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Ensaios-->ISTAMBUL - Uma Viagem Em Companhia da Identidade -- 02/01/2004 - 03:00 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UMA VIAGEM EM COMPANHIA DA IDENTIDADE

Viagens – oportunidades de descoberta. Do desconhecido exterior e do familiar. Momentos há nos quais, confrontados com realidades surpreendentes e singulares que nos fazem refletir, nos vem à memória o mote socrático: “Conhece-te a ti mesmo”. Nesse instante a problemática da Identidade torna-se algo fundamental. Tal ocorreu durante a viagem de nós, alunos da PUC-MG, pela Europa, para participarmos do Harvard WorldMUN, simulação mundial das Nações Unidas. As A Identidade aflora quando as nações estão “unidas” (em contato)...
Durante minha estadia em terras estrangeiras em Março e Abril passados, pude constatar algo que jamais sentira então – pelo menos não numa tal intensidade. Ao pisarmos o chão do Aeroporto Internacional Ataturk, Istambul, Turquia, deixáramos de ser alunos de Relações Internacionais da PUC-MG e passávamos a ser apenas brasileiros – ou meros estrangeiros.

Quando sua existência passa a ser (simbolicamente) notada pelos dados no seu passaporte, menos do que pela própria presença do seu ser em algum lugar, algo mudou. Os parâmetros de relacionamento entre pessoas saem da esfera privada e mergulham de cabeça na esfera pública. Somos alguém tão-somente na medida em que um Estado (de origem ou não) nos garante cidadania (nesse instante dá-se o devido valor às aulas de Teoria Geral do Estado e percebe-se quão complicada é a vida de um apátrida). Subitamente nossos “caracteres pessoais”, nossas idiossincrasias tão subjetivas são apagados em favor de outros referenciais – o nome do país, região e cidade natais, clima, população, costumes, principais produtos e problemas. Fecham-se as cortinas sobre o indivíduo, substituído este que é por seu Estado. Tornamo-nos Estados ambulantes!

A Identidade, compreendida como conjunto de elementos de referência para o “estar-no-mundo” de um ser humano, constitui-se de três “pilares” – sentimento de pertença, base territorial e Estatuto Legal. Nesse primeiro momento (a chegada) predominou o Estatuto Legal. Ainda que o translado faça com que a questão territorial seja sentida sem sombra de dúvidas, em princípio o chão que você pisa (em especial num espaço asséptico e impessoal como um aeroporto) diz menos a respeito de sua relação com as pessoas do que o tratamento recebido no contato “vis-a-vis”. E a rudeza desse primeiro contato saltou aos olhos. Tratava-se de demonstrar para os policiais turcos, fortemente armados, que tínhamos vínculos efetivos com um Estado, que nos protegia.
A questão do território, pouco manifesta durante o vôo e o “rapport” com o Aeroporto Ataturk, seria sentida ao longo de nossa jornada européia. A completa não-familiaridade com vielas, alamedas, ruas, praças e ruas foi apenas um dos indícios. Os paralelos que traçávamos constantemente entre nossos referenciais locais – belorizontinos, brasileiros – e os lugares visitados, idem. Por vezes familiares, por vezes surpreendentes, as manifestações arquitetônicas turcas, mescla de influencias ocidentais e orientais, nos inspirava curiosidade, fascínio e confusão. O mais impactante era a desorientação, por vezes momentânea, por vezes prolongada, mas sempre patente – que se tem ao pisar território desconhecido. Confusão simbólica aumentada pela disparidade linguística – menos pronunciada durante a conversação, na qual costumávamos encontrar um “chão comum” com os nativos através da língua inglesa, seja na Turquia, Grécia, França ou (obviamente) Grã-Bretanha – que encontrávamos ao passar por lugares e não compreender nada, ou quase, sobre seu significado. Tendo de lutar contra o espaço com poucas armas – alguns mapas e algumas referências de lugares históricos, monumentos etc. – descobrimos quanta diferença faz estar em um local no qual nos situamos geográfica e simbolicamente. Na verdade, descobrimos que esses lugares são parte essencial do nosso ser – nós lhes pertencemos e eles progressivamente passam a nos habitar.

Após o choque iniciam e as primeiras conversas com os turcos, passamos a vislumbrar outra faceta da Identidade. Após a surpresa (mútua) devido à fluência de nossa comunicação em língua inglesa, percebemos algo deveras interessante. Em alguns momentos (após um certo nível de fluência) ter sido atingido, surgiram alguns ‘gargalos’ na comunicação com o pessoal da Turquia – não por causa de nosso inglês ou por desconhecimento acerca do que se conversava, mas por uma questão de significação. Certos gestos ou expressões não eram propriamente compreendidas por nossos interlocutores, originando reações inesperadas ou pequenos sorrisos amarelos denotando “hã?”. Nesse momento tornávamos a buscar um “chão comum”, aliviando o conteúdo subjetivo de nossa fala em favor de um dizer mais direto. Foi em momentos assim (nos quais, geralmente, eu tinha um colega da PUC ao lado para que me viesse à memória um parâmetro para comparação) que percebi o quão importante é compartilhar uma mesma língua, um mesmo território e um mesmo contexto (teia) simbólica estando no Brasil. Senti que fazia parte de algo maior, e que essa constatação me estava sendo deveras oportuna em terras d’além mar.

