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Ensaios-->LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO EM OG REGO DE CARVALHO -- 07/10/2003 - 08:13 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




































linguagem e comunicação








Copyright (C) by Francisco Miguel de Moura
Primeira edição: 1972
Segunda edição: 1996



Capa: Franklin Morais Moura

Impressão: Gráfica da Universidade Federal do Piauí

Revisão: Francisco Miguel de Moura























PI
B869.4 Moura, Francisco Miguel de
Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho.
2ª edição, Teresina, Universidade Federal do Piauí, 1996.
p.



1. LITERATURA PIAUIENSE - ENSAIOS
I. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
II. Título





francisco miguel de moura

















LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO


EM


O. G. REGO DE CARVALHO























Obras do Autor:
Poesia:
Areias, 1966
Pedra em Sobressalto, 1974
Universo das Águas, 1979
Bar Carnaúba, 1983
Quinteto em mi(m), 1986
Sonetos da Paixão, 1988
Poemas Ou/tonais, 1991
Poemas Traduzidos, 1993
Prosa:
Os Estigmas, 1984
Eu e meu Amigo Charles Brown, 1986
Laços de Poder, 1991
Ternura, 1993
Crítica:
Linguagem e Comunicação em O.G.Rêgo de Carvalho, 1ª edição, 1972
A Poesia Social de Castro Alves, 1979
Piauí: Terra, História e Literatura, 1980















































EXPLICAÇÃO INICIAL

Considero O.G. Rego de Carvalho um daqueles cinqüenta romancistas brasileiros em produção, com um acervo considerável mas sem crítica, de que nos fala Fausto Cunha em «Situações da Ficção Brasileira» (1), ficando ao lado de nomes como Adonias Filho e Marques Rebelo, para citar apenas dois dos maiores. Por esta razão, principalmente, lanço-me a um trabalho de análise da obra ficcional do escritor piauiense, visando apontar suas principais características e as linhas estruturais em que se esteia.
Tenho dois propósitos: um informativo, outro didático. De modo que, se por um lado queremos atingir o público ledor, familiarizado por certo com alguns aspectos da obra ogerreguiana, por outro alcançaremos os estudantes de Faculdades de Letras e os professores, ambos habituados ao exame dos problemas da literatura de ficção.
Para a consecução dos objetivos apontados, tomarei por base as considerações contidas em «Aspectos do Romance» de E. M. Forster, «O Novo Romance Francês» de Leyla Perrone-Moisés e «A Criação Literária» de Massaud Moisés, visto que não tenho ainda uma teoria própria, do romance. Atenho-me a uma teoria, pelo visto, a uma teoria do romance tradicional, a alguns apontamentos do que há de mais revolucionário no romance moderno - o noveau roman francês - e a um compêndio didático sobre os diversos gêneros e formas literárias.
De duas partes constará o trabalho: a primeira, um estudo em pormenores da linguagem literária, da criação e tratamento dos símbolos, das técnicas e, ainda, considerações sobre a ação e o enredo; na segunda, abordaremos o universo de cada livro, dentro de um determinado ponto de vista ao mesmo tempo textual e contextual.
Não descendo a sutilezas e miuçalhas - pela primeira vez tentamos a crítica de conjunto da obra de um escritor - que não cabem nos limites das nossas
possibilidades, por sinal modestas, adotamos um vocabulário acessível e não o da crítica mais especializada. Mais ainda: não elegemos esta ou aquela escola ou método crítico-filosófico (fenomenologia, estruturalismo, new-criticism, etc.) - eis o que se poderá deduzir até mesmo da nossa pequena bibliografia.
Atingiremos o nosso objetivo?
Consigno, com Osman Lins, que «não só é impossível como dispensável que um livro seja compreendido na íntegra e que o escritor deve estar preparado para a perplexidade dos que não viveram sua obra com intensidade igual à dele»(2).
Exculpar-me das fraquezas, falhas e contradições não é o que faço agora. Reconheço-as, isto é muito mais importante. Enfim, este ensaio pretende entregar aos estudiosos da ficção brasileira atual uma contribuição: despertá-los para uma obra que se destaca pela compostura, solidez, densidade e colorido, uma obra em que termos de comparação com outras se tornam por demais perigosos, em virtude mesmo de sua singularidade fora do comum.
















































PRIMEIRA PARTE

























































































ROMANCE: ORIGEM E FINS


Que é um romance?
Será que o leitor comum não sabe o que é um romance? Poderá confundir com um conto ou com um poema? É possível que qualquer pessoa capaz de ler um livro saiba o que é um romance. Mas, sabendo o que é, não saiba defini-lo ou conceituá-lo. E um dia tenha necessidade de dizer isto a alguém. Por isto compulsamos algumas teorias literárias e soubemos que qualquer obra de ficção que contiver mais de 50.000 palavras, em prosa, pode ser considerada romance, segundo E. M. Forster. (3) Talvez essa assertiva venha a significar o mesmo que entendemos da definição de Mário de Andrade para o conto: «Tudo o que seu autor batizou com esse nome.» Ambos os dois quiseram fazer humor.
Então busquemos outra: «Romance é a apresentação de uma cosmogonia, numa grande viagem interior, num drama detalhado de vida latente ou manifestada, numa alegoria ou símbolo de relação humana.» (4) É o que nos diz Braga Montenegro ao confrontá-lo com os demais gêneros de ficção, especialmente o conto.
Nessa viagem interior, que é a da intuição do artista diante do que vê, ouve, sente mas não pode apreender de modo total, há uma busca de unidade, há uma sistematização das aquisições. Com vista aos fins colimados, Massaud Moisés aponta quatro aspectos caracterizasdores do romance: liberdade, universalidade, compromisso e entretenimento.(5) Acrescentamos que essas características estão de tal modo unidas e concentradas no romance que não podemos indicar predominância. Na realidade, o romance é feito para o entretenimento, mas esse entreter obedece a uma escala de valores, de acordo com o público a que está destinado. Nem só de entretenimento vivemos - e o romance quer ser vivo. O escritor unifica um mundo extremamente variado, através de seus pensamentos, ideações e sentimentos. E esse mundo - o recriado - não pode ser um mundo igual ao das exterioridades: o autor, de posse de sua liberdade, deforma a realidade primeira, essa mesma realidade que o contém e que o modifica constantemente. A matéria do romancista lhe inclui e inclui o mundo que o contém. Poderá deixar de ser um compromisso?
Assim percebemos a estrutura do romance. Daí dizer E. M. Forster que um romance se baseia nos fatos + ou - x, sendo que a incógnita comumente modifica, em parte, ou completamente, os fatos. (6) É nessa liberdade transformadora e no condicionamento do personagem histórico - que não conhece a liberdade do personagem de ficção, pelo menos no mesmo grau - que reside a diferença entre romance e história, entre personagem do romance e personagem da história. O personagem do romance é muito mais real na medida em que não é um tipo, um representante de uma classe, mas é ele mesmo e apresenta toda aquela singularidade que faz de cada pessoa um mundo inimitável porque incompreensível.
Sendo feito para comunicar uma realidade apreendida pela intuição, numa forma consagrada pelo público - e esse público evolui - o entretenimento já não representa grande papel no romance atual, visto que essa finalidade é preenchida pelo rádio, televisão, cinema, revista em quadrinhos, etc. que servem à classe média inferior. A camada superior da classe média, a que aspira elevar-se e na realidade se eleva, imprensada entre a burguesia e a pobreza, aquela obsedada pelo óbvio e esta sem aspirações nem capacidade de ascender, a camada superior da classe média é a corrente para onde fluem todos os problemas do mundo moderno. Deseja ser rica e não pode, as solicitações são grandes em virtude da propaganda, do crédito fácil, mas a capacidade se limite pela pelo salário, pelo emprego, pela renda. Por outro lado, vivendo escrava da máquina ou da burocracia deseja algo que lhe pareça liberdade, precisa construir. Essa aspiração pode ser satisfeita, em parte, lendo romance, onde participará da obra criadora do artista, pois que toda obra de arte verdadeiramente moderna não se fecha.
O romance atual, psicológico por excelência, é feito pela classe média e para ela se dirige. Enquanto o romancista participa dos problemas e angústias que afligem as pessoas, apontando outras vidas e outras almas para comunhão, sua arte terá mais receptividade, será análise e procura, oportunidade de participação. Afastando-se das formas estereotipadas de arte-de-massa, universaliza a diversidade, liberta-se de muitas injunções políticas, compromete-se apenas com o leitor e não com filosofias políticas ou religiosas, nem com organizações ou grupos de quaisquer espécies. É de crer-se que seu público diminua em quantidade, mas cresce em qualidade.
Feitas tais digressões, voltemos à estrutura..
Outrora era costume analisar obras segundo a forma, o conteúdo, o estilo e a tendência literária do autor. Era a crítica de época, vigorava o impressionismo. Hoje está em voga o texto. Literatura é o texto e somente o texto, segundo Raul Castagnino. É no texto de um romance que vamos encontrar algo que faz dele um romance e não uma novela ou um conto. São os extratos - que outros já chamaram também de aspectos. Sabe-se que não se faz um romance sem estória, enredo, personagem, espaço e tempo. Podemos contar com outros estratos, mas são acidentais: símbolos, fantasia, ritmo, etc. E a linguagem, poderíamos denominá-la também de extrato? Porventura não é a linguagem o próprio romance? É o mesmo que se dissesse que a imagem é um extrato do filme. A linguagem literária é o estilo e, por menos gasto, prefiro aquele a este nome.
Outra coisa que caracteriza bem o romance é o seu plano narrativo: pode ser interior ou exterior. É exterior quando o tempo cronológico predomina, e o romance classifica-se como de espaço, ou de drama. É interior quando o tempo psicológico domina, e nesse caso temos o romance de personagem.
O romance de O. G. Rego de Carvalho é de personagem e tem por fulcro sua própria concepção de arte, expendida numa entrevista a Aniel, para o «Jornal de Letras», maio/71:
«Tudo o que escrevo é projeção de mim mesmo: fantasia e um pouco de realidade.» (7)

Colheu O. G. Rego no seio da família patriarcal oeirense, de tradição secular, tudo o que é realidade no mundo ficcional; levantou a simbologia daquele mundo estagnado e a problemática dos seus viventes, em três romances mais ou menos desiguais, diferentes, visto que cada um representa, numa classificação global e simplista, parte do ciclo vital do autor:

Ulisses - a infância;
Somos Todos Inocentes - a juventude;
Rio Subterrâneo - o início da maturidade.

Restaria colocar «Amor e Morte» (reunião de contos anteriores e posteriores a «Ulisses»): este é uma ponte técnico-temática entre «Ulisses» e «Somos Todos Inocentes» e representa a gênese do mundo que construiu na trilogia apontada.
Que se havia de esperar do mundo fechado e sombrio dos casarões e sobrados de Oeiras? Dos problemas individuais encarcerados no âmbito familiar? Da divisão social rígida entre senhores de carnaubais e fazendas de gado e o resto do mundo? Teriam, fatalmente, que gerar angústias, problemas íntimos e cruciantes. Culminariam na eclosão da ruína da alma, na procura desesperada de liberdade, vencida pelo vazio sem remédio. Os casos de loucura a multiplicarem-se nas famílias (estas conservando-se intocáveis nos bens e no sangue) tornavam-se coisas do destino, e o homem não encontraria meios de superá-las.
Esse ambiente sombrio foi o ponto de partida das perquirições do escritor piauiense, sua maior fonte de interesses e motivações. À primeira vista, causa estranheza e desconfiança ao espírito dos críticos, principalmente daqueles que sustentam que a linguagem literária deve corresponder ao mundo da ficção levantado. E exemplificam com Graciliano Ramos: para retratar um mundo hostil, uma linguagem dura, seca. Por que O. G. Rego, para explorar uma problemática de desespero, medo, incompreensões, casos patológicos (que eram móveis de desprezo e escárneo), torna-se um escritor de estilo doce, musical, leve?
Há sensíveis diferenças na concepção de ficção entre Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, e entre eles e O. G. Rego de Carvalho. Para Euclides da Cunha o verdadeiro romance teria que ser épico; para Graciliano, dramático. O. G. Rego não é exclusivamente épico nem dramático; o lirismo é o tom dominante, embora que bem dosado com fundos heróicos em «Ulisses», notas de tragicidade em «Rio Subterrâneo» e dramas em «Somos Todos Inocentes». No âmago de seu estilo, enxergamos o amor extasiado, a esperança na procura do ser; nunca o pessimismo de Machado de Assis nem a ironia de Graciliano Ramos. Procurou sempre a ternura e o reconhecimento de que carecem as almas enfermas. E elegeu os contrários para se completarem: linguagem suave e musical para problemática de «desespero mudo». Estilo marcado pelo intimismo e pelas relações afetuosas, condiz com o ambiente, jamais com a problemática. Leva a marca inteira da aquisição do pensamento humano e de sua conseqüente e concomitante comunicação: começa os capítulos dos romances lógica e objetivamente; em seguida, entrega todos os pensamentos à ação interior dos personagens (e eles transfiguram a herança avoenga e os costumes em mitos); por último, se deixam levar para o mundo da fantasia, do sonho, dos pesadelos e estados crepusculares. (8)
Resumindo: o universo peculiar à fabulação de O. G. Rego de Carvalho compreende a infância, a família, a linguagem íntima, a esperança numa salvação de todos.
A propósito do exposto, cabe lembrar a sábia ponderação de Leyla Perrone-Moisés: «A infância é o único momento de autenticidade na vida do burguês, pois ele ainda não está muito sujeito às regras cruéis ou vergonhosas da burguesia. Eis porque suas personagens (falando do romance de Nathalie Sarraute) muitas vezes se voltam para trás, a procurar nos gestos e objetos familiares a segurança daquela fase perdida.» (9)
A transposição poética da infância poderia ter sido feita para a música (seus antepassados se dedicaram a essa arte) ou para a poesia. O. G. Rego de Carvalho escolheu a literatura de ficção, onde já buscara bem cedo a sonoridade do vocábulo (José de Alencar, romance «O Guarani»). O espinho do pessimismo machadiano, certamente numa fase já bem avançada de sua juventude, lhe aguçaria a tendência introspectiva.
Imitar para quê? Tentou superar tudo quanto, no terreno da literatura, haviam produzido no Brasil. Um atestado é «Rio Subterrâneo», coroamento da obra iniciada em «Ulisses», passando pelos transtornos de «Somos Todos Inocentes» - uma prova, este último, das apreensões juvenis, das contradições, violências e insubordinações de que todos somos capazes. E mesmo assim, no conjunto da obra ogerreguiana, se afigura como um tijolo da unidade, uma peça indispensável.






































LINGUAGEM LITERÁRIA


A finalidade primeira da linguagem é comunicar. E só um animal social, eminentemente social, conseguiria aprimorar esse instrumento. Estudar a linguagem é estudar o pensamento, a comunicação, a cultura humana. A linguagem, seja falada ou escrita, tem origem pré-histórica, como o pensamento, como a própria humanidade. O homem ainda não conseguiu inventar outro instrumento que substitua a linguagem na comunicação. No dia em que isto acontecesse haveria a desumanização completa do homem, sua extinção como tal.
Tais são as conexões da linguagem com a vida humana; sem a comunicação que ela nos possibilita, seria impossível a sobrevivência do ser humano socializado.
Das considerações gerais passemos, agora, às de origem particular. O que nos interessa é a linguagem literária, não a linguagem dos sonhos, não a linguagem das cores; o que nos interessa é a linguagem escrita, perceptível pelo intelecto e por ele traduzível em sensações e sentimentos, não a linguagem que procura descrever objetos pura e simplesmente. A este respeito, ouçamos voz autorizada de Merleau-Ponty, citado pelo Prof. Antônio Gomes Penna: «Uma linguagem que, efetivamente, visasse apenas reproduzir as próprias coisas, por mais importante que sejam elas, esgotaria o seu poder de ensinamento em dados de fato. Uma linguagem que, pelo contrário, manifeste as nossas perspectivas sobre as coisas e introduza nelas um relevo inauguraria uma discussão que não termina consigo, suscita ela própria uma procura. O que não é substituível numa obra de arte e faz dela muito mais do que um meio de prazer: órgão do espírito, cujo equivalente se encontra em qualquer pensamento filosófico ou político se é produtivo, consiste em conter, não idéia, mas matrizes de idéias...»(9)
Pela dificuldade de usar a força comunicativa medimos a angústia e a infelicidade do homem do nosso tempo, apelando para a imagem plástica quase que desesperadamente.
Não estamos sozinhos nem conseguimos ficar com os outros. Sentir a vida como um devir, não como realização, deve ser o problema posto. Fala-se tanto em comunicação que aos poucos o sentido da palavra se esvazia. É que realmente precisamos de outra comunicação: a que vem cheia de sabor humano, não essa comercializada, artificial, cheirando a produtos em série ou abarrotamento de armazém. Seria possível expressar a realidade da alma humana? E a compreensão de suas verdades íntimas?
Quem nos responde é, mais uma vez, o escritor E. M. Forster: «Na vida diária nunca nos compreendemos uns aos outros, não existe nem a completa clarividência, nem a confissão completa. Conhecemo-nos aproximadamente, por sinais exteriores, e estes servem o suficiente como base para a vida social e mesmo para a intimidade.» (10)
Não é a linguagem comum que guarda as sutilezas da alma, a nossa verdade. No quotidiano, falamos pouco e superficialmente. É o pragmatismo. O material da ficção difere bastante: paixões genuínas, sonhos, alegrias, tristezas, meditações, o pensamento a transformar-se em ação, enfim tudo o que é analisável no homem através do próprio homem. Arte literária pretende ser vida, a vida escondida, a que não se vive exteriormente por respeito ou polidez, mas que o artista da palavra transforma em ação e móvel de compreensão. O que é fictício no romance não é tanto a estória, mas o método pelo qual o pensamento se transforma em ação, um método que nunca ocorre na vida diária, desde que nossas ações - acorrentadas ao tempo e ao meio - não são produto do pensamento criador: são simples cópia do que nos ditou o código, a moral, etc. muitas vezes contrariando frontalmente o que vai no íntimo.
É natural que, para transformar um pensamento em ação interiorizada, coisa fictícia no romance ou na vida, o escritor há que ter à sua disposição instrumento expressional da nova realidade, a realidade da arte. Esse instrumento não é outro senão a linguagem literária ou poética, é o dizer artístico, que «se distingue do comunicar comum pelo caráter absolutamente novo de seus instrumentos expressivos, resultantes sem dúvida de um puro ato de criação e esse ato de criação cumpre-se sob duas formas diferentes: 1) ou em termos de um rearranjo nas formas comunicativas já gastas pelo uso, ou 2) através da criação de novos instrumentos verbais.» (11) No último caso, apontaríamos Mário de Andrade e Guimarães Rosa; no outro, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e O.G. Rego de Carvalho.
A linguagem de O. G. Rego é contida, depurada na sintaxe. Poderíamos dizer tradicional, clássica. E exemplificamos com o texto:

