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Contos-->RECIFE REVISITADA -- 27/11/2002 - 06:12 (Felipe de Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Levanto-me e os pingos de suor descem verticais sobre o meu corpo, sinto-me repugnante, molhado, como se eu fosse uma barata tentado sair de uma bacia plena de àgua quente. Penso numa ducha fria, num final de tarde na praia, penso num quarto com ar-condicionado, penso em tantas coisas agradàveis, porém, o sol mostra-me a realidade das ruas. Olho o relògio e os ponteiros acusam quase 12 horas. O sol é rei. Ele nos humilha todos com sua força, demole conscientemente nossa vitalidade e castiga impunemente todos os passantes. Tento seguir em frente: a quanto tempo que nâo ando por essas ruas ?

A mulher negra, gorda, suja e suada, quase despida, coberta apenas por retalhos, sempre com os seios enormes a mostra e um sorriso encantado ainda vende o peixe assado numa das esquinas da avenida Dantas Barreto. Essa mulher gorda com seus seios pùblicos e volumosos sempre me excitou. O seu corpo disforme, suas nàdegas arrogantes, descomunais, sua voz estridente sempre tiveram um fascìnio misterioso e uma atraçâo sexual que eu nunca consegui explicar direito. O que nâo daria para fazer amor, ali mesmo, no meio da rua, entre a sujeira e o ruìdo ensurdecedor do trânsito, colado um contra o outro, nossos corpos transpirando, pingando de prazer e de beijos, numa luta de amor e luxùria, como dois câes vadios que fazem sexo no meio da confusâo de um mercado pùblico sob os olhares e pilherias dos passantes.

Essa mulher parece ter uma idade eterna, nem sequer envelheceu, continua a mesma, parece imune aos raios solares, ao calor insuportàvel, a sujeira das ruas, o fedor dos esgotos, aos ruìdos ensurdecedores dos ônibus, aos gritos dos loucos, aos olhares repugnantes dos que passam apressados, a tantas coisas horrìveis que teimam em vir na sua direçâo. Eu enlouqueceria no primeiro dia, ela nâo, ela continua a vender sua mercadoria como se o mundo nunca fosse se acabar, numa alegria que amedronta, hipnotiza, como gostaria de ter essa força, essa vitalidade de viver, essa bizarra maneira de enfrentar a vida.

O calor parece aumentar ainda mais, sinto fome, entro no primeiro restaurante que encontro na minha frente: é um bar imundo, sujo, nojento mesmo, alguns homens bebem cerveja, eles sâo tristes, magros, esquelèticos, desesperados, mas olham-me com simpatia. Gosto dos olhares destes homens, existe mesmo uma silenciosa cumplicidade, estamos todos no mesmo barco. Nâo existe troca de cumprimentos, palavras ou sorrisos, apenas um grande silêncio no meio desta zoada alucinante da cidade. Sâo poucos os que escutam este silêncio triste entre nòs. Nòs que bebemos essa cerveja gelada, em pleno meio-dia, na algazarra desta cidade estamos conscientes, mas os outros, os outros nâo escutam nada, estâo perdidos, surdos, correm apressados para um encontro que nunca foi marcado. Nòs que bebemos essa cerveja gelada neste bar imundo sabemos disto, mas eles, que correm desesperados e ameaçados ainda nâo sabem, e talvez nâo saibam nunca que nâo existe encontro marcado. Nòs, os silenciosos, diante das nossas cervejas geladas, somos os semi-deuses deste inferno.

