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Contos-->CARTA DO BARBEIRO -- 24/11/2002 - 09:04 (LUIZ ALBERTO MACHADO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Valha-me, Nossa-Senhora-do-quengo-lascado! Sangue de Cristo tem poder! - Exclamava o entusiasta Ocrídio, católico fervoroso, preto bom, com aquela situação desagradável, recorrendo à santa de sua devoção.
Há anos em Alagoinhanduba, Ocrídio aparava barba, cabelo e bigode de seu dileto povinho, beijando o medalhão que lhe fazia volta no pescoço, com uma insígnia de Nossa Senhora Aparecida, sua salvação nas horas deprimentes. Atendia sempre gente simples daquelas bandas, afora alguns abastados que prestigiavam o seu labor, levando um pitaco, uma fofoca, um anedota ou coisa que valha.
O salão do barbeiro já era ponto de encontro para alguns desocupados que viviam de trocar pilhérias a torto e a direito. Ele expulsava-os sempre na hora de fechar, sempre depois das dezenove horas, visto que era hora da santa missa na matriz. Devotado de cumprir na risca sua obrigação.
Às seis da manhã lá tava ele no batente esperando qualquer cabeleira cristã necessitando de formosura.
- Veja se não é o Roberto Carlos!
Era o auto elogio dele pelo excelente trabalho realizado em Pé-de-ferro, Tranca-Rua, Zé Mouco, Luiz Cocó ou Pedim do Padre e os resenheiros dos acontecimentos e traquinagens, desbastando as cabeleiras, barbeando, aprumando os bigodes, duns sujeitos ogros como os tais assíduos que desejavam se aformosear com o trabalho dele.
Não escapavam, claro, de uns caminhos de ratos, pára-lama dianteiro de Volks contornando as orelhas, uma costeleta maior que a outra, um redemoinho complicado na beira da testa. Tinha nego que saía com o cabelo espichado mais parecendo arame em pé. Ou, então, enfesado pelo cabelo bombril mais enrolado que antes numa tufa de dar dó. Ninguém é perfeito. Mangavam dele o tempo todo, por possuir na carteira uma foto sua, da juventude, com uma arupema na cabeça, moda da época dos Jacksons, anos setenta, com uma costeleta emendada de um lado a outro, cavanhaque cheio, sobrancelhas rentes uma na outra, um Don Juan preto, soçobro das moçoilas sem dono. Isso com a perícia de trinta e tantos anos na profissão, ajeitando as mais insólitas cabeças do lugar.
Ninguém nunca reclamara da meia sola na cabeleira no dia em que ele tava doido para molhar o biscoito com a escolhida do seu harém. Sujeito calmo, pacato, bulia com todo mundo, mangava de todos.
Sua parcimônia de sangue bom só fora suspensa uma vez quando um galego oriundo dos pampas, todo cheio de prosa, parecência com artista de holywood, broadway, de cinema e tudo a cores, com mocinho e uma porrada de bandido, após o serviço de aparar barba, cabelo e bigode, olhou uma donzelinha que se encontrava no recinto e deu-lhe a maior cantada.
- E essa aí, quanto vai na bolinagem?
- Peraí, meu, essa aí é minha filha.
- Se isso aqui é zona do baixo meretrício, aqui é tudo puta!
- Quiéquiéisso isso, meu, ofendeu minha religião, vai ter cacete na gaia.
- Qué isso, meu, puta é para foder, não é crucifixo, não!
- Vai levar porrada até amanhã de manhã!
E o sangue do gaúcho desceu parecia que cumeeira abaixo, rolando pela calha, até melar o chão daquele meretrício. Foi um bafafá dos grandes, Ocridio absolvido pela honra de pai. Sujeito folgado aquele, soltar lorota logo com quem.
Quando não tinha o que fazer Ocrídio gostava muito de desenhar letras na folha de papel pautado que guardava sempre na gaveta do penteador. Um calhamaço que já nem tinha tamanho, difícil até de apalpar. Escrevia cartas a seres imaginários, inventados pela sua baboseira. Horas e horas ali imaginando cartas ao presidente da república, ao governador do estado, ao prefeito, requerendo uma aposentadoria justa num futuro próximo, ou saneamento básico na casa de sua quarta concubina, ou solicitando a deus uma salvação do inferno em que vivia para um paraíso tropical de preferência em companhia dumas boazudas galegonas para não finar na monotonia.
