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Ensaios-->A POESIA MISTERIOSA DE ULISSES -- 19/10/2003 - 21:31 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A POESIA MISTERIOSA DE ULISSES


Francisco Miguel de Moura *





O. G. Rego de Carvalho tem uma vocação poética, mas de uma poesia insondável, aquela que está no cerne do próprio ser, irreconhecível e irreconhecedor, desde os mistérios da vida – e o amor é um dos maiores – aos da morte e dos seus caminhos.
“Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se deitou, as pálpebras baixando.
E puro, e distante, e feliz, encarou o céu e o tempo”.(1)
O que acima foi transcrito é um capítulo de Ulisses entre o Amor e a Morte, simplesmente disposto, no livro, em forma de prosa. Não é a prosa poética comum de quem não tem poesia para escrever e não sabe escrever em prosa, portanto fica pelas bordas das duas formas.
Remeto o leitor ao início: José de Alencar, primeiro autor lido por O.G. Rego de Carvalho, ainda quase menino, o qual, de alguma forma, lhe indicaria rumos e posicionamentos estilísticos a tomar. Àquele Alencar de Iracema:
“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes das carnaúbas;
Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.” (2)
Lembra também aquele fim trágico e mui belo de Lindóia, no poema Uraguai, de Basílio da Gama:
“Inda conserva o pálido semblante,
Um não-sei-quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece
Tanto era bela no seu rosto a morte!” (3)
Para traduzir o que há de poesia num livro da juventude, memórias da infância perdida para sempre, onde a criatura tem algo de herói lendário (aquele que todos nós fomos ou supomos ter sido), quando o mundo corre à nossa revelia e tentamos agarrar as nuvens e o céu, porque ainda não tomamos sobre os ombros o peso dos terríveis problemas quotidianos, somente um grande poeta, precisamente Cecília Meireles, teria palavra suficiente e válida:

Ulisses deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e comovente.
(Trecho de uma carta dirigida ao autor).
Também o romancista Marques Rebelo, com quem conviveu O. G. Rego de Carvalho, no Rio de Janeiro, sem tergiversar, declarou-lhe em carta, após a leitura do romance-poema:
Os defeitos que nele encontrei são os de quase todos os nossos escritores, mesmo os grandes, principalmente os grandes, e eu não ousaria apontá-los.
Conhecida a seriedade do autor de Marafa e de tantos outros bons autores da literatura brasileira contemporânea, a contundente a afirmação de que O.G. Rego até nos defeitos se igualava aos grandes escritores vale por uma nota excelente ao livro de estréia de um provinciano, e por segura confiança no futuro do escritor – já há muito suficientemente confirmada.
Bastariam as apreciações de Marques Rebelo e Cecília Meireles para aferirmos, de olhos fechados, o valor de Ulisses e sua aceitação, na época em que foi editado.
Não se busquem, nos críticos, tais pressupostos e conclusões, porque é um deles quem nos diz que a maioria dos bons romancistas brasileiros atuais não tem crítica de conjunto. E o mesmo autor, ao recordar-se do artigo devastador de Moysés Velhinho sobre O Louco do Cati, de Dionélio Machado, acrescenta:
“Hoje a crítica literária é uma atividade eventual, paga simbolicamente, de maneira que os romancistas nascem e morrem sem que ninguém tome conhecimento. (...) É verdade que às vezes um crítico escreve um artigo e não consegue publicá-lo: foi, por exemplo, o que aconteceu comigo, quando escrevi uma apreciação quase afetuosa sobre a evolução de um jovem romancista.” (4)
Voltemos à poesia de Ulisses.
É conhecido lugar comum dizer que um livro de estréia tem muito de autobiográfico. William Saroyan apóia essa opinião amplificando-a, quando disse que “romance é um romancista que escreve romance, assim como conto é um contista que escreve contos.” (5)
Nisto Ulisses, quer seja classificado como romance ou novela, não poderia fugir à regra, tendo em vista que sai da pena de um quase adolescente. Nessa novela, o que nos interessa é o encontro poético do seu estilo, já quase formado, ao escrever o primeiro livro. Alguém já disse - e eu quero confirmar - que a fruição substancial do contexto de Ulisses entre o Amor e a Morte está resumida no soneto de H. Dobal, que vem, como epígrafe, na primeira folha, depois do título, da sua primeira edição. Não resisto, pois, à vontade de transcrevê-lo, para conhecimento dos que ainda não o leram:
Eis-me de novo adolescente. Triste
vivo outra vez amor e solidão.
Canto em segredo palpitar macio
de pétala ou de asa abandonada.


