José Pereira era o que se podia chamar, acertadamente, a pontualidade
em pessoa Em esus trinta anos de funcionalismo público, metodicamente
vividos, era impossivel encontrar um senão que lhe toldasse a conduta.
Irrepreensível, não somente na repartição, também fora dela . A
matemática era a sua grande força. O intrincado jogo dos números lhe era tão
familiar que o premiou com o apelido de cérebro mecânico e, talvez,
fosse essa a razão que o tornara pontual , em todas as suas atitudes.
Ele e ela, a matemática, formavam um só , fundiam-se. Conseguira o
emprego por intermédio do padrinho, que vira no afilhado um futuro
brilhante na arte de calcular.. - José Pereira - dissera-lhe o padrinho -
este é um belo emprego. Nada melhor do que emprego público e
disto sou exemplo. Aposentado, sem preocupação financeiras, mas
ouça: atenção ao serviço, pontualidade, seriedade, obediência aos
superiores e esperteza. Muita esperteza. Eis os degraus que o
levarão à chefia. Assim falava ao afilhado, o senhor Antonio, velho
amigo dos pais de José Pereira. E de fato, com o correr dos anos, obediente
aos conselhos do padrinho, José foi promovido ao cargo de chefe
do Departamento de Contabilidade. Parecia a José Pereira ver,
naquela tarde alegre o padrinho ao seu lado. Um fumador inveterado de
charutos caros e roliços, o velho padrinho tinha um abastado bigode
que, enchia-o de um orgulho lusitano, roubando-lhe horas em alisá-lo.
Devotava verdadeiro afeto paternal ao afilhado, dedicando a sua
atenção, educação, desde a morte dos pais.. Morrera o velho padrinho,
há anos. José Pereira , acompanhou-lhe o enterro com sentimento
puro e profundo dos sinceros. Celibatário, não lhe restando parentes,
deixara para o afilhado a bela casa; com ele a biblioteca, os móveis
e os conselhos :- José , cuidado com as mulheres. O casamento nos
rouba a liberdade, as opiniões e impede-os de pensar-mos livremente.
E assim procedendo, José ficara solteiro, até Gisele surgir em sua vida.
Fora uma indicação de dona Luzia, sua colega de serviço. Boa moça
José, - dissera-lhe dona Luzia,- far.lhe-à as arrumações da casa. lá
irá duas ou três vezes por semanas. Conheço-a bem. É viúva, a coitada
mas de honestidade a toda prova. É do interior ; não tem filhos e
necessita trabalhar. Quer viver honestamente. Virtude rara em um
mulher, nestes tempos, principalmente viúva. E assim foi. Gisele
era de honestidade inegável como inigualáveis eram seus conhecimentos
de dona de casa. Dentro em pouco, suas mãos miraculosas transformaram
o lar do solteirão. Já havia certa intimidade entre os dois e as
perguntas e respostas ultrapassavam o ambito doméstico. Foi
quando se deu nova intervenção de dona Luzia : -Ora, por que
não se casam ? Ambos necessitam de amparo. Ela , de um homem
que a proteja e você de uma mulher que cuide do seu lar, da sua
saúde. - Casar-me ? ... Agora, com quarenta e cinco anos nas costas?...
E ela, com apenas vinte e cinco ?... A diferença é enorme ! Ridiculo !
- Ridiculo, nada, homem ! - argumentou dona Luzia. E o casamento
foi realizado. Rápido, simples, alguns convidados, colegas de
serviço. E o tempo foi passando, mostrando a José que o velho
padrinho muito se enganara no conceito que fazia das mulheres.
Vida mansa, chegara a engordar. Gisele era o tipo perfeito da
dona de casa ; da esposa dedicada. Ele mesmo não saberia dizer
qual dos dois predicados era o mais perfeito, e a diferença de
idade, que tanto o assustara, foi, aos poucos, desaparecendo, não se
mostrando mais um possivel e perigoso problema. Naquele dia
na repartição,José recebia os cumprimentos do novo funcionário.
Paulo Ricardo- apresentou-se o jovem, continuando , -venho de
uma tranferência , a meu pedido. Sou do interior. Bem apresentavel
roupa modesta, porém, impecavelmente limpa ; maneiras distintas,
enfim, um belo tipo de homem. E começaram trabalhar juntos,
aproximou o jovem de seu superior e, em breve, a amizade que os
ligava, era algo sólido. - Requeri transferência, senhor José, a fim
de estudar. Cidade grande oferece mais facilidade. Pretendo ser
médico. Um dia Paulo Ricardo foi à casa do senhor José, ficou
conhecendo dona Gisele e almoçou com o casal. Dona Giisele,
embora um tanto acanhada, fora solícita, toda atenciosa com o
convidado. Em breve, os convites para visitas não mais se faziam
necessários. Paulo Ricardo , passou a ser intimo do casal. Rra era
a noite em que não ia à casa do senhor José e lá permanecia
até tarde. Gisele, ele bem notara, como um vulcão, aparentemente
extinto que, subitamente, entra em erupção. E ao apertar-lhe a mão
seus olhares se cruzaram. Ele sorriu , sem jeito. As visitas que lele
fazia a casa de seu chefe tinha outro motivo, a jovem esposa,e
ela também sabia e, por sua vez, ansiava pela presença do rapaz.
Ambos sabiam, somente o senhor José não o sabia. Entregue a
uma vida comoda, pacifica, mal chegava do serviço, beijava a
esposa, tirava os sapatos, sentava-se em sua poltrona prediléta
e dormia um sono solto, sono calmo, sono que somente os justos
conseguem.. Em seguida chegou Paulo, Gisele olhou-o bem no
fundo dos olhos, compreenderam ambos, naquele instante, que não
mais lhes seria possivel evitar a realização do desejo que o
dominava... Ela não se conteve, abraço-se a ele, buscando-lhe a
boca, frenetiicamente, numa louca paixão, e transa aconteceu..
Era a transição de um sonho divinal para uma realidade pecaminosa.
E agora já não eram mais amigos e sim amantes. O tempo passou
e a noticia estorou. E José , no departamento não tinha mais
ambiente, não suportava a situação. Tinha certteza de ser alvo de
comentários , de zombaria. A filosofia não era o seu forte, mas nos
momentos em que o orgulho cedia lugar à razão, ali estava ela
procurando evitar a trgédia. procurava libertar-se do desejo de
vingança. " A culpa é sua ... Desprezara os conselhos do velho
padrinho..." pensava ele Era o desabafo da inocência contra o
adultério...José ,então pediu transferência para um lugar bem
longe, e chorava como se aquele choro fosse a revolta contra aquela
mancha que, como um estigma, marcara-a pela vida afora. Fim.
-Jose Angelo Cardoso.-Poeta, contista, artista plastico.
-Presidente-fundador da Academia Guairense de Letras.
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