Muitas vezes era surpreendido por uma transeunte simpatizante com a requerência dalgum trocado. – Deixa eu chupar tua rôla, Ocride! – e ele, manhosamente, acenava para que ela se aligeirasse lá pros fundos, cuidadosamente cerrando as portas da barbearia, não antes averiguar de um lado a outro se alguém estava bisbilhotando e suspendia suas atividades momentaneamente.
Diligente, arriava a braguilha e expunha aquele membro preto nas ventas da requisitante. – Bora, bora! – exigia ele logo a felação, esfregando a pêia na cara dela que sob essa determinação chupava o negão até deixá-lo esporrar nos seus peitos.
Ao cabo de dez ou quinze minutos ele encerrava a safadeza, soltava uns peidos, metia a mão no bolso e tirava algumas cédulas como pagamento à felatriz, dando-lhe uma palmada no glúteo dela com uma risadinha maliciosa. – Venha amanhã de novo que eu te dou mais, tá? Num se esqueça! – e empurrava ela de porta a fora, dando um tempinho para reabrir o estabelecimento.
Alguns minutos depois chegava Bico-de-Bule inquirindo: - Tava fechado, nego? -, bisbilhoteiro safado àquela hora metendo focinho na intimidade dos outros. – Não, tava orando a Deus! -, todos acreditavam, um beato preto, cheio de munganga, rezando no meio do expediente comercial, pudera, balançava até os culhões do padre na hora da missa, ora.
Mesmo com toda devoção, Ocrídio só não gostava de alguns mandamentos que julgava deviam ser substituídos por outros como o não adulterarás e não cobiçarás a mulher do teu próximo, por, por exemplo, não fofocarás jamais nem te meterás com a vida do teu próximo, aí sim, tudo bem. Além desta exceção ao postulado bíblico, uma outra também andava de longe de ser respeitada por ele quanto alguns pecados capitais. – É pecado demais para ser cumprido os mandamentos todos! -, deslizando em alguns deles. – É, Deus é tão bom que nem vai reparar um deslisezinho desse fiel aqui mais fiel do mundo! – e adorava o Cântico dos Cânticos de Salomão, recitando-os invariavelmente aos incautos comparecentes, até que o Padre Quiba teve de chamar-lhe atenção para outros livros na Bíblia Sagrada.
Pois sim, o nego era perdido, sabia-se que às escondidas gostava mesmo era de um bombo alta hora da noite de sexta-feira, todo de branco e cheio de pacutia, um xangô arrepiado, remexendo esqueleto e se dizendo linha de azeite no meio da cerimônia.
- Ô, Ocride, compra uma máquina de lavar, eu num guento mais tá enxaguando e lavando tanta roupa, meu véio!
Era Neuma, a matriz esponsal dele, crente da igreja presbiteriana, exigindo uma lavanderia elétrica para dar vencimento na lavagem de pano dela. Ocride, um maloqueiro sabido, choramingava com aquela solicitação dela na frente de todo mundo, prometendo logo adquirí-la assim que a situação melhorasse. Enrolão era mesmo, a Neuma saía com a mesma cara de santa.
Lembrou-se do tempo em que ela era ciumentíssima e, para evitar as suas escapulidas, aprendera de coibir suas puladas de cerca, prendendo uma fralda nele, ao invés de cueca, com umas presilhas irremovíveis. Era uma humilhação. Quando ele ia investir na mulher alheia, que precisava de arrear as calças, era a maior risadagem. Graças à igreja presbiteriana, ela acabara com aquela maluquice, liberando ele para a mancebia descarada de hoje. Ele era chateado com Neuma porque ele, o inconfidente de sempre, possuía uma loja feridenta na perna dele, uma pereba de anos que a distinta esposa tratava com asco, não lavava meia nem cueca dele, ficava ali entulhada, por razões que um dos filhos me dissera ser por vingança da traquinagem dele com algumas alheias, daí sua pulverização sexual.
Daqui a pouco era Xandinha, - Ô meu pretinho, quando é que tu vai trocar aquela televisão preto-e-branco por uma colorida, hem ? – Ocridio coçava o pixaim e respondia: - logo logo, minha nega, espere que chega já, tenha fé em Deus, tenha fé em Deus, sangue de Cristo tem poder.