«Um trovão irado rebentou no horizonte. Apenas aí compreendeu Lucínio que a chuva não cessaria logo. Todo o céu estava envolto de nuvens cinzentas e fecundas, prontas a despejar. Nenhuma estrela; nenhuma esperança. Só a noite impenetrável e densa. Figuras sombrias ao lado - espectros de troncos, de galhos e folhas e frutos agitando-se no espesso véu das águas. Um pensamento escapou-lhe do fundo da memória: a vigília. Assustadora, a certeza de que aquela porta nunca se abriria, enquanto o pai estivesse doente.» (Rio Subterrâneo, pg. 8)

No vocabulário, aqui exerce a faculdade de criar por derivação, ali de usar alguns neologismos (estrangeirismos em «Rio Subterâneo» e brasileirismos em «Somos Todos Inocentes», destes, alguns ainda não dicionarizados até), mas com moderação suficiente, não chegando a tirar a feição nobre do escrito. Dá preferência a palavras que, por falta de uso nos nossos escritores contemporâneos - apegados ao coloquialismo e ao linguajar de certas regiões - nos parecem de sabor quinhentista. Para exemplo, apontamos: «íngreme», «senda», «bosque», «alameda», «balaústre», «umbral», «empós». O. G. Rego não teme as palavras, procura-as se necessário.
Com exclusividade, usa a forma «cousa» em vez de «coisa», assim como «rapariga» em vez de «moça», e só isto mostra quanto o falar de Oeiras está impregnado da herança portuguesa, pois é francamente observável a preferência por tais vocábulos no quotidiano dos oeirenses. Outras preferências: o uso da preposição «a» e não outras, mesmo em expressões em que o vulgo já a subestimou e os escritores aceitaram, e o tratamento na segunda pessoa e não na terceira, observáveis especialmente em «Somos Todos Inocentes», acentuam a asserção do gosto clássico, por nós apontado.
Daí ter surgido dúvida em Vivaldo Coaracy, formulada em carta ao autor, quando da publicação de «Amor e Morte»: «Permita-me uma observação, talvez impertinente. Notei no livro certa peculiaridades de estilo ou linguagem que me deixaram intrigado. Seria curioso saber se elas refletem uma busca de preciosismo ou artifício por parte do autor, ou se de fato reproduzem modos de falar corrente no Piauhy.» (12)
Até aqui já estamos suficientemente informados para afirmar que o preciosismo apontado, se se pode considerá-lo preciosismo, não é artifício nem reproduz o falar corrente no Piauí. Apenas reflete modo de falar corrente em Oeiras. E o resto fica por conta da arte do escritor, que apresenta a naturalidade estética na suas obras, nunca a naturalidade da vida, para usar os termos empregados pelo Prof. Massaud Moisés, citando João Gaspar Simões (13)
Quem andou acertando a respeito foi Hélio Pólvora, numa apreciação recente, publicada no «Jornal do Brasil»: «O rigor da expressão literária lembra o modelo clássico. A escrita é, por vezes, preciosista, na herança portuguesa recebida provavelmente da ilha da Madeira, por via familiar. Bastaria esta particularidade, para definir sua prosa no capítulo das conquistas pessoais.» (14)
A musicalidade da frase, deslizando num envoltório de estesias e hipotiposes (vejam-se as expressões verbais denotativas da visão como fitar, mirar, remirar, encarar, especialmente nos diálogos), continua a tendência impressionista de prosadores do passado como Raul Pompéia, Adelino Magalhães e Euclides da Cunha e torna-se uma constante de toda a obra, embora em «Rio Subterrâneo» já se possa apontar o aparecimento da técnica expressionista, porém de parceria com aquela.
Note-se, entretanto, que O. G. Rego procurou, exaustivamente, utilizar a maior variedade possível de vogais tônicas na frase, assim como, pelo exercício da sinonímia, não repete uma só palavra na mesma página escrita, sem prejuízo da mensagem, ou seja, a integridade da expressão. Assim, não se encontra, em cada pensamento expresso por cinco palavras seguidas, duas vogais tônicas do mesmo timbre, sacrificando até uma frase como:

«Mens sana in corpore...» ( «Rio Subterrâneo», pg. 70)

Apontaremos outros exemplos demonstrativos do que poderíamos chamar de estrutura melódica do romance citado, pois todo ele é construído nesse diapasão:

«Do sol apenas restava um leque de estrias róseas e azuis. Envolta, assim, no embaciamento da tarde, a ponte de madeira parecia mais íntima aos olhos de Helena. Era ali que se encontrava com Pedro, nos últimos dias de seu namoro...» («Rio Subterrâneo», pg.69)

Assonâncias e aliterações, comuns em outros escritores descuidosos do sem-valor disto na prosa, não existem na obra de O.G. Rego, tornando-se o texto de uma limpidez incomum. Não se encontra o menor tropeço, a pontuação obedece a um ritmo interior largo, sem transpor as fronteiras do decassílabo, estreitando-se, porém, se o ritmo interior o exige. Mas, de modo geral, o ritmo da frase se alonga.
Encontra-se num dos seus primeiros trabalhos, inserto em «Amor e Morte», a preferência pelo emprego do diminutivo. Num pequeno conto de três páginas contamos 19 diminutivos. Esse uso foi caindo ao passo que o escritor se apoderava de seu instrumento de expresão; porém, nas origens, dado fenômeno indicaria o caráter de brandura e calor humano de que se estava impregnando seu estilo. E esse caráter, mais adiante, patenteamos pela incidência constante do adjetivo terno e derivados como enternecer, enternecimento, ternura, ternamente, de par com outros vocábulos sinônimos ou afins. Basta saber que, em toda a obra de O. G. Rego de Carvalho, e numa estatística um pouco apressada, encontrei os números abaixo (englobando terno, seus derivados, sinônimos e palavras afins):

Em «Amor e Morte»............................. 26
em «Ulisses Entre o Amor e a Morte».... 33
em «Somos Todos Inocentes»............... 76
e em «Rio Subterrâneo»......................... 100

Bem sabemos que a palavra isolada não caracteriza a linguagem intelectual e afetiva porque a unidade linguística está necessariamente na frase. (15) Entretanto, a acreditarmos que tenha a palavra tido origem no canto, como afirmam muitas autoridades, podemos admitir que sua sonoridade guardaria mais fidelidade às origens. Por isto mesmo a palavra (ou frase) sonora seria a mais verdadeira.
Não fiquemos apenas na estatística. Nem apenas nos vocábulos. Vamos, então, ao discurso:

«Recuei devagarinho, e a empregada me tomou a mão, abrangendo com o olhar as relíquias que Oeiras amava.» (Ulisses, pg. 11)

«Quando subimos os degraus do alpendre, que as trepadeiras envolviam de verdura, Marlene voltou-se para o lado da montanha e apontou a escuridão:
- A floresta e o rio negro.» (Amor e Morte, pg.19)

«Uma voz tímida veio do canto:
- Se seu Raul deixar eu mostro.» (Somos Todos Inocentes, pg. 75)

«Desceu a mão pelo corpo, imaginando que era a própria Afonsina quem o fazia, excitada pelo bater de vento e chuva nos oitizeiros.» (Rio Subterrâneo, pg.75)

Não foi necessário nomear a ternura do olhar da empregada que conduzia Ulisses, a doçura de Marlene, a delicadeza de Dulcinha nem a afetividade sonambúlica de Hermes por Afonsina, para que o leitor fosse tomado por essas sensações. Nisto é que consideramos o ajustamento da linguagem ogerreguiana: ajuda o leitor compreender melhor o sofrimento e a morte, a angústia e a solidão, da mesma forma que a música ajuda a a platéia do filme a transpor o desespero, a tragédia, enfim, a carga emocional. Em O.G. Rego, a linguagem é suporte musical, fundo lírico, onde se recorta o drama do ser entre tensões e distúrbios que se processam no íntimo e não na periferia.
Visto que falamos em lirismo, vejamos o que ocorre com a linguagem de O.G. Rego, especialmente em «Rio Subterrâneo». Não passará despercebida do leitor a cadência do decassílabo. E o Prof. Vidal de Freitas, num estudo publicado no jornal «O Cometa», declara haver contado cerca de 800 decassílabos, e segue enumerando alguns. Num trecho em que O.G. Rego fala do ambiente, na fumaça, encontra seguidamente os seguintes: (16)

«... dança ao sopro do vento, e traz até
o corredor o cheiro de resinas,
essências e perfumes de floresta
distante que a madeira inda conserva...(pg. 11)

Outras citações são feitas, porém sem obedecer ao critério de sequência do texto. E dá os seguintes exemplos isolados:

«O rosto na penumbra era belíssimo» (pg.50)
«E o rio engrossa como em vinte e seis»(pg. 7)
«Sua irmã tinha o corpo adolescente» (pg. 5)
«Lucínio estremeceu só em pensar» (pg.4)

Antes, porém, apresenta alguns pares de versos como:

«Gostava de sentir os seios dela
em suas mãos: carne macia e tépida» (pg. 36)

Quando o crítico Hélio Pólvora assinalou que «a primeira parte de Rio Subterrâneo - Limbo - é um monumento solene da prosa brasileira»,(17) em verdade não achei exagero. Antes pelo contrário: todo o livro é solene, imponente sem verbosidade, linguagem sem jaça, estilo de boa cepa; só poderíamos encontrar paralelo nos portugueses, nunca nos brasileiros. As aproximações que se fazem com Machado ou Graciliano prendem-se a outra face da obra ficcional, jamais ao estilo. Prendem-se precisamente à interioridade, à técnica, a um mínimo de ação em proveito do enredo propriamente dito.
Engano é tachar de preciosista o seu estilo só porque usa os falares de sua terra, transfigurados literariamente, ou porque, não querendo seguir a corrente de escritores que inventam palavras e expressões - o exemplo mais digno de nota é Guimarães Rosa - usa de alguns arcaísmos (mas porém, dês, alfim, etc.), especialmente em «Somos Todos Inocentes», mas sem redundância e acidentalmente, de forma que não chega tal uso a caracterizar sequer um capítulo de sua obra.
Por último, lembrei-me de focalizar o que há de mais importante para identificação de um escritor de fôlego: o emprego do adjetivo. O. G. Rego faz adjetivação constante e variada, não chegando ao esteticismo de Eça, ao preciosismo de Coelho Neto. E sem descer ao vulgarismo dos românticos brasileiros em geral (exceção de José de Alencar).
Um paralelo com Cornélio Pena, de quem Fausto Cunha afirma «não conseguir sofrear o caudal amazônico dos vocábulos, inanes para representar o drama interior da vida», seria algo interessante. (18)
Assim escreve O. G. Rego de Carvalho:

«E adiante, o rio cor de barro: imenso, vertiginoso, túrbido, a refletir o sol que nem um espelho.» (Rio Subterrâneo, pg. 122)

Assim escreve Cornélio Pena:

«As montanhas negras, escorrendo chuva, apagadas pelo denso nevoeiro que sobe da terra, calçada de ferro e também negra, caminham aos meus olhos, lentamente, como em sonho sufocante.» (Fronteira, pg. 19)

Observe-se nos dois a mestria do uso do adjetivo, correto, necessário. O que há de mais diferente entre ambos é o ritmo, caracterizando o estilo de cada um.
Propositadamente escolhi um autor que tratasse do mesmo tema - a loucura - no arriscar um paralelo, para enfatizar a originalidade de O. G. Rego de Carvalho, mostrando, assim, que um tema semelhante não requer estilo idêntico. Só o ser Cornélio Pena da geração imediatamente anterior à de O.G. Rego - pois o primeiro livro daquele foi lançado em 1933 - poderia mostrar uma coincidência de gostos estilísticos quando muito, nunca uma influência que na realidade não houve.































































NO MUNDO DOS SÍMBOLOS


Criar símbolos é valer-se da intuição para atingir proporções universais. De símbolos são feitas as epopéias e os grandes romances, D. Quixote, Sherlock Holmes, Conselheiro Acácio e D. Casmurro são personagens-símbolo de grande força, criados ou inventados, reais ou imaginários.
Símbolo aqui não é a palavra usada referencialmente, mas a estória e o personagem usados como universo de idéias e pensamentos, como coisa real que transcende a si mesma. A alegoria e o símbolo são produtos da intuição policiada e trabalhada com finalidade nítida ou aparente, ao passo que a fantasia é desordenada e não conhece os limites do real, sendo mais própria do irrealismo artístico.
Em O.G. Rego de Carvalho a fantasia está reservada aos personagens, especialmente Lucínio e Helena, em «Rio Subterrâneo», não tomando parte nela o autor. A este, porém, cabe a tarefa de criar um mundo de fantasmas e símbolos que se adentram na trama, se misturam e se diferem, com uma grande força de ação sobre os personagens propriamente ditos. Tomam conta dos livros como se fossem sobrenaturais e deles adviessem todo o mal e todo o bem, todo o sofrimento e toda a aflição, portadores que são de conhecimento prévio, como deuses a comandarem a vida e os homens.
Num levantamento sumário, apontaríamos alguns dos símbolos trabalhados pelo escritor piauiense: o sobrado, a fazenda (em «Ulisses» denomina-se «Selga» e «Junco» em «Somos Todos Inocentes»), as ruínas da Cadeia Velha, o rio (o Parnaíba, em «Rio Subterrâneo»), o poço (em «Somos Todos Inocentes»), os morros de Oeiras (especialmente aquele onde existem as marcas do pé-de-Deus e do pé-do-Diabo), a própria cidade de Oeiras, todos são símbolos do campo espacial ou natural. Já aqui apontaria outros situados no campo personativo: Joana, José (o pai de Lucínio), o pai de Ulisses, o amolador, Neusa, Benoni, o Velho, etc. E inda há outros inclassificáveis, como Buque em «Rio Subterrâneo» e os pombos em «Ulisses». Numa classificação geral, as pessoas acima apontadas poderiam ser personagens; estruturadamente não são personagens - são símbolos, ou alegorias. José, o pai de Lucínio, é o sofrimento em família, a solidão, a doença; Joana, a loucura impassível, sem ternura, evitada por todos; Benoni , o imprevisto da condição humana, no entanto acontece como prenúncio do que aconteceria a Lucínio: o suicídio; Neusa, a mulher que não terá o amor, impedida pela fatalidade da doença e disto consciente mas nunca aceitando, sempre a acreditar no inacreditável: «Eu ia me casar com um homem talentoso - prosseguiu Neusa, reacomodando sobre as pernas o braço enfermo. Ainda somos noivos em certo sentido. (...) O noivado é um sentimento, sabia? A comunhão...» (Rio Subterrâneo, pg. 45)
Personagens são os móveis da ação que, por pequenina que seja, não deixa de existir no romance. A ação de Neusa não é dela própria, mas de Afonsina - a dona do ponto de vista, no caso apontado. É Afonsina quem lembra os passos desconexos (um curto, outro longo), talvez sentindo pavor, mas tendo um interesse bem humano sobre sua opinião. A opinião de Neusa pesa sobremodo nela e em Hermes. «Uma pobre doente» é a opinião de Hermes, sintetizando uma profunda piedade em sentença tão vulgar e ao mesmo tempo densa de compreensão.
Em «Rio Subterrâneo», o cachorro «Buque» traz-nos a lembrança da célebre «Baleia», de Graciliano Ramos:

«Buque ressona no alpendre, encolhido junto à parede da cozinha. Nada se movimenta no sítio, exceto a ramagem nova ou tenra, e a cancela que range em surdina, como se alguém a abrisse. Rápido, o cachorro desperta, levanta as orelhas, e corre para o portão. Não late, nem estranha a figura silenciosa que vem na penumbra da aléia. Lucínio emociona-se, o medo imobiliza-o. Não pode ver o homem que se aproxima. Sente: é seu pai.» (Rio Subterrâneo, pg. 29)

O cachorro coopera com o silêncio da noite, com o de Lucínio e com o do pai. Não apenas porque o reconheça, mas porque o autor lhe atribui também o sentimento da dor e da solidão de que está possuída a quinta de Timon, onde Lucínio e os seus vivem a doença de José, sofrimento que leva o filho a sentir atração pela morte. E quando retrocede ao passado - o que normalmente faz - as crises de solidão, medo, angústia e sonhos tétricos se sucedem.
No fundo do poço morreu Celina, louca de paixão por Luizinho, a onça da mão torta é lendária em toda a região central do Piauí: Oeiras, Floriano, Picos, Valença. Acidentes existentes outrora na antiga capital do Piauí tais como o Pelourinho e a Casa de Suplícios; outros que só existem em ruínas como a Cadeia Velha; o Morro de Oeiras, com o pé-de-Deus e o pé-do-Diabo são «as relíquias que Oeiras ama», no dizer do próprio escritor, em «Ulisses», e símbolos revividos e reinventados pela pena de O.G. Rego de Carvalho, num tratamento literário incomum, carregando-os de significação com elementos da história e da psicologia do povo.
O que se nota é a simplicidade na elaboração, a leveza do transfigurar, a humanidade de cada um dos símbolos apontados, resumindo irredutível consagração de amor ou de vergonha, de carinho ou de ódio, de desprezo ou de vaidade em possuí-los. Oeiras ama mesmo aquilo que contribui para sua derrota. Ama, porque tudo aquilo lembra um passado de glórias. Não só por arrolar tais símbolos como se fossem simples acidentes ou pontos de referência, mas por universalizá-los é que dizemos que um romancista igual a O. G. Rego só poderia vir de Oeiras, uma cidade decadente, onde se desenvolveu uma civilização, uma elite, a primeira do Piauí. As decadências é que têm favorecido as grandes obras romanescas.
Os símbolos vão aparecendo na vida interior dos personagens, com uma naturalidade que nos espanta, acordam-nos para que os contemplemos e comunguemos com eles, «amando tudo quanto Oeiras ama.» Assim é o caso do amolador:

«Era alheio e profundo o olhar de Helena. D. Glorinha tomou-lhe as mãos, apreensiva com o silêncio dela. Estaria noutra de suas tristezas, logo hoje que iria pegar o avião? Desde que fora obrigada a romper o namoro, tinha dessas crises, passando horas no quarto. Ainda bem que irá para Timon. Vendo o primo amiúde, acabará por esquecer o outro. Ela diz que não, mas o ressentimento não se apagou. Talvez não se apague nunca. Na rua branca de sol, novamente o amolador rodava a sua pedra, levando a tesourinha a um gemer dilacerado.» (Rio Subterrâneo, pg. 84)

Há como que uma fusão do sofrimento da natureza (a pedra, a tesoura) com as apreensões de D. Glorinha, a mãe de Helena, casando com o ressentimento desta por ter liquidado o namoro. E é bom que notemos a validade e oportunidade do advérbio de tempo «novamente», na construção de O. G. Rêgo de Carvalho, dando uma extensão maior do que a pensada, à primeira vista, ao amolador e sua tesourinha na pedra, nos últimos momentos de preparação da viagem de Helena e sua mãe.
O antigo sobrado dos Ribeiros, «que a lua revivescia no seu esplendor funéreo», paredes cinzentas como sepulcro do tempo, tem uma significação tão grande para os viventes de O. G. Rego de Carvalho que Ananias e Dulce recuam diante dele:

«Em seus salões imensos moravam deuses. Criança ainda, ouvira histórias fantásticas a seu respeito, que lhe deram sustos e insônias. Fora construído com o suor escravo, e contam que antes de morrer no pelourinho, após a captura, pai João amaldiçoara o tataravô de Raul, por setenta e sete gerações. Muitos invernos se passaram. Veio o rebentão de 1915 e o rompimento do finado coronel Mundico. Depois os revoltosos, um inferno. Mas todo dia, quando madruga, o sol vê o Sobrado de pé, desafiando o tempo com suas paredes de rocha, as grades de ferro e o catavento lá em cima. Ananias admirava-o e entrementes o temia. Desobedecer ao Velho? Não, nunca.» (Somos Todos Inocentes, pg. 99)

Agora vejamos as reações de Dulce e de sua irmã Marieta:

«Ergueu a vista de repente e defrontou o Sobrado. Como vim parar aqui? Quem me arrastou a essa casa de que só tenho más recordações? Lembrou-se de Celina. Aquela pobre não foi a única vítima do Sobrado. Outras virão, até que ele se destrua pelo tempo. (Somos Todos Inocentes, pg. 63)
Pensas que não me importei com tua ida ao Sobrado? Papai morreu de ódio, gritou-lhe Marieta, certo dia.(Idem, pg. 23)

O Sobrado simboliza o domínio e o poder, detido por muitos anos pelos Ribeiros, tanto quanto o ódio das famílias opositoras capitaneadas pelos Barbosas, que ansiavam por vê-lo cair, embora muitas vezes também desejassem a reconciliação e a concórdia. O Sobrado e outros símbolos dão o tom da criação de O. G. Rego de Carvalho, de permeio com as loucuras, doenças, tensões, anseios e amarguras dos seus personagens: Dulce, Helena, Lucínio, Ulisses, José (o irmão de Ulisses), etc. A morte e o amor são símbolos do amor que não atingem, pelo menos ao grau desejado, e da morte que desconhecem e no entanto temem. Um símbolo do amor: Conceição ( em «Ulisses entre o Amor e a Morte»); um símbolo da morte: Benoni ( em «Rio Subterrâneo»).






































