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Ensaios-->A PONTUAÇÃO LITERÁRIA DE JOSÉ SARAMAGO -- 17/10/2004 - 00:01 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A INSÓLITA PONTUAÇÃO LITERÁRIA DE JOSÉ SARAMAGO


João Ferreira
16 de outubro de 2004

I - QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Colhi a expressão “pontuação insólita” de uma pergunta feita por Carlos Reis a José Saramago numa série de entrevistas que deram como resultado o livro 'Diálogos com Saramago'. Aparentemente subterrânea ao texto,a questão foi tomando corpo entre os leitores de Saramago. Hoje é colocada em debate pelo corpo docente de certas escolas e Faculdades, tendo em vista situações concretas de prestígio do ensino. Em todos os níveis de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, tanto no fundamental, como no médio, como no superior, vários professores mostram tendência a abrir um debate honesto e realista, em termos de didática da ortografia frente aos textos premiados de Saramago. Apenas pelo lado da pontuação. Insólita, no caso. O argumento destes mestres é o de que Saramago faz a desconstrução da convenção existente na Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP) sobre pontuação. Argumentam que sua profissão os obriga a ensinar, em sala de aula, a teoria da norma gramatical sobre os sinais convencionais da pontuação. Dizem também que têm de aplicá-los, ao vivo, na escrita sob a forma de produção de textos, e que têm de mostrar a seus alunos a prática dos escritores e mestres da Língua Portuguesa e que o mau exemplo de Saramago ao apresentar sua “insólita” pontuação contraria todas as normas da convenção tradicional. Esses profissionais insistem que esse fato ultrapassa o simples fator literário. Que tem muito a ver com a estabilidade das convenções próprias do estado atual da Língua Portuguesa. E que, acima dos individualismos dos escritores, as escolas seguem uma normatização universal e estável, para evitar casuais desconstruções demolidoras.Ora, argumentam ainda,o sistema de pontuação característico de Saramago fazendo da vírgula um sinal de valor plural, termina por subverter os sinais convencionais, afetando a ordem clássica de apresentação escrita dos diálogos. Saramago alega que está fazendo uma utilização tácita das pausas da língua oral. Isso, entretanto, não é encarado como argumento muito persuasivo já que também os gramáticos tradicionais explicam os sinais convencionais como estratagema destinado a tentar substituir recursos específicos da língua falada, tais como a entonação, as pausas, os silêncios, etc. A nível teórico, portanto, o caso dessa pontuação marginal entraria num impasse, que não justificaria a subversão nem a desconstrução. Em certos trechos da obra, repetidamente, Saramago irrompe com uma pontuação que é para todos insólita. Esse modo de pontuar que Carlos Reis chamou de insólito tem sua força maior no emprego da vírgula com valor múltiplo de representação de vários sinais de pontuação e o emprego de Maiúsculas depois da vírgula para indicar diálogos ou discursos interventivos.
Vejamos ao vivo como Saramago encara o problema.

[Palavras de um entrevistador]

“Já ouvi de uma de suas leitoras que seu texto faz lembrar a “música” do português arcaico, em que se narrava por exemplo, a vida da rainha D.Urraca sem pontos, vírgulas, parágrafos...O Fernando Lemos, pintor e seu amigo, diz que se lembra da maneira como as mulheres de Portugal, no campo, contam histórias e fazem os temas se entrelaçarem. Há um componente melódico na maneira como o senhor conta a história...” [Palavra do entrevistador em “A Palavra do Nobel” feita a Saramago em 1998, por Jefferson Rios, Beatriz de Albuquerque e Michel Laub”,. Publicada na Revista BRAVO, ano 2, n.21 (São Paulo: D’Avila Comunicações Ltda, 1999),p.66.