E lá se ía Xandinha, filial número um do adúltero preto, nega desengonçada, jeitosa, peituda, reboladeira que deixava o neguim doido para foder de manhã, de tarde e de noite. A nega era fogo na roupa, quando ele chegava em casa, ela alisava ele todo, botava ele na banheira, todo ancho. Não sabia que ela estava fiscalizando os colhões dele, se boiassem estava frito, era o maior quebra pau. – Nego safado, tu tá amocegando rapariga por aí, num tá? Juro minha nega, tô não. Prá sair dessa o bicho dava tanto salto solto, meio mundo de tapiação, argumento besta e proseado mole prá cima da encrenqueira, com o fito de amolecer a ruindade dela. Brincasse com ela não, era a gôta!
Mais um pouquinho chegava Dorinha, uma alvinha matuta que fora descabaçada aos quinze anos pelo enxerido e requeria dele dinheiro para comprar cominho e tempero pro almoço. Ele metia a mão no bolso e saculejava por dentro a pêia prá que ela visse que ele iria almoçar naquele dia com ela, não antes dar-lhe um beliscão nas nádegas. – Sai prá lá, nego safado, tô vendo que tu quer safadeza, né? – ele todo pabo, dava o dinheiro e mandava que fosse embora até mais tarde, quando ele iria se amufanhar nos cobertores dela.
Daí a pouco era Nega Tisiu, uma magricela, terceira filial sentimental do pombudo preto, gasguita e cheia de nove horas, exigente, reclamando pelo dinheiro da escola dos meninos, deixando-o nervoso, de abufelar-se todo, passando um cheque alusivo às tais mensalidades escolares dos bastardinhos dele.
Mal a chata dera as costas chegava a quarta, a Lucilena, professorinha rural do engenho Mameluco que parava na porta a dar chauzinhos para ele com um risinho tímido e atraente. Toda formosazinha, safadinha, do jeito que ele gostava, quente que só chaleira pegando fogo, assanhada toda por homem, butava uma gaia no nego de empená-lo dum jeito do homem já estar corcunda, insinuando levantar a saia, de tanto que gostava de dar espetáculo no meio da rua. Ocride se aperreava, dava uns trocados a ela, mandando-a embora rapidinho senão comia ela ali mesmo. Ela insistia, o negão arrastava ela prá dentro e, de porta aberta mesmo, o povo passando e vendo, ele intrometia a pica na boceta dela numa trepada agoniante e barulhenta. – Eita fungado da gota! – era um curioso que chamava a atenção daquilo. – Vá prá porra, seu enxerido, arrede daqui, não me atrapalhe! – enxotava Ocride qualquer intrometido, não deixando de se concentrar no coito.
O pior inferno era quando elas se abusavam da mancebia dele com as próprias, numa recaída de ciumeira, ôxe, era uma greve do nego fazer carnaval no meio da rua, reclamando até que elas suspendessem aquela ordem depois do atendimento de todas as reinvindicações delas. Pois é, quando elas fechavam as pernas, o bicho definhava do juizo ficar curto, todo endoidado.
– As mulheres tão tudo de boi, tô fudido! Urucubaca braba, meu! – era a coincidência mais desagradável, tudo de regra no mesmo período. Empertigado, ficava ele fulo da vida.
Foi com um movimento reinvindicatório desses que Neuma conseguiu que ele fosse ao estabelecimento comercial de seu Marquito Ladeira comprar uma lavadeira elétrica para ela. O comerciante prestativo apresentou todo tipo de promoções, crediários, valsas, formas de pagamento, tudo, mas ele constatou não possuir dinheiro suficiente para comprá-la naquela hora. Crédito ele possuía visto nunca inadimplir, sujeito correto, de uma idoneidade a toda prova; justo, probo, severo de palavra, não arredava um só milímetro da retidão. Prá se ver, mantinha uma conta corrente com cheque especial na instituição bancária oficial do país há mais de vinte anos, nunca extrapolando os limites seus, nem pagando juros de nada, resgatando qualquer duplicata um dia antes do vencimento, direito até dizer basta, honrando seus compromissos no peito e na raça, sustentando uma mulher e quatro amásias, nunca faltando nem deixando faltar nada para qualquer delas, tudo morando em casa própria, de propriedade dele, que ainda possuía mais umas cinco casas alugadas a inquilinos direitos, oito quartinhos na chã do Buraco Fundo, também alugados e dois prédios onde se instalavam dois estabelecimentos comerciais, tudo fruto de uma herança deixada pelo seu distinto pai, mais uma questão judicial trabalhista contra a Usina Mequetrefe, onde trabalhou por longos doze anos sem carteira assinada; tres anos como guarda freio da Great Western; cinco anos como enfermeiro, curando todo mundo à base de óleo de pau d’olho; e cortando cabelos, barbas e bigodes, administrando seus bens e rezando na missa todo santo dia, a exceção da sexta-feira, onde escapulia para ninguém saber onde.