AS TÉCNICAS

1

Em qualquer romance, o ponto de vista, ou seja, o foco narrativo pertence a um personagem, o qual comanda a ação através do desenrolar da narrativa; o pensamento vai concentrando o passado e arranjando as perspectivas do futuro, torna-se presente pelo diálogo, mas não dá ênfase maior a este ou aquele fato ou incidente, para não prejudicar a homogeneidade.
Normalmente os personagens principais, ou os mais fortes, comandam a narrativa. Ulisses, em «Ulisses entre o Amor e a Morte»; Dulce, em «Somos Todos Inocentes» e Lucínio, em «Rio Subterrâneo» estão nesse caso. Em «Rio Subterrâneo» que, estilisticamente, é um bloco, o ponto de vista se biparte entre Lucínio e Helena, havendo de permeio os personagens colaterais: Hermes e Afonsina. Em «Somos Todos Inocentes» também Raul e Dulce comandam o barco, mas Dulce é quem domina. Já «Ulisses», com a narrativa na primeira pessoa, aproximar-se-ia mais de um livro de memórias, não fosse a quebra de continuidade exterior, pois que segue o compasso da alma que se forma. Capítulos curtos, mudança de espaços, eis as principais técnicas para a quebra da linearidade, não só neste como em «Somos Todos Inocentes». Como quer que seja, sempre a mudança de espaço ocorre para facilitar a ação interior. Parece-me que Raul, indo para a fazenda, lá engrandece ou acrescenta algo a si, tanto quanto Ulisses vindo para Teresina encontra abertura e meios de desenvolvimento de si.
Onde a técnica do romance mais se apresenta apurada é em «Rio Subterrâneo», e seria bom observar a maestria como o escritor passa do quotidiano atual ao passado, através das recordações. Lucínio se movimenta numa quinta, Timon, à beira do rio Parnaíba, onde mora com seus pais; por perto há o porto, a quitanda; no quarto de sua casa, a insônia (dentro dessa, passa ao sobrado de D. Filomena, onde a louca Joana - doente como o pai de Lucínio - vivia):

«Mais Lucínio não ouviu, porque sua consciência o obrigou a recolher-se, com tempo, ainda, de segurar as bandas da janela, que iam arremessar de novo contra a parede. A lufada zune em seus ouvidos lhe sufoca a garganta. Mas tudo voltou a ser como dantes, inesperadamente quieto, embora a chuva, desnorteada pela ventania, açoite os pés de manga (caem as frutas uma a uma) e destelhe o galpão perto da cozinha, onde fica o depósito de lenha. Que lhe adiantam agora os ruídos da tempestade? Os resmungos do velho são cada vez mais fortes. Escuta-os com nitidez, apesar da distância que o separa da alcova. Mas não entende essas maldições que seu pai solta contra a noite, febril, diante da rede que a mulher vigia e ora. Suas palavras não têm nexo; assumem às vezes formas estranhas: pastel de sons guturais, ininteligíveis. Como estará sua mãe em frente ao delírio? Calma, entregue à resignação, ou atormentada até ao desespero? Oh, não convém pensar nisso, senão ele próprio adoece, assim como Joana. Sabe que não pode dar jeito, e é sua impotência que o aflige. Melhor recordar, prender-se às lembranças: elas aliviam as dores da hora presente. Contudo, para onde fugiu o seu passado? Onde o esconderam? Todo mundo guarda, com carinho, as boas recordações, que as más o tempo se encarrega de reviver. Só Lucínio não tem nenhuma: é um jovem sem infância, sem raízes, sem nada. Sempre que faz um esforço de memória, não consegue ir além do sobrado de Dona Filomena, como se tudo se resumisse naquela manhã em que nele penetrou sozinho. Joana! Como o persegue esse fantasma. Ainda não era nascido, quando a pobre enlouqueceu. Parece-lhe que a vê agora, de robe e de cabelos soltos, recomendando cuidado ao filho que se dispõe a matar a cobra preta, que de noite fazia ronda pelo telhado. O menino tem nove anos: não conheceu o pai, morto sinistramente, à traição, num bosque perto de Oeiras.» (pg. l9/20)

E assim segue. Lembrança que se faz presente.
Reconheço que a transcrição foi exaustiva, mas não vejo outro meio de mostrar como o autor passa da viva real à vida recriada. Interessante notar que o reviver de Lucínio com a louca Joana se alonga por todo o outro capítulo (pg.22/24), um dos mais tétricos e ao mesmo tempo mais lindos da obra, onde ninguém sabe o que é vivido e o que é sonho, tudo se fazendo ao mesmo tempo presente e passado. A técnica: não há um só verbo no pretérito, seja perfeito ou imperfeito, tudo é presente recriado - seria apenas imaginado? - sobre as lembranças do menino. Só no capítulo seguinte, pg. 25, é que o autor vem a descobrir que «Lucínio não dorme», embora «tudo convide ao sono». Lucínio está exaltado pelas recordações da avó de Helena - Joana. E segue os seus meandros, febricitante, transformando-as em vida e ação. «Vira-se na rede, e abre os olhos, dilatando as pupilas. O quarto permanece escuro. Felizmente não chove mais.» (pg. 28)
Fecha o último capítulo da parte denominada «Limbo», com a visão de seu pai que se aproxima e, no entanto, não pode tocá-lo nem dirigir-lhe a palavra: «o medo o imobiliza.» (pg. 29)
Nesse capítulo aparece a ponta da pequena estória de «Rio Subterrâneo» (pg.17), quando a mãe, diante de um despropósito do menino, diz que ele deve casar logo com sua prima Helena. Entretanto, todas as partes têm uma significação espaço-temporal: por elas é que o autor alcança a técnica da descontinuidade dentro do todo homogêneo. Assim, a primeira parte é escrita do ponto de vista de Lucínio, que se localiza em Timon; «Mãos e Braços» se desenrola do outro lado do Parnaíba, com Hermes e Afonsina no leme do enredo, simultaneamente ou de per si; «Oeiras» pede a visão de Helena, quando se decide a vir estudar em Teresina; Lucínio volta a dirigi-la em «O Rosto na Vidraça», entrando na problemática de Benoni, juntamente com Afonsina e Hermes (veja-se o capítulo da sentinela). No último capítulo há um real encontro dos personagens e dos pontos de vista destes: evocam as mais importantes e as mais tétricas visões da vida de ambos: as da avó de Helena. Há aí, evidentemente, a aproximação com o dito «plano chapado», ou seja, a coincidência dos pontos de vista, como já acontecera noutras partes, especialmente nas pgs. 61/63: «Para Helena o largo corredor às escuras, as salas espaçosas, apenas sob a luz pálida das velas, tudo a atraía e simultaneamente lhe estreitava o coração.»
Por que faz menção explícita: «Para Helena...?» O ponto de vista não é dela?
Contos que são partes de «Amor e Morte», em «Rio Subterrâneo» aparecem como capítulos, e muito bem encaixados. Enumeramos:

- «Rua do Fogo», que aparece em «Rio Subterrâneo», pgs. 61/63, integralmente, figurando um sonho de Helena;
- «No Bosque», ali aparece, mas completamente reescrito e readaptado à nova circunstância, pgs. 52/54;
- «Passeio a Timon», integralmente, o autor o reproduz em «Rio Subterrâneo», pgs. 138/140, mas em caracteres diferentes (itálico).

Alguns comentários sobre o último: inicialmente parece uma estória solta e sem nexo, no meio do romance. Para que, então, o autor ali o colocou? A nossa interpretação foi esta: seria um escrito secreto ou uma idéia fixa de Breno (Lucínio) sobre a morte. Hugo seria Hermes e, nessa alegoria, Elza seria Afonsina, namorada do último. Veladamente, aí aparece o triângulo amoroso: Helena x Afonsina x Lucínio. Em coerência com as idéias de Breno (Lucínio), que via beleza até na morte, seu companheiro Hugo (Hermes), enciumado, mata-o ardilosamente. Parece nova essa técnica alegórica, desconcertante, de O.G. Rego de Carvalho. E, no entanto, é nela que reside a trama de «Rio Subterrâneo», não a estória, mas a trama. Eis o que entendo por trama.
Em «Ulisses entre o Amor e a Morte» os momentos importantes são contados pelo próprio escritor ( que se confunde com o personagem Ulisses, na primeira pessoa). Não há nele uma visível seqüência cronológica. A ação que interessa é interiorizada. E há José, irmão de Ulisses, o outro personagem forte do livro. Os capítulos normalmente se bastam a si e podem ser considerados contos, isoladamente. Seu parentesco com o romance tipo «memórias» levou a que o Boletim da Biblioteca do Exército inserisse em suas páginas, número de abril de 1957, as seguintes palavras: «Curiosas e sensíveis páginas, essas de «Amor e Morte», de O. G. Rego de Carvalho, em edição de Caderno de Letras Meridiano, 1956. O leitor não encontrará propriamente os contos e novelas que o índice menciona; encontrará apenas episódios autobiográficos, transparentemente autobiográficos. Mas quanta beleza e ternura humana na prosa desse jovem escritor piauiense.» (20)
«Amor e Morte» é uma reedição de «Ulisses entre o Amor e a Morte», acrescida de alguns contos e da novela «Amarga Solidão».
Mesmo não se tratando de publicação especializada, queremos chamar a atenção para o artigo publicado pela revista «Anhembi», de São Paulo, de novembro de 1954, referindo-se a «Ulisses»: «O romance se arquiteta de maneira simples, apenas em suas linhas essenciais, suficientes para sugerir uma ambiência sóbria, de meios tons, em que o nosso espírito se sente possuído de toda a sinceridade lírica, evocadora, que a obra encerra. Não comporta argumento. Não exige enredo: o romance, artisticamente concebido, são quadros da vida psíquica, mas unidos, ligados, além do tempo e da paisagem física, fixados apenas pela idade psicológica, aberta às primeiras impressões que marcaram a memória.» (21)
Já «Somos Todos Inocentes», com as marchas e contramarchas do autor puxando o passado para o presente e acompanhando seus personagens, o leitor observará, não obstante a falta de indicação, que está dividido em três partes distintas. Numa entrevista ao jornal «O Dia», foi o próprio autor quem declarou que o livro foi estruturado em ritmo de sonata. (22) Dizer que «Somos Todos Inocentes» é um romance com técnica naturalista seria injusto, pois é apenas meia verdade. Enxergo três momentos na construção do romance «Somos Todos Inocentes»:

I - O momento romântico - Raul e Dulce em Oeiras, pg.1/63;
II. - O momento naturalista - Raul na Fazenda, pgs.65/122;
III - O momento realista - Raul, Dulce e Amparinho, todos em Oeiras, pgs.123/208 (na busca de uma síntese).

2

Tempo: É neste aspecto que podemos colocar O. G. Rego de Carvalho entre os bons romancistas brasileiros da atualidade. O tempo é a obsessão do século XX. Parece-me que essa obsessiva preocupação no utilizar o tempo vai da primeira página de «Ulisses» até a última de «Rio Subterrâneo». Ele está sempre contra o tempo cronológico. Deste aparece o mínimo e o suficiente para dar consciência do real, ou o estado do personagem, como naquela passagem de «Rio Subterrâneo» em que «o relógio soa uma vez apenas, e Lucínio se inquieta porque não sabe que horas são.» (pg. 28)
A idéia de que Lucínio estava realmente acordado e não dormindo, agora como antes, ou num estado crepuscular em que o tempo do relógio não lhe interessaria, é, para o leitor, contribuição do autor onisciente e do personagem. Fundem-se aí o tempo de romance e o do personagem num não saber-se que tempo é e quanto tempo é. O apelo ao tempo cronológico, através da menção do relógio e de horas insabidas, tem a missão de despertar a angústia de Lucínio, em vigília: «Horrível essa incerteza do tempo à noite, para quem, desperto, há muito imagina que todos dormem. A insônia é para eles a pior das torturas.» (Rio Subterrâneo, pg. 28)
Raras vezes o autor se refere ao tempo da ação, e quando o faz é para confirmar ou tornar mais agudo o sofrimento do personagem: noite, tarde, escuridões, nuvens, vultos que aparecem e desaparecem, penumbra, tudo nos dá a idéia de sofrimento, tristeza, agonia, incerteza. Ninguém sabe a quanto monta o tempo de «Rio Subterrâneo», no decorrer do romance. E só na última página encontramos, assim, uma indicação imprecisa: «Sentados no banco da popa, juntos do saco e do baú, Lucínio e Helena miravam a vastidão das águas, confusas dentro da neblina, ambos silenciosos: ele a evocar a insônia da note precedente, cheia de mistério e dúvida, e ela absorta na contemplação das espumas, como se visse os buraquinhos de Joana na parede...» (pg.168)
É possível que toda a ação de « Rio Subterrâneo» transcorra numa noite de insônia e pesadelos, visões e sonhos: a noite anterior ao encontro dos dois, Lucínio e Helena, em Teresina, porém no livro não está dito. É preciso que o leitor adivinhe.
Mas, não. Quanto dura o primeiro capítulo, em que Lucínio sofre desesperadamente a doença do pai? E duram quanto as brincadeiras perversas, com lagartas, cobras e rãs? Onde fica a morte de Benoni? Não teria sido real?
Em «Rio Subterrâneo», escrito na terceira pessoa como «Somos Todos Inocentes», quase não se observa a presença do autor onisciente, o que ocorre com frequência no último, conforme se vê no relato da morte da égua Graciosa, no entanto uma das mais belas páginas do livro. A certeza da morte da besta (pela visão de José e na descrição do autor) está, efetivamente, com o leitor, desde a pg. 18. Mas, na pg. 21, ao enfatizar a confusão de sentimentos de Dulce diante da morte do pai, assim acrescenta: «Enternecida com a idéia, Dulce sentiu um aperto na garganta. Quis chorar porém não pôde. Um sentimento estranho, agridoce, a impedia, envolvendo-a numa onde de pesar e esperança, alegria e desespero. Perto da esquina, encontrou Graciosa, e seguiu sem se deter, tomando-a por um cavalo dormindo.» Logo no primeiro capítulo do livro, sabe-se que Dulce quer ir ao baile, vai efetivamente ao baile e até já voltou do baile (pg.12), mas só mais adiante, pg. 17, é que José descobre, pela voz, ao passar diante do Sobrado, que a filha está lá.
Acontece que, trabalhando com miniaturas de personagens de personagens e situações, na tentativa de abarcar uma crônica social e psicológica, em «Somos Todos Inocentes» O.G. Rego de Carvalho deixa que a fábula ceda lugar à realidade plana e à linearidade da narrativa, apesar de sua forma aparentemente fragmentada, no dizer de Hélio Pólvora. (23) O autor prefere acompanhar os protagonistas através do tempo e do espaço a deixá-los senhores de si e de seus pensamentos como em «Rio Subterrâneo», onde, obedecendo a uma estruturação interior, de caráter comunicante e social, faz maiores aberturas na linguagem.
Como em «Somos Todos Inocentes», o tempo que aparece em «Ulisses entre o Amor e a Morte» não se liga em dias, meses, anos, etc. O tempo físico existe para que Ulisses sinta e, sentindo, sonhe com o que um adolescente pode sentir: uma amor que se perde, a ternura da mãe, a doença do pai, as primeiras tentações da carne, o medo. E essa falta de ligação ininterrupta do tempo é que dá à leitura de cada capítulo a ilusão de que temos contos e não uma novela.
Reconhecemos que foi, realmente, essa luta contra o tempo cronológico que vimos na leitura global dos romances de O. G. Rego de Carvalho, em obedecendo a escala de concepção, ou seja, de «Ulisses entre o Amor e a Morte» a «Rio Subterrâneo».