Outro amor em silêncio e na incerteza
oprime o coração desalentado.
Ó lentidão dos dias brancos quando
a angústia os deseja breves como um sonho.

Insidioso amor em minha vida
reverte o tempo para o desespero
a inquietação da adolescência

e o pensamento me tortura, prende
como se nunca houvesse outro consolo
que não é mais de amor. Porém de morte.(6)
É possível que O. G. Rego haja colhido inspiração no poema, preparo para o salto mortal da prova de fogo – o livro de estréia – absorvendo a condensação lírico-emocional, a vibração, e daí nascendo, ou melhor, começasse a surgir o livro, «pretensioso no próprio nome - Ulisses , cujo subtítulo é nada menos do que Amor e Morte, no dizer de Homero Silveira. E prossegue o ensaísta:
Mas, o curioso é notar : saiu-se bem da empresa. Porque se a tese em si é já um convite ao abismo (isto é, explorar a infância e adolescência), um mergulho nas sombras do desconhecido e do obscuro, necessário se torna que o mergulhador se arme de aparelhagem adequada. Foi o que fez o escritor piauiense. Penetrou na neblina com olhos de ver o nevoeiro e formas mal definidas. Relegou a técnica direta do romance psicológico ou de pesquisa. Vestiu-se de poesia. Recorreu à reminiscência.) (7)
Revive Ulisses com o pai, o avô, a tia Julinha, José, Anália, Olavo - e ainda com Norberto, Arnaldo e Conceição, em Teresina - aqueles dias que a poeira do tempo levou, «triste vivendo outra vez amor e solidão» como na poesia de H.Dobal, cantando em segredo como se o seu canto fosse o palpitar macio de uma pétala ou de uma asa em abandono. E a solidão está em Ulisses, mesmo quando fisicamente fala com o pai ou com José - ambos «na lentidão dos dias brancos, revertendo o tempo para o desespero» da morte. E a solidão caminha com Ulisses, mesmo enquanto canta «a inquietação da adolescência», mais preso a pensamentos e aflições sobre o destino do coração e da alma que o do próprio corpo. Ulisses é, de todos os personagens de O. G. Rego de Carvalho, o que mais se parece com o próprio escritor, fato já ressaltado pelo romancista em entrevista ao jornal «O Dia», Teresina, 28.3.1971.
E a mãe, essa que povoa a vida do menino, da casa, da família, a inventar ternuras e a desmanchar-se em carinhos?
«Outro amor em silêncio e na incerteza oprime o coração desalentado» do jovem Ulisses, mesmo quando toma banho no Poti ou brinca nas coroas do Parnaíba, quando vai ao circo ou bisbilhota na praça Pedro II, olhando os cartazes dos cinemas e as moças a rodarem no passeio.
Mas, em Oeiras, quando desce do morro do Rosário, após a procissão, menino, pegado pelo braço da criada, pouco lhe importava o caminho estreito e a descida íngreme da ladeira. O que lhe interessava era voltar para junto dos pais. Depois da janta, sonha com o menino Jesus. A doença do pai afetava-lhe a sensibilidade delicada, frágil, infantil, de tal sorte que também adoecera. De tristeza. E José? Não fazia recados, não ia fazer visitas à feira mas deixava-se ficar ensimesmado pelos cantos ou no olho de um flamboyant. Mais doente, reprimindo a mágoa da morte do pai. Embora mais novo, Ulisses vigiava o irmão, doentio e franzino, que um dia tentara a morte antes de verberar para o outro:
Não busques razão na vida, que não acharás.
Finalmente, José encontraria a transcendência: vai para o seminário, em busca do serviço do Senhor. A mãe, conservadora como quase todas as mães, tudo coloca nas mãos de Deus. E vai conseguindo apaziguar a inquietação dos filhos. Ulisses, por sua vez, encontra a poesia: Conceição, o primeiro amor.
