As palavras são os tijolos com os quais fazemos nossa realidade. Carlos Drummond de Andrade, poeta que sabe tudo sobre elas, disse que as palavras não nascem amarradas (confira o primeiro poema do livro A Rosa do Povo). Drummond não foi pedreiro, se fosse teria completado que também assim é um tijolo: grande ou pequeno, bonito ou feio, fraco ou forte, tudo vem do mesmo barro.
O barro da palavra é sua conotação histórica. É por isso que hoje no Brasil os negros não gostamos quando alguém diz que a situação está preta (no sentido de horrível/péssima, que é o que impera em nosso racismo implícito), mas não se vê um branco reagindo ao ouvir que uma vida passou em branco (vazio/chocho). Os pesos são diferentes, e só acabará a discriminação racial aqui quando não existir mais esta distinção simbólica.
Até lá viveremos em permanente contradição. Como a das reações suscitadas pela minha última crónica, uma quase-declaração de amor a Pelé e Michael Jackson: uma e-leitora observou que os negros muitas vezes são racistas, outra reclamou por eu não ter enfatizado a existência hoje de vários referenciais para a população afro-descendente (esta palavra não me parece um tijolo, mas sim um brick, mas essa é uma outra história...). Enfim, ambas as e-leitoras estão certas, e eu não perco a razão. Primeiro porque os referenciais, que vivem múltiplos e há tempos, não são considerados pelo monstro-sistema que "clareia" aqueles dois gênios (Mano Brown, que não é bobo e sabe que nada como um dia após outro dia, não gosta de TV). Depois porque ser racista não é exclusividade dos brancos xenófobos ou do George W.Bush. Muitos negros também são, contra si própios - a maior parte dos casos - e contra os brancos. No primeiro tipo de racismo negro, salta aos olhos nossa baixa auto-estima, resultado da anulação dos referenciais. No segundo tipo, prevalece uma discriminação reativa, de quem atira antes de (ou por pensar que possa) ser alvejado - deste racismo é frequente se acusar os Racionais, que no entanto mostram ter critério e bom-senso ao dedicarem o último disco a Clara Nunes.
Não é fácil remodelar um tijolo-palavra. Principalmente se ele mal saiu da olaria e ainda está meio quente. Como destacou Lula em sua Carta de Salvador - Por um Brasil sem Racismo, lida ontem na capital baiana, o racismo brasileiro vem sendo recriado e realimentado a cada geração. Este processo deve ser parado e os danos reparados. Ai então poderemos dizer que nossa situação ficou negra (alegre/jovial/farta). Por ora, este pedreiro vai vestindo sua camiseta com o slogam "100% Negro", e espera novas polêmicas.