3

A preponderância do espaço sobre o tempo - embora reconheçamos que essas duas categorias não se dissociam - é própria do romance de observação, de cunho naturalista. No romance romântico, o espaço se associa com o tempo cronológico, isto é, tudo é exterior ao «eu», resultando em falsidade do real. O romance moderno, psicológico portanto, centrado na subjetividade, subverte as categorias de espaço e tempo, dando ênfase ao personagem. Os conflitos deste é que merecem estudo e observação, pois que refletem reações do «eu» com os «outros» personagens. A síntese ou a totalidade seria o encontro do «eu» com os «outros», mas esse encontro fica sempre no plano das idealizações ou fantasias, nunca no das ações propriamente ditas.
Mesmo reconhecendo a impossibilidade da total comunicação entre os homens, e talvez por isto mesmo, O. G. Rego de Carvalho se volta para o romance psicológico - com espaço e tempo cronológico apenas servindo de acessórios - especialmente em «Rio Subterrâneo», como continuação da tentativa que foi «Ulisses».
Numa fase de vivências externas, de busca do mundo dos semelhantes para uma afirmação, O. G. Rego entreviu os choques e as mudanças, realizando um romance que poderia ser chamado de tese , mas no qual, conscientemente, o autor não desejaria provar nada. É, pois, «Somos Todos Inocentes»: um mundo de intrigas, ódios, desejos de compreensão, fraquezas morais. Mundo de relações, ou que mostra a impossibilidade de satisfação dessas relações. É no amor que o homem mais se aproxima do homem. Amor é o assunto principal do livro, amor e ódio, amor que nunca se realiza. E se se realiza, é como o amor de Dulce por Pedrina, não fundamentado na caridade mas num desejo de perdão, numa espécie de expiação de culpas passadas.
O espaço dos romances ogerreguianos, ora Oeiras, ora Teresina, não favorece a eclosão e aproximação das pessoas, dada a rarefação populacional, dado o domínio de famílias que vivem ainda sob o signo da riqueza de que outrora foram portadoras, famílias que vivem de rendas, sem as preocupações mesquinhas do dia a dia, do mundo da produção: mundo estagnado, social e economicamente. E sabemos que o setor onde as aproximações mais se conflitam é o da economia. Daí porque os conflitos, em O. G. Rego, não se originam no exterior - salvo em «Somos Todos Inocentes» - mas na alma de cada ente, na solidão pesada da alma doméstica e tradicional de Oeiras.
As pessoas que não fazem parte da família, os empregados, os serviçais, não tomam iniciativa, não têm nome, não aparecem. Duas ou três vezes em «Rio Subterrâneo» e outras tantas em «Somos Todos Inocentes» encontramos empregados que são citados pelo nome, isto mesmo porque são considerados «crias», pessoas que integram a família. Como personagens, Pedrina, Ananias e Dulcinha, que são de baixa condição social (em relação às boas famílias), rompem o cerco das convenções. Especialmente Pedrina: os outros estão na Fazenda; e os de Oeiras vivem dela tão distanciados que praticamente só sabem o nome.
Teresina e Timon são apenas espaços físicos, não apresentam nenhuma relação com o tempo, portanto são simples pontos de referência que se diluem nas visões aterradoras e tétricas dos personagens de «Rio Subterrâneo», no fresco lirismo de «Ulisses», na simples referência de personagens secundários de «Somos Todos Inocentes», como são, no caso, Pedro e Helena.
A paisagem de «Ulisses» e de «Somos Todos Inocentes» serve como acessório narrativo, ora se integrando na psicologia dos personagens, ora dela se dissociando. Em «Rio Subterrâneo» não existe, praticamente, paisagem exterior: tudo faz parte do estado de ânimo dos personagens, especialmente daqueles que detêm o ponto de vista - os protagonistas. O chover constante ajusta-se à angústia, à solidão e ao sofrimento de Lucínio. Se o sol e as manhãs aparecem constantemente em «Somos Todos Inocentes» é para mostrar o fogo da juventude nos corações, não para focalizar as inclemências do clima de Oeiras e do Piauí.




















































ESTÓRIA E ENREDO


Outra coisa que caracteriza bastante o romance moderno(psicológico) é a falta de estória. A ação está quase totalmente entregue aos personagens, é uma ação interna, focaliza aquilo que de menos vulgar existe na vida social. E daí não advirá uma estória ou ação exterior. A ação é do âmbito do pensamento no fluxo constante, ininterrupto, descontínuo, esteja o personagem a conversar numa sala de visitas, deitado numa rede, ou dormindo, e até no estado crepuscular entre sono e vigília. O pensar não pára nunca, embora a psique humana, contida pela barreira dasconvenções, não expresse pela palavra o que viveu ou vive, em toda a plenitude. Como seria alguém capaz de captar o que se passa no alheio íntimo? A frase de Lucínio, extasiado ante as recordações de Joana: «Ela não fala nunca», é bem característica da inquietude do homem diante dessa problemática universal.
O mundo invisível e ao mesmo tempo incontável motiva toda a ficção moderna. Seu tempo tem medida no próprio homem.
Quem já foi capaz de conhecer a si mesmo? E em conhecendo, pôde contar aos outros? Eis que isto é matéria de romance, inesgotável.
Diz E. M. Forster que «a estória é primitiva, remonta às origens da literatura, antes da descoberta da leitura, e atrai o que há de primitivo em nós. A estória, além de dizer uma coisa depois de outra, acrescenta algo por causa de sua conexão com a voz. Não acrescenta muito. Não nos dá algo tão importante como a personalidade do autor. Sua personalidade - quando ele a tem - é transmitida através de instrumentos mais nobres, tais como as personagens ou o enredo, ou seus comentários sobre a vida. O que a estória realmente faz nesta função particular, tudo o que pode fazer é transformar-nos de leitores em ouvintes, para os quais uma voz fala, a voz do narrador da tribo, agachado, no meio da caverna, e dizendo uma coisa depois de outra até que o auditório adormeça entre seus despojos e ossos.» (24)
Dito o que significa estória, vejamos, e novamente pela mão de E. M. Forster, o que vem a ser enredo: «Definiríamos a estória como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua seqüência no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a causalidade. O rei morreu e depois a rainha - isto é uma estória. Morreu o rei, e depois a rainha morreu de pesar é um enredo. A seqüência no tempo é preservada, mas o sentido de causalidade obscurece-a. Ou vejamos: A rainha morreu, ninguém sabia porque, até descobrir-se que fora de pesar pela morte do rei. Este é um enredo com mistério, uma fórmula capaz de desenvolvimento superior. Suspende a seqüência no tempo, afasta-se tanto da estória quanto as suas limitações permitirem-no. Consideramos a morte da rainha: numa estória, diríamos - e depois? ; num enredo - por quê? Esta é a diferença fundamental entre esses dois aspectos»(25) Embora nem todos aceitem a distinção entre estória e enredo, como fez o escritor britânico, é necessário que se diga que são duas coisas diferentes. E como o próprio Forster arremataria, há no enredo o valor mensurável não por minutos ou horas, mas pela intensidade. (26)
A vida fora do tempo cronológico, a vida dos valores que não se medem ou não se apanham assim facilmente, transcende à quotidianidade. E no romance moderno é essa vida que se pretende abarcar, é a busca desses valores e de sua compreensão; a procura da origem e dos fins transparece em estórias comuns. Não deixará de ser o romance uma evasão do mundo inautêntico do dia-a-dia, visará o alcance do sobrenatural, além da pesquisa de nós mesmos e dos nossos semelhantes. Assim, o valor do romance estaria no enredo, a estória seria apenas um envoltório da pílula.
A estória dos bons romances modernos pode ser resumida em poucas linhas. Eis a estória de «Rio Subterrâneo»:

- Lucínio vive numa quinta em Timon, sua prima Helena, em Oeiras. Dona Marieta, mãe de Lucínio, promete que este casará com sua prima Helena. O rapaz, com o pensamento fixo em Afonsina - a que namora com Hermes e vive em Teresina, do outro lado do rio - diz que nunca se casará. Helena deverá vir para a casa da tia, com o fim de prosseguir os estudos. Vem de Oeiras. Encontram-se Helena e Lucínio no aeroporto de Teresina e atravessam o rio, numa canoa, quando vão para Timon.

Tudo mais que acontece no romance é do âmbito dos personagens em sua solidão e nos seus sofrimentos. O que acontece é um modo de dizer. Vem o fluxo vital do pensamento de Lucínio, Helena, Hermes, Afonsina. Indagações nos advêm daí, as mais diversas. Por que Lucínio deve submeter-se às determinações da mãe? Por que Helena, tendo namorado em Oeiras, submete-se também ao desejo da família? Lucínio quer realmente Afonsina? Afonsina seria a mulher ideal? Por que Lucínio diz que nunca se casará? E o convite ao suicídio?
Menos estória teria «Ulisses entre o Amor e a Morte», onde o menino cresce na velha cidade misteriosa e triste de Oeiras, ao lado do pai doente. Lá ele morre e o menino vai para a Fazenda. Depois volta, mas a família já se mudou para Teresina. Sente os primeiros mistérios do despontar da adolescência, experimenta o primeiro amor, que se esvai como os pombos de seu irmão José. E os pombos, ali, têm direito a alguns capítulos, símbolos que são da pureza dessa idade e das primeiras descobertas do amor. Ulisses toma banho no rio Parnaíba. Consegue a primeira namorada: Conceição. Talvez «Ulisses» não chegue a ser um romance, mas uma novela apenas, pela rarefação da estória, cuja falta é suprida por um certo tom épico da narrativa. E, com relação ao enredo, por trás de tudo podemos ver, ainda, um resíduo de indagações: na doença do pai, nos modos estranhos do menino Ulisses e de seu irmão José. E as aparições do pai, depois de morto? Por que José tenta suicídio e depois vai para o seminário?
Poucas linhas também seriam suficientes para contar a estória de «Somos Todos Inocentes»:

- Raul, médico recém-formado, chega a Oeiras. Pertencendo ele à família do Sobrado, os Ribeiros, donos do poder há alguns anos, tem uma vida de isolamento dos demais e merece a atenção e mesmo a corrida das moças da cidade. Dulce é uma que lhe interessou e vice-versa. Acontece que Dulce pertence à família Barbosa, que conserva uma intriga política com os Ribeiros. Sua «queda» por Raul provoca a morte do pai. A intenção do namoro era unir as duas famílias através do casamento dos dois. Mas não acontece. Por culpa de Dulce? Raul, enfadado da vida de Oeiras, e para fugir às complicações do defloramento de Pedrina, vai para a Fazenda - que aqui se chama Junco. E então seduz Dulcinha, mas com o pensamento em Dulce. De volta, entretém namoro cerrado com a ambiciosa Amparo, filha do juiz da cidade, enquanto a família de Dulce se prepara para mudar-se de Oeiras para Teresina.

Os conflitos morais de Dulce e dos familiares, de Pedrina, Ananias e Dulcinha enchem o livro, numa perquirição sobre o que acontece e porque acontece, de quem é a culpa, etc. Por que não se realiza a união das famílias mais importantes de Oeiras, se aparecem apaziguadores dos dois lados: Pedro de Helena, Dr. João Mendes, o boticário? Há mistérios e símbolos, uma das obras mais ricas em símbolos materiais. Pode-se dizer que, em «Somos Todos Inocentes», Oeiras é elevada à categoria de herói. Dulce é o personagem central, complexo, evolutivo. Raul, Amparo, Dr. João Mendes são caricaturas, enquanto que Dulcinha, Ananias e Pedrina, por serem acidentais, não chegam à evolução que se espera do personagem redondo. Mas possuem grande força para convencer, tendem a arredondar-se, a extrapolar-se para além de sua condição.
Aqui, pois, chega-se a assunto para os capítulos seguintes, onde, tratando sobre cada romance em particular, vem a focalização do problema «personagem», complementando o que já foi possível colocar neste e nos capítulos anteriores.

































































SEGUNDA PARTE























































































REALIDADE, IMAGINAÇÃO E
FANTASIA
EM«RIO SUBTERRÂNEO»



«Rio Subterrâneo» se adentra na análise profunda de uma realidade que o vulgo só conhecer epidermicamente: o homem a caminho da loucura. Não que os seus protagonistas sejam excepcionais. Lucínio e Helena são criaturas comuns, com quem poderíamos encontrar na rua: pensativos, excêntricos, medrosos, dúbios, mas capazes de viver em sociedade. O ambiente, como já foi dito, é a família que tem suas raízes em Oeiras, a do primeiro; família que vive na antiga capital, a do segundo. Outros como Hermes e Afonsina, se bem que com menor intensidade, apresentam características acentuadas de psique doentia tal como os primeiros, o que bem demonstram seus casos amorosos.
Trabalhando esse material comum a muitos ficcionistas ditos psicológicos, O. G. Rego vai ao fundo da problemática, num desfilar de pensamentos, desejos, manifestações oníricas, com o fim de captar, em estado virgem, o sofrimento, as dores e as sombras, com extraordinária ternura de linguagem, como a denunciar o que há de humano na sua mensagem, no desejo de transcender a condição existencial de seus personagens. Em nenhum lugar reponta a nota de humor ou cepticismo dos que encaram apenas uma face do homem. A tristeza é repassada de amor e de esperança. E isto, creio, caracteriza não só esse livro como os demais de sua pena, principalmente «Ulisses entre o Amor e a Morte», que tem o mesmo leitmotiv de «Rio Subterrâneo». Embora a trama novelística - considere-se trama no sentido mais vulgarmente conhecido - apresente-se enfraquecida de elementos exteriores, a investigação, a análise e o reconhecimento dos problemas da alma pulam de cada página, praticamente sem apoiar-se numa estória bem contada. A estória são os próprios personagens. E os personagens de «Rio Subterrâneo», postos numa conceituação mais radical se resumem a Lucínio, Helena, Afonsina e Hermes. Contar-se-iam entre eles Marieta, Glória, Dulce e ainda os familiares de Hermes e Afonsina, todos secundários.
A primeira parte de «Rio Subterrâneo» é como que uma ponte que o liga a «Ulisses entre o Amor e a Morte», enquanto a parte final faz vínculo muito estreito com «Somos Todos Inocentes». Na primeira, Lucínio, apesar de fisicamente em Teresina, de vez em quando e na maioria das vezes que faz uso da memória, volta às heranças da família e ao passado de Oeiras, trazendo à cena a avó de Helena, a louca do Sobrado - Joana. Ou então remói a doença do pai, tão próximo, em sua casa na quinta de Timon, a quem não podia ver, no entanto. A mãe sofrendo a loucura e os desvarios de José. A doença do pai é também uma obsessão do escritor, começada em «Ulisses entre o Amor e a Morte», continuada em «Somos Todos Inocentes» (o pai de Dulce) e em «Rio Subterrâneo». As saudades penumbrosas, sofridas por Helena já a caminho de Teresina, deixando para trás as figuras de Pedro - o que queria acabar com tudo que era loucura (pela eutanásia?) - e de Landinho, rapaz de condição social inferior, a quem jamais poderia desejar unir-se, formam a parte final do livro: quadro de Oeiras, da Fazenda, da infância, das vivências da prima de Lucínio. Há a presença de Raul, que martiriza D. Glorinha, obrigando-a a volver ao passado, a tudo que foi fabulação em «Somos Todos Inocentes». Eis o que poderíamos chamar de realidade no romance: a vivida pelos personagens e a recriada pelo autor, quase indistintas, pois o poder de transposição poética de O. G. Rego de Carvalho impregna de mistério e incerteza a vida e o pensamento dos protagonistas Helena e Lucínio.
Não poderíamos dizer que o autor de «Somos Todos Inocentes» e «Rio Subterrâneo» possui uma imaginação tão fértil quanto a de alguns seus contemporâneos, por exemplo, Jorge Amado e Érico Veríssimo. A palavra imaginação aqui é tomada no sentido vulgar, não na concepção específica do termo literário (com a qual não concordo), como veremos mais adiante. O que faz O. G. Rego é aproveitar sua real vivência e fantasiá-la; e fantasiando sua mundivivência consegue os melhores efeitos que se podem pedir a uma narrativa.
Posto assim o problema, necessita-se de breves esclarecimentos sobre o que se considera imaginação e fantasia, já que a realidade num romance é a vida que o autor consegue captar e colocar à disposição do leitor, em termos de imagem e símbolo.
Percebendo e sentindo, o artista aciona a intuição, imagina e coloca o imaginado em signos linguísticos e símbolos de vivência ou de contemplação.
Luís da Costa Lima, em «Por que Literatura», faz a distinção entre percepção e imaginação, via Sartre: «Para o caso da percepção, suponhamos que eu tenha diante de mim um cubo. Eu não poderia ver no mesmo relance as suas seis faces.Terei que girar a seu redor para que passe a perceber as outras três que ficavam ocultas. Assim acontece porque o próprio da percepção é que o objeto aí jamais aparece senão numa série de perfis, de projeções. O cubo está bem presente, posso tocá-lo, vê-lo; entretanto, não o vejo senão de um certo modo que demanda e ao mesmo tempo exclui uma infinidade de outros pontos de vista. (...) Suponhamos agora, ao contrário, que eu pretenda imaginar a figura de um cubo.Não necessito observá-lo, nem girar em redor de coisa alguma. A minha visão é imediata e assente em um saber prévio.» (27)
Na imagem, o saber é imediato, resultando de um conhecimento anterior da realidade. É possível, como diz Sartre, que aniquile parte dessa realidade. (28)
E aqui chegamos ao ponto em que distinguiremos imaginação e fantasia: a primeira, «invenção que organiza as obras de arte»; a segunda, «invenção que organiza sem responsabilidade.» (29) A imaginação, concluímos, é consciência imediata de uma realidade, enquanto a fantasia é apenas um reflexo inconsciente dessa imaginação. É, por assim dizer, deformação da imagem, não sei se na mesma medida em que a percepção também é uma deformação da imagem, uma vez que não organiza nem totaliza a consciência do real.
Porém o caminho a seguir é: observação do real (percepção), imaginação e fantasia, num vaivém e num intercurso sem limites. Não basta a fertilidade da imaginação para tornar alguém bom escritor; conta-se também a acuidade perceptível; contam-se também as habilidades intelectuais.
Em «Rio Subterrâneo» é isto que acontece: observação consciente dos ambientes e pessoas, no início dos capítulos; imaginação do personagem que toma o fio-da-meada da fabulação; e fantasia deste até o fim. O esquema é quase perfeito, neste particular. Assim, os cortes dos capítulos são pausas ou mudanças de espaços físicos, visto que todo o movimento dos personagens se dá apenas no pensamento.
Pessoas que têm pouca participação no real (natural) são dadas à formação de imagens do que poderia ser ou do que foi, e absorvem-se nessas imaginações, perdem o contato direto com a consciência do real, abismam-se na fantasia sem controle, estado próprio das almas em dissolução, dos pacientes psicopatas (desde os casos mais simples às situações-limite, como é o caso do delírio). Se a imaginação é refúgio do artista, é um meio de libertar-se do real ordinário, da mesma forma a fantasia é libertação da consciência sofredora dos pacientes psicologicamente anormais. É uma válvula de escape.
Sonhos ou estados crepusculares são a maior parte de «Rio Subterrâneo». Poderíamos citar os de Helena (pg.61/63), o de Lucínio (pg. 107/109), os de Hermes (pg.129/137). Por que teriam o poder de dominar as tentações e os sortilégios que sentem pela morte, pelo suicídio, os personagens de «Rio Subterrâneo»? No livro só aparecem dois casos-limite, tão esperados pelo leitor (que deseja ou espera um fim trágico, de acordo com o pensamento dos personagens): o homicídio de Hermes e o suicídio de Benoni, o primeiro, alegoricamente (não um fato, uma realidade, mas uma suposição de plano futuro); o segundo, um fato (num símbolo humano, como demonstração do que poderia ocorrer com outros que pensavam no suicídio). É uma colocação entre imaginação e fantasia. Benoni não é uma imagem na consciência (ou inconsciência) de Lucínio, é um símbolo. E as imagens vivem apenas, os símbolos se intemporalizam, se estratificam.
As imagens e símbolos são obra do criador. As fantasias pertencem aos personagens. A criação de Benoni é um dos melhores momentos do livro. O maior achado técnico está na alegoria do conto «Passeio a Timon» (pgs.138/140), finalizando o capítulo do mesmo nome.
Personagens redondos, recriados (não inventados) são Helena, Lucínio, Afonsina, Hermes, todos com uma enorme carga de surpresas. Aqui difere de «Somos Todos Inocentes», no qual só Dulce se individualiza, os demais se tipificam, em virtude da estrutura e mensagem do romance.
O que sobretudo se admira é não necessitar de uma linguagem revolucionária (no sentido gramatical), de sintaxe arrevesada e léxico esdrúxulo e heterogênio. O sistema mórfico e frasal é o normal, da tradição, sem desvios dignos de nota. Nessa linguagem clássica - preciosista em «Ulisses» e «Somos Todos Inocentes», por vezes, como foi assinalado por Hélio Pólvora - O. G. Rego sabe levar Helena, Lucínio, Hermes, Afonsina dos devaneios da imaginação aos terrenos da fantasia e dos sonhos, passando pelos estados crepusculares entre a vigília e o sono. Neste particular, «Rio Subterrâneo» é um bloco, do começo ao fim. Aproveita-se grandemente do intercruzamento de pontos de vista, como foi visto, e de outros recursos técnicos e narrativos: expressionismo, técnica do contraponto quase imperceptível, dialogação oportuna, perfeita (o que não se dá em «Somos Todos Inocentes») e outras. Há também referência a pessoas e fatos dos romances anteriores (pgs.72/3 e 163/5, por exemplo), como a mostrar que tudo que existe deve a existência em parte às relações recíprocas, que a estória ou a investigação não está encerrada, embora o livro se feche. «O romancista nos adverte que estas vidas desembocam em outras vidas», no dizer de Hélio Pólvora. «O romance, como a vida, se entrelaça na descontinuidade», acrescenta o mesmo crítico, em relação a «Somos Todos Inocentes». (30)
É possível que O. G. Rego tenha sofrido influência de autores como Joyce, Faulkner, Virgínia Woolf. Perguntar-se-ia: qual o escritor que não recebeu influências, pelo menos inconscientemente?
Como quer que seja, em técnica, em apuro de linguagem, musicalidade, aprofundamento psicológico, «Rio Subterrâneo» não é uma experiência; é uma obra incomum, talvez insuperável dentro da literatura brasileira moderna. Não se trata de um livro para provocar prazer, esse prazer que advém das coisas doces da vida e que por isto não perdura. É livro para ficar pela contribuição de humanidade de que está impregnada sua mensagem. É possível que o autor tenha tido a intenção de, colocando no frontispício «O tu que tens de humano o gesto e o peito», invocar e pedir o carinho que deve ser dispensado aos problemas daqueles que vivem e sofrem e, assim, fazem outros sofrer pela vida inteira, sem que se saiba o porquê:

