Era uma vez uma aldeã muito má que ficara viúva, com duas meninas: uma filha e uma enteada. A mais velha, que era a enteada, chamava-se Ana; e a segunda, que era tão má quanto a mãe, chamava-se Berta. A aldeã adorava a filha, mas sentia verdadeiro ódio por Ana, somente por esta ser muito bela e Berta muito feia. A enteada era muito boazinha e nem notava a sua formosura, ignorando por que razão a madrasta se enfurecia tanto somente em vê-la. A pobre menina é que fazia todo o serviço da casa; lavava, varria, cozinhava, cosia, fiava, tecia, cortava capim e cuidava da vaca; Berta, essa não fazia nada.
Ana trabalhava sem descanso e recebia repreensões e pancadas como uma ovelhinha mansa. Mas nada desarmava a madrasta, porque a enteada era cada vez mais bonita e a filha cada vez mais feia.
- Já estão umas moças, - pensava a aldeã - e daqui a pouco aparecem os pretendentes, que são capazes de desprezar a minha filha quando virem Ana, que parece ficar cada vez mais bonita somente para me arreliar. Preciso desembaraçar-me dela, custe o que custar.
Um dia, no rigor do inverno, Berta desejou umas violetas.
- Vamos, Ana, vai ao bosque apanhar violetas.
- Mas que idéia, minha irmã! Julgas que há violetas debaixo da neve?
- Cala a boca - replicou a mais moça - e faze imediatamente o que te mando. Se não fores ao bosque buscar-me um ramo de violetas, quebramos-te os ossos.
A mãe agarrou Ana por um braço, atirou-a para fora de casa e fechou a porta a chave.
A pobre menina dirigiu-se para o bosque chorando.
Estava tudo coberto de neve; nem sequer se viam os caminhos. Ana perdeu-se; a fome mortificava-a, o frio fazia-a tremer e pediu a Deus que a levasse para o céu.
De repente descobriu, ao longe, uma luz. Andou, subiu e chegou, por fim, ao cume de um monte. Viu então uma grande fogueira e em volta doze pedras; em cada pedra estava sentada uma personagem, imóvel, envolta numa grande túnica, com a cabeça coberta por um capuz que quase lhe tapava os olhos. Três destas túnicas eram brancas como a neve, três verdes como a relva dos prados, três douradas como as espigas de trigo e três roxas como as violetas. Estas doze figuras que, em silêncio, contemplavam o fogo eram os doze meses do ano.
Ana reconheceu Janeiro pelas suas longas barbas brancas. A menina aproximou-se e disse timidamente:
- Meus bons senhores, deixai-me aquecer ao vosso fogo que estou com muito frio.
Janeiro fez sinal com a cabeça.
- Para que vens tu aqui, minha filha? - perguntou-lhe. - Que procuras?
- Procuro violetas - respondeu Ana.
- Não é a estação delas - disse Janeiro com voz cavernosa; - não há violetas debaixo da neve.
- Bem sei - disse Ana, tristemente; - mas minha mãe e minha irmã quebram-me os ossos se eu não as levar. Dizei-me onde as poderei encontrar, meus bons senhores.
O velho Janeiro levantou-se e, chegando-se a um moço de capuz verde, entregou-lhe um bastão, dizendo-lhe:
- Irmão Março, é a ti que compete.
Março levantou-se e com o bastão remexeu o fogo. Eis que a chama se eleva, derrete-se a neve, os ramos das árvores cobrem-se de botões encarnados, a relva reverdece, as flores aparecem por entre a folhagem e as violetas abrem-se, exalando delicioso perfume. Era como se a primavera voltasse.
- Pronto, minha filha; apanha depressa as tuas violetas - disse Março.
Ana fez um grande ramo, agradeceu aos doze meses e correu logo para casa.
Calcule-se o assombro da madrasta e da irmã. O odor das violetas espalhou-se por toda a casa.
- Onde encontraste estas flores? - perguntou-lhe Berta em tom desdenhoso.
- Lá em cima, na montanha - respondeu a irmã. - Há tantas que até parece um monte roxo!