Nota-se uma densidade maior no início do livro, nas duas primeiras partes: «Viagem de Cura »e «Na Selga», e no final, como para mostrar dois abismos: o da infância e o do fim da adolescência, tão diferentes entre si.
Após chegar à adolescência, a mudança para Teresina (e o livro assim se vai desenvolvendo), as aberturas e os contatos contínuos com pessoas de fora do círculo familiar propriamente dito aclaram os dias. Depois é a lembrança de Oeiras perdida, os pombos perdidos (mortos pelo irmão), o amor perdido. Não de todo, que o primeiro amor dura eternamente.
E aqui me recordo de uma quadrinha popular, anônima, que minha mãe cantava, referindo-se a um florzinha do campo como imagem:
Não há florzinha que cheire
Igualzinho à do pereiro,
nem tempo como o passado,
nem amor como o primeiro.
Conceição, primeiro amor de Ulisses: Castanhos eram seus olhos. Prima de Arnaldo – o companheiro de estudos e de folguedos em Teresina – conheceu-a na casa deste e foi quem naturalmente o encaminhou para as primeiras aproximações. Amor que duraria toda a vida. Mas, não.
Foi assim no começo:
“Mirando-se bem nos meus olhos, Conceição sorriu:
- Também são castanhos - disse.
- É a primeira vez que repara?
Ela acenou que sim.
- Quem possui olhos dessa cor é inconstante.
- E você, querida?
- Sou diferente; verá como lhe serei fiel até a morte.
Coloquei minha mão sobre a sua. Que agradável ouvi-la falar assim.”
(Ulisses entre o Amor e a Morte, pg. 92 (8).
Na forma, consultando a última edição de Ulisses entre o Amor e a Morte (in Ficção Reunida, Corisco, Teresina, 2003), encontramos apenas uma modificação do texto citado: no parágrafo 4, pg. 86, em que ele trocou acenou por jurou, verbo mais forte e mais objetivo, prova da consciência e responsabilidade de O.G. Rego de Carvalho, não obstante algumas pessoas murmurarem que o Autor, nas suas constantes reescritas, pode estar mutilando a obra.
Analisando a ação, verifica-se que o orgulho de Ulisses não se dobrou diante de uma evidência: o pai de Conceição não aceitaria o namoro, tudo de acordo com o tempo e os costumes. Entretanto, assim observado, não se quer dizer que se trata de uma obra tradicionalista. Muito ao contrário. É que a verdade da arte na beleza, não no conteúdo.
Curvem-se os leitores a mais uma transcrição, nesta análise muito posterior ao aparecimento de Ulisses, diante da narrativa do último encontro de Conceição com o protagonista:
“Ela veio de mansinho e se postou à minha frente, sem nada dizer, sorrindo apenas. Voltava eu a compreender que estava diante de meu único e puro amor.
- Ulisses - falou afinal - você ainda gosta de mim?
- Apesar de tudo? - acrescentou, fitando-me os olhos.
Tentei mostrar-me indiferente, como mandava o capricho, mas não pude:
- Por que agiu daquele modo?
Conceição se aproximou mais, tomando-me a mão:
- Queria que eu apanhasse? Você não conhece o gênio de meu pai.
Ela se calou a seguir, esperando que a perdoasse. O amor próprio estava, no entanto, demasiado ferido para que viesse a desculpar-lhe o erro, nessa noite.
- Olhe, minha tia me acena - e apontou-me a mãe de Arnaldo. Regressarei amanhã, à fazenda dos velhos, e somente voltarei se tiver certeza de que continuarei a mesma em sua estima. E abaixando a vista, a desprender-se:
