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Contos-->Terça feira de Carnaval -- 19/07/2000 - 16:47 (Marsal Sanches) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Terça feira de Carnaval

Nunca entendi muito bem o que aconteceu comigo naquele mês de fevereiro de 1952. Acho que por isso, até hoje, não fico muito bem no período de carnaval. Especialmente na terça feira.
Resolvi deixar esta linhas escritas enquanto ainda e lembro dos fatos com lucidez. Nunca contei a ninguém, nem ao meu marido, os fatos daquela terça-feira. Desde que deixei Vale Verde e me mudei para São Paulo, nunca mais tive contato com ninguém daqueles tempos. Acho que a maioria já deve ter morrido.
Naquela época, Vale Verde contava apenas com cinquenta ,sessenta mil habitantes. Apenas mais uma cidadezinha do noroeste do estado. A vida lá era morna. Eu, com dezesseis anos, estava em vias de concluir o magistério, que naqueles tempos era chamado de normal.
Era um cotidiano agradável. De manhã, aulas. Ã tarde, estudávamos, fazíamos as lições. Às vezes, um passeio até a casa de alguma amiga. Sair à noite, só nos fins de semana. E,mesmo assim, com hora certa para retornar. Acho que dez horas da noite era o limite para que nossos pais começassem a trocar o pijama pela calça e fossem nos procurar na pracinha da cidade, único local onde os jovens costumavam ir.
Mas havia um período em que tudo em Vale Verde se transformava. E esse período era o Carnaval. Durante aqueles quatro ou cinco dias, a cidade recebia centenas e centenas de visitantes. Via-se mais agitação do que em qualquer outra época do ano.
Eu e Rute, minha melhor amiga, adorávamos aqueles dias. Até a vigilância de nossos pais era relaxada. Apesar das recomendações, podíamos assistir aos desfiles e pular carnaval no salão do clube. Este último programa era uma atração à parte. O salão era pequeno, de modo que havia os matinês, para os menores, e os bailes noturnos, aos quais apenas os adultos podiam comparecer.
Minha irmã Marilda era quatro ou cinco anos mais velha que eu e sempre que saía, às nove da noite, para o baile, era seguida por mim com os olhos. Acho que nunca desejei tanto algo como, naquela época, poder acompanhá-la. Entretanto, qualquer tentativa seria em vão. O porteiro, seu Asdrúbal, era inflexível:
-Se não mostrar a carteira de identidade, não entra.
Seu Asdrúbal era um desses personagens de que nunca mais nos esquecemos. Alto, sempre de terno e boné, que completava seu uniforme de trabalho, era extremamente formal. Apesar do rigor com que desempenhava suas funções, odiava o Carnaval.
- É um período de baderna, bagunça e devassidão.
E despejava relatos apavorantes sobre as crianças e adolescentes que tentavam, em vão, furar seu bloqueio.
-Teve uma mocinha, parecida com você, que certa vez ficou paralítica porque veio ao baile escondida dos pais. Um outro ficou pulando na quarta feira de cinzas e não conseguia mais parar, depois. Precisou continuar pulando até seus pés ficarem em carne viva.
Estas estórias, que deixavam as crianças menores apavoradas, não produziam efeito algum em nós, os maiores. Pelo contrário, atiçavam ainda mais nossa curiosidade. Afinal de contas, o que acontecia ali que merecesse tamanho castigo?
Era terça feira de Carnaval do ano de 1952. Nós já havíamos ido a todos os desfiles e matinês no salão do clube. Tudo como nos anos anteriores. Já era oite e nós duas havíamos nos conformado de que ainda nào seria naquele ano que conseguiríamos ir ao baile noturno. Havíamos tentado em todas as noites e sido barradas em todas elas. Eu estava em casa com meus pais. Estava de camisola, pensando em já ir dormir, quando Rute veio até minha casa, de surpresa. Cumprimentou meus pais e chamou-me a um canto:
-Hoje à noite, o seu Asdrúbal não vai estar de porteiro do clube.
Alvorocei-me:
-Não? Tem certeza?
