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Ensaios-->44. 23.o Relato — O JAPONÊS INSENSÍVEL -- 24/01/2004 - 06:45 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Eu ia reclamar muito da demora, mas o irmãozinho me fez calar a boca. Diz-me que está fazendo as honras da casa e que eu me sinta hóspede especial.

Agradeço a gentileza e retribuiria, se tivesse de meu algum lugar para oferecer a mesma tranqüila estadia que estou recebendo.

Por muito tempo, vaguei na escuridão do espaço, sem ver a luz do Sol uma única vez. Aliás, minto. Houve um dia em que cheguei bem próximo de abertura de passagem para o mundo exterior, mas fui enxotado de volta por alguns guardiães, que não me permitiram aproximar-me.

O interessante que notei, na ocasião, é que eram seres cegos e que só percebiam a presença de alguém pelo odor característico que exalava. De fato, quando passei por determinado túnel bem estreito, esfregando-me contra as paredes, senti que ia espremendo não sei que resinas ou pequenos animais que recendiam a enxofre ou a algo parecido. Quando cheguei à clareira próxima, não me foi possível desfazer-me daquele odor horrível. Ao aproximar-me da abertura, logo fui atacado pelos “soldados” ali postados e fui obrigado a retornar pelo mesmo caminho de onde vim, espremendo-me contra outros que se aproximavam e que iam lambuzando-se por sua vez.

Penso que meu relato não tenha muito que ver com o que vim fazer aqui. Perguntam-me por que não estou agora com o mesmo odor. É certo que vim por outro caminho, conhecido, acho eu, só pelos amigos que me apanharam no fundo da caverna. Houve certo trecho em que me senti agarrado e parecia estar volateando ou voando, de sorte que o caminho aéreo possibilitou livrar-me dos guardiães da entrada. Aliás, estava tão absorto com o que ocorria comigo que não serei eu a pessoa mais apta a descrever o que se passou. Se for só para registro, está bem.

Agora que me vêem bem calmo, pedem-me para reproduzir a minha história, o porquê estava preso e o que fiz de mau na derradeira encarnação.

Onde me encontrava, corriam histórias a respeito destes momentos, só que em sentido bem diferente. Diziam que haveria um dia em que nós seríamos trazidos à presença de grande diabo chifrudo, que nos obrigaria a falar, através de seu tridente e de seu poderio maléfico. Acho que nos diziam isso para infundir-nos ainda mais medo, pois tudo o que vejo aqui, além de seres muito cordatos, são instrumentos que não atemorizam ninguém e que estão ligados a várias pessoas, inclusive ao escrevente e a mim mesmo, e que são habilmente manejados, de forma que tudo decorre de modo absolutamente pacífico e indolor. Ao contrário, sinto-me até muitíssimo bem, como fazia tempo não me sentia.

Digo tudo isso, acreditem, não com o intuito de delongar a história, mas para torná-la bem real e verossímil, pois, caso contrário, poderia parecer que mentia.

Fui arrastado para os infernos mais profundos — penso que todos dizem isso, porque o lugar todo é de imensos sofrimentos —, sem saber exatamente o que se passava comigo. Foi só quando estava há muito tempo rondando pela escuridão que fui tomando consciência das causas que me tornaram tão frágil diante das outras criaturas. E tudo se prende à última passagem pelo orbe.

Lá em cima... — dizem-me que posso omitir a referência a lugares. Pois bem, quando tinha vida palpável e febricitante (não sei me exprimir direito — peço ajuda ao escrevente), estive sempre na dependência das outras pessoas. Mesmo para as coisas mais importantes da vida, sempre houve quem tivesse decidido por mim. Eu não sabia avaliar direito o que deveria fazer e até o casamento foi patrocinado pela família. É verdade que era costume antigo dos povos de onde provim, mas eu aceitava de bom humor, pois achava que estava tudo muito bom.

Isso era o pior que podia acontecer comigo, porque, quando encontrava pessoas boas, eu fazia tudo direitinho e dava tudo certo. Mas, à medida que meus companheiros foram afastando-se, em razão das circunstâncias da vida, fui ficando cada vez mais nas mãos de pessoas incompetentes, ávidas por prazeres fáceis e por lucros exorbitantes. Assim, se me convidavam para beber, bebia; se era para fumar, fumava. E tudo o mais. Vocês podem imaginar em quantas enrascadas me meti. Tinha dinheiro e fui comprar ações. Perdi tudo. Os meus amigos também.

Aí me convidaram para suas festas, onde combinavam as coisas ruins que iam fazer. Um dia fui com eles, pois precisavam de alguém para avisar se a polícia chegasse. Deu tudo certo e eu pude ficar com parte do furto. Isso me fez desacostumar do trabalho. Tinha vida boa e não me importava com mais nada.