Berta prendeu o ramo à cintura e nem sequer agradeceu à menina.
Na manhã seguinte apeteceu à perversa irmã comer morangos, e disse a Ana:
- Vai ao bosque e traze-me de lá morangos.
- Jesus, irmã, que idéia! Não há morangos debaixo da neve.
- Cala-te, grande tola, e obedece! Se não fores ao bosque e não me trouxeres um cesto com morangos moemos-te com pancadas.
A mãe agarrou Ana por um braço, jogou-a fora de casa e fechou a porta a chave.
A pobre menina encaminhou-se logo para o bosque, procurando, avidamente, a luz que vira no dia anterior. Teve a sorte de encontrar, e logo se dirigiu para lá, gelada e trêmula.
Os doze meses estavam nos seus postos do costume, sentados em silêncio e imóveis.
- Deixai-me aquecer ao vosso fogo, meus bons senhores; estou gelada de frio.
- Para que voltaste? - perguntou-lhe o velho Janeiro. - Que procuras hoje?
- Procuro morangos - respondeu Ana.
- Não é a estação deles, - disse Janeiro com a sua rude voz. - debaixo da neve não há morangos.
- Bem sei, - disse tristemente Ana - mas minha mãe e minha irmã moem-me com pancadas se eu não os levar. Dizei-me, bons senhores, onde os poderei encontrar?
O velho Janeiro levantou-se e, aproximando-se de um dos homens de capuz dourado, entregou-lhe o bastão, dizendo-lhe:
- Irmão Junho, é a ti que compete.
Junho levantou-se por sua vez e remexeu o fogo com o bastão; a chama sobe, a neve derrete-se, a terra reverdece, as árvores cobrem-se de folhas, os pássaros cantam e as flores entreabrem-se; era como se o verão voltasse. Estrelinhas brancas esmaltam a verdura, e transformam-se logo em morangos, que brilham por entre a folhagem, como rubis entre esmeraldas.
- Pronto, minha filha. - disse Junho. - Apanha depressa os teus morangos.
Ana encheu o avental, agradeceu aos doze meses e correu satisfeita para casa. Imagine-se a surpresa da madrasta e da irmã. O cheiro dos morangos perfumou toda a casa.
- Onde encontraste estes frutos? - perguntou-lhe Berta, em tom desdenhoso.
- Lá em cima na montanha, - respondeu a irmã - há tantos que até parece que a terra está coberta de sangue.
Tanto Berta como a mãe comeram os morangos e nem sequer agradeceram à menina.
Ao terceiro dia, a malvada irmã quis maçãs encarnadas. As mesmas ameaças, as mesmas injúrias, as mesmas violências. Ana correu à montanha e teve outra vez a sorte de encontrar os doze meses, que se aqueciam ao fogo, silenciosos e imóveis.
- Outra vez por aqui, minha filha? - perguntou-lhe o velho Janeiro, preparando-lhe um lugar perto do fogo.
E Ana, desfeita em lágrimas, disse-lhe que se não levasse maçãs encarnadas à irmã e à madrasta, elas a matariam com pancadas.
O bondoso Janeiro repetiu as cerimônias da véspera.
- Irmão Setembro, - disse a um de barbas grisalhas e capuz roxo - é a ti que compete.
Setembro levanta-se e remexe o fogo com o bastão. A chama sobe, a neve derrete-se, as árvores deixam cair, umas atrás das outras, impelidas pelo vento, as suas folhas já amarelecidas. É o outono. As únicas flores que se vêem são alguns cravos retardatários e algumas margaridas e sempre-vivas. Ana só reparou numa coisa: uma macieira cheia de maçãs encarnadas.
- Pronto, minha filha, sacode depressa a árvore. - disse-lhe Setembro.
Ela sacudiu e caiu uma maçã; sacudiu novamente e caiu outra.
- Pronto, vai depressa para casa! - gritou Setembro com a voz imperiosa.
A menina agradeceu aos meses e correu contente para casa. Imagine-se o espanto da irmã e da madrasta.