- Eu o amo, Ulisses.
Conceição saiu rápida, sem volver o rosto. Quando mais tarde a procurei para renovar-lhe os votos de amor que lhe tinha feito e reiteradamente repetia, já não a encontrei: misturava-se à multidão.
Dela, ainda hoje guardo a recordação desse momento, em que as nossas mãos, as minhas aquecidas nas suas, se uniram pela última vez.”
(Ulisses entre o Amor e a Morte, pg. 96/7) (9).
É assim que termina o romance.
A pureza desse amor - o primeiro amor - só é comparável à do amor de mãe, se se permite tal comparação.
E aqueles momentos insubstituíveis, para Ulisses, tiveram o aroma dos campos puros, imaginários da “Selga”. E assumem a grandeza dos dois amores, o da mãe e o da primeira namorada – que está em nunca se encontrar iguais: – um, porque parte daquela que é origem, única, insubstituível; outro, porque vem da mulher primeira, a que se prepara para ser mãe, e é tão doce como o perfume das flores entreabertas pela manhã. Mistério que não se sabe como vem tão depressa e como se esvai no vento. Ambos são autênticos, originais, suaves, a bondade e a transcendência, enfim.
Que palavras encantatórias e sublimes poderia encontrar para traduzir o romance-poema Ulisses entre o Amor e a Morte?
Leyla Perrone-Moisés, crítica de renome, diz de um livro de Nathalie Sarraute: “De todo o romance nos fica uma impressionante sensação de vertigem...” (10)
Uso, então, as mesmas palavras para o livro de O.G.Rego de Carvalho.
É a espantosa vertigem que sentiu Ulisses ao notar fugir-lhe Conceição:
“Por onde andei, nem o que vi recordo direito. Além da mágoa de ter perdido Conceição, aos poucos me veio entrando n alma a idéia de que tudo morreu para mim.”
(Ficção Reunida, Corisco, Teresina, 2003) (10).
A dedicação à forma é tão grande em O.G. Rego de Carvalho que não se pode deixar de comparar o último parágrafo, do penúltimo capítulo de Ulisses entre o Amor e a Morte, acima mencionado, com a primeira redação, da primeira edição:
“Por onde andei, nem o que vi recordo direito. A seguir, à mágoa de ter perdido Conceição veio me entrando n’alma, mansamente, o langor.” (Pg. 95, da primeira edição de Ulisses entre o Amor e a Morte, Teresina, 1953).
Lida a última página, não sabe também o leitor que caminho seguiu e muito menos determinar o gama de sentimentos que lhe aportaram. Apenas adivinha.
Assim: – a capacidade de refluir mistério, poesia e eternidade, dentro do amor e da morte, onde autor e protagonista se harmonizam.


_________________________

Referências:
1) - O. G. Rego de Carvalho – Ficção Reunida, 4a.edição – Corisco, Teresina, 2003;
2) - José de Alencar – Iracema, Editora Saraiva, São Paulo, 1965;
3) - Basílio da Gama, apud “Roteiro Literário do Brasil e de Portugal” , Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, Ed. Civilização, Rio, 1966;
4) - Fausto Cunha – Situações da Ficção Brasileira, Ed.Paz e Terra, Rio, 1970;
5) William Saroyan – apud A Técnica da Ficção - Assis Brasil,Ed. Nórdica, Rio, 1982;
6) H. Dobal – Tempo Conseqüente, 1966
7) Homero Silveira – Convite ao Abismo – Recorte de “O Estado de São Paulo”, São Paulo, edição de l953 (Dos arquivos de O.G. Rego de Carvalho);

8) - O. G. Rego de Carvalho – Ulisses entre o Amor e a Morte, Ed.. do Autor,1953;
9) – Leyla Perrone Moysés – O Novo Romance Francês – Ed. DESA. Coleção Buriti, São Paulo, 1966.


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