Abandonei a família e fui com os amigos para todo lado. Nunca achei que estivesse errado, pois tinha do bom e do melhor para comer, vestir, etc.

Sempre que quero fazer menção às mulheres, o escrevente corta. Será que tem alguma coisa contra?... Se é assim, peço desculpas. Vou fazer o que me pedem.

Vocês já devem ter percebido que não fui flor que se cheire. Acho até que os guardiães me perceberiam mesmo se não me esfregasse nas paredes.

Durante o tempo que fiquei na escuridão, pude relembrar os fatos mais importantes que me condenaram a ficar lá embaixo. Eu gostaria de não contar, se puder evitar. Em resumo, matei, estuprei, violentei e assumi a culpa até de crimes que não pratiquei. Esses não me doeram na consciência mas serviram para mostrar como fui tolo em aceitar as companhias dos malfeitores.

Durante os primeiros tempos na escuridão, acompanhei os outros. Alguns eu conhecia; outros, não. A maioria tinha muito respeito por mim porque eu era muito forte e violento. Pelas boas, eles me levavam para onde quisessem, mas, quando achavam de me maltratar, aí a coisa ardia.

Essa vida de cão danado eu levei por tempo desconhecido. Para vocês terem uma idéia, parti para cá num grande incêndio de um edifício em São Paulo. Acho que se chamava Andrauss. Naquele dia, estava lá acompanhando uma senhorita que eu desejava muito conquistar. Naquela época, tinha vinte e seis anos.

Eu me lembro muito bem que, quando o fogo começou, todo mundo corria para todo lado. Logo procurei me esconder do fogo perto de uma janela e ali vi coisas muito feias. Como era apegado à vida, corri para as escadas, mas encontrei tudo impossível de passar. Se vocês pensam que naquela hora eu queria ajudar os outros, estão muito enganados. Fiquei louco ali dentro e empurrei muita gente para a fogueira.

Quando os bombeiros chegaram, fui abraçá-los, pois achava que estava vivo. Pura ilusão! Estava mortinho. Aí vi muita coisa estranha. Muita gente estava chorando e agradecendo a Deus o benefício da morte. Eu não. Eu estava desesperado. Depois de alguns dias sofrendo com as queimaduras horríveis, comecei a ficar cego e a escuridão envolveu meus olhos. Senti que me carregavam e pensei que fossem enfermeiros. Fiquei muito assustado quando perguntei se eu ia indo para o hospital e começaram a rir muito de mim, dizendo que eu ia ver o que era bom.

Foi assim que me vi no fundo daquele poço, totalmente transtornado, agoniado de dores e sem saber nada do que estava ocorrendo. Foi preciso passar muito tempo, para ter certa noção do que estava acontecendo comigo. Quando recuperei a visão, o desespero aumentou ainda mais, porque percebi que onde estava não era nada bom. Estava recuperado da vista mas não via coisa alguma naquele negrume danado. Eu sei que não estava mais cego pois, às vezes, passavam certas luzinhas que eu seguia a distância, mas que logo desapareciam.

Acho que minha história não deve ser estranha, pois a multidão que está lá embaixo é muito grande. O que pode haver de notável é o fato de que um dia fui reconhecido por um verdadeiro amigo, que me prometeu trazer para cima. De fato, essa amizade me tem valido de muito, pois foi através desse antigo companheiro dos tempos bons que pude saber que existem forças espirituais por Deus encarregadas de resgatar certas pessoas do fundo do abismo.

Na minha vida, ouvi falar em Deus, mas nunca me dei bem com qualquer religião. Meus pais tinham costumes orientais e eu achei que era melhor ser cristão. Mas foi só por conveniência, pois desse jeito arrumava mais amigos. Não fui católico, não. Entrei para uma seita protestante. Mas fiquei pouco tempo lá, porque não achava que a Bíblia estivesse certa. Se a Bíblia fosse certa, então Deus abandonou todos os povos que não fossem judeus. Quando percebi isso, fui embora. Mas também não quis saber de nenhuma outra religião, pois estava com aqueles amigos que me desviaram.

Não acho que eu seja muito mau. É verdade que cometi inúmeras infrações e que merecia ser castigado. Se vivesse no Japão, era para praticar o haraquiri, porque desonrei toda a família. Mas no Brasil, a história era outra.

Mas eu não sou a pessoa mais indicada para fazer comentários, pois a minha cultura é muito pequenininha. O que sei aprendi com meus pais agricultores ignorantes, que só queriam que eu respeitasse as pessoas. Respeitei tanto que passei os maiores horrores.

