Usina de Letras
Usina de Letras
237 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50554)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140786)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6176)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Ensaios-->O POEMA "MÃE" DE ALMADA NEGREIROS -- 21/10/2004 - 22:15 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


MÃE
Poema de Almada Negreiros(1893-1970)
Poeta e artista plástico do Modernismo português


Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!
Eu ainda não fiz viagens
E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar.
Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.
Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

______________________


ANÁLISE DO POEMA
Por João Ferreira


I- Gênero do Poema
Lírico, em forma de narrativa
II-Características poéticas do texto
A escrita flui em verso livre, moderno, com acento especial na originalidade dos contrastes e dos paralelismos e na subjetividade do eu-narrador.
III-Elementos de análise.

O NARRADOR

1.O narrador é representado por uma criança afetivamente ligada a sua mãe.
2. Logo na abertura (v. 1), a criança convida a mãe para que escute suas histórias.

ORALIDADE E ESCRITA

Neste convite o texto poético fornece de entrada dois elementos essenciais da oralidade da arte de contar,:
1.1. O primeiro elemento é representado pela audição:
“Mãe! vem ouvir a minha cabeça[...]. Esse dado do discurso mostra-nos que a história será percebida e conhecida pela audição.
1.2. O segundo elemento narrativo da oralidade é representado pela narração:
“Mãe! vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei(= histórias existentes apenas na cabeça do narrador infantil)

ESTRATÉGIA DA NARRAÇÃO

2. Depois de ter dirigido convite presencial para sua mãe para que venha ouvir suas histórias de viagem, o narrador declara que estas viagens ainda não aconteceram:
“vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei”.
3. Em terceira instância, no v.4, a narrativa poética abre o jogo narrativo: as viagens ainda não aconteceram e mesmo assim, na cabeça da criança há só viagens: sua fantasia é povoada de cenas de viagens...
“Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens”.

NATUREZA DA VIAGEM ARQUITETADA PELO SUJEITO-LÍRICO NARRADOR

4. Em seguida, o sujeito lírico narrador, que ainda não viajou, decide viajar:
“Vou viajar. Tenho sede. E prometo saber viajar”.-
Em sua narrativa dirigida à mãe, o sujeito-lírico protagonista mostra que sua cabeça está dominada pela vontade de viajar (v. 5).
Mas para que a mãe não pense que sua viagem é apenas uma brincadeira, ele acha prudente e importante acautelar a mãe de que vai aproveitar bem a viagem, que vai usar de toda as capacidades para que essa viagem seja proveitosa:
“Eu prometo saber viajar” v. 5

VIAGEM, SONHO E REALIDADE

5. Tratando-se de uma narrativa baseada no sonho e na vontade de viajar,
5.1.a ficção poética já previne o que o pequeno narrador fará quando regressar dessa viagem:
“Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da tua casa”.
5.2.Há neste fragmento uma dose de profunda afetividade. A criança que
já programou e decidiu viajar, arquiteta em sua fantasia como é que seria seu retorno:
“Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.Eu vou aprender de cor os degraus de nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado[...]

SONHO E AFETIVIDADE

5.3. Essa subida dos degraus, um por um, tanto pode significar o gosto e o reencontro afetivo com as escadas de sua mãe (=ligadas à “pessoa” real da mãe!). O “um por um”, significa, a atenção, o cuidado, o gosto, pelas escadas da casa de sua mãe. Tão gostoso será voltar a subir esses degraus que ele vai aprender de cor os degraus da casa...Um ar de contentamento de criança subindo e descendo a escada, com a alegria que a infância dá a esse gesto ...
5.4. No verso “Tenho sede. Prometo saber viajar”, o Poeta mostra a vontade e a ansiedade que o sujeito-lírico protagonista tem de realizar este sonho. E para que a licença materna não seja obstáculo já vai prometendo de antemão que vai se comportar muito bem e vai saber aproveitar:
“Eu prometo saber viajar”...