«Deve existir algo, uma lei, um princípio sobrenadando no fundo de nossas fraquezas; uma harmonia misteriosa, que leve à desgraça por nadinhas pessoas absolutamente sãs, e lhes poupa a vida anos afora. E se pergunta: para quê? Somente para que desesperem, embrutecidas, presas de todas as aflições, a testemunhar a miséria, a extrema pequenez de nossa condição humana?» (Rio Subterrâneo, pg. 21).






































GÊNESE:
AMOR E MORTE

Dizer que a história de um poeta - e acrescento aqui, também, a de um
Dizer que a história de um poeta - e aqui acrescento, também, a de um romancista - começa com o seu primeiro poema ou livro é dizer uma coisa bonita, mas não a verdade. A história do artista é insondável, muito mais complexa que a gênese de suas obras. Pelo estudo da linguagem e dos processos construtivos, às vezes alcançamos certas características, identificáveis a partir do início da atividade criadora, não com a objetividade com que se explica a origem de um edifício ou de uma cidade.
Da leitura dos de «Amor e Morte», tomamos alguns apontamentos com vistas à identificação tanto quanto possível dos motivos que mais impressionaram o menino O. G. Rego de Carvalho, nos idos de 1940 a 1950, quando se lhe abriu ao espírito o gosto pela arte literária, lendo o «Guarani», de José de Alencar, e prometendo a si próprio tornar-se um grande escritor. «Ulisses», conquanto tenha sido o primeiro livro publicado, não foi o primeiro trabalho literário de O. G. Rego de Carvalho. Antes, andou escrevendo contos, alguns premiados em concursos literários do sul do país e publicados em jornais e revistas como a «Cigarra» e «O Cruzeiro». Alguns desses trabalhos estão em «Amor e Morte», juntamente com outras peças escritas posteriormente a «Ulisses entre o Amor e a Morte». Na folha seguinte ao título «Amor e Morte», lemos a indicação:

«Livro para quem ama a simplicidade e se comove com a beleza.»

A frase é um tanto romântica, com sabor de um José de Alencar, não resta dúvida. Mas lá no texto vamos encontrar as primeiras preocupações do autor e os processos usados, que perdurariam pela vida em fora, dando-lhe o caráter quase definitivo de seu estilo: simples, comovedor, terno, embora explorando temas de sofrimento, amor e morte.
Posteriormente, esses contos da juventude estão sendo incluídos nos seus trabalhos de ficção, ora mudando os nomes dos protagonistas, ora reescrevendo-os como já fizera Machado de Assis, e não só Machado como outros escritores brasileiros daquela época: Aluísio de Azevedo, por exemplo. No último caso está o conto «No Bosque», incluído em «Rio Subterrâneo», completamente modificado (pgs. 52/54).
Agora, comparemos a redação de um e de outro:

«Aproximou-se inquietamente e lhe tomou as mãos:
- Vem, vem - e a puxava com força.
A irmã, porém, não queria olhar para ele: toda a atenção voltava-se para o companheiro, a quem sorria, contente em tê-lo ao lado. O rapaz de azul falava-lhe num tom de voz meigo, e se interrompeu de súbito ao ver o Maninho.
- Olá - cumprimentou-o afetuosamente.
- Meu bem, vá brincar - ela desprendia as mãos e o empurrava com brandura. Os patinhos estão chamando.
O menino ouvia a algazarra deles caindo n água, mas eram os olhinhos que o atraíam. E como não conseguisse animá-la a ir com ele, voltou para perto do ipê na esperança de que reaparecessem.» (Amor e Morte, pg. 11/12).

Já num estágio superior de sua arte («Rio Subterrâneo», pg. 53), vejamos a parte identificável do conto reescrito:

«Aproxima-se e lhe puxa os dedos:
- Vem cá, vem.
Ela não olha: toda a sua atenção é para o companheiro, a quem sorri. O moço falava num tom de voz meigo, e se interrompe de súbito ao ver Hermes:
- Olá, Maninho - e o cumprimenta afetuoso.
- Meu bem, vá brincar. (Ela se desprende, repelindo-o com brandura.) As marrecas estão chamando.
O guri ouve a algazarra delas bebendo, mas são os olhinhos que o atraem. E como não consegue demovê-la, volta na esperança de encontrá-los dentro do oco.»

O conto, em «Amor e Morte», tem como segundo parágrafo: «Era uma manhã de inverno.» Na adaptação, O. G. Rego assim expressaria: «Era um dia ameno, quase sem sol.» Não necessitamos, pois, de esforço para verificar, não somente a exatidão expressa na segunda frase, em comparação com a primeira, como a beleza e a musicalidade. Pantenteia-se a universalização do enunciado: a palavra inverno tem sentido muito diferente nas diversas regiões climáticas do Brasil. Além da assonância nasal de «era uma manhã», modificada para «era um dia ameno», O. G. Rego transfigurou a objetividade com a fulgurância do adjetivo «ameno».
Ajustou, ali, ao tema, a linguagem da ternura. Em um conto de três páginas, usa nove diminutivos. São eles: sapatinhos, banquinhos, mãozinhas, cousinha, cobrinha, patinhos (duas vezes), olhinhos (duas vezes), rabinho (duas vezes) e Maninho (sete vezes). Na adaptação há também a constância do diminutivo - os mesmos e outros - sem as repetições, o que não desfigura o texto original. Procura melhorá-lo, como de fato o fez, inclusive trazendo a ação para o presente. No conto, estava bem o passado, mas no romance o presente é muito melhor: a história do menino ocorre juntamente com o namoro da irmã. O conto, sendo uma peça inteiriça, deve insistir no fato único: o menino que se embevecia com a cobra e terminava sendo por ela mordido. Aí está a técnica consciente de O. G. Rego. Outra observação: em vez do «ipê» do conto - nome um pouco desconhecido, por isto que menos usado - aparece, no romance, a palavra «pau-d arco».
Nos contos subseqüentes, inclusive na noveleta «Amarga Solidão» - uma das páginas mais suaves da prosa brasileira, de uma ternura que marca completamente o sentimento do leitor - vemos, porém, sempre diminuindo à medida que o livro sobe (isto é, vai para o fim), a constância do uso do diminutivo.
As palavras «ternura», «enternecer» e suas afins ou sinônimas, aqui já bastante usadas, caracterizam a linha estilística que culminaria em «Rio Subterrâneo», o ápice.
No livro «Amor e Morte» aparece, ainda, integralmente, todo o conto denominado «Passeio a Timon» que é, lá no texto de «Rio Subterrâneo», aquilo que E. M. Forster deu o nome de profecia, o último dos aspectos do romance: «A profecia - no nosso sentido - é um tom de voz. Nele pode estar implícita qualquer das fés que têm obcecado a humanidade - cristianismo, budismo, dualismo, satanismo, ou a mera elevação do amor ou ódio humanos a uma potência tal que seus receptáculos normais não podem contê-los. Mas não temos interesse direto em saber que visão particular do universo ela inculca. É a aplicação que importa, e que vai se infiltrar nos giros da frase do romancista. (...) Todos os romances possuem mesas e cadeiras, e a maioria dos leitores de ficção procura primeiro por elas. Antes de o condenarmos por afetação e distorção devemos perceber seu ponto de vista. Ele absolutamente não está olhando para as mesas e cadeiras, e essa é a razão de elas estarem fora de foco. Nós só vemos o que ele não está focando - o que está focando não vemos - e, na nossa cegueira, rimo-nos dele.»(31)
Mais adiante, acrescenta E. M. Forster que o aspecto profético do romance requer duas qualidades: humildade e suspensão do sense of humour, o que esclarece bastante. (32)
Os demais contos são: «Rua do Fogo» (que está inteirinho em «Rio Subterrâneo» como um sonho de Helena), «Era Noite, Marlene», «Do Coração», «Priminha», «Velha Amizade», todo com o seu valor de escritos de uma época em que o autor ainda não havia sequer definido o gênero que abraçaria. «Era Noite, Marlene», contudo, não desmerece qualquer conto moderno.
Uma particularidade reservei para este parágrafo: em «Era Noite, Marlene» vê-se a gênese de «Rio Subterrâneo». É naquele «rio negro atravessando a floresta»(pg. 19), naquela noite triste do protagonista, na «Selga» (fazenda que reaparecerá em «Ulisses»), temeroso da paisagem soturna:

«Marlene voltou-se para o lado da montanha e apontou a escuridão:
- A floresta e o rio negro.
Olhei vencido de um pesar súbito. A sensação da noite caindo me constrangia desde a infância.
Creio que se Marlene não chamasse o velho, não tiraria o olhar dali. Ao meu encontro veio um senhor chegado em anos, que me estendeu a mão amavelmente.» (Amor e Morte, pg. 19)

Mais ainda: nesse conto, cremos, e por isto mesmo afirmamos, encontra-se toda a gênese não só da problemática ogerreguiana: tristeza, solidão, amor, medo, loucuras, sombras e sonhos, como também dos símbolos: o rio, a montanha, a fazenda, o velho, a cidade decadente, a família, o jovem ensimesmado.
Da linguagem e do estilo já dissemos acima. Agora, resta apontar que os contos de «Amor e Morte» representam a época em que o jovem está na encruzilhada da vida, entre a adolescência que se esvai com seu furor e a idade do repontar da reflexão (que se aproxima sem se apoderar do homem), enquanto «Ulisses entre o Amor e a Morte» é o poema da adolescência, misterioso e patético, que nunca desaparece do homem. Ulisses e Dulce têm raízes; Lucínio, não: «sempre que faz um esforço de memória, não consegue ir além do sobrado de D. Filomena, como se tudo se resumisse naquela manhã feita de sol e nuvens.»
«Ulisses» já indicava ao autor o caminho que deveria seguir: o romance, não o conto. O. G. Rego de Carvalho faz muito bem quando, com técnica de mestre, utiliza seus contos da adolescência como capítulos de outras obras. Isto não é transformar um conto em romance, o que é mau, como tem demonstrado a experiência de escritores do passado. É, ao contrário, uma técnica muito original de O. G. Rego de Carvalho.





































A POESIA MISTERIOSA DE ULISSES


O. G. Rego de Carvalho tem uma vocação poética, mas desse poesia insondável que está no cerne do próprio ser, irreconhecível e irreconhecedor, desde os mistérios da vida (e o amor é um deles) aos da morte e dos seus caminhos.

«Quente era a manhã, em julho,
quando meu pai se deitou,
as pálpebras baixando.
E puro, e distante, e feliz,
encarou o céu e o tempo».

Por incrível que pareça, o que acima foi transcrito é um capítulo de «Ulisses entre o Amor e a Morte», no livro, simplesmente disposto em forma de prosa.
Lembro-me, agora ,daquele fim trágico e belo de Lindóia, no poema «Uraguai», de Basílio da Gama:

«Inda conserva o pálido semblante,
Um não-sei-quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece
Tanto era bela no seu rosto a morte!»

Para traduzir o que há de poesia num livro da juventude, memórias da infância perdida para sempre, onde a pessoa tem algo de herói lendário (aquele herói que todos nós fomos ou supomos ter sido), quando o mundo corre à nossa revelia e tentamos agarrar as nuvens e o céu, porque ainda não tomamos sobre os ombros o peso dos terríveis problemas quotidianos, somente um grande poeta, precisamente Cecília Meireles, teria palavra suficiente e válida:

« Ulisses deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e comovente.» (Trecho de uma carta dirigida ao autor).

Já o romancista Marques Rebelo, com quem conviveu O. G. Rego de Carvalho, no Rio de Janeiro, sem tergiversar, declarou-lhe também em carta, após a leitura do romance-poema:

«Os defeitos que nele encontrei são os de quase todos os nossos escritores, mesmo os grandes, principalmente os grandes, e eu não ousaria apontá-los.»

Conhecida a seriedade do autor de «Marafa» e de tantos outros bons livros, a contundente a afirmação de que O.G. Rego até nos defeitos se igualava aos grandes escritores vale por uma nota excelente ao livro de estréia de um provinciano, e por segura confiança no futuro do escritor - agora suficientemente confirmado. Bastariam as apreciações de Marques Rebelo e Cecília Meireles para aferirmos, de olhos fechados, o valor de «Ulisses» e sua aceitação, na época em que foi editado.
Não busquem nos críticos, porque é um deles quem nos diz que a maioria dos romancistas brasileiros atuais não têm crítica de conjunto. E o mesmo crítico, ao recordar-se do artigo devastador de Moysés Velhinho sobre «O Louco do Cati», de Dionélio Machado, acrescenta: «Mas naquele tempo havia críticos. Hoje a crítica literária é uma atividade eventual, paga simbolicamente, de maneira que os romancistas nascem e morrem sem que ninguém tome conhecimento. (...) É verdade que às vezes um crítico escreve um artigo e não consegue publicá-lo: foi, por exemplo, o que aconteceu comigo, quando escrevi uma apreciação quase afetuosa sobre a evolução de um jovem romancista.» (34)
Voltemos à poesia de «Ulisses».
É conhecido lugar comum dizer que um livro de estréia tem muito de autobiográfico. Mas nisto «Ulisses» não poderia fugir à regra, tendo em vista que saído da pena de um quase adolescente. Entrementes, o que nos interessa é o encontro poético do seu estilo, já quase formado, ao escrever o primeiro livro. Alguém já disse - e eu quero confirmar - que a fruição substancial do contexto de «Ulisses entre o Amor e a Morte» resume-se no soneto de H. Dobal, que vem, como epígrafe, na primeira folha depois do título. Não resisto à vontade de transcrevê-lo, para conhecimento dos que ainda não o leram:

«Eis-me de novo adolescente. Triste
vivo outra vez amor e solidão.
Canto em segredo palpitar macio
de pétala ou de asa abandonada.


Outro amor em silêncio e na incerteza
oprime o coração desalentado.
Ó lentidão dos dias brancos quando
a angústia os deseja breves como um sonho.

Insidioso amor em minha vida
reverte o tempo para o desespero
a inquietação da adolescência

e o pensamento me tortura, prende
como se nunca houvesse outro consolo
que não é mais de amor. Porém de morte.»

