênero que irá constituir um corpus poético variado e múltiplo, onde a tônica é interiorista, intimista, freqüentemente interseccionada pela paisagem exterior e vice-versa. Esta pode ser uma linha que ajuda a compreender a perspectiva dominante do Cancioneiro.

Poesia existencial no Cancioneiro

A leitura silenciosa de cada leitor pode trazer ao debate muitas análises textuais assim como muitas hermenêuticas. Todas são importantes para dissecar os sentidos poéticos da poesia pessoana.
Parece porém que um dos sentidos mais óbvios é o sentido existencial que emerge desta coletânea. Na verdade, o fundo existencial aí patente torna a maior parte destes poemas muito patética pela freqüência de alusões e desenvolvimentos referentes à angústia, pessimismo, nihilismo trágico e heróico, saudade, preocupações existenciais, dor, abandono, tédio,etc.
Esta inclinação de fundo temático, mais dramático do que lírico, mostra-nos um Fernando Pessoa sensível à percepção da dimensão humana, com a tendência nítida de colocar o eixo da emoção poética no âmago da sensação íntima do ser e da existência. Pela leitura percebemos que estamos diante de uma poesia que é mais sujeito do que objeto. Ou seja, diante de uma poesia onde o sujeito poético carrega a emoção toda sobre si e agrega a arte poética em torno da poetização existencial do eu. Sendo assim, oferece-nos uma poesia fundada na dinâmica fenomenológica do ser e do dever-ser, de um lado, e na fenomenologia do já-sido e do-que-será, de outro!
Para muitos leitores, isto soa a um tipo de poesia onde se aninha uma filosofia de vida voltada para a sondagem da dinâmica da consciência. Os conteúdos da consciência revelam-se através de percepções singulares obtidos via representações existenciais nascidas do jogo que se estabelece temporalmente na relação da vida, da existência e do espírito. De um lado, afloram os instintos e a impulsividade e também os sentimentos e as vivências. Do outro, manifesta-se o espírito e a razão abstrata, não-existencial. Os dois pólos tentam se conjugar numa integração ou se debater numa antinomia. A existência interpretada como a síntese da vida e do espírito na corrida temporal e existencial, aparece em Fernando Pessoa bem semelhante ao conceito que dela fez Jaspers, ao tratá-la como “uma atitude” ou como “um comportamento para consigo mesmo”. O intuito dos poemas do Cancioneiro não disfarça os muitos graus de percepção do poeta que mostra que “o ser do mundo que desafia os humanos não é claro, nem transparente para ser traduzido em pura inteligibilidade. O mundo, objeto de percepção, é um paradoxo e o nosso conhecimento é um quebra-cabeças. Nesta linha de entendimento, em “Hora morta”, um dos muitos poemas do Cancioneiro, transparece um sentimento de inutilidade e de naufrágio, bem próximo da náusea sartreana.

“Tudo tão inútil
Tão como que doente
Tão divinamente fútil
Ah! Tão fútil
Sonho que se sente
De si próprio ausente...
Naufrágio ante o ocaso
Hora de piedade...
(Hora Morta. Fernando Pessoa, Poesia, Aguilar, I, 163).

O que é ao mesmo tempo incrivelmente verdadeiro é que Pessoa, mesmo quando acicatado pelo abandono ou pelo tédio, nem por isso deixa de colocar uma cor em seu arco-íris para onde se ausenta e se esconde, mesmo que momentaneamente, o sonho. E quando existencialmente frustrado, termina por encontrar uma voz ontológica que se ergue do fundo de seu ser, e lhe cria a emoção que o faz explodir em versos de “anelo panteísta”, buscando o envoltório carinhoso da própria noite:

“Toma-me é noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços”!
(Abdicação, Fernando Pessoa, Poesia, Aguilar I, 171)

O sonho como contrapeso

Aparentemente não há nenhum grande poeta sem sonho. O sonho é todo o espaço da alma do poeta, o ser eleito da criação e da liberdade. No Cancioneiro, o sonho existe. Melhor ainda, é uma obsessão. Mas com dois rostos: o rosto lírico e o rosto dramático. Sintamos de perto estes versos de “Chuva Oblíqua”:

“Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios”
Chuva Oblíqua, Fernando Pessoa, Poesia, Aguilar, I, 173)
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Em outro poema, ou seja, nos versos de Quadra (1927), Pessoa expande sinteticamente o melhor de sua lira. São versos de uma confissão quase de impotência e de inabilidade existencial. Pessoa se supera em sensibilidade e talento criativo. E o que é sublime é que neles, apesar de tudo, sobrevive o movimento interior da procura, num clarão de dramática consciência, sentindo ao vivo, o espanto de que não alcançará o que tem em mente:

“Sei que nunca terei o que procuro
E que nem sei buscar o que desejo
Mas busco, insciente, no silêncio escuro
E pasmo do que sei que não almejo”
(Fernando Pessoa, Aguilar I, 238).

Como poeta grande, Pessoa tem a arte de saber falar dos sonhos tristes, também. Daqueles que existem em níveis de inconsciência e que fazem a “ilusão de viver”, sem participação consciente e livre.

“À vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr”
(Fernando Pessoa, Aguilar I, 158/159)


João Ferreira
Brasília 1994/2006
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