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Contos-->FELIZ NATAL, DOUTOR -- 23/11/2002 - 22:17 (Darlana Ribeiro Godoi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
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Aquele era, sem dúvida, um dia muito especial. Seria a festa aguardada com mais ansiedade desde o dia da sua formatura. Tudo parecia exibir um toque de sonho e de magia, deixando transparecer, cada detalhe, um misto de paz e de alegria interior. A casa havia sido recém adquirida pelo Sistema Financeiro da Habitação, mas, mesmo assim, fazia-o sentir-se um autêntico marajá tendo em vista o tugúrio onde residia há apenas dois anos. Cada aposento resplandecia de luminosidade multicor e um luxuriante jardim exibia um frondoso pinheiro camuflado de árvore de natal. Detivera-se boa parte do tempo a contemplar a vegetação onde vicejavam exuberantes samambaia e outras espécies ornamentais. O chão alcatifado de relva úmida e verdejante era um convite para um repouso na mais completa comunhão com a natureza. Embalado ao pendular suave de uma rede macia, comparava para si mesmo experiências recentes de um passado de quase miséria que fora a sua vida de estudante, com aquele conforto. O contraste, longe de deprimi-lo, enchia-lhe o coração de orgulho e de prazer. "Venci" – pensava maravilhado. "Superei obstáculos que pouquíssimas pessoas na vida lograram superar". Bem que gostaria de se sentir ao lado daquelas pessoas com quem conviveu durante a fase negra de sua vida, racionalizando uma solidariedade mais postiça que real. O que desejava mesmo, lá no fundo do inconsciente, era mostrar para aquelas pessoas a sua "vitória". Isto é, a casa bonita, o carro do ano, os móveis luxuosos, o jardim, em suma aquela discrepância gritante entre a existência de proletário miserável e a nova condição de pequeno burguês. As noites de Natal haviam exercido sobre ele um irresistível fascínio desde a infância até a derrocada final de sua família, quando tivera de mudar para a cidade grande em busca de melhores horizontes. A partir de então, cada Natal era apenas uma fonte a mais de tormento, pois a alegria, o consumismo, e a falsa solidariedade das outras pessoas concorriam para incrementar a sua amargura. Mas, agora, as reminiscências das venturas infantis, pareciam nada diante daquele 24 de Dezembro. Aquela, portanto, não era a ocasião propícia para revivê-las. Pois, não obstante o passado doloroso da juventude, eram apenas lembranças e a felicidade plena se encontrava ali e agora, personificada naquele lar doce lar; naquele "pedacinho de céu" onde reinavam o amor e a esperança. Um risada alegre de criança completou aquele momento tão ditoso da sua vida. Anoitecera. Acordes maravilhosos dele já por demais conhecidos soavam nos alto-falantes do moderno sistema de som - "Natal Branco", "Noite Feliz", "Papai Noel", "Fantasia de Natal", "Bate O Sino", Natal das Crianças" – acentuaram-lhe no espírito aquele clima natalino como há muitos anos não experimentava. Decididamente não houvera, desde quando tomara consciência de si próprio até aquela data, uma noite de Natal mais feliz. Da cozinha exalava um aroma provocante de deliciosos acepipes que a esposa muito amada se esmerara carinhosamente em preparar. Vieram os amigos, os colegas e até mesmo pessoas apenas ligeiramente conhecidas do seu círculo de relações. "Feliz Natal"; "Feliz Natal para todos". Abriram-se garrafas de legítimo champanhe. Presentes eram trocados entre abraços e efusivas felicitações. "Noite Feliz / Noite Feliz / Pobrezinho / Nasceu em Belém", insistia o equipamento sonoro instalado no caramanchão do jardim, como se desejasse concretizar em melodias aquela alegria que há muito tempo já transbordava, incentivada também pelo champanhe. Faltavam apenas trinta minutos para a meia noite. A hora efêmera em que no mundo inteiro todos os homens pareciam irmãos. Súbito toca o telefone: "Doutor, lamento interromper sua festa". Era da maternidade. "O que há?" "Acaba de ser admitida uma paciente do senhor e há forte suspeita de rotura uterina". Uma breve pausa seguida de longo suspiro. "Está bem, Helena. Logo mais estarei aí". "Pessoal! Estão me chamando na maternidade. Penso que com alguma sorte dentro de uma ou, no máximo duas horas estarei de volta. Enquanto isto divirtam-se, mas esperem por mim". Os acordes da canção mais cantada no mundo inteiro não cessavam de ressoar em seus ouvidos enquanto examinava a cliente: "Noite Feliz / O Senhor / Deus de amor / Pobrezinho nasceu em Belém". Em Belém não, este nasceu dentro da barriga da mãe mesmo. Rotura uterina. Feto morto e boiando na cavidade abdominal. Hemorragia interna. Pressão caindo. Paciente na maca; doutor puxando e correndo. Sozinho. "Traz sangue, rápido e injeta como bombeiro que está apagando um incêndio". O padre começou a Missa do Galo e o doutor começou a "tourada"; aliás, menos tourada do que uma correria desesperada, porque enquanto esta era pela vida, aquela não passava de uma carnificina. Operador sozinho. Naquela hora, naquela noite, especialmente naquela data, seria mais fácil encontrar homem grávido do que parteiro para ver e para crer. Imagine-se para trabalhar. Havia apenas ele, o anestesista e uma enfermeira. Abriu a barriga da mulher em apenas cinco minutos. Um mar de sangue dentro do ventre o impedia de distinguir qualquer coisa além do feto flutuando livre na cavidade abdominal. Quatro horas de operação. Reimplante de ureter (aquele canalzinho que leva urina do rim para a bexiga). Consertar aquilo dá quase o mesmo trabalho do que fazer um transplante de rim. Paciente em choque; pressão zero durante a maior parte do tempo da operação. O doutor deixou a cliente – sabendo que ela não resistiria por muitas horas – com o colega que o rendeu no plantão, às quatro e meia da manhã e foi para casa.


Raymundo Silveira
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