[Resposta de Saramago]

“Não sei se tem diretamente a ver com a melodia, mas tem a ver com aquilo a que, em termos musicais, chama-se o andamento, ou o compasso. Menos o ritmo do que o compasso e o andamento. Tem a ver com o modo como se constrói a própria frase. Quando estou a escrever, não estou a pensar obsessivamente nisso. Simplesmente acontece. É eu sentir, por exemplo, que uma determinada frase, em que já disse tudo quanto tinha para dizer, do tal ponto de vista musical, no sentido do compasso que tem que se desenvolver, tem de terminar. Um, dois, três, quatro: quer dizer, tem de acontecer isso. Também, tem de acontecer isso na própria frase que está a ser escrita. E pode acontecer que do ponto de vista do sentido já esteja tudo completo, mas que a frase necessite de três ou quatro palavras mais que não acrescentam nada, que não vão acrescentar rigorosamente nada, mas que são necessárias para que o último tempo do compasso caia e repouse. Enfim, isso tem a ver também – mas aí já de uma maneira involuntária e quase instintiva – com o fato de que os narradores de contos, digamos, dos contos orais, têm uma espécie de saber infuso, que não aprenderam. Ou melhor, aprenderam com o que ouviram, os contos contados por outros antes deles”.
(Revista Bravo. Ibidem, p 66).

“[...] Se alguma coisa me preocupa é que, venha de onde vier esse estilo ou esse modo de narrar e sobretudo esse modo de “dizer”, é que qualquer pessoa, lidas duas linhas minhas, diga “isto é de fulano”.
Palavras de Saramago em Carlos Reis. Diálogos com Saramago, p. 100.

[Pergunta de Carlos Reis]

“E há um aspecto em que é obviamente de “fulano” e que causa alguma perplexidade a não poucas pessoas – e algumas até com responsabilidades – que é a célebre questão da pontuação. Como explica essa sua insólita pontuação?” (REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Editorial Caminho, 1998, p. 101

[Resposta de Saramago a Carlos Reis]

“Explico-a da maneira mais fácil. Em primeiro lugar, devo lembrar que, como toda a gente sabe, a pontuação é uma convenção. A pontuação não é mais do que aquilo que numa estrada são os sinais de trânsito: cruzamento, redução de velocidade, essas coisas que aparecem. E assim, dir-se-ia que continua a ser possível transitar pela estrada dos meus livros que não têm esses sinais, da mesma maneira quer seria possível transitar por uma estrada sem sinais de trânsito, com a grande vantagem de provavelmente haver menos desastres porque então toda a gente teria que estar muito mais atenta ao caminho e à condução.
Mas isso tem outra razão: é que nós, quando falamos, não usamos sinais de pontuação. È uma velha declaração minha: fala-se como se faz música, com sons e com pausas. Os valores de expressão resultam evidentemente dos órgãos fonadores, e no caso da comunicação oral e em presença, dependem também do gesto, da expressão do olhar, da suspensão da voz, do modo como a voz vibra, de todas essas coisas. Se nós tão facilmente comunicamos quando falamos uns com os outros, sem sinais de pontuação – como quando perguntamos “amanhã vais a minha casa?”, como uma certa música-, então o que eu acho é que, se o leitor, ao ler , está consciente disto, se sabe que naquela estrada não há sinais de trânsito, ele vai ter de ler com atenção, vai ter de fazer isso a que chamei uma espécie de “actividade muscular”. E ele só pode entender o texto se estiver “dentro” dele, se fun/102/cionar como alguém que está a colaborar na finalização de que o livro necessita, que é a sua leitura.
Isto que é verdade para todos os livros é muito mais verdade para um livro que se apresenta inacabado, com as costuras à vista. De certo modo pode dizer-se assim: os meus romances apresentam-se com as costuras à vista. E as costuras são exatamente esse aspecto que em princípio poderia dizer-se inacabado, como quem diz, faltam-lhe aqui os pontos de interrogação; não faz sentido nenhum que depois de uma personagem dizer uma coisa apareça uma vírgula e a resposta logo a seguir à vírgula com a maiúscula. Se me dizem isto eu pergunto: e que sentido faz dizer “fulano chegou e disse” e a seguir dois pontos e travessão? Que sentido faz isso? Não há dois pontos nem travessão na fala.
Ora isto que parece uma inovação extraordinária, não o é. Isto já se fez. Estou-me a lembrar das célebres cartas da Guidinha, do Luís Sttau Monteiro, que ele publicava no Diário de Lisboa e nalguma outra revista, em que a Guidinha escrevia sem pontuação nenhuma.
(REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Ibidem, pp. 101-102.

