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Ensaios-->EPÍLOGO -- 05/07/2006 - 23:36 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
EPÍLOGO DO LIVRO 'VARAL DE LEMBRANÇAS'

Nasci vendo a Segunda Guerra Mundial.
Vi o mundo, pouco a pouco, ser pisado pelas botas nazi-fascistas. Então, como num pesadelo, vi a Segunda Grande Guerra terminar em duas explosões atômicas – Hiroshima e Nagasaki.
Vi o black-out nas frias noites paulistanas, automóveis movidos a gasogênio e longas filas para comprar pão. Tudo por cauda da guerra.
E vi a minha avó adoçar café com rapadura.
Vi estrelas cadentes e trevos de quatro folhas. Mas não gostava de ver as borboletas pretas.
Assisti, junto com o meu pai, à calorosa aclamação ao ditador Getúlio Vargas no estádio do Pacaembu. Porém, logo depois vimos o “velhinho” cair.
Vi enterros conduzidos por coches funerários ao som de marchas fúnebres. E durante os velórios vi e ouvi o pranto de muitas carpideiras.
Vi padres e freiras da Santa Madre Igreja querendo fazer, em mim, uma lavagem cerebral.
Vi o primeiro programa de televisão no Brasil, enquanto acontecia a Guerra da Coréia
Estava em Rio Claro quando vi o desespero do meu pai ao saber do resultado do jogo Brasil e Uruguai, em 1950, no Maracanã. O Brasil, cantado em prosa e verso como o futuro campeão, simplesmente havia perdido a Copa do Mundo sob a garra e os gritos de Obdulio Varella.
Mas sempre vi o sorriso nos lábios de minha mãe!
Vi o corpo do “Rei da Voz”, Francisco Alves, sendo velado no acostamento da Via Dutra.
Com medo, assisti aos primeiros vôos de aviões a jato militares sobre os velhos cortiços do Bixiga.
Vi uma tocha humana andando à minha frente. Sem querer, vim saber a causa dos suicídios.
Vi novamente Getúlio no poder e o povo nas ruas, pedindo a sua renúncia. Vi este mesmo povo chorando e desmaiando nas mesmas ruas, após o seu suicídio.
Vi três caixões levando os corpos de parentes queridos, no mesmo dia e na mesma hora.
Andava como pingente nos estribos dos bondes abertos, ou confortavelmente sentado nos “camarões”, vendo a decadência da “paulicéia desvairada”.
Lia, via e sentia os heróis dos gibis – Fantasma, Flash Gordon, Príncipe Valente, Tarzan, Super-Homem, Cavaleiro Negro, Nick Holmes, Zorro, Roy Rogers, Durango Kid, Batman, Búfalo Bill, Hopalog Cassidy e tantos outros que ainda hoje povoam os meus sonhos.
Vi o Corinthians ser campeão do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo, com um gol de Luizinho. Mas depois, durante os vinte e três anos seguintes, assisti à vitória dos seus rivais.
Vi diversas ruas paralelas aos muros da estrada de ferro, no antigo Bom Retiro, formando a última “zona do meretrício” de São Paulo. E hoje vejo que a cidade inteira virou uma “zona”.
Vi o luto e o meio-luto nas roupas. Mas via outros sentimentos na maioria dos lutuosos.
Vi o primeiro filme proibido para menores de dezoito anos, quando tinha apenas quinze.
Vendo o fim do romantismo no final dos anos 50, início dos 60, vi o mundo transformar-se ao som dos Beatles e a felicidade das garotas com suas pílulas anticoncepcionais na bolsa. Vi o amor livre descobrir, de vez, o fruto proibido!
Vi durante anos, em diversos locais da madrugada paulistana – bares, restaurantes, boates e inferninhos, o saudoso e lendário Jacaré, soldado do Exército da Salvação, tentando salvar almas. Inclusive a minha. Depois do seu falecimento, soube pelos jornais que o nome daquele negro, simplório e simpático, era Miguel Antônio dos Santos. Durante o dia, Jacaré conduzia vidas, pois trabalhava como motorneiro dos bondes da CMTC.
Vi a ascensão e a decadência da vida boemia desta minha querida cidade.
Vi a bossa-nova nascer. Mas hoje não vejo virtudes em nenhuma bossa.
Vi depois da construção de Brasília, e de muitos antagonismos políticos, o país entrar em uma outra ditadura. Desta vez, militar.
Aos olhos de lindas mulheres, senti o amor e as paixões aflorarem em minha existência, e depois vi que estas pessoas transformaram os meus sentimentos em amargura.
Vi a chegada do primeiro homem à Lua. Mas na rua não havia lua – o céu estava encoberto.
Vi a aposentadoria das canetas-tinteiros e réguas de cálculos. E depois vi a instalação do primeiro serviço público de e-mails no Brasil. Assim, estou vendo a extinção das cartas escritas à mão ou nas máquinas de escrever.
Continuei vendo guerras quentes e frias.
Olhei, extasiado, o mundo desencantado da casa da Eni, em Bauru.
E, continuei olhando meretrizes nas esquinas dos pecados!
Vi as primeiras casas de massagens for men serem instaladas em São Paulo, pelo meu saudoso amigo e afilhado, o dr. Newton de Castro Ribeiro.
Convivi, no dia-a-dia, olhando nos olhos de diversos artistas plásticos – Inocêncio Borguese, Vicente Di Grado, Carlos Ayres – além do poeta Guilherme de Campos, entre tantos outros mestres.
Vi boa parte do Planeta Terra, conhecendo os seus povos e culturas.
Vi os militares voltarem aos quartéis. E com isso vejo a violência urbana e rural tomar conta do poder.
Vi a miséria e a fome entre milhares de terráqueos.
Envolvido pela cerração, vi o fim das marias-fumaças de Paranapiacaba.
Estive com o poder nas mãos. Mas hoje vejo-as limpas.
Vi a invasão dos computadores tornar-se um dos maiores vícios do mundo moderno.
Vi famílias se desmancharem, imitando as novelas da televisão.
Com o passar da idade, comecei a ver quem eram os meus amigos e inimigos.
Vi a passagem do século e do milênio. Nada de anormal aconteceu! Não leio mais as profecias de Nostradamus.
Estou vendo o socialismo anacrônico tomar conta da nação, através de falcatruas e corrupções. E, na minha opinião, isto é péssimo para o povo.
Pintei quadros e vi pessoas criticando-os. Plantei árvores, vendo que a natureza ainda é o meu Deus preferido. Escrevi livros, mas não vejo ninguém os lendo.
Vi meus pais, parentes e amigos serem enterrados. Faço de tudo para vê-los novamente. Mas sei que é impossível!
Vi a morte de perto, diversas vezes, sentindo o seu hálito funesto!
Vejo, a cada minuto, a diabetes tomar conta de todo o meu organismo. Olho a minha bengala e minha cadeira de rodas e sinto uma profunda paz de espírito!
Ainda hoje guardo gratas recordações do meu quintal, do meu berço – meu mundo! Sempre os vejo em meus devaneios.
Vi o primeiro brasileiro voar para o espaço. Naquele momento, chorei! Pois o tempo está passando tão depressa, mais rápido do que aquele foguete expelindo fogo, levando o conterrâneo para testemunhar que a Terra é mesmo redonda e o planeta mais azul do firmamento.
E, como o tempo para nós, simples mortais, não pára, vejo a morte aproximar-se de fato em seus anseios derradeiros.
Com meu passamento, talvez eu veja o que será de mim, do outro lado da vida!


Roberto Stavale
São Paulo, abril de 2006.
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