Depois da missa diária saía de casa em casa, fiscalizando o que faltava, partindo para dormir na última a ser visitada. Era um sorteio todo dia, não passando nunca mais de cinco dias sem esquentar o colchão da matriz e das filiais.
Tudo corria na calha. Mas Ocrídio não desistiu de comprar o eletrodoméstico requisitado pela matriz, visto que ela ameaçava separar-se dele caso não findasse com a mancebia desastrada que ele mantinha às claras com as outras ditas vagabundas.
Por causa dessa quizília ele suspendeu as cartas que gostava sempre de escrever e meteu-se numas contas sem fim para adquirir o que Neuma exigia. Saiu juntando algumas economias feitas e seguiu para a loja do seu Marquim. Quando viu o juro cobrado pela financeira quase caiu de costas. Arregalou os olhos e mandou o comerciante para a puta que o pariu, saindo puto da vida com aquilo.
Meditou bastante, ficava torcendo para seu Juvêncio Quintão, ou seu Julio Mariano de Pindorama, ou o Nezito Guaxuma, ou Totonho de Jacaré das Virgens, ou sei lá quem mais, viessem fazer a barba, cabelo e bigode porque sempre sobrava uma gorjeta gorda para ele. Eram todos homens ricos, idolatrados por todos na cidade, duma bondade extraordinária e que facilitaria, sem sombra de dúvidas, a vida dele. Cadê que não davam nem as caras por ali? Aperreou-se com nova greve de Neuma, ameaçadora a ponto de quase perder o juízo, não podia perder nada do seu curral sexual, todas eram mantidas religiosamente em dia pelo obstinado poligâmico.
Perdendo a paciência, pegou mais alguns trocados e seguiu para a loja do seu Marquim, comprando numa valsa sem fim o tal eletrodoméstico. Jogou as contas pro ar e levou ele mesmo na boléia da camionete a bicha, novinha em folha, para a mulher. Arreganhou as portas, entrou de casa adentro arrastando o móvel, chegou na cozinha e mandou o tal do instalador efetuar as ligações.
Quando o profissional encerrou a cerimônia explicativa do modo de usar a coisa, ele botou umas moedas na mão do sujeito e mandou-lo embora, chamando a mulher prá ver a maravilha. Ela encheu os olhos d’água. Ele foi se chegando, ficou esfregando a pêia na bunda dela enquanto ela conferia o funcionamento do aparelho. Ele levantou-lhe a saia, arreou-lhe a caçola e empurrou a bimba no cu dela, debruçada sobre a máquina de lavar. – Tá me rasgando, nego! Ai! Ui! Tá doendo! -, reclamava Neuma. – Calma, porra, já vou gozar! Um!hum!hum! Impado danado, ela se contorcendo, ele empurrando a macaca, ela: ai, tá doendo, calma, ai, ui, foi, é, isso, ui, eita! Danou-se! Deu a gota! Arremedou!
Tô cum cabrunco no couro
Não tenho sangue no olho
Quero mais é ser feliz
Tanto molejo cadenciado
Tanto show rebolado
Do cristão pedir bis
Teve cú, peito e boceta
Pode vir até de moleta
Que empurro o meu perdiz!

Neuma ficara feliz e depois que o marido zarpou para o trabalho, chamou os meninos e mostrou a felicidade de vê-la funcionando. Botaram logo um nome na coisa linda: Tozilda. Já era um membro da família. E ficavam horas a fio admirando a engrenagem dela trabalhando sem interrupção. Ela que estava atrasada, lavou meio mundo de trouxa dos clientes, aproveitou lavou toda a roupa da casa e para não deixar o aparelho parado, lavou duas vezes tudo de novo. Passou pela manhã entrou pela tarde, atravessou a noite, enfiando na madrugada.