[Insistência de Carlos Reis perguntando sobre pontuação]

“Mas aí há pelo menos duas ou três diferenças substanciais: é que institucionalmente não é a mesma coisa e por outro lado aí não havia absolutamente nenhuma pontuação. O que torna a sua pontuação surpreendente é que ela continua a existir, só que é diferente daquilo que convencionalmente se esperaria.”
(REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Ibidem, pág. 102.

[Resposta de José Saramago]

Aí direi que meus sinais de pontuação, quer dizer, a vírgula e o ponto final, nesse tipo de discurso, não são sinais de pontuação. São sinais de pausa, no sentido musical, quer dizer: aqui o leitor faz uma pausa breve, aqui faz uma pausa mais longa. Quando aconteceu algumas pessoas dizerem que não entendiam nada, a minha única res/103/posta, nessa altura, já há muitos anos – em 1980, quando o Levantado do Chão saiu- foi: leiam uma página ou duas em voz alta. E depois acontecia as pessoas dizerem: “Já percebi o que é que tu queres”. É fácil. O leitor há-de ouvir, dentro da sua cabeça (o leitor não tem que andar lá em casa a chatear a família lendo o Memorial do Convento ou O Evangelho de Jesus Cristo em voz alta), a voz que “fala”. Tal como eu, quando estou a escrever, necessito estar a ouvir na minha cabeça a voz que “fala”. É por isso que começar um livro é para mim complicado; porque enquanto eu não sentir que aquele senhor já está a “falar”, que não está simplesmente a escrever o livro, eu posso empurrá-lo e fazer avançar, mas mais cedo ou mais tarde tenho que parar porque tenho que reconsiderar tudo aquilo que fiz.”

[José Saramago, in: REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago, p. 102-103).

II

ALGUNS TEXTOS EXEMPLARES DE “INSÓLITA PONTUAÇÃO” EM SARAMAGO

Apesar de entrevistado com perguntas objetivas preparadas pelo catedrático Carlos Reis, Saramago dá respostas que não conseguem desfazer todas as dúvidas sobre a insólita pontuação que se verifica em seus livros.
O que se questiona aqui não é o texto sem pontuação e sim a pontuação insólita, não convencional, de Saramago, que perturba os professores obrigados a ensinar a seus alunos a convenção da pontuação em Língua portuguesa.
Não se discute, aqui, o elemento literário, ou até o componente melódico que representa a maneira como o escritor conta ou narra a história dentro de um discurso. Nem tão pouco se fala de texto sem pontuação, sem pontos, sem vírgulas ou sem parágrafos usados em alguns textos da alta Idade Média. Ao contrário, a objeção dos críticos é sobre a pontuação insólita,ou estranha, que se situa fora e acima dos usos da comunidade lingüística.
Saramago escreve para a comunidade de língua portuguesa. Lá estão seus principais leitores. Não é a essência da literariedade que o obriga a uma desconstrução das convenções de pontuação.
Não está em causa, achamos, apesar das explicações dadas por Saramago aos entrevistadores da revista Bravo, o compasso melódico da frase. Também não vale o exemplo que o escritor deu para explicar sua insólita pontuação comparando os sinais de pontuação aos sinais de trânsito. Não é isso. A nível teórico, os dois são convenção, são sinais. Tudo bem. Mas na prática, assim como o motorista não pode inventar códigos numa estrada onde são obrigatórios os códigos convencionais para todos, sob pena de se expor a um desastre mortal, assim, o escritor, sabendo de antemão qual é o código convencioanl de pontuação dos usuários de língua portuguesa não deverá modificá-lo sob pena de espalhar a confusão entre seus leitores.
Sobre a observação de que essa tal “insólita pontuação” poderia ser um indicador da marca de identidade do escritor junto de seus leitores, achamos que a indidualidaade autêntica está no literário e no discurso artístico, não na pontuação insólita. Sim, a pontuação insólita também constitui uma marca, uma individualidade, uma identidade. Mas a que serve? Para mostrar o contraditório? A individualidade maior e a identidade verdadeira é a literária. Esta representa a capacidade da escrita, a trama, a narratividade, a literariedade, o talento de inventar e contar uma história, a arte de escrever de incutir a mensagem em seus leitores. Isso sim é a arte de Saramago. Isso é a grandeza de Saramago. Para o entendimento da história e da mensagem do escritor não ajuda nem concorre a transgressão da pontuação convencional. Ela nada acrescenta para os intelectuais e faz confusão para os jovens e aprendizes. Nas literaturas mundiais e especialmente no Ocidente grandes escritores escrevem seus textos dentro das convenções da escrita, são também prêmios Nobeis e não precisam dessa muleta atravessada que nada acrescenta ao escritor. Lamentável seria se a arte de Saramago precisasse desse recurso para se impor ao leitor.
Não vem a propósito lembrar que a escrita de Saramago imita a oralidade que não usa sinais de pontuação e se baseia apenas em sons e pausas. Não é a falta de pontuação que se discute. Toda a pontuação, até a convencional, tenta imitar as bases da oralidade, entre as quais a entonação e as pausas.O que se discute em Saramago não é a arte, mas apenas a pontuação insólita.

