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Ensaios-->42. 22.o Relato — DOUTRINAÇÃO “AO VIVO” -- 22/01/2004 - 06:47 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Estava ficando impaciente com a demora de atendimento. Já vim por aqui várias vezes e não fui atendido devidamente, sempre com aquele '— Hoje não dá; amanhã talvez tenhamos melhor sorte...', e assim por diante.

Gostaria de deixar claro o meu desagrado e a minha imensa vontade de ir-me embora. Como me vejo premido pelas circunstâncias, já que o povo aqui é bem mais forte do que eu, vou submeter-me, mesmo porque já lavrei o meu mais solene e veemente protesto.

Querem saber quem sou, de onde vim e para onde vou. Pois bem, o meu nome é Joaquim; João Joaquim de Campos Neves, se quiserem nome fictício, mas que denuncia minha lusitana origem. Atravessei os mares bem pequeno e vim com meus pais para instalar-me no Brasil. Eles vinham, o que se convencionou chamar à época, “fazer a América”. Aqui cresci, vivi, tornei-me homem, amadureci, envelheci e morri. Jamais retornei a Portugal, embora tenha sido esse desejo acalentado por toda a vida.

Assopram-me que todo português tem o messiânico desejo de volver à terrinha, fruto do sebastianismo redivivo em cada coração. Esse pensamento me perseguiu a vida inteira e jamais pude realizá-lo. Após o desencarne, sim, pude atravessar o oceano e lá me deparei com antigos familiares, gente feliz de Trás-os-Montes, que ainda se dedicam às plantações e aos carneiros. Mas não fiquei feliz com os gajos e raparigas que encontrei, pois eram bem diferentes daquelas imagens que permaneceram na penumbra de minha lembrança.

Chega de poesia e de sentimento. O que mais desejo é chegar ao fim da narrativa. Se estranharem o lusitano linguajar, queiram perdoar-me, pois não pude desgarrar-me de certos hábitos lingüísticos que cá trouxe comigo. Este irmão que está a escrever conhece bem o vocabulário dele, não o meu, por isso, nem tudo há de ser perfeito; entretanto, basta colocar o sotaque conveniente na leitura, que vai parecer melhor que sou eu mesmo que estou a ditar as frases.

Dizem-me que, para quem está com pressa, até que estou indo bem devagar. É verdade. Mas este é o modo lusitano de fazer as coisas. Se não acreditam, vão até lá para ver.

Querem que eu diga por que estou há tanto tempo no interior do Umbral? Pois sabem que não sei?! Desconfio que tenha algo a ver com algumas mortes que patrocinei. Ora, pois, se eu era comerciante e se meu estabelecimento não parava de ser assaltado, tinha de me defender! Aluguei os préstimos de uns justiceiros e pedi para defenderem as minhas propriedades. Se os gajos eliminaram os bandidos, eu lá com isso...

Querem saber os preços que eu praticava. Pois eram bem baixos, só que não perdoava caderneta. Quando a pessoa demorava para pagar, eu acrescentava os juros e cobrava tudo pelo preço do dia. Ora, pois, era justo e era o que todo conterrâneo fazia. Fiquei rico, sim senhor, mas minha vida nunca foi de gente rica. Minha mulher, a boa Rosália, — que Deus a tenha! —, vivia com colares e pulseiras d ouro e meus filhos vestiam linho importado, mas tudo isso é história muito antiga.

As mulatas? Pois eu me babava por elas. Uma até me deu uma filha muito linda, que eu ia visitar toda hora que podia. Minha mulher ficou sabendo do caso e não me perdoou. Esse foi um dos desatinos de minha vida. Dei-lhe com os tamancos na cabeça até fender-lhe o crânio. Ora, pois...

Você acham que estou imaginando ou fantasiando? Pois vão ao cemitério e vejam a data do falecimento. Eu tive muito arrependimento, mas foi um crime de paixão. Eu nunca fui viver com a mãe de minha mulatinha, mas mandava muitos presentes e dinheiro para elas. Quando minha filha virou mulher, sei que ela fez mundo e caiu na vida, mas eu bem que queria impedir. Meus filhos legítimos é que não me deixaram fazer nada.

Um dia me aposentei e fui internado em hospital de loucos, o nosocômio da Cantareira. Se me perguntarem se eu tinha endoidado, posso, em sã consciência, dizer que não sei. Depois da morte de minha mulher, passei a ter alucinações e sentia forte dor na coluna. Quase não podia me mexer, tanto que doía. Eu acho que era encosto, mas nunca pensei nisso naquela época. O padre que me visitava dizia que era natural, que eu tinha perdido a saúde por ter trabalhado muito e por ter comido muito mal: era só pão e cebola no começo; paio e lingüiça portuguesa, só depois de muito mourejar como negro no eito.

Querem saber por que não fui preso. É simples: disfarcei com um tombo das escadas. Carreguei o corpo de minha mulher para o alto e joguei lá de cima. Foi fácil. Nem meus filhos desconfiaram, pois a gente morava num sobrado e minha velha sofria de ataques epiléticos.

O escrevente está desconfiando que estou mentindo. Pois não estou; basta perguntar pros meus filhos, que estão ainda por aí. São já bem velhinhos e souberam gozar a vida muito bem. Aproveitaram do meu dinheiro e expandiram os negócios. Esses sim são prósperos e sabem criar meios para acumular sempre mais. Outro dia, fui ver os netinhos, e os encontrei homens feitos, todos com família, alguns bem abastados. Tudo que plantei, hoje estão colhendo. É verdade que recebi também dos meus pais, mas tudo eu multipliquei por cem e eles estão fazendo o mesmo. Graças a Deus!

Querem saber se fiz o bem. Só em espórtulas que dei dava para levantar pequena igrejinha. Os padres nunca reclamaram.