Lá pelas tantas ela desligou e foi dormir o sono puro dos inocentes felizes. Entrou dia, semana, meses, Tozilda lá inspecionada por todos, atração real da residência.
Um final de semana Ocrídio resolveu levar Neuma e os meninos para a praia de São José da Coroa Grande. Queria dar um pé de peru aos familiares, fazendo uma média para aliviar a sua barra no conceito dos familiares. E pronto: alugou uma Rural e botou todo mundo em cima quando causou o maior rebuliço da garotada por não deixarem Tozilda sozinha em casa. Pronto! Levaram a droga para a praia. Deram até banho de mar nela.
Quando retornaram, no outro dia botaram ela para funcionar e a danada nem deu sinal de vida. Não era a mesma desde aquele mergulho. Deu a porra! – Será que essa bicha tá de greve, também, só faltava essa! –, foi ter com seu Marquim que mandou um técnico inspecioná-la.
O consertador achou por bem encaminhá-la para assistência técnica na capital. Ocrídio ficou puto!
– Ora, porra! Aqui é tudo incompetente nesta cidade de merda! Tem que levar para a capital, é? É! Puta-que-a-pariu esta porra de máquina que só tem conserto na capital. Olhe, esses negócios modernos, sem botão não dá! E prá quê trinta e duas memórias se eu que vou comprar me esqueço de tudo, imagine ela com tanta idéia assim!
Depois de muito puxa e encolhe, levaram a desgraçada pro conserto na capital.
– Eu, que sou eu, Ocridio, devoto de Nossa Senhora Aparecida, rezador de dia e noite, num vou passear na capital para essa desgraçada ter uma folga dessa! Ora veja! Também, esse negócio de tecla não dá certo, é muito fresco e eu sou muito macho. Gosto mesmo é de botão que quando me arreto, faço ele dá meio mundo de volta do ponteiro rodar bem muito!
Quarenta e cinco dias depois, todo mundo triste dentro de casa, Tozilda chega como se fosse de novo novinha, funcionando que era uma beleza! Voltou a ser a alegria da casa.
- Esse negocim assim todo levezinho, num dura nada. Gosto da coisa pesada, com cardam, aí sim, a bicha dura de se esquecer do tempo. Veja só, a minha geladeira é que é boa, tem mais de vinte anos e o congelador é todinho de gelo, eu abro, quebro e já tá a pedra pronta. Esses negócios modernos, a gente nem vê o gelo no congelador.
Meio mês depois, começou Tozilda a ter um comportamento estranho. Deram por falta de algumas peças que foram requeridas pelos seus proprietários, até uma queixa fora prestada para uma investigação policial se ele e os familiares andavam desfilando indumentária nova, roubada dos clientes assíduos que enviavam suas roupas para lavagem na casa dele.
Dois detetives profissionais passou mais de mês investigando e constataram ser uma denúncia vazia, visto que nem Ocrídio, nem matriz muito menos filiais, nem seus filhos e enteados desfilavam qualquer roupa diferente da que eles sempre usavam.
Entretanto, descobriram que Tozilda estava andando com fome. Ocridio então reclamou ao seu Marquim o mau procedimento dela, recebendo alegação de que deveria devolvê-la para a assistência técnica, o que foi prontamente efetuado e mais sessenta e dois dias sem a atração da casa.
- Veja só, comprei a fi’a dos sete cancro da peste rodeira, numa valsa da gota qui tô individado até hoje, a um ladrão dum comerciante sem-vergonha, e agora só dá defeito, botou as manguinhas de fora de gente ruim, tendo eu, um cidadão ocupado, de pastorar a danada de noite a dia. Na assistência futucaram ela toda e num resolveram nada, tenho passado a maior vergonha.
Mais de dois meses depois voltou ela pior do que saíra, agora não só comia com uma gulodice sem fim, como dava pitaco, assistia novela, saía rebolando por dentro da casa.