III

TEXTOS PARA COMPROVAÇÃO

Do livro 'Levantado do Chão'

“Disse Faustina, Deixa lá, é um passeio, e não nos caem os parentes na lama[...” José Saramago. Levantado do Chão. 4@ edição. Lisboa: Editorial Caminho, 1983, p.91.
[...] é preciso segurá-los para que não voem pela borda fora, Ó da máquina, vá mais devagar, compadre, que ainda cai alguém à água [...Pararam em Foros para meter mais gente, e dali foi tudo a direito, Montemor à vista, não é tempo ainda de lá entrarmos, e Santa Sofia e São Matias, Aqui é que eu nunca vim, mas tenho cá família, um primo da minha cunhada, vai-se governando, estavam bem arranjados se não crescesse a barba aos homens, é como as putas, se a picha não crescesse. (José Saramago, Levantado do Chão,p. 92).


Do livro
'Memorial do Convento'

Para o leitor ter uma idéia precisa do sistema de pontuação na escrita de Saramago, achamos importante apresentar dois tipos de pontuação usados por Saramago em Memorial do Convento: o primeiro, está escrito de acordo com a pontuação convencional. O segundo é elaborado dentro do sistema da “pontuação, insólita” característica de Saramago.

2.1. Modelo número um: escrita com pontuação normal

“Terminou a lição, desfez-se a companhia, rei para um lado, rainha para outro, infanta não msei para onde, todos observando precedências e preceitos, cometendo plurais vênias, enfim, afastou-se a restolhada dos guarda-infantes e dos calções de fitas, e no salão de música apenas ficaram Domenico Scarlatti e o padre Bartolomeu de Gusmão. O italiano dedilhou o cravo, primeiro sem destino, depois como se estivesse à procura de um tema ou quisesse emendar os ecos, e de repente pareceu fechado dentro da música que tocava, corriam-lhe as mãos sobre o teclado como uma barca florida na corrente, demorada aqui e além pelos ramos que das margens se inclinam, logo velocíssima, depois pairando nas águas dilatadas de um lado profundo, baía luminosa de Nápoles, secretos e sonoros canais de Veneza, luz refulgente e nova do Tejo, já lá vai el-rei, resguardou-se a rainha na sua câmara, a infanta debruça-se para o bastidor, de pequenina se aprende, e a música é um rosário profano de sons, mãe nossa que na terra estais.”
(Saramago, Memorial do Convento. Ibidem, pág. 161

2.2. Modelo número dois: escrita com pontuação insólita

“Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não construía e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de frades franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha” (SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Romance. São Paulo: Difel, 1983, p. 14)

IV

O FATO DA HETERODOXIA DA PONTUAÇÃO NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO


