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Ensaios-->2. 2.o Relato — FELÍCIO -- 12/12/2003 - 06:41 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Bom amigo, sua prece encheu-nos de ânimo para prosseguirmos em nosso trabalho. Muito obrigado.

Vamos apresentar-lhe um irmãozinho que dedicou a vida a amealhar fortuna e, embora não seja o exemplo típico do usurário ou do avarento, não teve compromissos com a virtude, de sorte que foi incapaz de auxiliar a qualquer irmão, que não fosse da própria intimidade familiar, a crescer em conhecimentos e em amor, através da tranqüilidade material desopressora; ou seja, sua atitude de querer sempre usufruir lucros fez com que não se distribuíssem os bens, na justa proporção da igualdade que aliviaria as tensões emocionais de muitos companheiros de jornada. É o quanto sabemos.

Ei-lo.



Rodrigo foi meu nome. Sei que benefício algum causei na vida. Por isso, muito admirado fiquei por estar sendo guindado a esta posição junto à luz. Um dia pensei que jamais voltasse à face da Terra, por isso este é acontecimento de muito valor para mim.

Espero agora que me digam o que devo fazer.

Relatar minhas experiências na escuridão do claustro?

Certamente.



De início, pensei que estivesse preso por ter participado de algumas negociatas. Não entendi desde logo que tinha morrido, por isso estranhei muito por, de repente, estar enclausurado, quando bem pouco antes gozava de inteira liberdade.

Perguntava-me como é que tinham tido essa audácia, sem nenhum julgamento, sem processo regular e sem que pudesse defender-me por meio de advogados convenientemente contratados. Mas senti muito medo e não me revoltei.

Nesse estado de inércia, passei boa temporada, sempre temeroso de que qualquer atitude minha viesse a provocar a descoberta de meus tesouros escondidos e que minha família pudesse perder os bens que acumulara. Um dia, finalmente, percebi que as trevas eram muito diferentes daquelas que imaginava pairarem nos cárceres de tortura em que se encerram os prisioneiros da Terra. Havia como que ampla possibilidade de visão de todos os acontecimentos pregressos, como se eu ainda estivesse, contínua e repetitivamente, exercendo domínio sobre o corpo. Assim, era só desligar-me do ambiente em que estava, para voltar a viver, com extraordinária nitidez, com o domínio integral de todas as sensações, cada momento da vida. E as repetições se faziam, mas foram-se restringindo às cenas em que eu provocava o aparecimento de lucro, em que enchia os cofres ou engordava as contas bancárias, até que, um dia, essas visões, essas sensações me foram obscurecendo a mente para quaisquer outros fatos, de modo que o que, de início, constituía prazer, no aproveitamento indevido dos ganhos, passou a ser terrível confusão mental.

Ou eu ficava na sombra, na terrível e isolada escuridão do catre, ou me via envolvido na perigosa sensação de vilão, de usurpador, de beneficiário indevido das riquezas que abocanhara. E esse desespero se transformou em angústia e a angústia, finalmente, rompeu a barreira racionalista com que justificava todos os atos, e pude discernir o mal que havia feito.

De início, sentia-me revoltado com a impossibilidade de fugir ao sofrimento moral que as situações de dolo me causavam. Depois, fui perdendo o medo e passei a clamar por auxílio, diante de dor física que se abateu sobre mim, dado que as contorções me magoavam cada músculo e os ferimentos se multiplicavam, por me jogar de encontro às paredes e às grades da prisão. Já não mais me importavam as riquezas ou a retenção delas pelos meus filhos. O que eu desejava era escapulir daquela aflição. Mas esse estado perdurava e não conseguia coisa alguma. Só de me lembrar, tenho arrepios de terror no fundo da espinha.

Sabedor da condição de “morto”, à vista de tão evidentes provas, pude concentrar-me na escuridão, impedindo, aos poucos, que as visões se sucedessem. Aí, compenetrei-me da verdade. Se rejeitara com tanto ardor a crueza da visão da minha indignidade, agora sentimento diverso foi tomando conta de mim: arrependia-me, finalmente e, nesse estado de amarga decepção diante de minha vileza, desejei rememorar as cenas do drama de minha vida, não mais no intuito de punir-me, mas com o imenso desejo de chegar a conclusões positivas a respeito do que me levara a tomar aquelas atitudes. E tive o privilégio de analisar meu proceder insólito, unindo a última existência na carne à anterior. Delineou-se, então, quadro de imenso horror à minha frente.

