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Contos-->MAPUTO REVISITADA -- 15/11/2002 - 13:24 (Felipe de Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Visto-me apressado, bebo um gole de café quase frio com a minha dose diària de quinina e bato à porta atràs de mim. Nem sequer tranco a porta : nâo existe nada para roubar. Desço as escadas sem olhar de lado, cabeça baixa, olhar submisso, nâo cumprimento os vizinhos. Desço os degraus e maquinalmente conto os meus passos. No meio da rua vejo o mesmo cenàrio de sempre : as calçadas sâo invadidas por uma multiplicidade de cabeças baixas, olhares dispersos, corpos cambaleantes, ausência total de emoçôes e uma vaga de continuidade fixa num presente sem esperança de vida.

Os dias e as noites sâo semelhantes nesta cidade. Um vazio existencial cobre todos os edifìcios de cores mortas. Parece inùtil buscar a felicidade. A cidade fede, cheira mal, gesticula obscenidades, os detritos e lixos vivem a céu aberto. Todos fingem ignorar a podridâo. Eu também. Eu faço como todo mundo. Ignoro tudo. Tudo isto deve ter sido tirado de um filme macabro. Se existir o inferno (e Deus sabe que existe) é bem possìvel que se pareça com algo semelhante : este emaranho de seres amorfos, robotizados, que vâo à procura de algo sem saber o itineràrio do tesouro.

Tudo nesta cidade é grandiosamente feio, jubilatòrio no conceito real do mal, excessivamente ausente, verdadeiramente cruel. Nâo é preciso andar muito. Basta alguns passos. Em cada esquina cruzamos um batalhâo de derrotados, semimortos como eu, atropelados pela vida, os corpos -de todas as cores e tamanhos- nâo encontram mais forças para lutar. Lutar prà quê ? Todos se deixam guiar pelos acontecimentos banais, miseravelmente cotidianos, a rotina execràvel, a merda jogada na calçada todo santo dia.

Hoje nâo ! Hoje o meu mundo anda de cabeça para baixo. De revés, descubro uma ninharia de transeuntes caminhando soturnos cobertos de poeira. Inacreditàvel que tudo isto ainda nâo desmoronou por completo. Preciso apressar o passo. O desfile interminàvel diante dos meus olhos. Desta vez as coisas penetram-me com muito mais intensidade. Uma punhalada. Tudo fere-me : a pobreza ambiente, a sujeira das ruas, as crianças imundas que mendigam e mentem por alguns trocados, os olhares ambiciosos das mulheres, os pedestres que nâo prestam atençâo à desordem do mundo.

Um negro olha na minha direçâo com desdém, fixa-me nos olhos, encara-me, como se eu fosse um ser repugnante, uma barata. Tenho vontade de esbofeteà-lo, pior ainda, tenho vontade de quebrar todos os seus ossos com um pedaço de pau.

Subo a avenida Vladimir Lenine, na direçâo da Baixa, a avenida é suja, desajeitada, cheia de buracos, mulheres negras e disformes com seios volumosos alimentam seus filhos, elas estâo sentadas nas calçadas, inativas, vendendo bugigangas, frutas, verduras, tudo isto embaixo deste sol escaldante, da poeira, dos ruìdos e da loucura do trânsito. Aqui e alì, automòveis velhos, caindo aos pedaços, modelos 1960, lançam uma fumaça negra poluìda no ar. A multidâo ignora tudo, passa de lado, sem notar o sofrimento dos outros. Até parece que o mundo vai se acabar neste instante.

A visâo dessas crianças subnutridas, sujas, moribundas, sem futuro, sugando com avidez estes seios trouxe-me de volta à vida. A minha realidade. Num instante compreendi toda a filosofia do mundo. È preciso lutar. Ir em frente sempre. Nâo se deixar consumir pelo desânimo. Tudo tâo simples. Existe uma força màgica nessas mulheres. Ninguém vai salvà-las, elas estâo perdidas, condenadas, mas elas resistem : fazem filhos, amam, sobrevivem, amamentam, reclamam, cospem no châo, gozam, deixam-se penetrar por vàrios homens, tudo indica que estarâo mortas dentro de poucos anos, pouco importa, elas teimam em resistir. Essa visâo enorme do sofrimento alheio metamorfoseia algo no mais profundo do meu ser.

Nâo estou completamente perdido para a humanidade; ainda sinto o sofrimento dos outros. Mesmo num dia maldito e maléfico como este, ainda encontro forças sobrenaturais para resistir ao meu desânimo existencial : nâo acredito nas subespécies. Todas essas mulheres existem, estâo là, vivas, olhando com insistência, questionando, querendo manter contato, olhares vindos na minha direçâo confirmam que ainda existe uma escapatòria. Uma soluçâo. Nem tudo é negro. Nem tudo é branco. Todas elas sussuram, numa linguagem invisìvel, que estâo vivas, aptas a receber e ofertar, que desejam manter uma comunicaçâo silenciosa através de olhares, abraços, uma relaçâo afetiva, enfim, querem comunicar seus sofrimentos, suas dùvidas e seu amor.

Enquanto isto penso no meu dia e na minha vida. Une vie gâchée. E daì ? Desta vez a monotônia dos meus dias nâo me causa calafrios. Estou vivo. Isto me basta.

È incrìvel como certas pessoas abrem seu coraçâo e falam da sua intimidade no primeiro encontro e com o primeiro desconhecido que trombam no meio da rua. Eu nâo sou capaz desta façanha. Devo confessar que jà estou acostumado e até acho normal. Verdade ! Sem nenhum motivo, as pessoas me abordam no meio da rua, em plena luz do dia, e pedem emprego, dinheiro, ajuda, conselhos, mercadorias, alguns mesmo tentam oferecer “favores”, tudo isto num natural que, por vezes, fico apovorado e coloco a culpa na loucura da cidade. Digo nâo. Repetidos nâo. Acho que é a palavra que mais utilizo nesta cidade: nâo, nâo e nâo. Devo dizer uns 300 nâos por dia. Acordo com um nâo dentro da boca, aliàs, como o tempo o som vem automaticamente. Se alguém quer desperdiçar toda a sua fortuna, deve vir morar neste buraco : todo mundo pede algo a alguém; homens, mulheres, crianças, nâo existe limites. Se as pessoas se deixam levar, vai terminar na sarjeta, pedindo ao seu turno um pouco de dinheiro para sobreviver por algumas horas. Nâo hà dinheiro e paciência que chegue nesta cidade.

Olho o relògio : 14h00. A temperatura deve està a 40 graus centìgrados. Como todos estes sobreviventes conseguem respirar nesta fornalha ? Cinco ou seis mulheres sentadas na calçada, gordas, disformes, vestidas com pedaços de panos rotos, vendem seus montìculos de carvâo. Elas fazem parte da paisagem; ninguém presta atençâo nas suas silhuetas sujas e empoeiradas. Sigo o meu caminho. Olho para a frente como um condenado ou um comandante de navio. Sinto-me meio perdido com este turbilhâo de questôes existenciais, geralmente nâo sou assim, mas hoje o dia é especial, nâo me perguntem o motivo : começou especial e nâo adianta questionar.



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