- Maçãs maduras em janeiro! Onde as apanhaste? - perguntou-lhe Berta.
- Lá em cima na montanha; há uma árvore com tantas!
- E por que não trouxeste mais que duas? Naturalmente comeste as outras pelo caminho.
- Eu, irmã?! Afirmo-te que nem lhes toquei; não me deixaram sacudir a árvore mais que duas vezes e caíram só duas maçãs.
- Mentirosa! - gritou-lhe Berta, irritadíssima.
E, sem piedade, começou a bater na irmã, que fugiu chorando desoladamente.
A perversa menina provou uma das maçãs e confessou que nunca tinha comido fruta tão deliciosa e delicada. A mãe foi da mesma opinião. Que pena não haver mais!
- Mamãe, - disse de repente Berta - dá-me a minha capa de peles que eu quero ir ao bosque procurar a árvore; e que o permitam ou não, hei de sacudí-la tão fortemente que todas as maçãs serão para nós.
A mãe queria dar-lhe alguns prudentes conselhos; Berta, porém, não a quis ouvir, pôs a capa, puxou o capuz para a cabeça e correu para o bosque.
Estava tudo coberto de neve. Não se via nem sequer um caminho. Berta perdeu-se mas a cobiça e o orgulho levaram-na para diante; descobriu ao longe um clarão, correu, subiu e encontrou os doze meses sentados nas suas respectivas pedras, silenciosos e imóveis.
Sem lhes pedir licença, aproximou-se, resoluta, do fogo.
- Que vens aqui fazer? Que queres? Para onde vais? - pergunta-lhe secamente o velho Janeiro.
- Que te importa, velho? - responde-lhe Berta - Não tenho que te dar conta de minhas ações.
E sem mais preâmbulos meteu-se pelo bosque. Janeiro franze o sobrolho e levanta o bastão sobre a sua própria cabeça. Num abrir e fechar de olhos, o céu torna-se negro, o fogo apaga-se, a neve cai e o vento sopra. Berta já nem vê por onde caminha; perde-se e procura, em vão, voltar sobre os seus passos. A neve cai, o vento sopra sem cessar. Aterrorizada, chama pela mãe e amaldiçoa a irmã. E a neve continua a cair, o vento a soprar. Berta está gelada, tem os membros entorpecidos e sente-se desfalecer. O vento continua a soprar, a neve continua a cair...
A mãe, em casa, já está impaciente e inquieta pela demora da filha; corre da janela para a porta, da porta para a janela; mas as horas passam e Berta não volta.
- É preciso - diz ela por fim - ir procurar a minha filha; não quero que morra abandonada ao lado daquelas malditas maçãs.
Pôs uma capa e um capuz e correu para a montanha.
Estava tudo coberto de neve, não se via sequer o caminho. Embrenhou-se no mais espesso do bosque chamando a filha em altos gritos. A neve caía, o vento soprava. Caminhava com passo incerto, vacilante, gritando ansiosamente com todas as suas forças.
Ana esperou, em vão, toda a tarde e toda a noite; nem a madrasta nem a irmã voltaram.
De manhã pega no fuso, fia uma roca inteira e nada; depois de tantas horas, ainda não há notícias das ausentes.
- Meu Deus, que lhes teria acontecido? - pergunta, banhada em lágrimas.
O sol brilhava através de uma neblina glacial, a neve cobria a terra. Ana fez o sinal da cruz e rezou um pai-nosso pela madrasta e pela irmã. Ninguém mais as tornou a ver; mas ao chegar a primavera, um pastor encontrou os seus corpos no bosque.
Ana ficou única herdeira da casa, da horta, da vaca e de um pedaço de prado.
Um dia, apareceu um jovem lavrador que lhe ofereceu a sua fortuna, a sua proteção e o seu coração. Os doze meses nunca abandonaram a protegida. Mais de uma vez, quando o vento soprava inclemente e os vidros das janelas tremiam, o velho Janeiro ia tapar com a neve as fendas da porta e das janelas, para que o frio não entrasse naquela casa bem-aventurada...
|