Era eu, no encarne anterior, infeliz criatura, amargurada pelo vilipêndio da cor, pois nascera escravo e nessa condição permanecera até a morte, odiando a miséria, execrando os patrões, amaldiçoando os capatazes e executores das ordens dos senhores. Do fundo da alma, jurei vingança, prometi desforrar-me da miséria em que me jogaram. Sentia, na ancestralidade terrena, que tinha sido despojado da condição de príncipe, pois descendia de poderosa família na África. E esse foi todo o tormento da vida anterior.

Durante muito tempo, chorei na escuridão daquelas masmorras, até que descobri que as portas estavam destrancadas. Alvissareira situação; corri para fora buscando caminhar com segurança, sempre em sentido ascendente, pois sabia que deveria um dia chegar à borda superior, onde encontraria a luz do Sol. Mas essa caminhada se deu áspera e atormentada. Vozes cada vez mais fortes e poderosas acusavam-me de roubo, de espoliação, de usura. Reconheci familiares acusando-me de avareza. Percebi companheiros invectivando-me de falcatruas e manobras para assenhorear-me de seus haveres e de seus direitos à propriedade. As visões do escuro surtiam-me na mente agora de outro modo e eu clamava por misericórdia, afirmando que estava arrependido. Mas se compreendera o mal que praticara, tinha agora para entender o sofrimento que provocara nos parceiros de negócios, nos companheiros de vida, naquelas mesmas pessoas que deveria proteger e ajudar, mas que magoara e arremessara na rua da amargura.

Essa fase foi tão trágica e difícil quanto a anterior. As vozes se faziam nítidas, às vezes altas e sonoras como o timbre agudo das sirenas mais aflitivas, outras vezes murmurantes, sussurradas, graves e pesadas, juntinho aos meus ouvidos. E a todos clamava por perdão. Durante longos anos, permaneci vagando pelos círculos das trevas, até que me foi possível ver pequena luminosidade no fundo da caverna. Foi em dia memorável, em que clamei, finalmente, pela ajuda do Senhor, tendo realizado a primeira prece sincera e honesta, em função de compungida promessa de reparação dos males que provocara. Desde aí, só melhoras tenho tido. Rapidamente fui guindado por invisíveis criaturas para paragens menos aterrorizantes, onde pude refrescar a mente com a visão de alguns arbustos e de nesga de céu, negro como breu, mas com a dádiva divina da presença de estrelas a rutilarem como a indicar o norte ao viajor desesperado.

Quanta lágrima deixei escorrer! Não se perca o caro amigo pelas imagens que busquei no fundo da consciência, nas leituras de que me lembro. A figura e o texto são de hoje; na época, o sofrimento imperava em meu ser, coração e mente, tudo crestado na mesma fogueira infernal do mais profundo sentimento de culpa.

Ainda se passou certo tempo até que me conduzissem para a crosta. Primeiro me fizeram perceber que os males que cometera estavam todos sendo superados, o que me despertou a esperança. Depois me conduziram para diante de minha família, onde pude verificar que algum afeto subsistia no fundo das emoções de cada familiar mais chegado, e isso me fez confiar no amor. Mais tarde, assisti a algumas cenas de carinho entre meus antigos desafetos, já restabelecidos das derrocadas materiais em que os meti, e estava acesa minha fé. E diante dos amigos, roguei compreensão e recebi carinhoso afago de bondade; estava entreaberto o caminho da caridade.

Hoje, eis-me aqui cumprindo a obrigação deste relato. É como se me abrissem as portas do paraíso, tantas são as vibrações que tenho recebido em solidariedade com minhas atuais disposições de espírito.

Já me disseram que largos trabalhos aguardam por mim, mas isto não assusta a este trabalhador, que, se muito labutou para conseguir amealhar fortuna na Terra, saberá como proceder para ganhar aqueles bens de que nos fala Jesus, que não se corromperão pela ferrugem nem serão furtados pelos gatunos.

Graças a Deus!

Irmão Felício, que é como gostaria de ser chamado daqui por diante, lembrando-me de meu apelido cristão das épocas da escravatura.

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