Saramago reage se lhe disserem que ele é contra
a pontuação. Na verdade, ele não é contra a
pontuação. Ele pontua diferente de duas
maneiras: segundo a maneira clássica
rspeitando a pontuação convencional. Essa é uma
parte importante de sua escrita. Mas há a segunda
forma em que ele adota uma pontuação
insólita.É esta segunda que discutimos nesta
exposição. A pontuação insólita começa por
desconstruir e ultrapassar todas as formas
clássicas de pontuar praticadas pelos mestres literários e gramáticos e academias que normatizaram a pontuação em língua portuguesa vigente e ensinada nas escolas. Mas nem sempre. Se tomarmos apenas como exemplo seu último livro “O Homem duplicado” (São Paulo: Companhia das Letras, 2002), temos uma situação exemplar, tipicamente saramaguiana, de duas faces. Como os capítulos não são numerados nem há sub-títulos, vamos nos orientar por páginas. Na página 93: “às onze horas da manhã Tertuliano Máximo Afonso já tinha visto três filmes, embora nenhum deles do oprincípio ao fim. Levantara-se muito cedo...'
A heterodoxia de pontuação usada por Saramago em suas obras, verifica-se pela leitura, observação e análise do texto de seus livros. Há casos em que ele não utiliza alguns sinais de pontuação. Como é o caso do travessão. Por outro lado, também, ele subverte o valor tradicional da vírgula utilizando-a para “n” fins, para “n” usos, diferentíssimos da utilização que dela fazem todos os escritores clássicos e contemporâneos e da teoria e da prática do ensino escolar que abre um capítulo específico de pontuação no ensino da gramática nas salas de aula. Prática adotada nas escolas de todos os povos de língua portuguesa. Saramago é pois um heterodoxo em termos de pontuação clássica. E torna-se um caso especial que merece um estudo aparte, seja pela sua posição de escritor de língua portuguesa, seja pela sua figura arquetípica e singular de Prêmio Nobel de Literatura galardoado em 1998.

2.Uma amostragem textual sobre o uso de pontuação
É por isso de toda a conveniência mostrar a obra de Saramago no que diz respeito à pontuação.
Como primeira observação para empreendimento de um estudo sério a respeito do assunto deveremos dizer que nem todas as obras de Saramago marginalizam pontuação tradicional.
Vejamos isso através de alguns exemplos.
No livro “A Bagagem do Viajante: Crónicas”(1996), a pontuação é normal, escolar, ortodoxa. O texto é pontuado classicamente de acordo com o figurino. Há frases e parágrafos normais, com pontos parágrafos, vírgulas, travessão(105), interrogação,,(118, 125), dois pontos (p.127), no mais perfeito modelo escolar. Só um exemplo:
Mas nem todas as obras seguem o mesmo caminho. Em “O Ano da morte de Ricardo Reis”, por exemplo, é preponderante o uso individual e livre da pontuação. (cf. O ano da morte de Ricardo Reis, 6@ edição, p.. 248):
“O meu pai acha que devo ir a Fátima, diz que se eu tiver fé pode dar-se um milagre, que tem havido outros, Quando se acredita em milagres, já não há nada a esperar da esperança, O que eu acho é que os amores dele estão a chegar ao fim, muito duraram,

Diga-me, Marcenda em que é que acredita, Neste momento, Sim, Neste momento só acredito no beijo que me deu, Podemos dar outro, Não , Porquê, Porque não tenho a certeza de que iria sentir o mesmo, e agora vou, partimos amanhã de manhã. Ricardo Reis acompanhou-a[...]248.
Este é o tipo de texto que nos dá uma experiência textual capaz de explicar o heterodoxo comportamento de Saramago em relação à pontuação, na maior parte de seus livros. Eis os pontos principais deste “desvio saramaguiano”da pontuação clássica.
O primeiro desses desvios consiste no uso da vírgula, levando-a a valer uma mutiplicidade de sinais: ponto, dois pontos, interrogação.
Vejamos na prática como ficaria o texto, transposto para pontuação tradicional:

“O meu pai diz que eu devo ir a Fátima. Diz que se eu tiver fé, pode dar-se um milagre. Que tem havido outros. Que quando se acredita em milagres, já não há nada a esperar da esperança. O que eu acho é que os amores dele estão a chegar ao fim. Muito duraram.Diga-me, Marcenda:
-Em que é que acredita?
-Neste momento?
-Sim.
-Neste momento só acredito no beijo que me deu.
-Podemos dar outro?
-Não
-Por que não tenho a certeza de que iria sentir o mesmo. E agora vou. Partimos amanhã de manhã. E Ricardo Reis acompanhou-a[...] 248
-Porque não teria .