Será que terei nova oportunidade?



Comentário

Deixamos que o irmãozinho falasse bem à vontade. Ao mesmo tempo, íamos demonstrando-lhe os próprios atos em quadros em que suas lembranças iam sendo configuradas. Toda vez que se lembrava de ter sido levado ao crime, ficava perplexo por ter agido sem qualquer raciocínio. Foi por isso que, ao perceber que iria ver as atrocidades praticadas, desejou passar célere pelo relato. Não nos importamos, pois o nosso objetivo não é o de incrementar os sofrimentos.

Durante a descrição do incêndio que o vitimou, contudo, fez questão de recordar à minúcia, pois parecia-lhe que aí estaria a chave para a compreensão de si mesmo. Verdadeiramente, naquele instante, percebeu seu arsenal de culpa, embora não se tenha muito abalado, uma vez que estava profusamente dopado pelos nossos sedativos.

Os quadros do Umbral não lhe feriam a susceptibilidade, pois configuravam tão-só as penas, os “castigos” por que passou, e isso lhe proporcionava certo alívio, por saber que algo havia resgatado dos crimes que praticara.

Estando consciente, lúcido e perfeitamente apto para o entendimento da verdade, irá ser encaminhado para casa de repouso e de estudos práticos de moralidade evangélica, de sorte a refazer os princípios do bom relacionamento entre as pessoas. Aliás, essa foi a primeira lição que tivemos em mente administrar-lhe, revelando-lhe a possibilidade de íntima, séria e leal convivência, através da reunião familiar do amigo médium, como se relata na mensagem anterior.

Foi essa visão que trouxe à mente do sofredor seus retratos de família, de sorte a lhe ferir as cordas sentimentais da personalidade, que estavam extraordinariamente emperradas e rouquenhas. Se o leitor pôde reparar, no longo relato do amigo, não há momento algum em que pareça ter-se sensibilizado, seja por que razão for, embora tivesse citado inúmeros fatos que levariam qualquer pessoa normal às lágrimas. Se não fosse esse pequeno estremecimento diante da noção de família que obtivera na infância, certamente iria escapar-nos para regressar ao Umbral.

Se a informação for de algum valor para o leitor interessado em justificativas psicológicas dos atos da vida, devemos dizer que, pouco antes de sucumbir no incêndio, tentou praticar o haraquiri naquele inferno de chamas, por certo porque alguma dor de consciência devia ter. No entanto, faleceu-lhe a coragem, refugiando-se na loucura, naquele momento inexorável. Preferiu sair da vida insano, como se isso significasse o refúgio para a mente culpada. O fogo como que lhe cristalizou essa imagem na mente, de sorte que até agora tem cometimentos de loucura como os que descreveu quando se arremetia contra os agressores. Tais reações estão abrandadas, mas ocorrerão ainda por certo tempo, para o que estão os socorristas prevenidos.

Também a título de curiosidade, devemos dizer que a instituição para onde está sendo conduzido tem departamento especializado no tratamento de nisseis e sanseis, dirigido por mentores de origem nipônica.

Quanto à recepção do sofredor, devemos levar ao medianeiro palavra de elogio pelo desempenho sereno que imprimiu à escrita, facultando ao espírito a oportunidade de explanar com desenvoltura, sem o ônus de sua intrincada sintaxe à japonesa. Esperamos, tão-só, que leitores que conheçam a mentalidade desses irmãos saibam reconhecer em seu relato a presença da cultura e do “modus vivendi” oriental.

Queremos esclarecer ao médium que não estamos interessados em estudos psicológicos ou de qualquer outra natureza relativamente aos imigrantes que vieram trabalhar e viver no Brasil. Se ontem trouxemos um portuguesinho e hoje um nissei, foi mera coincidência. Se amanhã trouxermos algum filho da terra, continuará havendo coincidência, pois todos são sofredores e igualmente filhos de Deus, irmãozinhos a quem respeitamos e procuramos amar, segundo a norma evangélica determinada pelo Cristo.

Se o bom amigo leitor quiser ajudar-nos em nosso trabalho, que realize a sua prece mais fervorosa em prol do socorrismo ativo, que, desse modo, irá participar do grupo, na significativa posição de irmão-provedor, pois as energias que se desprenderão das vigorosas vibrações serão carreadas para o auxílio aos necessitados e servirão para alívio de mais dores.

Fique com Deus, irmãozinho, e realize o seu sonho de perfeição, atendendo às recomendações de Jesus, que, como estrangeiro vindo dos círculos de luz, percorreu as terras do Oriente, na esperança e na certeza de conduzir-nos à salvação de nossas almas.

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