-Tenho. Quem vai estar lá é o Dinho, filho do seu Manoel, da loja de ferragens. Parece que o seu Asdrúbal está de cama. Pneumonia, eu acho. Garanto que o Dinho deixa a gente entrar.
Troquei de roupa bem depressa, e inventei uma desculpa para meus pais. Disse que iríamos só conversar um pouco na praça. Se eles não acreditaram, fingiram acreditar. Meu pai apenas assentiu, com um aceno de cabeça. Mas eu não estava me importando, mesmo que eles descobrissem que era mentira. Mesmo que apanhasse depois.
Corremos, assim, para o clube. Lá chegando, vimos que uma dezena de crianças se havia aglomerado na entrada. Talvez a notícia da doença de seu Asdrúbal se houvesse espalhado. Ou talvez fosse a algazarra de sempre. De qualquer forma, Dinho estava sendo ainda mais chato que seu Asdrúbal. Mais jovem, e menos pacientes, pôs-se a gritar com um garoto, que insistia em entrar pela centésima vez. Os outros ficaram com medo e começaram a ir embora. O garoto, então, voltou correndo e chutou, com for,a,a canela do porteito. Dinho gritou de dor e saiu a perseguir as crianças pela rua. Deixando o portão desprotegido.
-Vamos - disse Rute, que pensava bem mais rápido que eu. - Vamos aproveitar agora.
A porta ficava ao final de um longo e mal iluminado corredor. Por um momento, senti ímpetos de ir embora. De não entrar ali. Não sei dizer bem porque. Apenas...era uma sensação parecida com a de um primeiro dia de aula.
Rute entrou e eu a segui.
A música estava muito alta, e o salão, lotado. Ninguém parecia ter percebidoa nossa
entrada, e tamanha era a empolgaçào que, se caísse uma bomba em uma das extremidades do salào, na outra ninguém perceberia.
Após alguns minutos de vislumbre, começamos a dançar também. Logo percebi que ali havia algumas diferenças com o matinê. As brincadeiras, ali, eram um pouco diferentes. Vi, mais de uma vez, homens acariciando mulheres de um jeito que eu nunca havia visto. Elas não pareciam se importar,e continuavam pulando e dançando. Havia as bebidas, que no matinê eram expressamente proibidas. E havia algumas pessoas que, de vez em quando, levavam ao rosto panos embebidos em um líquido que depois eu vima saber o que era. As pessoas aspiravam e ficavam por alguns minutos em êxtase, com os olhos semi-cerrados, como se estivessem sonhando acordadas. Depois de algum tempo, recomeçavam a pular ainda mais animadas que antes. Por duas vezes, o cheiro daquele líquido ficou no ar, um cheiro forte e perfumado. Senti-lo me deixava tonta, tonta.
Tentava fazer um esforço para não me afastar muito de Rute, que parecia alheia a tudo, dançando e sorrindo. Ainda nào havia me encontrado com minha irmã, que ceratamente deveria estar ali. Lembro-me de te-la visto saindo de casa mais ou menos às sete da noite, usando um vestido vermelho.Agora era quase meia-noite, mas parecia que aquilo havia ocorrido há muito tempo. Dois ou três anos, talvez.
Então, aconteceu. Eu tinha me distraído um pouco, de olhos fechados. Ao abri-los, vi que algo no salão havia mudado. Não entendi logo de imediato. Todos continuavam dançando e cantando. Os rostos, as màos, o corpo...nada havia mudado. Quando cheguei aos pés, porém, tive um sobressalto.
Todas as pessoas estavam com pés de animais. A maior parte eram pés de aves. Galinhas, eu acho. Mas havia alguns que exibiam pés de porco. E outros, cujos pés haviam se transformado em pés de bode.
Esfreguei os olhos. Talvez o sono, ou o lança-perfume...mas não. Aquilo se mantinha. Comecei a ficar apavorada. As pssoas pareciam nada ter percebido, pos continuavam dançando e pulando. Com terror, olhei para meus pés. Se eu também estivesse com pés de frango, acho que teria enlouquecido. Mas eles estavam normais.