Ocrídio mesmo, mais de dez vezes, já pastorara a máquina que se insurgia no quintal prá lá e prá cá, levando-a de volta ao seu local de costume. Tarde da noite ela ali assistindo televisão, passeando na praça, botando gosto ruim nas coisas, ensaiando uma greve, provocando a maior dor de cabeça.
Certa noite, pairou um dito profeta aclamado na praça em frente a sua residência, anunciando seus arroubos escatológicos de forma frenética. Eita! O mundo vai se acabar e Tozilda é o anticristo, sinal do final dos tempos.
O estranho, diziam, curava gente noutras terras, um Dulcamara que se dizia possuidor de uma panacéia universal capaz de rejuvenescer a todos, indicar-lhe a salvação como dignitário divino e com sua fanfarrice deitava o espírito-santo-de-orelha mediante aquele povinho crédulo. Recitava, o cheio de irascibilidades, dito douto nas ocultidões entre os céus e a terra, rifões, adágios, locuções, anexins, jargões, provérbios, parábolas, máximas, apotegmas, sentenças, exemplificando a vida farisaica de todos dali.
- “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobreviverão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus. Foge também deles. Timóteo 2, versículo 3"”- vociferava imperativamente o tal dermatóglifo em cima do banco da praça.
O intruso insistia na leitura da terceira mensagem de Nossa Senhora de Fátima, acusando ímpios e fariseus de não darem ouvidos à benevolência do criador, tornando-o malévolo e vingativo com os moucos da providência divina.
Ocrídio analisava o que aquele barbudo iracundo dissera, os trejeitos frenéticos que emitia ao reclamar no megafone as palavras tempestuosas e difíceis para o parco vocabulário do marmanjo.
No maior estardalhaço o tal haríolo vociferava sobre a vinda do mestre da morte e da sepultura nos próximos dias; relembrou as profecias de São Malaquias, as inscrições da pirâmide de Quéops, os manuscritos do historiador Masoudi, do século X; das transcrições do Livro dos Mortos; as predições do Monge de Pádua; o eclipse de 11 de agosto; a grande translação de outubro anunciando a vinda do Leviatã quando Gog destruirá tudo.
Mesmo, assim, do que entendia tudo coincidia. Realmente, todos estavam egoístas, tudo para si, ninguém mais socorria ninguém na hora difícil, no aperto, ninguém dava mais esmola aos pedintes, tiravam proveito de tudo, uma roubalheira, juiz metido com promotor, delegado e autoridades em maracutaias; gente assassinada a todo instante, todo mundo enfiado na cachaça, brigas, arruaças, arengas, vôte! É o apocalipse!
- “Os sete selos! Os sete flagelos! Úlceras malignas e perniciosas, a besta fera, a morte dos seres viventes, o sol queimando, os homens comendo a própria língua, terremotos, relâmpagos, guerras, trovões, vai descer o fogo dos céus e tudo vai consumir!”
Aquelas palavras remoíam na sua cachola. Absorto, nem percebia a chegada de clientes para atendimento, quando acordavam-no dum sonho de olho aberto, os dele arregalados. – É o fim do mundo, gente! -, Ocrídio estava hipnotizado com os últimos acontecimentos no Timor Leste, no Paquistão, na Bósnia, no Afeganistão, o assanhamento dos neo-nazistas, a carestia, as CPIs do narcotráfico, dos medicamentos, das corrupções, de tudo; o desemprego grassando, o povo perdido, polícia roubando, ladrão mandando em tudo, o governo falido, meio mundo de menino chorando pelas portas pedindo esmola, os ricos quebrando, lojas e mais lojas fechando as portas, o fiado comendo no centro, todo mundo sem dinheiro, o sol torrando a paciência, os rios secando, os bichos morrendo, gente nascendo todo dia explodindo o planeta de gente e mais gente, árvore nenhuma, puta-merda, é o fim do mundo mesmo!
Foi numa hora dessa que Ocride apossou-se da caneta e narrou com esmero todos esses fatos, nos mínimos detalhes, para o fabricante da máquina de lavar, mandando uma cópia para as autoridades todas que tivesse conhecimento.
No teor da missiva estava uma esculhambação velada ao seu Marquim, chamando a responsabilidade de todos em vender produtos sérios e perfeitos, por onde andaria o controle de qualidade naquela hora? Onde guardar a lucidez numa loucura dessas? clamando por Deus por tanta ignomínia, tanta embromação, tanta enrolação juntas, tudo sacrificando um crente em deus e nos seus poderes, numa hora dessas de fim de mundo, salvai a mim que sou santo!