O REGRESSO DA VIAGEM

6. O Poema entra nos vv. 8-10 em nova etapa narrativa.
Aqui a criança narradora vive em sua imaginação como é que vai ser quando regressar de sua viagem:
Nota-se, no poema, que a urgência afetiva do reencontro com a mãe dita a composição do texto. Vejamos os detalhes:
-“Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras”.

SITUAÇÕES AFETIVAS

Sua imaginação criadora prevê três situações afetivas:
6.1. Primeira situação: a criança regressa e corre para sentar-se junto da mãe...
6.2. Segunda situação : Sentando-se junto da mãe, a criança fantasia e imagina como seria gostoso e lindo estar junto da mamãe,ela costurando e, ele, aproveitando para contar suas histórias de viagem... histórias, que, segundo o narrador, tanto podem versar sobre (a)viagens feitas como sobre (b)viagens meramente imaginativas, com a observação porém, de que (c) essas narrativas de viagens, verdadeiras ou fictícias sempre serão escritas com as mesmas palavras.

VIAGENS REAIS E VIAGENS IMAGINADAS:DUAS IMAGENS DA MESMA MOEDA

Nesta passagem, o narrador quer chamar a atenção não só para a dupla situação da verossimilhança da história e para a sinceridade, mas também para o valor da história, a qual, utilizando as palavras como material de expressão, terá o mesmo valor narrativo, pelo lado da subjetividade, sejam ela verdadeira ou apenas fictícia.
7. O cerco afetivo da criança em torno do colo de sua mãe tem um registro especial a partir do verso. 12:

A FIGURA DAMÃE CENTRO DO MUNDO DA CRIANÇA

“Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a a mesa”.
8. Esta passagem do poema narrativo de Almada é de extrema importância, por nos dar a chave de todo o tecido narrativo. Ele mostra como a criança não prescinde de ter no ambiente familiar um lugar garantido e um espaço adequado como têm os móveis da casa, a mesa por exemplo...

PRIORIDADE DE ESPAÇO PARA A CRIANÇA

Estes versos levam-nos criticamente a observar:
8.1. Primeiramente, a postulação da prioridade de um espaço especial que deve ser dado à criança no seio da família;
8.2. Em segundo lugar, à defesa desse espaço naqueles ambientes problemáticos, onde muitas crianças disputam com o cachorro da casa ou com o sofá ou a mesa da sala de jantar ou outro objeto utilitário um espaço para ocupar ou para brincar. Este contraste é um ponto muito perspicaz na narrativa.
9. O poema finaliza mostrando como a mãe é a suprema segurança do filho. Simbolicamente Almada finaliza o poema pela voz da criança :
“Mãe! Passa tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!”
Estes versos, de profunda expressão estilística, contêm alguns pontos a destacar :
9.1. O carinho materno é o centro e a base da segurança e do equilíbrio psicológico da criança:
“Mãe! Passa tua mão pela minha cabeça;
9.2. Este equilíbrio dado à criança a partir do carinho materno beneficia todo o ser infantil e “clarifica o mundo” para um ser humano em idade de formação

MÃE – A VERDADE DO UNIVERSO DA CRIANÇA

9.3. O último verso:
“Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!” fecha o círculo da história.O Poema começa invocando “a cabeça”(= Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias[...] e termina do mesmo jeito voltando a sublinhar a cabeça:
“Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade”...
Como a dizer: todo o percurso da narrativa poética foi desenvolvido a partir de toda uma energia criadora e de toda uma vida interior e sonhadora que se passava na cabeça ou no cérebro e na sensibilidade afetiva daquele narrador infantil, tão ligado e tão dependente ainda da figura de sua mãe...onde os sonhos, as fantasias, os desejos, e o planejamento de vida se situam junto da barra da saia da mãe!


João Ferreira
Brasília




Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Perfil do AutorSeguidores: 73Exibido 20039 vezesFale com o autor