Se eu voltasse para lá, não faria tudo de novo. Ia seguir o exemplo dos filhos, que têm de tudo, sem necessidade de praticar nenhum mal contra ninguém, pois não vendem mais fiado; com eles, tudo tem de ser a dinheiro.

Se querem que me mostre arrependido, podem fazer morrer a esperança. O que eu quero é poder voltar à carne, como bisneto de mim mesmo. Será que vou conseguir? A que preço? Tenho de concordar com certas condições? E se eu não cumprir? Volto para o escuro? Que condições são essas? Resgatar as dívidas morais e receber na família as pessoas que desgracei. Não sei se devo aceitar. Tenho ainda de ficar pobre?! Mas como?! E todo dinheiro que a família possui? Será dividido e nem todos serão aquinhoados. Penso que assim não há de ser bom para mim. E se cumprir o contrato, será que poderei depois retornar de novo na abastança?

Quem eu acho que seja mais rico: Jesus ou Pôncio Pilatos? Jesus, é claro. Porque ele é o filho de Deus. Se prefiro a riqueza de Jesus? Mas ele vai dividir comigo? Só se eu fizer sacrifícios. E se aceitar essa missão (dizem-me que é expiação, provação, dor, sofrimento), posso deixar para escolher a outra encarnação depois?

O pessoal aqui é muito rígido. Estão a me dizer que as condições são deles e não minhas. Que acha o escrivão que posso fazer?

O amigo acha que já conheci o valor do sacrifício para conseguir as coisas boas na terra e que devo tentar fazer o mesmo para atingir os valores do céu. Achei que ele tem razão. Ele me disse também que algo de bom eu tenho no coração e que me deixei envolver pela paixão. Que eu use essa paixão para restabelecer os vínculos que rompi. Disse-me ainda que deverei preparar-me para o reingresso, estudando o evangelho e ajudando os familiares durante algum tempo. Tudo isso é muito melhor do que ficar sofrendo na escuridão. Eu acho que vou aceitar sem discussão, mas, olhem lá, vejam que tudo venha a dar certo! Dizem-me que, se eu fizer a minha parte, eles cumprirão a deles.

Então, vou seguir o conselho dos amigos e me retirar, satisfeito por ter estado aqui, ao lado desta gente mui “fremosa”. Aceitem o meu modo rústico de falar e creiam que tudo farei para não causar decepções. Adeus, amigos. Fiquem com a Virgem e com Nosso Senhor Jesus Cristo!



Comentário

Após a longa perlenga do confrade, pensamos ter exaurido a curiosidade do leitor. Devemos, no entanto, acrescentar que a maior parte do discurso foi inventada para impressionar a mente do escrevente, fazendo com que criasse o tipo. Na verdade, o nosso Joaquim nem foi tão rico, nem constituiu família tão poderosa. Isso faz parte de sua alucinação. Português, ele foi, tendo imigrado para o Brasil, conforme relatou. Um dia, leu a obra de Aluísio Azevedo, “O Cortiço”, e criou o desejo de fazer como a personagem que enriqueceu. Na verdade, pobre de espírito, o máximo que logrou foi possuir pequeno estabelecimento comercial, em bairro humilde do Rio de Janeiro, onde perpetrou os crimes relatados. A partir daí, tudo o mais é pura fantasia.

Curiosa foi a argumentação que utilizou para poder levar a cabo o plano de reconduzir-se à carne sem o ônus do sofrimento retemperador das mazelas. Felizmente, o escrevente soube distinguir os pontos positivos da vida do infeliz, de sorte a convencê-lo a seguir conosco em busca da realização dos planos de reimplante corpóreo.

O que vai ocorrer daqui para frente está na dependência das atitudes de reajustamento que for tomando, à medida que for conscientizando-se dos encargos cármicos. Mas a tarefa de acompanhamento refoge à nossa alçada.

Se quisermos aprofundar a análise do procedimento do Joaquim, iremos, inevitavelmente, defrontar-nos com a situação mais comum da perdição dos encarnados, especialmente dos que atravessam o oceano em busca da fortuna: a ganância, a preponderância cultural sobre os habitantes da nova terra, a desconsideração pelos irmãos, o sacrifício dirigido aos bens materiais, o uso da religião para ascensão social e como recurso para a aquisição de lugar no Paraíso, a total ausência de escrúpulos, os pequenos vícios da usura, do álcool, do furto, a utilização do trabalho dos serviçais em condições de verdadeira escravidão etc.

Sendo assim, o que mais se pede ao grupo socorrista, ao qual juntamos a figura do caríssimo leitor, é muita prece esclarecida, muita vibração de amor pela restauração dos princípios vitais superiores do assistido, para eliminação do egoísmo em prol da formação de personalidade consentânea com as aspirações evangélicas.

Muito mais do que isso não temos para avançar, mas pensamos ter aflorado a mais real condição humana de quem se deixa envolver pela matéria, como se aí estivessem o princípio, o meio e o fim da existência.

Quanto à especificação da personalidade do português, julgamos inoportuno e injusto considerar a personagem descrita pelo Joaquim como a figura do lusitano comum. Se é bem verdade que os sentimentos imperam na alma lusitana, são também atributos dela o amor, a amizade, o companheirismo, o espírito de fraternidade nunca esquecida na recepção dos hóspedes, para quem nunca faltam “pão e vinho sobre a mesa”, a tradicional benquerença às coisas típicas da terra natal e o profundo espírito religioso, que torna o irmão que nasce nas terras d além-mar pessoa muito especial aos olhos do Senhor. Defeitos tem, mas quem não os tem?

Oremos em agradecimento pelo bom desempenho de todo o grupo, principalmente pela recondução de mais um irmãozinho às hostes do bem.

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