Não deu por vencido, esgueirou-se até sua casa, arrancou Tozilda à força, saiu com ela pendurada nos seus braços, todo mundo acompanhando a loucura dele, chegou no parapeito da margem do rio seco e jogou-la dentro da última poça restante da antes caudalosa riqueza pluvial.
Depois disso trancou-se na casa de Neuma por dois dias e ficou matutando a situação.
As palavras do pastor naquela noite na praça martelava sua cabeça. Ele pensou, perscrutou, meditou, fundiu a cuca e planejou uma forma de se salvar.
A televisão anunciava de instante em instante o dia do fim do mundo se aproximando rápido, era notícia de repórteres do mundo todo anunciando o final dos tempos. Ele apavorou-se, foi até o banco e exigiu que o gerente dobrasse o cheque especial dele que era de mil reais, o que o gerente, pela honradez de sua conduta naquela instituição financeira, atendeu prontamente, não só dobrando, como estipulando um limite no cheque especial para dez mil reais.
Satisfeito, desceu no setor de cadastro, requereu um papagaio de dez mil reais com vencimento previsto para trinta dias, foi aprovado na hora, zarpou.
O abstêmio de sempre chegou num bar, todo mundo empolgou-se, pediu uma lapada de aguardente, tomou meia dúzia; uma cerveja para lavar, tomou quinze, ficou bêbado e recolheu-se em casa falando besteiras. Faltavam vinte dias para o fim do mundo.
No outro dia, foi até o banco, requisitou todos os talões de cheques que possuía, vinte; sacou tudo com apenas um e guardou os restantes, levou o saldo disponível, limite de cheque especial e o papagaio, foi até a agência de um concorrente, abriu outra conta com o dinheiro, solicitou cheque especial, foi atendido; requereu outro papagaio para mais trinta dias, aprovado, saiu, tomou uma lapada, ingeriu meia dúzia; lavou com uma cerveja e bebeu quinze, ficou bêbado e rumou para casa. Voou. Faltavam quinze dias para o fim do mundo.
No dia seguinte foi na loja do seu Marquim onde este, para se livrar da bronca exagerada dele, deu-lhe uma tuia de cartões de crédito, azogou-se, meteu tudo no bolso, foi até a agência onde abrira a conta, requisitou talão de cheques, pegou dez; sacou tudo de novo, o saldo, o limite do cheque especial e o crédito, botou tudo num saco, saiu arrastando, passou num caixa eletrônico e meteu um cartão de crédito, saiu mil reais, ele achou bom, beijou o caixa, ficou gamado à primeira vista pelo sistema. Empurrou outro cartão, sacou mais mil reais, saiu empurrando um a um os quinze cartões que ele havia ganho de seu Marquim, homem probo feito Ocrídio, gozava de um crédito ilimitado.
Achando pouco, meteu-se depois com uns trinta agiotas, num calote danado. Rapou fogo. Foi até outro bar, pediu uma lapada, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte. Ficou bêbado, passou um cheque pré-datado para trinta dias e foi-se. O tempo passa rápido. Faltavam apenas dez dias para o fim do mundo.
Na manhã do outro dia, namorou um tempão o caixa eletrônico, empurrou os cartões de crédito, sacou o limite do dia de cada um, jogou noutro saco, escondeu em casa junto com os outros sacos, foi até um supermercado, fez um estandarte de compras, pagou com cartão de crédito, saiu empurrando dez carrinhos pelo meio da rua, botou em casa; foi no bar, pediu uma lapada, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte e duas. Ficou bêbado e se recolheu em casa. Faltavam apenas cinco dias para o fim do mundo.
Ocorre que numa cidade interiorana, quando o sujeito inventa de se meter a extravagâncias, chama logo a atenção. Eis que uns espertalhões e interesseiros deram de azucrinar Ocrídio. Estava numa condição monopsonística. Livros, santinhos, indulgências, uma nave espacial, o raio que o parta, a bexiga lixa, o escambau, de tudo estavam aqueles intoleráveis tentando vender ao coitado. Arre! O nego aboticou os olhos e largou uns bregues. Escafederam.