É possível que O. G. Rego haja colhido inspiração no poema, preparo para o salto mortal da prova de fogo: o livro de estréia, absorvendo a condensação lírico-emocional, a vibração toda, e daí nascendo, ou melhor, começasse a surgir o livro, «pretensioso no próprio nome - Ulisses , cujo subtítulo é nada menos do que Amor e Morte » - no dizer de Homero Silveira. E prossegue o ensaísta: «Mas, o curioso é notar : saiu-se bem da empresa. Porque se a tese em si é já um convite ao abismo (isto é, explorar a infância e adolescência), um mergulho nas sombras do desconhecido e do obscuro, necessário se torna que o mergulhador se arme de aparelhagem adequada. Foi o que fez o escritor piauiense. Penetrou na neblina com olhos de ver o nevoeiro e formas mal definidas. Relegou a técnica direta do romance psicológico ou de pesquisa. Vestiu-se de poesia. Recorreu à reminiscência.»(35)
Revive Ulisses com o pai, o avô, a tia Julinha, José, Anália, Olavo - e ainda com Norberto, Arnaldo e Conceição, em Teresina - aqueles dias que a poeira do tempo levou, «triste vivendo outra vez amor e solidão» como na poesia de H.Dobal, cantando em segredo como se fosse o seu canto o palpitar macio de uma pétala ou de uma asa em abandono. E a solidão está em Ulisses, mesmo quando fisicamente fala com o pai ou com José - ambos «na lentidão dos dias brancos, revertendo o tempo para o desespero» da morte. E a solidão caminha com Ulisses, mesmo enquanto canta «a inquietação da adolescência», mais preso a pensamentos e aflições sobre o destino do coração e da alma que o do próprio corpo. Ulisses é, de todos os personagens de O. G. Rego de Carvalho, o que mais se parece com o próprio escritor, fato já ressaltado pelo romancista em entrevista ao jornal «O Dia».
E a mãe, essa que povoa a vida do menino, da casa, da família, a inventar ternuras e a desmanchar-se em carinhos?
«Outro amor em silêncio e na incerteza oprime o coração desalentado» do jovem Ulisses, mesmo quando toma banho no Poti ou brinca nas coroas do Parnaíba, quando vai ao circo ou bisbilhota na praça Pedro II, olhando os cartazes dos cinemas e as moças a rodarem no passeio.
Mas, em Oeiras, quando desce do morro do Rosário, após a procissão, menino, pegado pelo braço da criada, pouco lhe importava o caminho estreito e a descida íngreme da ladeira. O que lhe interessava era voltar para junto dos pais. Depois da janta, sonha com o menino Jesus. A doença do pai afetava-lhe a sensibilidade delicada, frágil, infantil, de tal sorte que também adoecera. De tristeza. E José? Não fazia recados, não ia fazer visitas à feira mas deixava-se ficar ensimesmado pelos cantos ou no olho de um flamboyant. Mais doente, reprimindo a mágoa da morte do pai. Embora mais novo, Ulisses vigiava o irmão, doentio e franzino, que um dia tentara a morte antes de verberar para o outro: «Não busques razão na vida, que não acharás.» Finalmente, José encontraria a transcendência: vai para o seminário, em busca do serviço do Senhor. A mãe, conservadora como quase todas as mães, tudo coloca nas mãos de Deus. E vai conseguindo apaziguar a inquietação dos filhos. Ulisses, por sua vez, encontra a poesia: Conceição, o primeiro amor.
A densidade maior, temos que admitir, está no início do livro, nas duas primeiras partes: «Viagem de Cura »e «Na Selga», como para mostrar mesmo o abismo da infância. Após chegar à adolescência, a mudança para Teresina (e o livro assim se vai desenvolvendo), as aberturas e os contatos contínuos com pessoas de fora do círculo familiar propriamente dito aclaram os dias. Depois é a lembrança de Oeiras perdida, os pombos perdidos (mortos pelo irmão), o amor perdido. Não de todo, que o amor primeiro dura eternamente.
E aqui me recordo de uma quadrinha popular, anônima, que aprendi com minha mãe:

Não há florzinha que cheire
igualmente à do pereiro,
nem tempo como o passado,
nem amor como o primeiro.


Conceição, primeiro amor de Ulisses: «Castanhos eram seus olhos.» Prima de Arnaldo - o companheiro de estudos e de folguedos em Teresina - conheceu-a na casa deste, que naturalmente o encaminharia para as primeiras aproximações. Amor que duraria toda a vida. Mas, não.
Foi assim no começo:

«Mirando-se bem nos meus olhos, Conceição sorriu:
- Também são castanhos - disse.
- É a primeira vez que repara?
Ela acenou que sim.
- Quem possui olhos dessa cor é inconstante.
- E você, querida?
- Sou diferente; verá como lhe serei fiel até a morte.
Coloquei minha mão sobre a sua. Que agradável ouvi-la falar assim.» (Ulisses, pg. 92).

O orgulho de Ulisses não se dobrou diante de uma evidência: o pai de Conceição não aceitaria o namoro.
Curvo-me eu, novamente, diante da narração do último encontro de Ulisses e Conceição. Permitam-me, leitores, mais essa transcrição:

«Ela veio de mansinho e se postou à minha frente, sem nada dizer, sorrindo apenas. Voltava eu a compreender que estava diante de meu único e puro amor.
- Ulisses - falou afinal - você ainda gosta de mim?
- Apesar de tudo? - acrescentou, fitando-me os olhos.
Tentei mostrar-me indiferente, como mandava o capricho, mas não pude:
- Por que agiu daquele modo?
Conceição se aproximou mais, tomando-me a mão:
- Queria que eu apanhasse? Você não conhece o gênio de meu pai.
Ela se calou a seguir, esperando que a perdoasse. O amor próprio estava, no entanto, demasiado ferido para que viesse a desculpar-lhe o erro, nessa noite.
- Olhe, minha tia me acena - e apontou-me a mãe de Arnaldo. Regressarei amanhã, à fazenda dos velhos, e somente voltarei se tiver certeza de que continuarei a mesma em sua estima. E abaixando a vista, a desprender-se:
- Eu o amo, Ulisses.
Conceição saiu rápida, sem volver o rosto. Quando mais tarde a procurei para renovar-lhe os votos de amor que lhe tinha feito e reiteradamente repetia, já não a encontrei: misturava-se à multidão.
Dela, ainda hoje guardo a recordação desse momento, em que as nossas mãos, as minhas aquecidas nas suas, se uniram pela última vez.»(Ulisses, pg. 96/7)

É assim que termina o romance.
A pureza desse amor - o primeiro amor - só é comparável à do amor de mãe, se se permite. Esses momentos são insubstituíveis. Para Ulisses têm o aroma dos campos puros, imaginários, da «Selga». E a grandeza dos dois amores - o de mãe e o da primeira namorada - está em nunca se encontrar iguais: um parte daquela que é origem, única, insubstituível; outro parte da mulher primeira, a que se prepara para ser mãe, e é tão doce como as flores entreabertas pela manhã - mistério que não se sabe como vem tão depressa e como se esvai no vento. Ambos são autênticos, originais, suaves, a bondade e a transcendência, enfim.
Que palavras encantatórias e sublimes poderia encontrar para traduzir o romance-poema «Ulisses entre o Amor e a Morte»?
Leyla Perrone-Moisés diz de um livro de Nathalie Sarraute: «De todo o romance nos fica uma impressionante sensação de vertigem...» Uso, então, essas palavras. É a mesma vertigem que sentiu Ulisses ao notar fugir-lhe Conceição: «Por onde andei, nem o que vi recordo direito. A seguir, à mágoa de ter perdido Conceição veio-me entrando n alma, mansamente, o langor.» (pg.95)
Lida a última página, também não sabemos por onde andamos e muito menos o que sentimos. Assim: a sensação do mistério de tudo quanto é poesia e eternidade, dentro do amor e da morte. Sabemos que andamos e sentimos. E isto basta.





















































A VIDA E SEUS CONFLITOS: SOMOS TODOS INOCENTES



Somos todos inocentes ou todos culpados? São as primeiras inquirições de quem lê o romance: tese e antítese.
«Somos Todos Inocentes» tem como matéria os problemas do quotidiano: amores, paixões, intrigas da cidade interiorana e o mesmo barro humano que ocupou a maioria dos escritores do nordeste: o médico, o juiz, o boticário, o padre, o sacristão, amores impossíveis, famílias rivais. Nomeando as pessoas: Raul, seu Ernesto, Dr. João Mendes, Padre Miguel, Antônio, os Barbosas e os Ribeiros, na velha Oeiras de 1929, isolada, decadente.
Desnecessário frisar que não descamba para o pieguismo, mesmo tramando uma estória de amor, nem para o regional, tendo a cidade do interior, a fazenda e o sistema patriarcal em suas mãos. E mais: o exemplo de toda uma tradição ficcional - a nordestina - centrada no documentário e nos aspectos ecológicos e sócio-econômicos não o transformariam num romancista de espaço e o romance em literatura regional. Verdade que o documento aparece, mas nítida e conscientemente, nos capítulos 6, 7, 8 e 9, quando o protagonista Raul se desloca para a fazenda. Normalmente, representando a fala dos matutos e empregados da fazenda, mais do que descrevendo paisagens e fatos, é que o autor consegue levantar ambientação e vivências e nelas inserir Raul, até então desligado do meio e dele voltando a desligar-se de novo ao regressar a Oeiras. Documentário bem dosado no vocabulário e na frase. Por exemplo, no primeiro caso, o emprego de termos como batoré, corroló, coteleiro, labigó, galinhar, etc. No segundo caso, poderíamos citar: «os bois chega encobrem a terra (pg.105/6), «o chão estava que só tinha estrume» (pg.80) e «é mais bom assim»(pg.110).
A curta estada na fazenda - já sabemos que o ponto de vista é de Raul - as falas e os costumes dão ensejo à criação de alguns minipersonagens (no que O. G. Rego de Carvalho é exímio), dos quais poderíamos apontar Ananias e Dulcinha, portadores que são de uma terrível força persuasora. Nesse romance, a falta de perspectiva do condutor do plano narrativo - Raul, herói que não muda, não cresce, não tem grandes conflitos - preenche-a o romancista com o bosquejo dessas novas personagens de que falamos, tecendo um pequeno romance dentro do outro.
Para o médico, «a razão, como os sentimentos, é fruto de reações químicas.» (pgs .138)
Antes, já vimos que Raul, «analisando-se quase friamente, concluiu ter influenciado no destino de criaturas que se queriam e doravante estavam mortas uma para outra. Agira bem ao seduzir Dulcinha e amolecer o caráter de Ananias? Fora uma bela experiência, sem dúvida. Mas teria direito a sacrificar-lhes o amor próprio? Cada um conforme sua natureza - refletiu novamente, desculpando-se.» (pg.114). Aliás, essa era a permanente desculpa de Raul: «Ninguém exija de mim que seja puro. Ajo segundo minha natureza, e decerto não fui eu quem a moldou» (pg.108), eis o que lhe passou pela cabeça, lembrando, de relance, o vexame infligido a Dulcinha.
Essas atitudes do personagem central impressionaram fortemente o comentarista literário da revista «Piauí Ilustrado», chegando ele a afirmar e reafirmar que «Somos Todos Inocentes» «é um romance tipicamente naturalista, onde a paisagem urbana e o ambiente são mesquinhos, romance bom, mas de linguagem clássica, onde o autor mistura termos que não estão no contexto paisagístico da região (por exemplo: redil em lugar de chiqueiro, bosque em lugar de mata, pascendo em lugar de pastando) com termos regionais tanto na narração quanto nos diálogos.»(36)
Ser um romance regionalista (ou não sê-lo), evidentemente que isto não pode lhe diminuir, desde que não se trate realmente da escola literária. Por nosso lado, acreditamos que naturalista é o personagem Raul, não o romance como um todo. E achamos boa a explicação. O problema dos termos regionais e outros já fixamos páginas antes, no capítulo respectivo.
A problemática de «Somos Todos Inocentes» confunde-se com a dos personagens, heróis e anti-heróis. É o conjunto de atritos vivenciais esboçados, recriados: a unidade de Oeiras, que deveria ser reencontrada através da união de Raul e Dulce - um Ribeiro e um Barbosa. Nesse romance é onde O. G. Rego de Carvalho desprende a imaginação, num vôo mais livre, porque evocando o fausto de Oeiras passada, recria e trabalha personagens e tipos quase perfeitos, diríamos. E é nisto que reside seu maior poder de penetração na alma popular e de comunicação de sentimentos, em comparação com os demais livros, a despeito de algumas falhas técnicas como linearidade da narrativa (ou quase) e excesso do diálogo exterior, já assinaladas por Hélio Pólvora. A naturalidade do diálogo seria alcançada em «Rio Subterrâneo», de par com nova técnica ficcional.
Pantenteamos, por outro lado, o poder criador de Rego de Carvalho, quando transpõe o protagonista Raul para a fazenda, num corte horizontal da narrativa, entregando-o a um ambiente que lhe era estranho, sem deixar cair de nível o tom da obra que, de dramático passa a heróico. Sob alguns aspectos - a dialogação, o aparecimento de Ananias e Dulcinha, por exemplo - até melhora-o. Ananias e Dulcinha contrastam com Raul. Eles têm uma perspectiva de vida, querem comprar «uma terrinha de nada» , na baixa do Junco. E é Raul quem lhes dá esperança: «A fazenda não é minha, você sabe. Acredito, porém, que vovô dê a terra para Ananias, se eu falar. Depois cuidaremos disso.» (pg. 91).
Talvez por isto, «Ananias não adormeceu nessa noite. A baixa do Junco era seu maior sonho, desde que se afeiçoara à fazenda. Ainda garoto, já fazia planos de ali erguer uma casinha e o pequeno curral...» (pg. 93).
Conquanto cordiais, as relações entre os moradores da fazenda e os proprietários - Raul ali representava o Velho - não poderiam ser satisfatórias nem liberais, havendo imposições e, no caso, mais de ordem moral. Por isto destacamos a sedução de Dulce por Raul e a imposição deste a Ananias de casar com Pedrina, «uma perdida, uma pobre infeliz».
Como poderia Ananias livrar-se do Sobrado, se este tinha uma significação toda especial?
«Em seus salões imensos moravam deuses. Criança ainda, ouvira histórias fantásticas a seu respeito, que lhe deram sustos e insônias. Fora construído com o suor escravo, e contam que antes de morrer no pelourinho, após a captura, pai João amaldiçoara o tataravô de Raul, por setenta e sete gerações. Muitos invernos se passaram. Veio o rebentão de 1915 e o rompimento do finado coronel Mundico. Depois os revoltosos, um inferno. Mas todo dia, quando madruga, o sol vê o Sobrado de pé, desafiando o tempo com suas paredes de rocha, as grades de ferro e o catavento lá em cima. Ananias admirava-o e entrementes o temia. Desobedecer ao Velho? Não, nunca.(pg. 99).
Pois é assim que Ananias e Dulcinha, personagens que sofrem a estada de Raul na fazenda, embora se amando verdadeiramente, eram levados a se traírem um ao outro. Por quê? Dulcinha, como toda mulher, queria o cantinho para viver com seu bem amado, e, para alcançar isto, atrevera-se a dar tudo quanto Raul lhe exigiu, enquanto Ananias
se submete à vontade tirânica do Sobrado, passivamente. E suspira: «Sim, não tem jeito. Pobre é sem vontade.»(pg. 109).
São episódios secundários que, pela força de contradição apresentada, sugerem-nos uma dialética em «Somos Todos Inocentes», o que nos obriga a percorrê-lo página a página sob este ângulo. A própria construção do romance, pela localização no espaço e pela movimentação dos personagens, deixa transparecer o tríptico, o que já foi assinalado noutra parte deste trabalho, mas apenas sob o ponto de vista técnico: a primeira parte - Dulce e seus conflitos( Raul em Oeiras); a segunda parte - Raul na fazenda (fugindo para evitar as complicações com Dulce, Amparo e Pedrina); a terceira - a partir dos conflitos morais de Amparinho, quando o autor vai reunindo protagonistas e antagonistas em Oeiras, e a família de Dulce prepara viagem para Teresina.
Os antagonistas são em número suficiente para esclarecer a deliberação do autor de pôr as pessoas frente a frente, na vida, e assim mostrar-lhes o orgulho, a vaidade, a cobiça, a vingança e, sobretudo, a falsa caridade, a indiferença com o sofrimento alheio, os complexos de culpa, os sadismos e masoquismos, a inculpabilidade própria. A dialética aqui é um método de observação da vida e posterior transfiguração em fábula.
Para que os não familiarizados com o tríptico hegeliano - tese, antítese, síntese - não fiquem nas nuvens, vejamos alguns elementos esclarecedores, tomados da Enciclopédia Britânica:

«Cada coisa é um processo, isto é uma marcha, um tornar-se. Está submetida a uma lei interna de movimento. No movimento mecânico há transformação, mas proveniente de agentes externos. No dialético, a transformação é devida ao autodinamismo e às contradições que as coisas encerram. O mundo é um conjunto de todos os processos (vitais, químicos, físicos, etc.) onde tudo sofre uma transformação concatenada e progessiva. Este encadeamento dos processos não é circular, mas espirar, basta ver que uma pera gera uma árvore, mas uma árvore gera milhões de peras que não são integralmente idênticas à ancestral. No movimento dialético vemos que cada coisa traz em si sua contradição. É levada a transformar-se no seu contrário. O vivo, por exemplo, marcha para a morte. Disto se conclui que uma coisa é, ao mesmo tempo, ela própria (na linguagem de Hegel) tese e sua contrária: antítese. A coisa, no momento, é simplesmente uma síntese. No movimento dialético, encontramos duas formas de direções opostas: a que leva o ser para sua própria construção e outra que o leva para a destruição desta mesma construção, para ser precisamente o que não é.» (37)

Exemplos de linguagem ou discurso denunciador do movimento dialético dos personagens teríamos vários:

«Bastava, contudo, sentir-se longe da capela, para que se transformasse, agindo como um pecador convicto, sem a mínima aparência com o Antônio dos responsórios cheios de fé. Ao amor de Deus, preferia agora o das mulheres, o vinho e a cachaça, as vertigens de uma embriaguez voluptuosa. E em casa, quando lá aparecia, não tinha um gesto menos bruto para com a filha, não se importava mesmo com o que lhe pudesse acontecer. Só recentemente é que cogitara de inquirir-lhe da saúde, mas essa lembrança mesma passara, como muitos outros pensamentos generosos que tivera para com Morena.» (pg.187).

Seria interessante que não ficássemos só nesta citação, não soubéssemos também que transcrições sucessivas cansam. Assim, remetemos os interessados para as páginas 38, 110, 112 e 154, onde terão outras provas de nossa assertiva.
Contextualmente, levantamos uma série de antíteses e oposições, envolvendo não só os protagonistas como personagens e episódios secundários do romance:

1. Raul (médico só no nome) e seu Ernesto (o boticário e verdadeiro médico de Oeiras.
2. Os sentimentos de Dulce e os do pai dela, em relação a Raul.
3. O amor e a possível derrota de Ananias e Dulcinha.
4. As duas vidas do sacristão Antônio: na igreja e nos cabarés da margem do Mocha.
5. O aborto de Pedrina, enquanto no quintal vizinho nasciam os bacorins.
6. A ciumada entre o juiz e o padre de Oeiras.
7. As diferenças de comportamento entre Dulce e Marieta.
8. A festa no Sobrado e a morte de José - coincidência no tempo.
9. A aparente vitória de Amparinho sobre Dulce, com relação a Raul.