Tenho fome e novamente um imenso vazio se apodera de mim, nâo consigo mais caminhar embaixo deste sol, minhas pernas nâo obedecem mais, poderia ficar aqui, sentado o resto da minha vida, eu também desejo ser igual a um destes homens tristes que bebem cerveja em pleno meio dia da semana. Olho na direçâo da calçada e descubro que a maioria das pessoas là fora, embaixo deste sol, também sâo tristes, ameaçadoras, deve ser o clima insuportàvel desta cidade. A cidade mata ! A cidade està em brasas e acredito mesmo que libera um gàs secreto que enlouquece gradualmente todos os seus habitantes. Todos caminham ligeiros, rastejando seus corpos, formando linhas e curvas, feito cobras a procura da caça, alguns até mesmo riem, mas é um riso monstruoso, como se o mundo fosse acabar amanhâ de manhâ. Por vezes, eu também gostaria, que o mundo acabasse amanhâ de manhâ.

Algumas mulheres ainda possuem, mesmo embaixo deste sol esmagador, uma graça natural, um sorriso contagiante, um ritmo que poderia até mesmo nos salvar. Acompanho prazerosamente o sensual caminhar de algumas nàdegas, as pernas morenas seguem uma direçâo fixa, atravessam a avenida meio apreensivas, meio joviais, os seios -de todos os volumes e cores- parecem dançar ao ritmo alucinante das buzinas dos automòveis. Serà que as mulheres que amei ou deixei de amar ainda existem em algum lugar? Serà que ainda existo de alguma maneira nas suas vidas ou estou enterrado para sempre? Seria bom escuta algumas delas dizer que, de vez em quando, ainda se lembra de mim, vagamente, mas que existo de alguma maneira no passado de uma delas. Algumas imagens passadas retornam prazerosamente, envoltas numa sequência màgica de sensualidade e harmônia, lembro-me de nomes, detalhes dos corpos, sorrisos, cabelos esvoaçantes, meio molhados, ao vento, lembro-me de uma sonata de Chopin numa manhâ de domingo, tudo passa numa sequência vertiginosa, sâo resìduos, lembranças sepultadas.

Chamo a garçonete, tenho fome, aproveito e peço uma outra cerveja gelada. A garçonete, magra, feia e velha, olha displicente para o châo, arrasta-se preguiçosamente na minha direçâo, anota o pedido num pedaço de papel e parte arrastando suas sandàlias no assoalho sujo do bar. Nâo posso evitar certas lembranças. Tudo o que vivenciei nesta cidade parece tâo distante, um outro mundo, um universo submerso, nem acredito que fui eu que caminhava nestas mesmas ruas. Esta cidade nâo mudou; continua suja, calorenta, sexualmente manìaca e repleta de fantasmas, como era mesmo aqueles versos de Carlos Pena: “Sâo trinta copos de chopes, sâo trinta homens sentados, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustados”. Isto mesmo! Trinta mil sonhos frustados. Alguns camelôs aproximam-se e me oferecem uma série de bugingangas: relògios falsificados, cigarros, pasta de dente, isqueiro colorido, preservativos, folhetos de cordel, brinquedos de plàstico, amêndoin, salgadinhos, salsichas, calendàrios, pentes, meias, frutas. Sâo tantos os artigos que falta-me forças para dizer tantos nâo, apenas balanço a cabeça negativamente e eles passam adoentados, sonolentos, sem notar verdadeiramente a minha presença, eu sou apenas mais um que diz nâo embaixo deste sol torturador.

Lembro-me de Mirna, gosto imensamente dessa idèia de revê-la novamente, depois de séculos, e ainda ter o direito de despì-la como antigamente. Revejo e refaço mentalmente cada instante màgico: desabotoaria sua blusa, deixaria cair por terra a sua saia azul, retiraria calmamente as suas peças ìntimas, uma por uma, vagarosamente, religiosamente e finalmente admiraria a sua nudez. Uma nudez santificada. Somente um homem que transborda de amor sabe o que existe de sagrado na nudez de uma mulher. Ficaria alì, diante de mim, silenciosa, nua, real, e ao mesmo tempo, envolta numa milagrosa transparência. Numa prece celeste, eu me ajoelharia diante dela, e acariciaria o seu sexo com a força de todos os beijos do passado, nâo seria somente um ato de amor, mas um hino de encantamento a mulher amada. Depois, depois, queria somente que as horas parassem e eu pudesse percorrer vagarosamente todas as curvas do seu corpo. Descobrir, uma por uma, todas as sinuâncias do tormento do corpo, rememorar os nossos mais ìntimos segredos de amor, escutar frases, lembranças, futuros planos, se deixar guiar por uma simples intuiçâo de prazer. O delìrio! O supremo delìrio! Depois do vendaval de beijos e carìcias, pediria somente uma coisa: fiques parada diante de mim, nua, santificada, uma estàtua de màrmore e deixe-me chorar de prazer diante da mulher mais bela do mundo.