Procurei por Rute, mas não a encontrei. Era uma imagem de pesadelo, o salão lotado com pessoas..com pés de bicho. Comecei a procurar pela saída, mas as pessoas faziam trenzinhos e davam as mãos. eu não conseguia saber para que lado estava a porta. De repente, percebi bem perto de mim um moça de vestido vermelho, dançando de costas. Pensei ser minha irmã e chamei-a.
Ela se virou e vi que nào era mais minha irmà. O rosto era o mesmo. Mas o pés eram de bode. Na cabeça, um par de chifres.
A coisa que havia sido Marilda deu um ou dois passinhos em minha direção, e ouvi o ruído choco dos cascos no chão, apesar da música alta que tocava.
Saí correndo, empurrando todas as pessoas-coisas que encontrei em meu caminho. Atravessei a porta sem olhar para trás, apavorada com a possibilidade de que as criaturas viessem atrás de mim. Ou tentassem me levar de volta para dentro. mas nada disso aconteceu. Corri pelo corredor o mais rápido que pude, até a guarita onde ficava o porteiro.
-Rápido! Pare a música. Feche o salão. Chega de baile. Chega de Carnaval!
Dinho olhou-me como se eu tivesse duas cabecas:
-Menina, voce está bem? Acho que abusou um pouco da bebida.
Depois, olhando-me melhor:
-Espere um pouco! Qauntos anos você tem?
Não respondi. Saí correndo pelo portão, e não parei até chegar em casa. A imagem daquelas coisas me apavorava. Mesmo já em meu quarto, continuei sobressaltada, com a impressão de que alguma delas iria aparecer atrás de mim. Só então lembrei-me de Rute. Onde estaria ela? O que teria acontecido? Por um momento, cheguei a pensar em voltar,mas o medo falou mais alto. Eu preferiria morrer a entrar novamente naquele lugar.
Nunca mais falei com Rute depois daquela noite. No dia seguinte, quarta feira de cinzas, fui até sua casa mas sua mãe me disse que ela não estava. Em duas ocasiões, semanas após, tentei falar com ela na escola. Nas duas, ela fugiu, chorando.
Minha irmã Marilda continuou a me tratar como sempre. Distante. Quase não conversando comigo. Na primeira vez em que a vi após o baile, olhei demoradamente para sua cabeca. Depois, para seus pés. Ela estava de sapato fechado, mas em sua cabeca não havia sinal de chifres.
No final do ano, mudei-me para São Paulo, para cursar a faculdade de pedagogia. Fui privilegiada. Não havia faculdades em Vale Verde naquela época. Aqui mesmo, em São Paulo, casei-me e tive filhos. Voltei a minha cidade apenas uma ou duas vezes por ano, para visitar meus pais. Desde que eles morreram, não retornei mais àquele lugar.
Perdi o contato com Marilda depois da mudança. Ela nào veio ao meu casamento e certa vez, minha mãe confidenciou-me que lea havia se casado com um fazendeiro do interior de Goiás.
Tive muitos pesadelos após aquela noite,e ainda os tenho quando estou muito tensa. Alguns são repetidos. Em um deles, vejo Marilda vestida de noiva, sendo despida pelo marido. Mas sempre desperto antes que ele retire seus sapatos. Quando acordo destes sonhos, minha reação imediata é sempre a de apalpar meus pés, e é com imenso alívio que constato que eles estão como sempre estiveram.
Passei a odiar o período de Carnaval. Samba, desfiles, bailes. Tudo isso me faz muito mal. Meu marido sempre adorou assistir aos desfiles, e na frente dele tento disfarçar um pouco. Graças aos céus, ele jamais gostou de pular Carnaval em salões. Nem meus filhos.
Mas estou preocupada com meu neto de dezoito anos, que está hospedado aqui em casa. Hoje é quarta feira de cinzas, e ouvi quando ele chegou do baile, quase cinco da madrugada. Tem chovido muito, e tem havido um pouco de lama junto à entrada da casa.
Não gostei do formato das marcas de lama que vão da porta de entrada até o quarto de hóspedes, onde ele está dormindo até agora.
Ainda não tive coragem de ir até o quarto e ver como estão seus pés.



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