Dulce é um processo, uma marcha, um tornar-se. O que interessa em «Somos Todos Inocentes» é o sofrimento de Dulce e de Pedrina (embora menor), tal como a importância do Sobrado. A insatisfação de Dulce, sua procura de libertação dos preconceitos, seu interesse pelo procedimento e melhoria dos outros fazem-na uma personagem de romance e não da vida real, uma personagem ideal, redonda. Raul, um tipo caricato, tanto que o avô o chama de «um doutor de merda» (pg.103), não evolui. É menor que o Sobrado, porque este já foi (e transformou-se num símbolo). Raul não é Raul: é ele mais todos os preconceitos da família, da classe, da herança; é um ser inautêntico, artificial. Amparinho, ambiciosa e egoísta, sem o mínimo de maturidade psicológica (em relação a Dulce), descaracteriza-se ao deixar ir de água abaixo sua ânsia de liberdade (pg.126/127), para unir-se de corpo e alma ao Sobrado, que lhe representava a glória e o poder ambicionados. Evolui apenas horizontalmente, não muda de natureza, não se eleva. As Amparos e os Rauis se repetem na vida quotidiana.
Para me cingir apenas a uma classificação - a estruturalista - diria que «Somos Todos Inocentes» é um romance de personagem mais do que de espaço. Nele O.G. Rego de Carvalho se afasta um pouco da linha subjetivista. Se em «Ulisses entre o Amor e a Morte» e «Rio Subterrâneo» procura, através de si mesmo, uma solução para o mundo e seus problemas - e o romance é uma projeção de seu «eu» mais alguma fantasia - neste o escritor põe as pessoas em confronto. E, dos conflitos vivenciais, a única lição apreendida é a das acusações mútuas: Dulce sente-se culpada da morte do pai, Marieta diz que o pai morreu de raiva, Dr. João Mendes sente culpa da sorte de Pedrina, esta se exculpa do aborto praticado, Raul e Antônio culpam a natureza que possuem, Amparo culpa Dulce e esta põe em Raul a responsabilidade por tudo o que aconteceu.
Assim, pela boca de Pedro de Helena, o autor nos pergunta:

«Já encontrou alguém que se sentisse único culpado dos erros? Todos, no íntimo, toleram suas faltas, perdoam-se com palavras de compreensão que não têm para com o próximo.» (pg. 197).

Antes, já havia concluído que «somos nós quem menos influímos em nossas vidas» (pg.195) e que «não está em nós decidir sozinhos do nosso futuro: somos arrastados na corrente» (pg.197).
Estamos, pois, diante das contradições da própria vida, no seu constante fluir, na sua corrente, não sabemos com que objetivos. Somos todos inocentes ou somos todos culpados? Quem poderá responder? Alguém já chegou, realmente, a vislumbrar a solução dos nossos problemas mais íntimos, pessoais, que são dádivas da vida?


















































COMUNICAÇÃO


A expressão deve ser espontânea e significativa. Para isto, a expressão verbal, a mais elevada, usando sinais e símbolos, procura perenizar a realidade do falante e do mundo que o rodeia. Neste sentido, «falar não é somente expressar conhecimentos ou tentar obtê-los», mas também influir na conduta do próximo, tal como ouvir é se deixar influenciar pelo verbo, fechando o ciclo da comunicação. Falar «não é se dar sob um certo aspecto que se revela em mudança, conservados os outros que integram a estrutura do falante. Em outras palavras, não é, apenas, viver uma dimensão intelectual, mantidas as demais inalteradas e inalteráveis. Falar, na realidade, é exibir toda a plenitude do ser em um processo de relacionamento com o mundo.» (38)
A escrita, que pretende ser uma fotografia da palavras, guardará muitas dessas correlações. Mas, devido ao apelo que fará aos elementos lógicos e psíquicos, em vista mesmo da sua vinculação mediata com o sujeito, muitas vezes pode trair-se. Então, teríamos que considerar o problema da sinceridade de expressão na arte, especialmente na literatura. Até que ponto? E como?
Claude Simon afirmou, certa vez, a um escritor: «L Herbe» é, para mim, o menos literário de meus livros, o que escrevi com o coração como uma espécie de homenagem ou de oração fúnebre por uma velha tia que me criou, que eu considerava e amava como mãe, e cuja morte senti tão dolorosamente que (na medida em que escrever é, entre outras coisas, tentar lutar um pouco contra a morte) senti necessidade de escrever este livro.»(39)
Leyla Perrone-Moisés nos diz do romance de Claude Simon, comparando com outro seu romance anterior, o seguinte: «O calor humano que se desprende das páginas de Le Vent está quase que todo ausente de L Herbe, romance mais pensado que sentido» (40), acrescentando que o último representaria um aperfeiçoamento em técnica e estilo e um recuo em espontaneidade, calor humano e comunicabilidade. Justamente o livro que o romancista diz ter escrito com o coração.
Tais são as complicações da escrita, com relação à sinceridade de expressão do sujeito, pondo-se em contato a necessidade e o projeto com a obra. Daí porque tanto o sinal quanto sua origem pode lançar luzes sobre a realidade de uma obra. A escrita pode ser uma falsificação da fala e, conseqüentemente, da realidade, mas, nas entrelinhas, nas anotações e sublinhações de livros, nas epígrafes, nas citações podemos distinguir muita contrafação ou ajustamento. Em suma, arrancar a personalidade ou partes do caráter do artista.
Porque a linguagem não é só feita de palavras isoladas mas de relações de vocábulos e até de pausas, evidentemente que só o estudo gramatical, mesmo acrescido do linguístico, será insuficiente para o conhecimento da obra, embora se reconheça que «há palavras mais evocadoras do que outras e que o bom escritor deverá aproveitá-las para suscitar as mais vivas e variadas imagens.» (41). O discurso é feito de palavras, mas é preciso ter esse discurso e não somente palavras. Assim poderá, cada um, formar sua linguagem específica, seu estilo, mesmo que não nos pareçam, à primeira vista, distanciarem-se do comum, do trivial. Estilo, na concepção de Wilson Martins, não é apenas a forma de arrumar palavras na frase e esta na página, nem a maneira de compor os capítulos; é isto e muito mais; inclui a concepção da obra - que é uma visão do mundo através do artista - uma genuína filosofia de vida transposta para a arte.(42)
Para saber-se até que ponto um escritor comunica seu mundo, é necessário descobrir esse mundo: muitas vezes misterioso e sutil, poético como o de O. G. Rego de Carvalho em «Ulisses entre o Amor e a Morte», onde até o silêncio intercapítulos transporta o leitor a paragens ilimitadas. Mundo outras vezes escuro e mórbido, como o de «Rio Subterrâneo». Ou o das relações vivenciais cheias de curvas e dúvidas, receios e dores morais, como o de «Somos Todos Inocentes», onde os conflitos são anotados pelo olho ubíquo do autor. Este último romance é o que melhor simboliza o período da adolescência, contrafeita pela estreiteza do círculo familiar, e representa portanto uma busca de relações novas. Como essa busca gera mal-entendidos e incompreensões, é causa de novas buscas, no eterno dinamismo da vida. Rego de Carvalho é o menino Ulisses, deslumbrado, é o jovem confuso diante do comportamento de Dulce, Pedrina, Raul e Amparo. É o homem que amadurece no sofrimento de Lucínio e dos seus, na quinta de Timon, entre a chuva e a tempestade, à beira do rio aterrador e da tentação da morte suicida.
Nossa civilização é a da imagem. Estão aí o cinema, a televisão, a revista em quadrinhos. Cientificamente comprovou-se que o sentido da vista é o mais abrangente de todos. Enquanto o ouvido - o segundo em potencialidade - pode captar apenas 10 sons distintos por segundo, os olhos captam 22 imagens diferentes, no mesmo tempo, permitindo-nos a absorção de maior acervo de informações e dados. Assim, através dos olhos, podemos ter mais facilmente uma enorme massa de conteúdos. Esse meio de comunicar, embora deixe a desejar qualitativamente, tem um grande alcance quantitativo, chegando até as massas. Em «Somos Todos Inocentes», o livro de O. G. Rego de Carvalho mais aberto ao público, mais comunicante, é onde, particularmente, mais se encontram expressões bem condizentes com o fenômeno da captação visual. São exemplos, entre muitos outros:

«Encarou com os olhos...»
«Mirava o céu tristemente»
«Fitou-a com os olhos enevoados e sem brilho»
«Chegou a deter a vista...», etc.

Encontráveis também impressões visuais do tipo sinestesias e cenestesias. Tais são:
«a palidez dos lábios acentuando o azul dos olhos tristes» (pg.34) e «Dulce semicerrou os olhos com tal desalento, que o farmacêutico se preocupou» (pg.44).
De par com o diálogo vivo, fluente, sem grandes preocupações técnicas, aquelas formas estilísticas pervagam o livro. Podemos até dizer que caracterizam essa obra.
Em seguida, se queremos apontar outra face da comunicabilidade de O.G. Rego de Carvalho, depois da musicalidade da frase, será a da escolha dos nomes dos seus personagens: são todos mais ou menos simpáticos, alguns usados no diminutivo, reforçando a nota de intimidade e doçura da linguagem dos seus romances. Até nisto presenciamos o humanismo de sua arte. Bem outra era a atitude de Machado de Assis diante dos seus entes, dando-lhes nomes horríveis, como já observaram os críticos.
A paisagem de «Ulisses entre o Amor e a Morte» é, certamente, vista por um poeta:
«A noite envolvia o morro do Rosário, quando a procissão chegou ao fim. À saída da igreja, a criada guiou-me por um caminho de avencas, até o horto onde o Menino Jesus costumava distrair-se.» (pg.11).

Em «Somos Todos Inocentes», o paisagístico, o exterior colabora às vezes com a confusão de sentimentos dos personagens, mas, normalmente, contrasta com o estado de ânimo dos donos do ponto de vista:

«Impotente para dominar o desespero que lhe comprimia a garganta como os anéis de uma cobra, recolhe-se a seu refúgio na malhada pequena, entretanto nem o murmúrio do córrego nem o perfume dos marmeleiros conseguiram tranqüilizá-lo. As próprias rezes pastando apenas lhe aguçavam a dor» (Ananias, pg. 109).

Já em «Rio Subterrâneo», a natureza faz parte do próprio ser humano e para o personagem é que o romancista cria a paisagem:
«Vira-se na rede, e abre os olhos, dilatando as pupilas. O quarto permanece escuro. Felizmente não chove mais. É o que vislumbra fitando as vidraças da janela. Lá fora todo serena a madrugada. Vai chover ainda. O céu não deixou de ser cinzento; e, líquidas, as nuvens como que roçam nas palmas dos coqueiros distantes.» (Lucínio, pg. 28)

Por que chove tanto em «Rio Subterrâneo»?
O. G. Rêgo de Carvalho não faz romance de recusa ou de crítica social. A universalidade do sofrimento e da linguagem carregam o escritor pelo rio subterrâneo da mente, entre as relações possíveis da vida e na remembrança do passado longínquo, perdido, da infância, com uma dose de humanidade só encontrável nas obras ditadas pela tortura. No verdadeiro sentido da palavra, ninguém pode acusá-lo de memorialista ou regionalista. Sem ser um retrógrado, mostrou que pode fazer romance usando diálogos exteriores, para pôr em choque as personagens e suas convicções, em «Somos Todos Inocentes». Pôde escolher o monólogo e o remoer do passado (que se faz eterno), para produzir um romance-poema como «Ulisses entre o Amor e a Morte». Embora em ambos esteja presente o narrador onisciente, a partir de «Rio Subterrâneo» adotaria técnica das mais avançadas, sem se deixar absorver pelo tecnicismo, trazendo para a literatura uma obra das mais estranhas, singular mesmo, digna de estudo pelos entendidos. A partir de «Rio Subterrâneo», digo, porque O.G. Rego de Carvalho escreve, atualmente, «Era Noite, Afonsina», cuja problemática abrange o celibato clerical e outras questões conexas.
Continuará o ciclo maravilhoso, fantástico, sedutor, da compreensão do homem universal, com base no homem piauiense, tal como Dostoiévski que, do barro humano eslavo, levantou os problemas verdadeiramente humanos? Não temos dúvida.
Álvaro Lins, diante da dificuldade de esclarecer certos aspectos da obra de Graciliano Ramos, responde às suas próprias indagações que «a dificuldade para essa análise esclarecedora encontra-se na circunstância de ser o Sr. Graciliano Ramos um autor contemporâneo, uma figura que encontramos nas ruas todos os dias. Essa proximidade determina a existência de obstáculos invencíveis. Outros obstáculos decorrem do respeito com que o crítico está sempre obrigado a tratar a figura pessoal de um autor vivo, pois somente a morte confere o direito de um julgamento definitivo, de uma interpretação minuciosa e profunda. Acho que seria uma violência projetar sobre um autor ainda vivo todos os elementos de análise que a sua obra oferece. Não tanto pelo autor em si mesmo, com uma consciência literária capaz de aceitar todos os exercícios da crítica, como pelos rigores da vida ordinária.» (43)
Bem fundados os receios do excelente crítico, achamos, visto que tentava uma explicação do homem Graciliano Ramos através de seus romances. Outra seria a sua opinião, tivesse em mira explicar a obra e não o autor, como é o nosso caso. Mesmo assim podemos concordar, em parte, desde que não há separação estanque entre a obra e o autor, por muito que os esteticistas o desejem.
Não pretendendo fazer um julgamento definitivo nem esgotar a análise de uma obra tão difícil e rara como a de O. G. Rego de Carvalho e que está ainda em ascensão, acredito ter apenas esboçado alguns elementos mais evidentes do seu estilo, para reafirmar o seu valor. Glória maior caberia, evidentemente, ao ensaísta Homero Silveira quando, cheio de confiança no futuro do estreante de 1953 (Ulisses entre o Amor e a Morte), afirmou - uma afirmação que poucos críticos se animaram a fazer: «O romance psicológico brasileiro pode-se dizer que está com um novo elemento a desafiar a atenção dos leitores e da crítica. O. G. Rego de Carvalho, se continuar nessa diretriz que se impôs em «Ulisses», ainda vai surpreender no cenário das nossas letras. O escritor piauiense ainda será conhecido, principalmente porque não segue as já bastante gastas entonações dos escritores de gosto social ou telúrico, que se comprazem no relato direto das velhas e sempre as mesmas histórias de costume, numa assonância desagradável e já agora perigosa para a sorte do romance brasileiro.» (44).
Acertou em cheio o crítico paulista: O. G. Rego de Carvalho está realmente surpreendendo a sua geração, não só surpreendendo como já se afirmou perante ela, podendo contar, desde já, com o seu nome num lugar de destaque nas páginas do futuro historiador literário.

Teresina, novembro de 1970/outubro de 1971.


































































































BIBLIOGRAFIA


I - Obras de O. G. Rego de Carvalho (1a. edição):

- ULISSES ENTRE O AMOR E A MORTE, Novela - Meridiano, Teresina, 1953
- AMOR E MORTE, Contos e Novelas - Meridiano, Teresina, 1956
- SOMOS TODOS INOCENTES, Romance - Civilização, Rio, 1971
- RIO SUBTERRÂNEO, Romance - Civilização, Rio, 1967

II - Outras obras consultadas e citadas:

1) Fausto Cunha - Situações da Ficção Brasileira - Paz e Terra, Rio, 1970, pg. 24/52
2) Osman Lins - Guerra sem Testemunhas - Martins, S.Paulo, 1969, pg. 36/7
3) E. M. Forster - Aspectos do Romance - Globo, Porto Alegre, 1969, pg.3
4) Braga Montenegro - Uma Antologia do Conto Cearense - Fortaleza, 1965 (introdução)
5) Massaud Moisés - A Criação Literária - Melhoramentos, São Paulo,1965, 3a. edição pg.34/5
6) E. M. Forster - Aspectos do Romance, idem, idem, 1969, pg.34/5
7) O.G.Rego de Carvalho - Um Romancista do Nordeste(entrevista), Jornal de
Letras, Rio, maio/71
8) Mira y Lopez - Psicologia Geral - Melhoramentos, São Paulo, 1965, pg.191/5
9) Merleau-Ponty, apud Antônio Gomes Penna - Comunicação e Linguagem - Fundo de Cultura, Rio, 1970, pg.95
10) E. M. Forster - Aspectos do Romance, idem, idem, pg.36
11) Antônio Gomes Penna - Comunicação e Linguagem - Fundo de Cultura, Rio, 1970, pg.147
12) Vivaldo Coaracy - De uma carta dirigida ao romancista O. G. Rego de Carvalho.
13) Massaud Moisés - A Criação Literária - idem, idem, pg.219
14) Hélio Pólvora - Um Romance Contínuo - Jornal do Brasil, Rio, edição de 31/3/71.
15) Antônio Gomes Pena - Comunicação e Linguagem - idem, idem
16) Vidal de Freitas - O.G. Rego de Carvalho, Introspecção e Poesia, Jornal
«O Cometa», Oeiras, agosto/71
17) Hélio Pólvora - Um Romance Contínuo - idem, idem
18) Fausto Cunha - Situações da Ficção Brasileira - idem, idem
19) Cornélio Pena - Fronteira - Ed. de Ouro, Rio, 1967, pg. 19
20) ...................... - Boletim da Biblioteca do Exército, Rio, abril de 1957, pg.22
21) ...................... - Um Romance Lírico - Revista «Anhembi», S.Paulo, novembro
de 1954, pg.575/7
22) O. G. Rego de Carvalho - Entrevista ao jornal «O Dia», Teresina, ed. de 28/3/71
23) Hélio Pólvora - Um Romance Contínuo - idem, idem
24) E. M. Forster - Aspectos do Romance - idem, idem, pg. 30
25) E. M. Forster - Aspectos do Romance - idem, idem, pg. 69
26) E. M. Forster - Aspectos do Romance - idem, idem, pg. 21
27) L. Costa Lima - Por que Literatura - Vozes, Rio, 1966, pg.14
28) L. Costa Lima - Por que Literatura - idem, idem, pg. 17
29) Álvaro Lins - Jornal de Crítica (sétima série) - Ed. «O Cruzeiro», Rio,1963, pg.16
30) Hélio Pólvora - Um Romance Contínuo - idem, idem
31) E. M. Forster - Aspectos do Romance - idem, idem, pg.100
32) E. M. Forster - Aspectos do Romance - idem, idem, pg. 100
33) Basílio da Gama, apud Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda - Roteiro
Literário de Portugal e do Brasil (Vol.II) - Civilização, Rio,1966, pg.25
34) Fausto Cunha - Situações da Ficção Brasileira - idem, idem, pg.24/5
35) Homero Silveira - Convite ao Abismo - Recorte de «O Estado de São Paulo»,
edição de / / 1953 (dos arquivos do romancista O.G. Rego de Carvalho)
36) Geraldo Borges - Um Romance Naturalista - Revista «Piauí Ilustrado», julho/71,
Teresina
37) ........................ - BARSA - Enciclopédia Britânica Editores Ltda., Rio/S.Paulo,
1967, Vol.5, pg.147
38) Antônio Gomes Penna - Comunicação e Linguagem - idem, idem, pg.31
39) Leyla Perrone-Moisés - O Novo Romance Francês - DESA, Coleção Buriti - São
Paulo,1966, pg.95
40) Leyla Perrone-Moisés - O Novo Romance Francês - idem, idem, pg.94
41) M. Rodrigues Lapa - Estilística da Língua Portuguesa - Liv. Acadêmica, Rio, 5a.
edição, 1968
42) Wilson Martins - Graciliano Ramos-o Cristo e o Grande Inquisidor, introdução
da 8a. edição de «Caetés», Martins, Rio, 1969
43) Álvaro Lins - Os Mortos de Sobrecasaca - Civilização, Rio, 1963, pg. l44/5
44) Homero Silveira - Convite ao Abismo, idem, idem.


























