Outros momentos ofereceram diferentes oportunidades para que os três “pilares” da Identidade se tornassem evidentes para mim. O próprio fato de estar num comitê com quase 100 pessoas vindas de lugares tão díspares como Taiwan, Estados Unidos, Noruega, França e África do Sul, sendo um dos dois únicos brasileiros presentes diz muito a este respeito. Num momento qualquer você se vê diante de diferentes formas de tratar a mesma questão, diferentes formas de negociar, diferentes enfoques e perguntas que lhe soam perturbadoramente inesperadas – e por vezes sem sentido. Nesse momento a reação é invariavelmente a mesma – você se vira para seu colega brasileiro e comenta “que coisa mais estranha!” ou “no Brasil eu nunca ouvi algo igual!”. O estranhamento que provocam tais situações só encontra paralelo na rapidez com que se passa a valorizar o fato de que alguém a seu lado está entendendo tudo o que você fala – e não compreendendo, da mesma forma, tudo o que você não compreende! Assim, percebe-se que fazemos parte de uma comunidade que se diferencia das demais, especialmente, no que toca ao sistema de significados socialmente constituído. Ao nos defrontarmos com o estrangeiro em seu território, nos tornamos mais brasileiros (situação facilitada pelo fato de estarmos representando o próprio Brasil no evento).

A “substituição do indivíduo pelo Estado” foi outra constante durante nossos trabalhos no comitê Social, Cultural e Humanitário. Perdi as contas do número de vezes que tive que explicar a minha origem, fatos sobre o Brasil e principalmente “onde fica Belo Horizonte?”. A ênfase na questão espacial me fez sentir quão importante torna-se o conhecimento (melhor, o pleno SENTIMENTO) do território onde se habita – apenas ela permite que você desdobre, aos olhos do estrangeiro, as complexas nuanças e detalhes singelos que diferenciam o território onde se vive de um ponto num mapa qualquer. De outra forma, eu estaria apenas dando mais força ao Estatuto Legal da Identidade – apenas um nome no papel entre tantos outros carimbos adicionados em cada aeroporto. O Estatuto Legal é, como enfatizado linhas acima, importante no sentido de que, estando sua “existência” reconhecida por um Estado, passa-se a “existir” no plano internacional. Mas torna-se necessário ir muito além disso se se pretende a comunicação com o “outro” – no caso, o estrangeiro.
Após a realização do evento (ao longo do qual logramos vencer várias barreiras e fazer boas amizades) estivemos por mais dois dias em Istambul. Nesse dois dias em especial, como estivemos juntos (grande parte da nossa delegação) praticamente o tempo todo, não sentimos de forma acentuada o processo de “revelação da Identidade”. Éramos um grupo de amigos, turistas, passeando por uma cidade que poderia muito bem ser uma cidade brasileira, já que nosso contato com o estrangeiro foi, nesses dias, bem mais restrito do que o que havia ocorrido durante o Harvard WorldMUN. Merece destaque nesse sentido nossa visita ao exótico “Grand Bazaar” de Istambul, local onde pudemos negociar durante horas a fio (nem sempre fazendo bons negócios, reconheço).

Logo após o término de nossa escala na miscelânea cultural turca e a diáspora de nosso grupo, mergulhamos de cabeça em alguns dos berços da cultura ocidental – Grécia e França, passando pela Grã-Bretanha. Museus ao ar livre (ou não). Em companhia de Fídias, Policleto, Montesquieu, Rousseau, Michelangelo, Shakespeare e da Vitória de Samotrácia, já não sentíamos evidenciadas nossa identidade brasileira (simplesmente) – sentíamos, por assim dizer, fazer parte do mesmo entorno cultural que aqueles povos, irmanados na mesma fonte. Gregos de terceira geração, latinos, brasileiros. Houve alguns momentos em que tal constatação se rompeu momentaneamente – como no episódio da taberna grega, onde a sedução (isto é, o desviar dos olhares) da música típica e da dança gregas fez-se inconteste, o movimento dos corpos na noite iluminada por velas nos fazendo querer SER gregos. Neste momento a identidade cede espaço para o exotismo, apenas para retornar em seguida como constatação inescapável. Éramos enfim ocidentais, latinos, neogregos. Mas éramos diferentes. Em Londres, por sua vez, o desinteresse dos nativos por nossas origens e por, afinal de contas, qualquer traço étnico-identitário mais pronunciado (se você era algo em Londres, com absoluta certeza poder-se-ia dizer que esse algo seria um indivíduo – proviesse ele de Milão, Vanuatu, Belo Horizonte ou de Marte) não nos permitiu reflexões profundas acerca da Identidade. Vagamos com desenvoltura tendo por cicerones nosso inglês e nossa desenvolta cultura de massa. Nos sentimos, pode-se dizer, praticamente “em casa”...Éramos consumidores.

Finalmente, em nosso retorno para Belo Horizonte, fazendo o balanço dessa jornada singular (e sem sombra de dúvida imprevista quando de minha partida), percebo que, agora, estou mais ciente de quem eu sou e das limitações que o indivíduo ainda sofre no plano internacional. Não obstante as teses de juristas, teóricos e doutrinadores, a “pessoa humana” ainda tem muito chão a percorrer até se constituir num agente internacional tão salvaguardado, por exemplo, quanto os Estados. Mais importante, porém, foi perceber com nitidez a manifestação de uma Identidade que, até então, eu tinha como abstrata e inconstante, de forma “orgânica” e espontânea. Compreendi, igualmente, a importância do espaço/território na definição da Identidade e percebi o quão verdadeira é a afirmação de que somente no contato com o “outro” passamos a conhecer a nós mesmos (não é sem motivo que Sócrates, grego legítimo, era um aficcionado pelo diálogo e pela argumentação).
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