Na ressaca seguinte, fez duzentos e tantos jogos na mega-sena; comprou vinte cartelas de poupa-ganha, trinta de telesena; fez trezentos jogos na quina, quatrocentos na supersena, meio mundo da loteria federal, jogou tudo que possuía nos bolsos no bicheiro da esquina, na banca da praça, apostou na loteria esportiva, todo tipo de jogo de azar, pagou tudo com cheques pré-datado para oito dias, pediu uma lapada de aguardente, tomou meia dúzia; lavou com uma cerveja, tomou vinte e cinco, tropeçou embriagado, foi para casa, dormiu o sono dos justos. Faltavam dois dias para o fim do mundo.
- Quero ganhar todo dinheiro do mundo e, depois, jogar fora pros pobres! Pelo menos no fim do mundo serão felizes!
Na doideira posterior, foi até o hipermercado da capital, parece que acometido pela síndrome malthusiana, fez uma feira para dois anos, pagou dolosamente com cheques que deveriam ser resgatados no mês seguinte, arrastou tudo num caminhão fretado para a casa da matriz, ainda saiu, arrastou as filiais pelo cabelo, com bruguelo e tudo, meteu dentro de casa, deu uns bregues nas mulheres, deixou tudo murcho, juntou tudo na sua arca de Noé, foi no bar, comprou várias grades de cervejas; caixas de uísques, aguardentes, vinhos, vodcas, gins, licores, conhaques, vermutes; pediu uma lapada, bebeu dez, arrotando sua escatologia; lavou com uma cerveja, tomou trinta, meio grogue, pagou tudo com cheques para mais adiante, juntou tudo no caminhão, caiu da caçamba, lascou a testa, rasgou o quengo, saiu se arrastando e se jogou na cama totalmente lavado. Faltava apenas um dia para o fim do mundo.
Quando se acordou já era quase nove horas da manhã, faltava apenas uma hora e quinze minutos para o mundo se findar. Até ali não ganhara nenhuma das apostas, os credores já desconfiavam de seu trambique ao que ele aos peidos revelou: - quando eu ganhar na loteria eu pago tudo, pago tudo mesmo! E remoía para si: “Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” Lembrou João 1, capítulo 3, versículo 17.
Acordou-se com o buá das crianças, olhou em volta, a matriz, as filiais, os dezesseis filhos, tudo junto olhando prá ele. Levantou-se até o banheiro e arrependeu-se de ter fabricado prole tão gigantesca. Pensou em pegar o revólver e fazer feito Tião Amocrácio que quando as tres mulheres dele pariram e ele viu o choro das crianças, aborreceu-se, pegou de um revólver calibre 38 e disparou no caralho para não engravidar mais ninguém. Pensou mais um pouco, é, o mundo vai se acabar mesmo, prá quê isso?
Já se aproximava das dez horas da manhã, pouco tempo para o espoucar dos tempos. Utilizava sempre nas suas horas de dificuldades a oração por auxílio divino de David, Salmos 25.
Levantou-se e do jeito que tava convocou as mulheres para o quarto de dormir, com os filhos, mandou todo mundo se deitar e começou a rezar, depois leu a bíblia, o Apocalipse, os Salmos, dez padre-nosso, onze creio-em-deus-pai, pegou um copo de água, colocou sobre uma mesa com uma toalha branca, quando ouviu o pipôco! É agora! Abaixem, vamos dormir para sempre. Uma barulheira grande! Tiros! Fogos! Vôte, a zoada é grande. Meia hora depois aquele silêncio. Psiu. Ninguém fala. O mundo tá se acabando bem baixinho da gente nem ouvir. Vamos morrer de barriga cheia. Ele abriu o compartimento onde estavam depositados todos os víveres previstos, alimentou um a um, comendo do bom e do melhor, bebericando em silêncio de tudo, gargalharam, mangaram, lambuzaram, macularam, treparam juntos, ele no meio das mulheres, os filhos tudo olhando, tudo nu, maior doideira. O mundo vai se acabar! Ficou grogue de bebaço e... cana da peste!
Tres dias depois bateram à sua porta. Assustado abriu, era um oficial de justiça com a polícia que vinham confiscar tudo.
- Ué, o mundo num se acabou não ou tem isso também no céu? Vou escrever uma carta prá Deus reclamando disso!

© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
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