A P Ê N D I C E

I. Crítica posterior
II. Bibliografia sobre O.G.Rego de Carvalho















































































I. Crítica posterior:
O. G. REGO DE CARVALHO (*)
(Oeiras - Piauí, 1930)


Na década de 60 surge no Brasil uma obra singular, personalíssima, revolucionando o marasmo e a indecisão em que se debatia o romance brasileiro, uns recusando a persistente linha regionalista de 30, outros fascinados pelas experiências do realismo fantástico de nossos irmãos de língua espanhola. Falamos de RIO SUBTERRÂNEO, romance de O. G. Rego de Carvalho, só editado em 1967. Rego de Carvalho nascera na antiga capital do Piauí, Oeiras, cidade dos primeiros anos da colonização portuguesa, ciosa dos costumes antigos, aristocráticos, acusados na fala e nas ruínas. Provindo de patriarca família de sangue português, desde cedo O. G. Rego demonstrou pendores artísticos. Os seus antepassados não remotos praticaram com mestria a música, o que não aconteceu a ele, não obstante a atmosfera musical fizesse parte de sua formação. Mudou-se para Teresina, continua os estudos e começa a ler José de Alencar e Machado de Assis. Entretanto a vida provinciana não ajudava. Por imposição de ordem profissional, depois de publicar ULISSES ENTRE O AMOR E A MORTE e AMOR E MORTE, O. G. Rego de Carvalho vai residir no Rio de Janeiro, onde concebe outros livros: SOMOS TODOS INOCENTES ( que posteriormente recebeu o prêmio «Coelho Neto» da Academia Brasileira de Letras) e RIO SUBTERRÂNEO.
SOMOS TODOS INOCENTES tem estrutura e linguagem tradicionais porque o Autor procura retratar uma Oeiras antiga, dos anos 30, com suas intrigas e mesquinharias, seus sobrados, ruínas, tradições e famílias. Mas em toda a obra de O.G. Rego de Carvalho Oeiras está presente, uma Oeiras que pode ser qualquer cidade do mundo, sem exotismos exagerados nem paisagens prescindíveis, abarcando essencialmente as almas doentias, as pessoas neuróticas, os caminhos tortuosos da loucura e suas implicações, a atmosfera pesada da solidão e da incomunicabilidade. Já ULISSES ENTRE O AMOR E A MORTE, tendo por tema a adolescência e seus problemas e comportando um lirismo fresco e terno, apontava a gravidade dos problemas da maturidade, que ressurgiriam com grande força expressional em RIO SUBTERRÂNEO. ULISSES foi uma das mais auspiciosas estréias da literatura brasileira, saudada pelos críticos e principalmente pelos poetas, pois é uma obra altamente simbólica.
O. G. Rego de Carvalho questiona a doença, a dor, o sofrimento moral ou físico e testemunha, em toda a obra, a grandeza e a miséria humanas. Na angústia do tempo, no desespero da incompreensão, na busca de sentido para o mundo e as coisas, os personagens de O. G. Rego de Carvalho podem ser geograficamente situados em qualquer latitude, em qualquer cidade, não obstante viverem em Oeiras, Teresina, Timon. São pessoas amadas, odiadas, que sonham, deliram, têm visões aterradoras, enquanto buscam a felicidade e se angustiam tateando os grandes mistérios da vida e da morte. Mas O.G. Rego não deixa de ser o artesão consciente quando dá asas à imaginação e à fantasia, nos mundos de Ulisses, Raul e Dulce, Helena e Lucínio. A renovação de sua arte não se subordina à forma também, ela é um processo global, cada um de seus romances representa um momento vital que transcende a realidade particular e ganha liberdade e autonomia próprias. O que caracteriza essencialmente sua obra, além da excelência dos temas e da elegância e força do estilo, é a ternura, mesmo na aflição sem termo, no estiolamento das forças, na entrega desordenada aos sentimentos, na confusão interior. Os problemas mais sérios da alma humana estão nas páginas de O. G. Rego de Carvalho, ele que nunca estudou psicologia. E mais tarde viu comprovados os fenômenos recenseados pela intuição como certos, como verdades científicas.
Desde o início, com prosa lírica e suficiente, O.G. Rego de Carvalho alcança o fantasmagórico do sonho e as visões fantásticas do delírio. Desde ULISSES apontava a linha dostoievskiana, acentuada em RIO SUBTERÂNEO - obra esta que o levou a um hospital psiquiátrico como doente mental.
RIO SUBTERRÂNEO não é apenas o sofrimento de Lucínio e Helena - ele em Teresina à espera, ela em Oeiras na ânsia de partir e encontrá-lo e sem saber como deixar o passado. Numa noite? em quanto tempo? e a chuva? Sofrimentos que comovem, excitam, transformam a quietude e a indiferença, tal como as preocupações paralelas de Hermes, Afonsina, Benoni e Neusa. É também um livro que renova os padrões estilísticos assentados, desenterra tesouros inimaginados da língua portuguesa (uma nova harmonia dos sons nas palavras e das palavras na frase), por isto mesmo difícil de ser traduzido sem deturpação. É um clássico sem afetação, um clássico moderno no dizer da crítica, todo o entrecho correndo com a fluência dos rios constantes, densos, profundos, refletindo nos seus espelhos mas guardando no seu fundo.
O romance de O. G. Rego de Carvalho parece estruturalmente conservador; precisamos de muita argúcia para sentir a forma parabólica de RIO SUBTERRÂNEO, a disjuntividade dos capítulos nele e em ULISSES, o contraponto, o flash-back, assim como a adaptação moderna e pessoal de outras técnicas conhecidas, sem se prender a nenhum modelo.
Teresina, Piauí, 1975.
Francisco Miguel de Moura.










*Nota do Autor: - Verbete escrito para A DICTIONARY OF CONTEMPORARY BRAZILIAN AUTHORS, organizado pelo Prof. David William Foster, da Universidade do Arizona, USA. Tal obra só veio a ser editada em 1981, sob a responsabilidade do «Center for Latin American Studies», da referida Universidade. A versão para o inglês, tendo em vista que o dicionário é dirigido ao público americano, foi feita pelo mesmo Prof. Foster, organizador e principal compilador.








II. Bibliografia de O. G. Rego de Carvalho
1. Dicionários:
- A Dictionary of Contemporary Brazilian Autors - Direção de David William Foster - Universidade do Arizona, Temple, USA. 1981.
- Dicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega - Direção de Jacinto
do Prado Coelho, Porto, Portugal, 1960.
- Dicionário Literário Brasileiro - Raimundo de Menezes, Rio, 1978.
- Dicionário Prático de Literatura Brasileira - Assis Brasil, Rio, 1979.
- Enciclopédia de Literatura Brasileira - Vol. 1 - Direção de Afrânio Coutinho
e J. Galante de Sousa, Min. da Educação/FAE, Rio, 1990.
- Dicionário Biográfico, Escritores Piauienses de Todos os Tempos, 2a. edição -
Adrião Neto, Teresina, 1995.
- Dicionário Histórico-Biográfico Piauiense - Wilson Carvalho Gonçalves,
Teresina, 1993.
2. Livros:
- História da Literatura Brasileira (Modernismo) - Massaud Moisés, São Paulo, 1989.
- A Literatura no Brasil - Organização de Afrânio Coutinho, Rio, 1986-Vol.VI-
3a. edição.
- História da Inteligência Brasileira - Wilson Martins, Vol.VII, São Paulo, 1979.
- A Força da Ficção - Hélio Pólvora, Rio, 1971.
- A Nova Literatura Piauiense - Herculano Moraes, Rio, 1975.
- Visão Histórica da Literatura Piauiense - Herculano Moraes, Teresina, 1982,
2a. edição.
- Literatura Piauiense - Cineas Santos et alli, Teresina, 1979.
- O Caráter Social da Literatura Brasileira - Fábio Lucas, Rio, 1970.
- Do Ideal e da Glória (Problemas Inculturais Brasileiros) - Osman Lins,
São Paulo,1977.
- Literatura e Linguagem - Nelly Novaes Coelho, São Paulo, 1980-3a. edição.
- De Conversa em Conversa (Entrevistas) - José Afrânio Moreira Duarte,
São Paulo,1976.
- Palavra Puxa Palavra - José Afrânio Moreira Duarte, São Paulo, 1982.
- Os Caminhos do Romance - Abdias Lima, Fortaleza, 1972.
- A Geração Perdida - M. Paulo Nunes, Rio, 1979.
- Aspectos do Romance Brasileiro Contemporâneo - Homero Silveira, São
Paulo, 1977.
- A Nova Literatura (O Romance) - Assis Brasil, Rio, 1973.
- O Livro de Ouro da Literatura Brasileira - Assis Brasil, Rio, 1980.
- A Técnica da Ficção Moderna - Assis Brasil, Rio, 1982.
- Teoria e Prática da Crítica Literária - Assis Brasil, Rio, 1995.
- Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira - Oto Maria Carpeaux - Edição Póstuma (Ver Apêndice de Assis Brasil), Rio, s/d.
- Antologia do Novo Conto Brasileiro - Esdras do Nascimento, Rio, 1964.
- Piauí: Terra, História e Literatura (Antologia organizada e apresentada por Francisco Miguel de Moura) - São Paulo, 1980.
- Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho - Francisco Miguel de Moura, Rio, 1972.
- O Mundo Degradado de Lucínio - Fabiano de Cristo Rios Nogueira, Teresina, 1985 2a. edição em 1995).
- Rio Subterrâneo, Estrutura e Intertextualidade - Maria Gomes Figueiredo Reis,
Teresina, 1995.
- Literatura Piauiense no Vestibular - Alcenor Candeira Filho, Parnaíba, Piauí, 1995.
- Aspectos da Literatura Piauiense - Alcenor Candeira Filho, Parnaíba, Piauí, 1993.
- Piauí: Formação-Desenvolvimento-Perspectivas - Organizado por R. N. Monteiro de Santana, Teresina, 1995.
- Miscelânea Literária - Lili Castelo Branco, Teresina, 1985.
- Baião de Dois - Rosa Maria dos Santos, Rio, 1983.
- Impressões e Perspectivas - L. M. Ribeiro Gonçalves, Teresina, 1980.
- Passeio a Oeiras - Dagoberto Carvalho Júnior, Teresina, 1982.
- Mosaico - J. Miguel de Matos, Teresina, 1976.
- Anglo-Norte Americanismos no Português do Brasil - A. Tito Filho, Rio, 1986.
- João Burundanga - J. Ribamar Oliveira, Teresina, 1980.
- Antologia de Sonetos Piauienses - Félix Ayres, Teresina, 1972.
- O Perto e o Longe - Enéas Athanázio, Florianópolis, 1991-Vol. 2.
- Os Dias Esquecidos - Ascendino Leite, Rio, 1983.
- As Melhores Crônicas do IV Concurso «Sérgio Porto», FENAB, Brasília, 1983.
- O Castelo de Frankenstein - Salim Miguel, Florianópolis, 1986.
- Ruínas da Memória - Rogério Newton, 1993.
3. Revistas:
- Anhembi - Dir. de Paulo Duarte - Resenha «Um Romance Lírico»(Ulisses
Entre o Amor e a Morte), São Paulo, novembro/1954.
- Boletim da Biblioteca do Exército - Direção de Umberto Peregrino - Resenha sobre Amor e Morte, Rio, abril/1957.
- Books Abroad - Rio Subterrâneo - Resenha de David Lord - Univ. de Oklahoma, Norman, USA., abril/1968.
- Convivium - Somos Todos Inocentes - Resenha de Homero Silveira, São Paulo, agosto/1971.
- Convivium - Rio Subterrâneo - Resenha de Alcântara Silveira, São Paulo, abril/1972.
- A Cigarra - Dir. de Herberto Sales - A Nova Geração Escreve Contos, por
Alberto da Costa e Silva, Rio, maio/1957.
- Cirandinha - Dir. de Francisco Miguel de Moura - Aspectos da Ficção de O. G.
Rego de Carvalho, por João Pinto, Teresina, maio/1980.
- Revista da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - O Complexo de Édipo
na Obra de O. G. Rego de Carvalho, por José Expedito Rego, Teresina, 1982.
- Revista do Instituto Histórico de Oeiras, no. 2, Oeiras, Piauí, Ano de 1982.
- Revista da Academia Piauiense de Letras, Teresina, Ano de 1988.
- Literatura (Revista do Escritor Brasileiro), Brasília, no. 1, de jan/1992.
4. Abonações:
- Novo Dicionário - Aurélio Buarque de Holanda, Rio, 1975 (Somos
Todos Inocentes).
- Guia de Redação - Ignácio de Loyola et alli, São Paulo, 1977 (Rio Subterrâneo).
- Catálogo do Instituto Nacional do Livro - Ano 1974-78.

















































Orelhas do livro:


LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO EM O. G. REGO DE CARVALHO


Nas notas dominicais sobre literatura brasileira, tenho procurado fugir ao tema atual e presente que é a literatura piauiense, por motivo talvez de excessiva cautela.. Tendo passado cerca de vinte anos fora do Estado e portanto sem um contacto mais direto com os nossos escritores, salvo alguns poucos de quem tive o prazer de receber livros neste período ou aqueles que me eram enviados pela Academia, não pude acompanhar de perto a evolução da produção literária piauiense que me permitisse um juízo de valor. Alguns autores que comentei nesse período o fiz com base em conhecimento anterior ou em razão de posterior convivência, sobretudo a partir do momento em que aqui ocupei, de forma eventual e por pouco tempo, a extinta Secretaria de Cultura do Estado, quando tive a oportunidade de relacionar-me com intelectuais brilhantes e possuidores de um sentido universalista da cultura, como Cineas Santos e Dagoberto de Carvalho Júnior. É dessa época também o conhecimento de um grande poeta - Clóvis Moura, de quem pude prefaciar dois livros - «Argila da Memória», editado em minha gestão como Secretário, e, posteriormente, este admirável «Flauta de Argila», lançado, no final do ano passado, pela Fundação Cultural «Mons. Chaves», dentro de uma programação editorial das mais ricas e eficientes que já tivemos em nosso Estado.
Dentre as obras com que tomei contacto no período dessa diáspora, uma das mais significativas, no domínio da crítica literária, foi o livro de Francisco Miguel de Moura, acadêmico, poeta, contista, ensaísta e historiador da literatura - LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO EM O. G. REGO DE CARVALHO (Projeto Petrônio Portella, 1972)-
O. G. Rego de Carvalho, o nosso melhor romancista, na linha de Machado de Assis, dono de um estilo que é das melhores realizações literárias na literatura de língua portuguesa, é um autor extensamente estudado dentre todos os representantes de nossa romancística. Sua obra vem sendo motivo, não apenas de apreciação de nossa crítica autorizada - digo, a crítica autorizada do nosso país, como tem constituído objeto de estudos e monografias especializadas em Universidades do país e do exterior. Sendo um romancista muito estudado, no entanto, é autor cuja interpretação vem suscitando polêmicas, às vezes alimentadas pelo próprio romancista que, pelo alto apreço em que tem a sua obra, nem sempre se conforma com os esquemas às vezes limitadores em que a seu ver intentam aprisioná-la. Daí as reações às vezes inesperadas de um espírito que prima pela racionalidade e pela lucidez de conceitos literários ou artísticos.
Francisco Miguel de Moura, entretanto, realizou a meu ver com este ensaio uma das mais lúcidas interpretações da obra de O.G.Rego de Carvalho. Arguto, penetrante, em primoroso estilo, mergulha fundo nos desvãos psicológicos da obra do romancista, procurando surpreender em todos os seus personagens o seu drama interior. E uma cousa singular pude observar neste belo estudo lido agora, pela segunda vez, com mais método e paciência, e que está a merecer uma nova edição. Manifesta-se o seu autor com rara felicidade, ao demonstrar que para realizar aquela obra tão densa de análise interior, recorre o romancista a uma linguagem que não é somente prosa, mas prosa poética. E me lembrei de que de fato os grandes trágicos gregos - Ésquilo, Sófocles, Eurípides, todos se expressam através da poesia para fixar a tragédia da condição humana em todos os tempos e lugares.
Os grandes escritores, para adquirirem maior notoriedade, sempre contaram com um crítico de renome para projetarem as qualidades maiores da obra realizada. Eça de Queiroz talvez não fosse Eça de Queiroz se não contasse com críticos do porte de Teófilo Braga e Ramalho Ortigão que despertariam o público ledor para a alta relevância de um dos maiores romancistas da língua. Graciliano Ramos talvez não alcançasse tão celeremente a consagração que obteve ainda em vida, se não contasse com a contribuição crítica de um Álvaro Lins, de um Otto Maria Carpeaux ou de um Antônio Cândido, que revelaram as potencialidades daquele grande romancista, um dos maiores da nossa literatura.
Quero crer que O. G. Rego de Carvalho tenha tido o seu intérprete definitivo em Francisco Miguel de Moura, intelectual competente e sério nesta nossa província deserta da imagem do poeta, e figura de realce de nossa Academia. Foi através deste brilhante ensaísta, homem de leituras inumeráveis, com aguda sensibilidade para o fenômeno literário, que tivemos o estudo a meu ver definitivo a respeito da obra que é hoje patrimônio de nossa cultura do romancista O. G. Rego de Carvalho.

M. Paulo Nunes
Presidente da APL.






Quarta capa:



De todas as análises que se fizeram no Piauí sobre minha ficção, nenhuma me parece mais atual e correta que este conjunto de ensaios de Francisco Miguel de Moura. Aqui não encontrei mistificações nem truques. Este é um livro claro e sincero. Daí porque sempre o leio com agrado.

O. G. Rego de Carvalho
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