Em “Todos os nomes”(1997) há uma variação de postura. Encontramos um texto com parágrafos clássicos, com estruturação pontuada, como na abertura, onde a informação e narração simples, no primeiro capítulo. Mas encontramos outros, como no segundo capítulo onde já fala mais alto a liberdade e a especificidade de Saramago. Aí vem a vírgula com valor de ponto, de dois pontos, interrogação, de vírgula, de travessão(153) . Porém, tudo misturado com períodos normais de pontuação clássica.
No romance “A Caverna”(2000) é mista também a utilização da pontuação literária feita por Saramago. Há parágrafos inteiros dentro do uso tradicional da frase, com vírgulas, pontos e vírgulas e ponto final. E há o uso específico do gosto do escritor, com o uso da vírgula em sentidos plurais: ponto, dois pontos(247,248).
O “Conto da Ilha desconhecida” abre com a pontuação específica de Saramago:
“Um homem foi bater à porta do rei e disse-ljhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas mas aquela era a das petições.[...] [...]mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar. Entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia [...6].

V

AVALIAÇÃO LITERÁRIA E GRAMATICAL


É pessoal e heterodoxa, a olho nu, a pontuação praticada por José Saramago. Sob o ponto de vista normativo, sendo ele um escritor de língua portuguesa, as normas escolares lhe cobrariam o bom exemplo em nome da educação escolar comunitária assim como também em nome da formação da maioria de seus leitores. Gramaticalmente e à luz do formulário ortográfico, do qual consta um parágrafo sobre sinais de pontuação gráfica dos quais constam as aspas, o parênteses, o travessão e o ponto final, pelo menos, torna-se inexplicável o moelo de pontuação nos livros de José Saramago, de um ponto de vista de norma da língua portuguesa, seja ela lusitana, seja brasileira, seja africana. O prêmio Nobel português de 98 escreve em português, sua língua materna, adota a língua portuguesa em seus escritos, escreve para leitores imediatos de língua portuguesa, segue a gramática comum, utiliza as palavras do dicionário comum, utiliza a sintaxe comum como arma de comunicação com seus leitores assim como a morfologia comum da língua portuguesa. Apesar disso, vê-se que não quer saber da pontuação padrão ensinada nas escolas dos vários graus, aprendida por todos os alfabetizados em Língua Portuguesa, adotada em Língua Portuguesa pelo Formulário ortográfico, aprendido por todos os professores de Língua Portuguesa dos vários países da CPLP.
Pelo lado literário, não haveria crítica específica a fazer ao escritor, em nome da liberdade literária. É claro que Saramago pode sentir-se o criador e senhor de suas letras. Mas sempre se perguntará se não é o leitor o objeto imediato de sua elocução, o destinatário de seus escritos. Ora, se é o leitor o destinatário de seus romances e o decifrador de seus enigmas, por que é que o autor não se atém ao código formal em que seus leitores foram formados? Por todas as razões, assim deveria ser. Até pelas razões possíveis de que é o desenho oralizante que o autor está perseguindo e desenvolvendo e que esta linha em nada é modificada. Saramago pode dizer também que sua pontuação respeita os inflexos dos sentidos da sintaxe e que o leitor que o acompanha não tem segredos para os decifrar. Há entretanto leitores que objetam que o escritor não deve criar calvários nem retardamentos na leitura para os leitores nem deve provocar retomadas de sentido de que o leitor precisa quando esbarra em períodos longuíssimos, fora de sua linha visual e de seu sentido imediato para recompor sua leitura perturbada ou duvidosa pelo inusitado sistema de pontuação empregado pelo autor. Pensam alguns que no mínimo, esta inovação não facilita, nem inova nada que possa significar um valor literário, seja em relação à composição, seja em relação ao emissor, seja em relação ao receptor. Sendo assim, é no mínimo estranho, uma intromissão que não abre caminhos, que não dá vantagens, que não facilita os esquemas mentais da escola onde as crianças e os jovens aprendem a gostar de sua língua materna e do treino revelador da escrita.

BIBLIOGRAFIA

LARBAUD, Valéry. “A pontuação literária”. In: Sob a invocação de S. Jerônimo. Ensaios sobre a arte e técnicas de tradução. Tradução Portuguesa de Joana Angélica de Ávila e Melo. São Paulo: Editora Mandarim, 2001, pp.225-228
REIS, Carlos. [“a célebre questão da pontuação”]. In: Diálogos com José Saramago.Lisboa: Caminho, 1998,pp.101-103
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