O prato fumegante de comida é colocado ostensivamente diante de mim, o aroma picante da comida dita a realidade deste dia, ainda estou vivo debaixo deste sol esmagador que parece que nunca mais vai se pôr. Mastigo com vontade os alimentos, tenho fome, preciso me preencher de alguma coisa, nem que seja de um prato de feijâo e arroz. Necessito sentir algo dentro de mim, algo que me deixe forte diante de tantas lembranças, essa cidade exposta as atrocidades ainda tem o poder de me ferir, nunca imaginei que, mesmo depois de tantos anos, ela ainda tivesse este poder de fogo. Misturo a comida quente com a cerveja gelada, nâo penso, nâo olho de lado, nâo tenho nenhum desejo, afora essa refeiçâo quente e saborosa. Engulo os alimentos olhando de face a sujeira dos esgotos a cèu aberto. Ainda estou vivo, nem acredito que, depois de tantos anos percorrendo essas mesmas ruas, essa cidade ainda nâo conseguiu me matar. Bastaria tâo pouco, um acidente em plena vìa pùblica, um assalto a mâo armada, um acidente de trânsito na Conde da Boa Vista, um derrame cerebral na ponte Buarque de Macedo, meu Deus, tudo tâo simples e essa cidade prefere me deixar vivo, agonizando, embaixo deste sol torturador.

Busco uma cédula na minha carteira e pago a minha conta. A garçonete coloca algumas moedas em cima da mesa e parte na direçâo da cozinha, sem dizer obrigado ou mesmo olhar na minha direçâo, talvez eu nem sequer exista para ela como pessoa humana, sou apenas um nùmero, um animal que engoliu um prato de comida como tantos outros durante anos e anos na sua frente. Levanto-me e caminho na direçâo do mercado de Sâo Josè. Sâo quase 15h. A cidade parece em guerra: homens, carros e animais vâo em todas as direçôes. Eu também tenho uma direçâo. Deixo o corpo comandar a minha vontade, na realidade, nâo tenho vontade, apenas olho ao meu redor, apreciando tudo o que està ao meu alcance: sâo gritos, olhares, gestos, frutas coloridas, vendedoras, crianças que choram, homens bebendo em pé, mulheres velhas que sorriem sem um motivo aparente, artigos de plàstico, peixes mortos, mùsica sertaneja nos alto-falantes, mendigos silenciosos e humilhados que estendem a mâo.

Tudo e todos partem em todas as direçôes. Esta cidade està em guerra. A ùltima guerra santa do sèculo. O meu corpo dòi, sinto vontade somente de desaparecer, sair desta algazarra, dormir um sono profundo e acordar num outro local. Apresso o passo, tento atravessar a rua estreita e repleta de gente, a multidâo me empurra de um lado para o outro, nâo consigo subir na calçada do outro lado da rua. Todos estâo loucos, uma detonaçâo pode acontecer a qualquer momento, um atentado terrorista, essa cidade enlouquece os pedestres, eu também estou louco, sigo o itineràrio dos outros, apresso ainda mais o passo, entro no ritmo frenético, acompanho algumas pernas que desfilam na minha frente, pareçe até mesmo que tenho um encontro importante em algum lugar.

Trecho do livro inédito Fragmentos Submersos
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